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À terceira margem do Atlântico: um sertão de silêncio e desejo em Desmedida, de Ruy Duarte de Carvalho

On the third margin of the Atlantic: a sertão of silence and desire in Desmedida, by Ruy Duarte de Carvalho

Em el tercer margen del Atlántico: um sertão de silencio y deseo em Desmedida, de Ruy Duarte de Carvalho

Resumo

Tomando Desmedida como bússola e o percurso do lusoangolano Ruy Duarte de Carvalho como rota, o presente artigo discute e problematiza a busca de uma origem e de um sentido para o sertão na produção simbólica nacional. Desde os relatos dos primeiros viajantes que chegaram ao país, passando por textos de pesquisadores, historiadores ou escritores, o sertão é descrito como uma imensidão vazia a ser desbravada e contornada por palavras - palco para múltiplas figurações, transgressões e subversões da linguagem. Desmedida funciona como disparador de sentido e fio condutor para o percurso empreendido neste trabalho: aquele que aponta para o sertão como um excesso de vazio - ou falta de medida, de limite e de fronteira - já na estrutura dos significantes selecionados para nomeá-lo. Ao atravessar as obras de Euclides da Cunha e de Guimarães Rosa, Ruy Duarte de Carvalho apresenta dois modos distintos de lidar com o real do sertão e com a impossibilidade de o narrar. A torção de textos, tempos e existências empreendida por Carvalho é lida a partir da virada dos modos de subjetivação do sujeito e da linguagem e seus efeitos sobre os conceitos de ficção e representação na chegada à modernidade, tais quais identificados pelo filósofo Jacques Rancière. Para investigar os conceitos de real e de vazio, foram utilizados como referenciais teóricos artigos de Raul Antelo e de Jacques Lacan.

Palavras-chave:
Ruy Duarte de Carvalho; Guimarães Rosa; Euclides da Cunha; sertão; real

Abstract

Taking Desmedida as a compass and the route of the Portuguese-Angolan Ruy Duarte de Carvalho as a route, this article discusses and problematizes the search for an origin and a meaning for the sertão in the Brazilian symbolic production. From the accounts of the first travelers who arrived in the country, through texts by researchers, historians, or writers, the sertão is described as an empty immensity to be explored and circumvented by words - a stage for multiple figurations, transgressions, and subversions of language. Desmedida works as a trigger of meaning and a guiding for the path undertaken in this work: one that points to the sertão as an excess of emptiness - or lack of measure, limit, and frontier - already in the structure of the signifiers selected to name it. When crossing the sertão of Euclides da Cunha and Guimarães Rosa, Ruy Duarte de Carvalho presents two different ways of dealing with the real of the sertão and with the impossibility of narrating it. The twisting of texts, times and existences undertaken by Carvalho is read as a turning point in the subjectivation modes of the subject and language and its effects on the concepts of fiction and representation in the arrival of modernity, as identified by the philosopher Jacques Rancière. To investigate the concepts of real and emptiness, articles by Raul Antelo and Jacques Lacan were used as theoretical references.

Keywords:
Ruy Duarte de Carvalho; Guimarães Rosa; Euclides da Cunha; sertão; real

Resumen

Tomando como brújula a Desmedida y como ruta la ruta luso-angolana Ruy Duarte de Carvalho, este artículo discute y problematiza la búsqueda de un origen y un sentido para el sertão en la producción simbólica brasileña. A partir de los relatos de los primeros viajeros que llegaron al país, a través de textos de investigadores, historiadores o escritores, el sertão se describe como una inmensidad vacía para ser explorada y sorteada por las palabras, escenario de múltiples figuraciones, transgresiones y subversiones del lenguaje. Desmedida funciona como un disparador de sentido y un hilo conductor del camino emprendido en este trabajo: uno que apunta al sertão como un exceso de vacío - o falta de medida, límite y frontera- ya en la estructura de los significantes seleccionados para nombrar eso. Al cruzar las obras de Euclides da Cunha y Guimarães Rosa, Ruy Duarte de Carvalho presenta dos formas diferentes de tratar con lo real del sertão y con la imposibilidad de narrarlo. La torsión de textos, tiempos y existencias emprendida por Carvalho se lee desde el punto de inflexión en los modos de subjetivación del sujeto y del lenguaje y sus efectos sobre los conceptos de ficción y representación en la llegada de la modernidad, identificados por el filósofo Jacques Rancière. Para investigar los conceptos de real y vacío se utilizaron como referentes teóricos artículos de Raúl Antelo y Jacques Lacan.

Palabras-clave:
Ruy Duarte de Carvalho; Guimarães Rosa; Euclides da Cunha; sertão; real

Toda obra é uma viagem, um trajeto, mas que só percorre tal ou qual caminho exterior em virtude dos caminhos e trajetórias interiores que a compõem, que constituem sua paisagem ou seu concerto.

Gilles Deleuze

Antropólogo, poeta, romancista e cineasta, o luso-angolano Ruy Duarte de Carvalho fez da mobilidade e do trânsito entre culturas um método de investigação e de busca de sentido que perpassa toda a sua obra. Em Desmedida - Luanda, São Paulo, São Francisco e volta, ele esgarça as fronteiras geográficas, temporais e de gênero literário ao cruzar o Atlântico em busca de simetrias, semelhanças e convergências em (e entre) outras margens: de um lado, o deserto do interior africano, habitado por pastores, aventureiros, povos nativos ou caçadores; do outro, o sertão continental brasileiro, terra tantas vezes ocupada por índios, escravos forros, jagunços, bandeirantes, coronéis, viajantes ou exploradores. Em busca de um fio em comum entre Angola e Brasil, e atravessado pela herança colonial portuguesa, o autor revisita o sertão de Euclides da Cunha e de Guimarães Rosa, trazendo na bagagem outros tantos viajantes e estrangeiros que, como ele, partiram (e perderam-se) em viagens em busca de uma origem e um sentido para a região. Entre as paisagens literárias de Os sertões e de Grande sertão: Veredas, Ruy Duarte de Carvalho parece encontrar a terceira margem - do país, de si mesmo e da linguagem - numa tentativa de dar contorno e sentido à imensidão, delineando com palavras uma nova fronteira para o sertão. Tomando Desmedida como bússola e o percurso de Ruy Duarte de Carvalho como rota, este trabalho propõe-se a investigar o espaço reservado ao sertão na produção literária do país, e as diferentes formas narrativas utilizadas para o descrever.

Região marcada por sucessivos ciclos extrativistas - açúcar, corrida do ouro, pecuária, sojicultura, laranjais -, o sertão pode ser visto como essa ‘terra de ninguém” sedutora e violenta, em cujo espaço deu-se o choque brutal, violento, “entre o litoral modernizado, urbanizado, europeizado, e a arcaica, pastoril e parada maneira dos sertões” (Carvalho, 2010CARVALHO, Ruy Duarte de (2010). Desmedida: Luanda, São Paulo, São Francisco e volta. Rio de Janeiro: Língua Geral., p. 374). O sertão é também a margem dentro da margem, interior gigantesco de um país, inapreensível e pouco habitado, território que contempla o excesso pelo seu avesso, a falta, já em sua estrutura significante. Da carta de Pero Vaz de Caminha, no século XI, aos relatos de viajantes e pesquisadores, séculos depois, passando por Euclides da Cunha, Guimarães Rosa ou Ruy Duarte de Carvalho, reitera-se sempre a vastidão do vazio, uma imensidão a ser desbravada ou construída com palavras. Sua fronteira é mais do que geográfica: também é forjada a golpes de letra, espaço de criação e de invenção de um país - palco para a linguagem. Ou, como define o autor de Desmedida, a região “é o eixo e é o texto de um universo a que se dá um nome e onde colhe a dimensão de uma ideia e dos ecos que lhe conferem a insondável espessura do fundo, e a vaga desmedida da extensão de um cosmos. Estou a falar do sertão” (Carvalho, 2010CARVALHO, Ruy Duarte de (2010). Desmedida: Luanda, São Paulo, São Francisco e volta. Rio de Janeiro: Língua Geral., p. 121).

A etimologia da palavra sertão é controversa. Alguns historiadores apontam que sertão vem do radical latino “desertãnu” e indica um lugar desconhecido, distante e impenetrável; variação de “desertum”, termo incorporado ao vocabulário militar para indicar quem deserta e desaparece. Espaço e movimento, distância e travessia, portanto, compõem esse léxico. Os primeiros registros de uso do vocábulo remetem a Portugal no século XII, utilizado para se referir às terras situadas distante da capital. No século XV, o termo passou a ser usado para se referir às terras do interior do continente africano, quando avistadas dos navios portugueses. E, em 1500, aportou no Brasil, em carta de Pero Vaz de Caminha: “Pelo sertão nos pareceu, vista do mar, muito grande, porque, a estender olhos, não podíamos ver senão terra com arvoredos, que nos parecia muito longa” (Caminha, s. d.CAMINHA, Pero Vaz de (s.d.). Carta de Pero Vaz de Caminha. Disponível em: Disponível em: http://objdigital.bn.br/Acervo_Digital/Livros_eletronicos/carta.pdf . Acesso em: 1º dez. 2021.
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, p. 14). Apesar da incerteza sobre a origem, todos os sentidos remetem à imensidão vazia e desconhecida do interior de um país, território a ser desbravado e ocupado. Um convite a travessias topológicas ou literárias.

A historiadora Walnice Nogueira Galvão ressalta que o termo não tinha relação direta com vegetação árida ou clima desértico, mas, sim, com a questão espacial: originalmente, sertão era utilizado para se referir aos territórios distantes da costa. Sempre foi, portanto, um espaço a exigir demarcação de fronteiras:

O vocábulo se escrevia mais frequentemente com “c” (certam e certão) do que com “s”. E vai encontrar a etimologia correta no Dicionário da língua bunda de Angola, de frei Bernardo Maria de Carnecatim (1804), onde o verbete muceltão, bem como sua corruptela certão, é dado como lócus mediterraneus, isto é, um lugar que fica no centro ou no meio das terras [...]. Os portugueses levaram-na para sua pátria e logo trouxeram-na para o Brasil, onde teve longa vida, aplicação e destino literário (Galvão, 2006GALVÃO, Walnice Nogueira (2001). O império do Belo Monte: vida e morte de Canudos. São Paulo: Fundação Perseu Abramo., p. 88).

Desconhecido e desejado, temido e simbolizado, o sertão parece contemplar, em seu amplo território, abundância e pobreza, arcaísmo e conquistas, violência e contemplação. Contradições que seduziram legiões de viajantes, desbravadores e escritores que tantas vezes tentaram forjar um sentido para a região. Espaço de fronteira que, como afirma Ruy Duarte de Carvalho, “escapa, todavia, a um controle efetivo por parte do poder que invoca soberania sobre ele e é suscetível de ser regido ainda ou por sistemas de controle indígena ou por outros implantados depois, mas praticamente autônomos” (Carvalho, 2010CARVALHO, Ruy Duarte de (2010). Desmedida: Luanda, São Paulo, São Francisco e volta. Rio de Janeiro: Língua Geral., p. 84). Neste que pode ser considerado a terceira margem do Atlântico, talvez o local onde o colonialismo tenha deixado suas marcas mais profundas, confluência do extrativismo português, de povos nativos dizimados e de mão-de-obra da diáspora africana a trabalhar em sucessivas lavouras - na maioria das vezes, sem se tornar dona de terra alguma - , o sertão é mais do que uma referência geográfica: é uma topologia que marca corpos e destinos, espécie de pele que habita o sertanejo, tanto quanto este o habita. Ambos, ao final, indomáveis.

Também na literatura, a invenção do sertão ganhou camadas sobrepostas de significação, construídas por narrativas muitas vezes ambivalentes, que alternam entre a exploração do território por viajantes, cientistas e desbravadores e a valorização do exotismo; a natureza agreste, retorcida e ressequida, e a idealização de um povo, resistente à violência agônica da região. Como afirma Raul Antelo, em “A genealogia do vazio”, “a história monumental da literatura brasileira, história produzida por um nacionalismo eufórico, veio enfatizando a homogeneidade da origem e a continuidade de valores” (Antelo, 2001ANTELO, Raúl (2001). A genealogia do vazio. In: ANTELO, Raúl. Transgressão e modernidade. Ponta Grossa: EdUEPG. p. 25-39., p. 25). Para o autor, se a ficção produzida no país até o século XIX reforça e reafirma o vínculo entre identidade e território, com narrativas que revestem o espaço pouco habitado e recém-invadido de um sentido original, parte daquela produzida a partir do século XX começa a pôr sistematicamente em xeque o modelo cultural preestabelecido e a questionar a pretensa verdade contida nesse discurso de origem. Do esgotamento de um discurso fundador, violentamente forjado e submetido à legitimação de modelos europeus, emerge, aos poucos, uma ficção capaz de dar conta do vazio e do rumor, do indizível e do inconfessável; ficção capaz de questionar a necessidade de formação de sentido pela representação do absoluto; ficção que se volta sobre si mesma, problematizando o próprio fazer literário, ao invés de buscar um sentido homogêneo ou totalizante para a obra. Se aplicada à produção sobre o sertão, uma genealogia do vazio abriria espaço para o fragmento, o singular, o íntimo, a incompletude - para a problematização da falta em substituição à exaustiva busca de um sentido original ou totalizante.

Se lido como em uma banda de Moebius, o sertão é a superfície que recobre margens contínuas, “interior” e “exterior” que se complementam, ao invés de se oporem, num deslizar infinito entre si; superfície, portanto, que é mais do que geográfica, é também corpórea e afetiva, composta, em seu centro, por um espaço vazio que lhe dá forma e lhe encerra - o real do sertão. Espaço que ganha contorno pelas palavras, capazes de forjar simultaneamente um território e uma língua a partir de um vazio original. Ou, como afirma Jacques Lacan, o oito interior que dá forma à Banda de Moebius “é uma falta que o símbolo não supre. Não é uma ausência contra a qual símbolo pode se precaver” (Lacan, 2005LACAN, Jacques (2005). A angústia. Rio de Janeiro: Zahar ., p. 152).

O que parece estar em jogo em alguns desses livros é a constatação do que há de inapreensível neste real que teima em escapar pelas mãos, impossível de ser apreendido ou domesticado por palavras. Real que, na psicanálise, é uma abstração representada pela banda de Moebius: em seu centro, encontra-se o vazio que precisa ser contornado pelo deslizar incessante do significante em busca de um significado que atenda à demanda de sentido. Um real que é ponto de partida, mas nunca de chegada, conclusão ou definição - cujo efeitos são sentidos no corpo das personagens e descritos por narrativas que, de modos distintos, travam um embate constante com as próprias limitações do fazer literário, cientes de que não conseguirão elidir o vazio original. Um real que se afasta do conceito de realidade e se aproxima daquilo que escapa à simbolização, e que retorna como repetição traumática para o sujeito, igualmente ciente de sua incompletude e fragmentação; que subverte qualquer possibilidade de estabilidade simbólica e escancara a insuficiência da linguagem para dar conta de um projeto de representação. Como diz Jacques Lacan em A terceira: “O real não é o mundo. Não há esperança alguma de alcançar o real pela representação” (Lacan, 2016LACAN, Jacques (2016). A terceira. In: LACAN, Jacques. Documentos para uma Escola VI - A terceira: uma escola para a psicanálise. Tradução de Analúcia Teixeira Ribeiro. Rio de Janeiro: 7Letras., p. 6). Há sempre o que resta e escapa à palavra - o indizível ou o equívoco inerente à linguagem - e que retorna em forma de repetições e silêncios. “O real, justamente, é o que não caminha, é o que atravessa o caminho dessa carruagem. Bem mais do que isso, é o que não cessa de repetir para entravar essa marcha [...] É o que volta sempre ao mesmo lugar” (Lacan, 2016LACAN, Jacques (2016). A terceira. In: LACAN, Jacques. Documentos para uma Escola VI - A terceira: uma escola para a psicanálise. Tradução de Analúcia Teixeira Ribeiro. Rio de Janeiro: 7Letras., p. 5). Ou, como afirma Guimarães Rosa, que parece antever a conceituação do psicanalista francês para o real ao escrever Grande sertão: veredas: “Sertão é isto: o senhor empurra para trás, mas de repente ele volta a rodear o senhor dos lados. Sertão é quando menos se espera” (Rosa, 2019ROSA, Guimarães João (2019). Grande sertão: veredas. São Paulo: Companhia das Letras. , p. 208).

Falar de sertão também é falar de movimento, em uma topologia que convida à travessia e ao deslizar por uma superfície que corta e contorna o vazio, o silêncio e a falta. Desmedida é o resultado do trânsito entre o ensaio antropológico e o relato de viagem, os dados historiográficos e a narrativa literária. Espaço tão selvagem e indomável quanto a linguagem utilizada para tentar decifrá-lo. Um convite, portanto, a múltiplos cruzamentos que o autor percorre, colocando-se em cena, suturando corpo e linguagem, experiência e letra. Refazendo os passos de Euclides da Cunha e Guimarães Rosa, e de tantos outros que vieram antes dele, Ruy Duarte de Carvalho atravessa textos e estradas, desloca palavras e sentidos, impõe cortes às narrativas e abre outras veredas literárias, escancarando a impossibilidade de dar conta de um real do sertão. Faz da narração um exercício de demarcação de fronteiras às margens de um duplo vazio deixado por Rosa e por Cunha. E, como fizeram os dois outros autores antes dele, Carvalho dispõe-se a atravessar, ele próprio, esta abstração geográfica - a imensidão do sertão - fazendo roçar corpo e texto, carne e palavra. Terceira volta, terceira margem: torção de textos, tempos e existências, em uma travessia que se faz única, uma vez mais.

Se pensado como fronteira íntima e interna, o sertão é o avesso da pele e o excesso de terra do interior do país - “desmesurada desmedida de um liso enorme, raso perverso, o liso pior havente, escampo dos infernos, chão esturricado, esses mares de sertão” (Carvalho, 2010CARVALHO, Ruy Duarte de (2010). Desmedida: Luanda, São Paulo, São Francisco e volta. Rio de Janeiro: Língua Geral., p. 81) -, para o qual é preciso encontrar um litoral próprio, um limiar que o contorne. Em Desmedida, o autor escreve a partir do encontro com a experiência de criação de outros que ali estiveram antes dele. E, como seus antecessores, vai além: parte do terreno literário para o território físico, faz viagens de reconhecimento para o alto, o médio e o baixo Rio São Francisco, revisita paisagens geográficas e literárias, para “tentar apreender os seus passados para ver se consigo situar-me nos seus presentes (Carvalho, 2010CARVALHO, Ruy Duarte de (2010). Desmedida: Luanda, São Paulo, São Francisco e volta. Rio de Janeiro: Língua Geral., p. 150).

Nessa travessia, Ruy Duarte de Carvalho adiciona camadas de singularidade à trama, “transforma, condensa, desloca, transforma, transcria, para fisgar algo do real” (Andrade, 2016ANDRADE, Vania Maria Baeta (Org.) (2016). Novo dicionário de migalhas da psicanálise literária. Belo Horizonte: Cas’a’screver., p. 300). Incorpora trechos de Grande Sertão: veredas à própria narrativa - “o sertão é o pensamento que a gente faz dele, mais forte do que o poder de um qualquer lugar” (Carvalho, 2010CARVALHO, Ruy Duarte de (2010). Desmedida: Luanda, São Paulo, São Francisco e volta. Rio de Janeiro: Língua Geral., p. 82) - e acrescenta novos recortes à paisagem descrita por Rosa - “quando você ascende do oco, depara é com a superfície horizontal de um platô que excede horizontes sem nenhuma árvore, cultivado de soja e de braquiária para semente” (Carvalho, 2010CARVALHO, Ruy Duarte de (2010). Desmedida: Luanda, São Paulo, São Francisco e volta. Rio de Janeiro: Língua Geral., p. 82). Em diálogo com Cunha, compartilha com o autor de Os sertões a experiência de encerrar a viagem em Bendengó, e chegar ao lugarejo debaixo de uma chuva torrencial, “enquanto os fios da condução elétrica, de poste em poste, se iam destacando riscados num céu cada vez mais cobalto até virar de um negro doloroso e fundo porque nuvens volumosas abarreiravam ao longe os horizontes, recortando-os em relevos imponentes de montanhas negras” (Carvalho, 2010CARVALHO, Ruy Duarte de (2010). Desmedida: Luanda, São Paulo, São Francisco e volta. Rio de Janeiro: Língua Geral., p. 382). E de ouvir, debaixo da imensa camada de água que destruiu Canudos pela segunda vez, com a construção do Açude de Cocorobó, em 1970, o som e o silêncio trazidos pela guerra, “a assonância indescritível de gritos, lamentos, choros e imprecações refletindo do mesmo espaço o espanto, a dor, o exaspero e a cólera da multidão torturada que ruge e chora [...] gritos, e choros, e risos, de crianças...e o silêncio...o mesmo silêncio formidável que acontece com o último disparo, quando cessa o fragor dos estampidos” (Carvalho, 2010CARVALHO, Ruy Duarte de (2010). Desmedida: Luanda, São Paulo, São Francisco e volta. Rio de Janeiro: Língua Geral., p. 384).

E é desse sertão feito de fome, falta e silêncio que se ocuparam alguns autores do cânone nacional, e que Ruy Duarte de Carvalho revisita em Desmedida. Se Euclides da Cunha tentou esgotar o sertão com descrições da paisagem e teses científicas que dessem conta de uma justificativa - provisória e cambiante até o fim - para a violência de Canudos e o arcaísmo de um país que precisava ser civilizado a qualquer custo, Guimarães Rosa faz o caminho inverso e escolhe um ex-jagunço para narrar a travessia por labirínticas veredas da existência. Se, em Cunha, é o sujeito cartesiano quem conduz a narrativa, imbuído de uma convicção determinista na ciência, na verdade e na causalidade dos fatos, mesmo quando elas não dão conta do delírio e da violência no sertão, em Rosa, um ex-jagunço põe-se em questão para um ouvinte letrado ao longo das mais de 600 páginas do romance, confrontando-se com o enigma da vida, das paixões e da guerra, escancarando o quão provisórias, imprecisas e fugidias são as palavras e o sentidos que elas carregam.

Se, em Cunha, a travessia é em busca de uma narrativa que dê coerência a fatos tantas vezes contraditórios, em Rosa, o percurso é por uma linguagem que exponha justamente as formações e deformações do sujeito que advém delas, com todas as suas incoerências e imprecisões. Se o primeiro busca uma racionalidade capaz de estruturar o mundo e as existências em uma ordem hierárquica que não deixa restos, bordas ou beiras, o segundo escancara justamente as falhas e os furos, os pequenos acontecimentos e as existências mais banais. “O senhor vê aonde é o sertão? Beira dele, meio dele? Tudo sai mesmo é de escuros buracos, tirante o que vem do céu. Eu sei”, questiona-se Riobaldo (Rosa, 2019ROSA, Guimarães João (2019). Grande sertão: veredas. São Paulo: Companhia das Letras. , p. 426). Em Rosa, a escrita parece surgir nessa fronteira íntima, esburacada, como uma tentativa de lidar com a falta de sentido, com o obscuro e o inominável de cada existência, sem tentar tamponá-la ou decifrá-la. Se o que está à margem ganha centralidade na obra do escritor mineiro, implodindo a estabilidade da linguagem ao criar uma língua própria e embaralhar os gêneros literários, até encenar um romance de cavalaria em pleno sertão, Euclides da Cunha perfaz o caminho inverso, ao mapear e catalogar raças e espécies, reduzindo a potência da alteridade à objetificação do saber.

De certa forma, Desmedida problematiza a virada dos modos de subjetivação da linguagem identificada pelo filósofo Jacques Rancière na Idade Moderna, ao apresentar dois modos distintos de lidar com o real do sertão e com a impossibilidade de narrá-lo. Para o filósofo argelino radicado na França, uma revolução silenciosa empreendida pela literatura moderna libertou a palavra da função que ocupava no regime representativo clássico e a fez circular sem camisa de força, para além de um significado que desse um sentido único, homogêneo e edificante aos corpos, atos e afetos humanos. Se, na idade clássica, havia uma palavra concebida para servir de modelo para vontades e paixões, capaz de regular a ordem representativa como em um discurso de mestria, na modernidade há espaço para a palavra que não sabe o que diz, para o silêncio e o sem sentido - enunciações proferidas por um sujeito dividido pela existência do inconsciente, desamparado, sem um significante mestre que lhe sirva como guia: “Existe pensamento que não pensa, pensamento operando não apenas no elemento estranho do não-pensamento, mas na própria forma do não-pensamento” (Rancière, 2009RANCIÈRE, Jacques (2009). O inconsciente estético. São Paulo: Editora 34., p. 34).

Na modernidade, surge uma literatura que emerge do avesso da representação e abre espaço para abarcar o silêncio das coisas mudas; os restos de palavras e vestígios de sentido; os rastros inscritos em corpos e rostos anônimos; as outras vozes, de si mesmo e daqueles à margem - geográfica ou social; a insignificância dos acontecimentos mais banais. Literatura resultante do que Rancière chama de letra órfã, disponível a qualquer um que se disponha a usá-la e se fazer ouvir, e não mais encastelada na tragédia ou na comédia clássicas - privilégio de alguns poucos capazes de tomar as rédeas da ação, agentes da história, e organizá-la segundo as regras da racionalidade ficcional da poética aristotélica. Em substituição à palavra ordenadora do período clássico, submetida a um discurso de mestria capaz de regular a ordem representativa, eis que emerge outra, silenciosa, que carrega em si as marcas da história e uma potência transformadora. “Não existem temas nobres e temas vulgares, muito menos episódios narrativos importantes e episódios descritivos acessórios. Não existe episódio, descrição ou frase que não carregue em si a potência da obra. Porque não há coisa alguma que não carregue em si a potência da linguagem”, afirma o filósofo (Rancière, 2009RANCIÈRE, Jacques (2009). O inconsciente estético. São Paulo: Editora 34., p. 37). Literatura que se aproxima desse ponto de escansão da psicanálise, não em busca de uma verdade ou origem perdidas, mas para fazer ouvir o silêncio, o banal e o detalhe, para fazer borda ao vazio e à falta de sentido originais, e lhes dar um contorno pela palavra.

Para Rancière (2009RANCIÈRE, Jacques (2009). O inconsciente estético. São Paulo: Editora 34.), a psicanálise fura o saber da racionalidade clássica, ao reler Édipo como um anti-herói e o apresentar como protagonista de uma mitologia moderna. Sob a leitura de Freud, o Édipo Rei de Sófocles caminha às cegas pela própria história e não tem qualquer controle sobre suas ações: ao matar o pai e se deitar com a mãe, Édipo explicita que não sabe o que faz e que desconhece as consequências dos seus atos. A ignorância, portanto, não é um fardo exclusivo dos excluídos da história, das massas operárias, dos loucos ou delirantes. Tampouco o ordenamento das ações traz resolução para o conflito ou esclarecimento para os atos. “É essa a ordem que vem romper o Édipo romântico, o herói de um pensamento que não sabe o que sabe, que quer o que não quer, que age padecendo e fala por mutismo” (Rancière, 2009RANCIÈRE, Jacques (2009). O inconsciente estético. São Paulo: Editora 34., p. 49). A narrativa ficcional do século XIX alarga suas margens, para fazer caber nela um sujeito fraturado e à deriva, às voltas com a dúvida, a incerteza, o não-sabido, as contradições e limitações da experiência humana. O homem, já não tão seguro de si quanto desejava o Iluminismo, perde seu centro, e a literatura - como a psicanálise - acompanha a derrocada do sujeito, costurando a vida pelas beiradas.

Se a estabilidade do saber ficcional de matriz racional clássica começou a ser posta em xeque na modernidade, seus mecanismos e técnicas de encadeamento causal parecem ter migrado para as ciências sociais e humanas, para forjar grandes narrativas para a humanidade e construir pretensas verdades compartilhadas. É o que defende Rancière, em As margens da ficção, ao afirmar que “é fácil verificar que os princípios aristotélicos da racionalidade ficcional continuam formando hoje a matriz estável do saber que as nossas sociedades produzem sobre si. Seja nas grandes teorias da sociedade e da história, seja na ciência oracular de pouco fôlego dos políticos, especialistas, jornalistas e ensaístas” (Rancière, 2021RANCIÈRE, Jacques (2021). As margens da ficção. São Paulo: Editora 34 ., p. 8). Contraditoriamente, se a ciência social se apropriou da técnica ficcional para ordenar os acontecimentos e contar a história do progresso e dos feitos humanos, a ficção fez o caminho inverso e se abriu ao ordinário, aos acontecimentos mais comezinhos, ao que Rancière chama de “universo dos microacontecimentos sensíveis” (Rancière, 2021RANCIÈRE, Jacques (2021). As margens da ficção. São Paulo: Editora 34 ., p. 137), à existência daqueles que viviam à beira do nada, criando gêneros narrativos para dar um outro contorno à existência.

Jacques Rancière parece tratar da mudança de centro gravitacional da literatura na modernidade. Não foi só a terra - e os homens que nela habitam - que deixaram de ser o centro do universo. Também a literatura se encarregou de abarcar o que estava à margem e lançar um outro olhar para este sujeito já não tão seguro de si, nem tampouco do discurso da razão. A ficção moderna passa a explorar os restos e dejetos da experiência humana, o que ficou à margem, os pequenos gestos, o instante-já, sem qualquer preocupação com o encadeamento narrativo aristotélico que prendia a narrativa a um princípio, meio e fim. Na contramão do discurso científico, a ficção moderna tomou para si o lugar da experiência fraturada, de existências menores, de vidas onde nada ou quase nada acontece, de um momento qualquer, banal, corriqueiro, que ganha ares de eternidade pelas lentes da ficção. Tudo isso a partir de um fazer literário que abre espaço para as fraturas expostas, pausas e gaguejos, para as zonas de luz e sombra, colocando em questão a própria linguagem e sua capacidade de impor uma ordem mínima à existência através das palavras.

Rancière defende a importância dessa literatura que se aproxima de uma realidade mais ordinária, ao colocar em destaque a vida de pessoas para além dos salões de festa e das casas burguesas, arejando a ficção e criando outras fronteiras para a narrativa; de uma literatura que se ocupa do tempo ocioso e dos homens comuns, da derrota, da vertigem e do fracasso, tirando de sob o tapete existências e afetos que o progresso insistia em manter à sombra. O filósofo sugere aqui a importância de dar voz aos que não costumam ser ouvidos, destacando, em seus ensaios, exemplos de ficção que se ocupam dos limites da existência e “incluem aqueles a quem normalmente nada pode nem deve acontecer ou que se mantêm sobre a própria linha de separação entre o mundo onde nada acontece e aquele onde alguma coisa se passa” (Rancière, 2021RANCIÈRE, Jacques (2021). As margens da ficção. São Paulo: Editora 34 ., p. 15). É nesta beirada do nada e do tudo que Rancière localiza a ficção de Guimarães Rosa e a capacidade do autor mineiro de capturar o átimo, o lampejo, o instante, o ínfimo, o corriqueiro e o quase nada, e traduzi-lo em palavras.

Publicado na coletânea As margens da ficção, o ensaio de Rancière refere-se especificamente às narrativas curtas de Guimarães Rosa reunidas em Primeiras histórias, mas talvez seja possível se apropriar da leitura para iluminar alguns aspectos de Grande sertão: veredas e, pelo seu avesso, também de Os sertões. A determinação geográfica impressa logo no título de ambos os livros sugere um percurso de leitura e convida à reflexão sobre a indeterminação dos limites do sertão e a tentativa de traçar um contorno para ele com as palavras. De alguma forma, a travessia de Ruy Duarte de Carvalho por ambas as obras dialoga com a reflexão de Rancière sobre as margens simbólicas traçadas através das palavras, a apropriação de técnicas narrativas da poética clássica pelas ciências sociais e humanas, e a resposta da literatura à dúvida, à imprecisão e à divisão do sujeito da modernidade.

Curiosamente, desmedido é o adjetivo escolhido por Rancière para se referir à coletânea de beiras de história ou quase-histórias de vidas à deriva, banais ou ordinárias, buriladas por Guimarães Rosa em Primeiras histórias. Como no clássico de Rosa ou de Cunha, aqui também as histórias são encenadas à terceira margem, neste interior gigantesco do país localizado às costas do Atlântico e anterior à nova capital federal, e descrevem existências marcadas por um arcaísmo que não cabe no slogan “50 anos em 5” e no projeto “de um Brasil novo no começo do surgir”, como descreve Luiz Costa Lima para se referir à insistência do país em promover o progresso a qualquer custo (Lima, 2019LIMA, Luiz Costa (2019). O mundo em perspectiva: Guimarães Rosa. In: ROSA, Guimarães João. Primeiras histórias. São Paulo: Global Editora. p. 161-176., p. 161). Transformado em substantivo feminino por Ruy Duarte de Carvalho, Desmedida sintetiza o tamanho do desafio enfrentado pelo autor, comum aos que vieram antes dele, para dar conta da ausência de medida para o sertão e das diferentes tentativas e formas narrativas utilizadas para o domar ou, ao menos, contorná-lo com palavras. Entrevisto nas brechas entre o simbólico e o imaginário, ali onde a palavra vacila, Desmedida atesta, já pelo título, o esforço do autor para lidar com o impossível do real do sertão, com o vazio que não cabe nas palavras.

Falar de sertão é tentar haver-se com um real que sempre escapa à definição ou à delimitação - tão fugidio, impreciso e impossível quanto a própria existência humana. Ainda sob efeito do cartesianismo que fez o homem colocar-se como objeto de análise de si mesmo, criando as ciências humanas, e se achar capaz de revelar a verdade munindo-se de um irrestrito aparato científico - da biologia, da botânica, da física ou da geografia -, Euclides da Cunha parte para o sertão com a certeza de o decifrar. Visto em retrospecto, Canudos marca a imolação pública de um projeto de república em nome do progresso; e a sobrevivência errante no sertão, confluência de desterrados e escravos forros que o desbravaram, em cujo espaço deu-se o choque brutal, violento, “entre o litoral modernizado, urbanizado, europeizado, e a arcaica, pastoril e parada maneira dos sertões” (Carvalho, 2006CARVALHO, Ruy Duarte de (2010). Desmedida: Luanda, São Paulo, São Francisco e volta. Rio de Janeiro: Língua Geral., p. 374). Pela verve de Cunha, no entanto, os acontecimentos são enfileirados de modo a aprisionar o indivíduo “à realidade global de uma história em plena evolução”, como diria Rancière (2021RANCIÈRE, Jacques (2021). As margens da ficção. São Paulo: Editora 34 ., p. 12) para se referir tanto à narrativa das ciências sociais, quanto às teorias científicas disponíveis à época utilizadas para construir formas de pensamento e justificativas para a barbárie.

Munindo-se de técnicas narrativas da ficção, Euclides da Cunha desenvolve um estudo com fortes tintas épicas: dividido em três partes - A Terra, O Homem, A Luta - e sem dar voz a qualquer um dos habitantes à margem do projeto de nação da época, Cunha constrói uma narrativa onde o herói é a ciência e o progresso, e o inimigo a ser combatido é o obscurantismo representado pelo fanatismo religioso de Antônio Conselheiro e os fiéis que lhe seguiam. Usando a teoria das ciências sociais ou biológicas, o autor de Os sertões aproxima pontos equidistantes e impõe uma noção de causalidade entre eles, aproximando-se do que Rancière chama de “ficções inconfessas da política, da ciência social ou do jornalismo” (2021, p. 13), e lhes dando atributo de realidade, ou de chave para a verdade. No entanto, é a loucura o significante escolhido para encerrar o livro - justo o que escapa, como um elemento estranho, e não se integra ao projeto de nação e ao discurso da razão. Mais uma vez, a ciência é invocada para decifrar a situação: “Ali estavam, no relevo de circunvoluções expressivas, as linhas essenciais do crime e da loucura”, afirma Cunha (2002CUNHA, Euclides (2001). Os sertões: campanha de Canudos. São Paulo: Ateliê Editorial., p. 780), referindo-se à cabeça decepada de Conselheiro, celebrada, conta ele, por uma multidão em festa. “É que ainda não existe um Maudsley para as loucuras e os crimes das nacionalidades” (2002, p. 781), conclui, encerrando o livro, referindo-se ao psiquiatra inglês estudioso de psicopatias e suas implicações penais.

Euclides da Cunha produz a epítome do projeto de modernidade nacional, mantendo-se fiel, da primeira à última linha de Os Sertões, à estrutura narrativa clássica. Sustentando-se, claudicante, nos conhecimentos científicos mais avançados da época, ele tateia um sentido para a barbárie, sufocando as paixões, o medo, a dúvida, a selvageria ou qualquer outra emoção que abra brechas para o indomável ou para a desordem. Preso à organicidade lógica, esforça-se para construir uma epopeia sem grandes almas, onde o lugar vago deixado pelo herói foi tamponado pelo discurso de mestria da ciência. Contraditoriamente, no entanto, Os sertões escancara o seu oposto: a falência da ordem lógica e de um projeto de modernidade arruinado desde a origem. Ecoando Walter Benjamin, em Alarme contra incêndio (2020), Canudos sintetiza o momento em que a centelha do progresso chega à dinamite, implodindo o projeto civilizador de uma república recém-criada. Os sertões é o efeito de um paradoxo, visível já em sua estrutura narrativa: nasce do esforço desmedido do autor para descobrir, elucidar, explicar ou ordenar um projeto de nação que já surge arruinada, soterrada por uma estrutura corroída e corrompida desde as bases.

É essa origem simbólica paradoxal, fundada na tentativa de forjar uma fronteira para o país, que Ruy Duarte de Carvalho retoma e atualiza em Desmedida, ao revisitar, de uma só vez, os muitos sertões que habitam o imaginário nacional. De Euclides da Cunha, ele resgata o choque e as ruínas que emergem da violência e da barbárie de Canudos. “Aquilo não era uma campanha, era uma charqueada [...] Canudos tinha muito apropriadamente, em roda, uma cercadura de montanhas. Era um parêntesis, um hiato. Era um vácuo. Não existia” (Carvalho, 2010CARVALHO, Ruy Duarte de (2010). Desmedida: Luanda, São Paulo, São Francisco e volta. Rio de Janeiro: Língua Geral., p. 376). Desse vazio, Ruy Duarte de Carvalho ecoa a dor, as queixas e o silêncio deixados pelo conflito, “a assonância indescritível de gritos, lamentos, choros e imprecações refletindo do mesmo espaço o espanto, a dor, o exaspero e a cólera da multidão que ruge e chora, o surdo e indefinível arruído da população entocada, que ousou transgredir a lei do Estado” (Carvalho, 2010CARVALHO, Ruy Duarte de (2010). Desmedida: Luanda, São Paulo, São Francisco e volta. Rio de Janeiro: Língua Geral., p. 384).

Canudos exemplifica e concretiza o alerta soado por Walter Benjamin (2020BENJAMIN, Walter (2020). Alarme contra incêndio. In: BENJAMIN, Walter. Rua de mão única. infância berlinense: 1900. Belo Horizonte: Autêntica Editora. p. 42.) sobre os efeitos do conceito de progresso que a tudo arrasta tão violentamente por um tempo homogêneo e linear, tragando diferenças e resistências de todo tipo, e o percurso destrutivo, sustentado por um discurso racionalista, traçado pelo homem desde a chegada à modernidade. Em Os sertões, essa estrutura lógica, linear e homogeneizante, dita também a marcha da narrativa, a tentativa de representação do sertão e suas contradições, o excesso de teorias que reforçam o lugar do sujeito cartesiano, o desejo de encontrar uma justificativa para a barbárie em curso. Ou, como explicado por Rancière para demarcar as diferenças entre a ficção e a ciência - social ou humana - no final do século XIX:

O pensador e o homem de ciência se dirigem a espíritos que calculam as possibilidades de intervenção do pensamento e do desejo do mundo exterior, a espíritos preocupados com a ordem ou a desordem, temerosos ou supersticiosos, que precisam ser tranquilizados sobre a realidade do mundo e sobre a aptidão do pensamento para chegar a seus fins. Eles se dirigem aos espíritos positivos que precisam acreditar porque precisam traçar os caminhos do possível no mapa do real (Rancière, 2017RANCIÈRE, Jacques (2017). O fio perdido. São Paulo: Martins Fontes., p. 22).

É outro o percurso de Guimarães Rosa pelo sertão. Se Cunha busca mapear e decifrar os sulcos, percursos e gente da região à luz da ciência, Rosa parece abrir espaço para o arcaico, o primitivo, o oculto e o indecifrado, para afetos e paixões complexas e imbricadas, narradas aos solavancos a partir da tradição oral e de uma linguagem própria, caudalosa e tortuosa como os rios da região, abrindo veredas entre espinhos, deixando marcas na imensidão. Veredas que funcionam como “fios do discurso” (Rosa, 2019ROSA, Guimarães João (2019). Grande sertão: veredas. São Paulo: Companhia das Letras. , p. 494), caminhos possíveis para enveredar pelo mar de histórias que recobre o sertão. Travessia feita em terreno incerto, labiríntico e bifurcado, sem certezas de qualquer ordem, sujeita aos riscos e perigos do percurso, exigindo do sujeito coragem para cruzá-lo - “Vida é sorte perigosa; passada na obrigação: toda noite é rio-abaixo, todo dia é escuridão” (Rosa, 2019ROSA, Guimarães João (2019). Grande sertão: veredas. São Paulo: Companhia das Letras. , p. 230). Pelo avesso de Os sertões, Grande sertão: veredas assume a falácia da representação ao colocar em cena um narrador complexo, cruzando às cegas um mundo desencantado, contraditório e enigmático, impossível de ser compreendido; às voltas com o impossível e o imprevisível; um sujeito que só consegue fazer borda à solidão e ao vazio original, costurando e descosturando o desejo com palavras.

Neste mar de sertão a perder de vista, Rosa faz litoral, demarcando uma nova fronteira - fugidia, móvel - entre cidade e campo, erudito e popular, bem e mal, saber e não-saber; ou entre “centro e ausência, saber e gozo” (Lacan, 2003LACAN, Jacques (2003). Lituraterra. In: LACAN, Jacques. Outros escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar. p. 15-25. , p. 21), criando uma linguagem para dar conta do impossível, uma outra forma de narrar o vazio e o silêncio que transtornam o sujeito moderno. Nessa leitura cartográfica da literatura sugerida pela psicanálise, o litoral é a região limítrofe que serve de fronteira ao outro que habita em nós, sem formar um todo ou se completar; borda entre o campo simbólico, que guarda significados arraigados e conceitos pré-fabricados, e o real incapturável e irrepresentável; rasura necessária para furar a representação e abrir espaço para novos sentidos. Ou, retornando a Benjamin - que curiosamente também se apropria da água como metáfora para a linguagem e como matéria para a existência humana -, é o romancista moderno quem encara o silêncio e a solidão da travessia marítima ao “descrever a existência humana, levando o incomensurável ao paroxismo” (Benjamin, 1994BENJAMIN, Walter (1994). A crise do romance. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense. p. 54-60. (Obras escolhidas: v. 1)., p. 54) e incorporando à narrativa a dúvida, a ignorância, a inconsistência, o sem sentido - restos que compõem o sujeito do inconsciente, anti-herói fraturado da contemporaneidade.

É justamente a busca pelo que não tem medida que guia Ruy Duarte de Carvalho pelos mares do sertão brasileiro. Não à toa, é o Rio São Francisco que serve de fio para a história narrada por Carvalho a Paulino, seu assistente, e outros pastores, ao redor do fogo, no deserto de Angola. Afinal, “contar do que se viu, depois de ter andado a viajar, faz parte do que compete a quem volta ao lugar de onde saiu antes, quando regressa aos seus”, afirma Carvalho (2010CARVALHO, Ruy Duarte de (2010). Desmedida: Luanda, São Paulo, São Francisco e volta. Rio de Janeiro: Língua Geral., p. 2012). Às avessas de Riobaldo, que narra suas aventuras a um ouvinte citadino, Carvalho se esforça para criar pontos de convergência entre o sertão brasileiro e o interior africano para uma pequena plateia de pastores iletrados. E é pelo curso do São Francisco - também conhecido como “rio dos currais” e pelos vaqueiros que o habitaram - que o autor escolhe escoar suas histórias e seu assombro com a grandiosidade da região. “Tem esse rio e tem outro, que é quase maior e vem se juntar, e aí se faz uma largura desmedida de águas, as de um e as de outro escorrendo a par, mais verdes uma, da cor de barro as outras”, explica Carvalho (2010CARVALHO, Ruy Duarte de (2010). Desmedida: Luanda, São Paulo, São Francisco e volta. Rio de Janeiro: Língua Geral., p. 212).

O mesmo rio de proporções desmesuradas no qual acontece o encontro definitivo do protagonista de Grande Sertão: veredas com seu destino: ainda muito jovem, na pré-adolescência, Riobaldo é convidado por um amigo a cruzar de canoa o manso e cristalino De Janeiro e chegar ao turbulento São Francisco, travessia da infância à vida adulta, dos tempos de paz à transformação em jagunço, das descobertas do amor e da dor. Travessia que guarda um enigma e que dá conta da ignorância do sujeito moderno, caminhando às cegas em busca de seu desejo, e que só começa a ganhar contorno e algum sentido quando colocada em palavras.

Ao revisitar seu passado e o narrar ao visitante da cidade, Riobaldo atravessa uma topologia que é simultaneamente geográfica e existencial, temporal e metafísica, constituída na e pela linguagem. Uma existência que ganha contorno a partir de um léxico próprio, capaz de nomear experiências e sentimentos deixados à margem pela lógica tradicional da representação, resultado do “entrelaçamento de uma multiplicidade de experiências individuais, o tecido vivido de um mundo no qual não é mais possível distinguir as grandes almas que pensam, sentem, sonham e agem, e os indivíduos presos na repetição da vida nua” (Rancière, 2017RANCIÈRE, Jacques (2017). O fio perdido. São Paulo: Martins Fontes., p. 27). Em Grande sertão: veredas, não é o homem das letras quem toma a palavra para decifrar o exótico interior das Gerais: é um ex-jagunço quem ganha voz para narrar o conflito faustiano de conversão ao crime, ao buscar o que ele ainda não sabe nomear como amor; uma vida que ganha voz, contorno e existência ao narrar o desejo, fazendo da ordinária vida nos cantões do país uma extraordinária experiência de linguagem.

A ficção de Guimarães Rosa parece se fundar não à margem esquerda ou direita, mas justamente na travessia entre elas, em torno de um vazio, de um silêncio e de um não-saber. Lá, no intervalo, no desmedido sertão “que carece de fechos” (Rosa, 2019ROSA, Guimarães João (2019). Grande sertão: veredas. São Paulo: Companhia das Letras. , p. 13), neste real “que não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia” (Rosa, 2019ROSA, Guimarães João (2019). Grande sertão: veredas. São Paulo: Companhia das Letras. , p. 53), como afirma Riobaldo em Grande sertão: veredas, instala-se, para citar Rancière, “o lugar paradoxal da ficção” (Rancière, 2021RANCIÈRE, Jacques (2021). As margens da ficção. São Paulo: Editora 34 ., p. 162). A travessia é, portanto, campo aberto para múltiplas possibilidades de linguagem, tentativa permanente de ludibriar formas fixas, verdades mitológicas, certezas científicas. Só a ficção, parece dizer Rosa, permite a invenção de uma terceira margem - de outras margens -, numa eterna rebeldia contra qualquer representação estanque, fechada. Linguagem, depósito vivo, espécie de aluvião para onde o rio arrasta os sedimentos do percurso, lalangue lacaniana - que ultrapassa qualquer instrumentalização para dar conta dos equívocos, dos chistes, dos restos, e delinear uma literatura que não se prende a qualquer lógica ou limites, temporais ou geográficos, indo além de si mesma, flertando com o infinito, capaz de transformar “o cosmo num sertão no qual a única realidade seja o inacreditável”, como afirma Rosa (1956ROSA, Guimarães João (1965). Diálogo com Guimarães Rosa. [Entrevista a] Günter W. LORENZ. Templo Cultural Delfos. Disponível em: Disponível em: http://www.elfikurten.com.br/2011/01/dialogo-com-guimaraes-rosa-entrevista.html . Acesso em: 8 jun. 2022.
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).

Talvez o maior mérito de Ruy Duarte de Carvalho tenha sido o de atravessar a imensidão do cosmo rosiano ou o sertão no plural de Euclides da Cunha sem tentar adicionar uma síntese apaziguadora ou redutora ao que não se dá ao sentido. Ao escolher um substantivo feminino para nomear o sertão, Carvalho aponta para um campo da linguagem fora do alcance da palavra ou de qualquer possibilidade de representação totalizadora, território do incógnito, do estrangeiro e do ignoto. Flertando com o símbolo do infinito que encerra, sem concluir, o livro de Rosa, ou com a loucura que aponta para o assombro de Cunha em não conseguir desvendar, compreender ou aceitar o real do conflito de Canudos, Carvalho nomeia e problematiza o excesso contido no significante “sertão”, sem qualquer ilusão ou pretensão de o esgotar ou de o recobrir de significados.

Desde o título, Desmedida assume o encontro frustrado do sujeito com as limitações impostas pela própria linguagem, e com a incapacidade de utilizá-la para dar conta da totalidade do real. Ao final, resta sempre uma zona que não será contemplada pelo simbólico ou recoberta por palavras - um vazio que pode ser contornado, mas não tamponado pela linguagem. É do limite à representação que parte a literatura, jogando com a falta, com o furo, com o buraco para tentar torcê-lo, subvertê-lo ou transfigurá-lo. A travessia de Ruy Duarte de Carvalho se dá justamente entre o impossível de dizer e esforço de dizê-lo, escancarando a criação em estado bruto que advém do fracasso da linguagem diante do real:

Quando chega a hora de encerrar um livro e me meço pela distância que vai da gloriosa desmedida da intenção à desmedida vã de tanta página: o alcance da intenção permanecerá para sempre inacessível...não há redação que não acabe por colocar o abismo que medeia entre o brilho da ideia que perseguiu e a palidez do resultado que alcançou...acometeu a caverna de Ali Babá e não trouxe de lá senão um miserável punhado de tostões (Carvalho, 2010CARVALHO, Ruy Duarte de (2010). Desmedida: Luanda, São Paulo, São Francisco e volta. Rio de Janeiro: Língua Geral., p. 390).

Referências

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  • ROSA, Guimarães João (2019). Grande sertão: veredas. São Paulo: Companhia das Letras.

Editora:

Patrícia Nakagome

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    27 Jan 2022
  • Aceito
    09 Maio 2022
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
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