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“Eu escrevo porque não sei fazer tranças”: entrevista com Eliane Marques

Eliane Marques (1970) é gaúcha, poeta e tradutora. Publicou os livros e se alguém o pano (2015), Relicário (2009) e em várias antologias. É editora da revista de poesia Ovo da Ema e coordenadora da Escola de Poesia. Organizou os livros No meio da meia-lua, primeiros versos (2013), do coletivo “Africanamente Escola de Capoeira Angola”; Estamos Quites (2015), de Jorge Fróes, e a revista de poesia Não é o Bicho (2012), resultante do projeto “Poetas do Futuro”. Coordenou, junto com outros poetas, o Festival de Poesia AEDO - Arte e Expressão da Oralidade, bem como as várias edições do Porto Poesia. É mestre em direito público e auditora pública externa do Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul.

Qual a sua relação com a literatura?

Antes de nascermos, já circulam no entorno familiar e social histórias, ditos, poemas, novelas... Acerca de nossa concepção, de nossos ancestrais, do lugar que nos espera, do que se espera de nós. Há falas sobre nossos avós e suas vidas, suas alegrias e sofrimentos, às vezes dramáticos, às vezes tragicômicos. Circulam também fofocas sobre a vida dos vizinhos, depois circularão fofocas sobre nós. Há também o que não circula, o que não é dito, mas assim mesmo se transmite. Quer dizer, vivemos num mundo de ficção, como se estivéssemos sempre em Macondo ou Umuófia. Depois, o mundo se amplia com as palavras que encontramos refugiadas nos livros. A minha relação com a poesia nasce do desejo de transformar em outro texto as frases ouvidas ou lidas e do desejo de torcê-las, de escrever, sobre elas (como se fossem um fundamento ou alicerce), outro texto que não o propriamente esperado ou o amarrado a um suposto real. Eu escrevo porque não sei fazer tranças e, por isso, quase por mágoa, quero trabalhar com as palavras como se tranças elas fossem.

Você acha importante se dizer autora negra dentro do campo literário brasileiro? O rótulo demarca ou aprisiona sua trajetória?

Um poeta racializado como negro não precisa se dizer ou se afirmar poeta negro, porque os integrantes do campo literário já o fazem, com o dedo indicador. Parece que tudo aquilo que não é esperado de nós, negros, ou é esperado de forma negativa, quase como desvalor, precisa ser adjetivado com a palavra “negro” - serviço de negro, poesia negra. Talvez algum mito possa dar conta de tal estado de coisas: houve um tempo em que as palavras tinham dono, houve um tempo em que a literatura e a poesia tinham um senhor e sua casa grande; porém, certa feita, aqueles que não eram “donos de nada, muito menos da casa” tomaram parte de uma rebelião e se apossaram do que também era e é deles (nosso) e essa pequena parte, reconhecida como tal, para o fim de não se misturar, de não se confundir com o que deveria ser branco, para o fim de não sujar a brancura e de se manter a lei da vedação de ingresso na casa grande, teve que ser chamada de negra pelos seus antigos exclusivos donos. Bom, mas isso não implica que os próprios poetas negros aceitem o mito como dado, não; podemos trabalhar na sua ressignificação. Quanto à segunda parte da pergunta, talvez eu ainda não tenha trajetória extensa o suficiente para dizer se o rótulo demarca ou aprisiona, mas o que posso dizer é que qualquer palavra constitui um lugar, uma posição, que pode libertar ou aprisionar ou as duas coisas ao mesmo tempo.

O racismo presente na sociedade brasileira afeta a sua produção?

Afeta no sentido de que, ao caracterizar o meu trabalho como “poesia negra”, me joga para um gueto e restringe meu acesso a espaços considerados não negros. Ao mesmo tempo, restringe meu acesso aos lugares considerados negros, pois ainda hoje se trabalha com certa concepção de poesia negra que talvez os meus textos não alcancem. Por outro lado, o racismo afeta o meu trabalho no sentido de me permitir escrever sobre ele ou a partir dele, que ingressa na minha produção como insumo, como palavra ou conjunto de ditos que exige torção.

Quais temas te interessam, te instigam a escrever?

Eu escrevo poesia e, na minha concepção, não há separação entre forma e conteúdo nesse campo. Eu simplesmente trabalho com as palavras como se fossem louças ou tijolos de uma construção. Qualquer palavra ou frase ou fonema ou ruído que eu ouça poderá se transformar num poema.

Qual a relação de sua escrita com suas experiências?

O discurso é constitutivo do sujeito, assim como a arte é constitutiva da obra e do artista. O que o sujeito ouve e como ouve a respeito de si, de sua raça, de seu gênero, o constitui como tal. Portanto, não tomo a questão do que se chama socialmente de raça, por exemplo, como experiência - não é uma experiência ser negro no Brasil, é uma condição ou um dado constitutivo do sujeito assim nominado. Contudo, a poesia, como trabalho de produção artística, poderá se valer dessa condição como motivo para si, como poderá se valer de outras condições, não relacionadas diretamente, até porque não há absoluto em ser negro ou em ser mulher ou morador da periferia - o sujeito é sempre dividido, quebrado, manco, quer na negrura, quer na brancura, por exemplo. Assim, ele poderá se reconstituir diverso do que eventualmente poderia ser chamado de “eu”, ele sempre poderá inventar, mentir, ficcionalizar acerca de tudo, porque está assujeitado às palavras, embora não se negue a existência de um real. A condição não é prisão no campo de poesia, talvez, apenas, ponto diferente de enunciação.

Qual o peso que o machismo ainda tem no Brasil atual?

O peso do machismo é o de um anel de chumbo em torno do bico de um pássaro.

É possível desvincular a produção literária de um ato político?

Para as mulheres negras, a produção literária se constitui em ato político porque representa uma ruptura com o destino que nos foi preparado. Eu diria que especialmente a produção de poesia é uma forma de buscar a quebra dos laços com o lugar de subalternidade a nós socialmente edificado. Esperava-se que continuássemos a usar nossas mãos e braços apenas para limpar e levar e servir e fazer parte da criadagem. Todavia, rompemos com essa doce esperança, começamos a dizer não, começamos a escrever “não não iaiá”.

O que o corpo significa em sua produção?

Depende da interpretação que fará o eventual leitor. Nos textos que escrevo, o corpo não aparece como uma dimensão fechada e nem eu gostaria de me colocar numa posição de “dadora de sentidos”, os quais deveriam ser apreendidos a partir de uma anterior definição. Porém, situada no lugar de leitora talvez pudesse dizer que, em alguns poemas do meu livro e se alguém o pano, o corpo surge como primeira ou única propriedade relacionada ao significante negro ou negra.

Qual a importância da literatura num país com tamanhas desigualdades sociais?

Novas palavras, novos poemas, trazem novas possibilidades, especialmente porque se quebra a ditatura da versão única (e do tamanho único), normalmente branca, masculina e heterossexual. A poesia traz a possibilidade de voz e de escrita para quem antes não a tinha de modo a ensejar a subversão do absoluto da condição de “falado” e de “narrado”.

Qual sua análise sobre um aumento dos mais diversos tipos de intolerância (religiosa, de gênero, étnico-racial, social) no país? Vivemos tempos mais violentos?

Os brasileiros foram e são violentos. A nossa gênese é a do estupro e a do látego. Aos menos favorecidos sempre se reservou o porão escuro, a polícia e a chibata. Então, não sei se vivemos tempos mais violentos. Essa frase serve para quem? Para quem sempre viveu na comodidade propiciada pelos seus vassalos e agora se sente violentada porque a situação de extrema desigualdade gera consequências nefastas? O que se pode dizer é que a violência, ou melhor, certos tipos de violência começam a ser desnaturalizados e noticiados. Além disso, aqueles que sempre foram silenciados pelos atos violentos, inclusive praticados pelo Estado, começaram a falar, começaram a dizer “não toleraremos mais isso”. Assim, se a intolerância caminhar no sentido de se dizer não ao intolerável, a pergunta terá resposta positiva. Contudo, quanto à outra forma de intolerância, não sei se se trata de aumento: houve tempo em que não era necessário se tolerar negros ou homossexuais ou praticantes de religiões de matriz africana, em síntese, os considerados “diferentes com sinal negativo”, porque não ocupavam (ocupávamos) espaços em comum com a gente da casa grande (nem ao menos tínhamos voz). Eles sabiam e nós sabíamos qual era o nosso lugar. Agora, desaprendemos o lugar que era a nós reservado e o conflito se mostra de forma mais evidente, porque não voltaremos para as senzalas e ninguém vai nos empurrar para lá; vamos contraempurrar, vamos ser intolerantes com esses que nunca toleraram nada de nós, nem que tivéssemos casa, escola, trabalho decente, nem que fôssemos considerados humanos. Talvez tenhamos tolerado tempo demais, tenhamos tolerado violência demais e agora é chegado o tempo de sermos intolerantes com quem ou o que nunca nos tolerou.

Qual a importância da liberdade e da democracia para a literatura?

A liberdade e a democracia substantivas ensejam a pluralidade de linguagens, de narrativas, o que é fundamental para que a literatura não caia numa espécie de totalitarismo, para o dizer-se ou escrever-se apenas o esperado e tido como adequado.

Se fosse possível criar uma imagem do Brasil a partir dos escritores contemporâneos, qual imagem você acha que teríamos representada?

É necessário antes saber quem é considerado escritor contemporâneo e que pessoa ou instituição é responsável por esse recorte. Apesar de mais mulheres, e especialmente mulheres negras, integradas à produção de poesia ou de literatura, o que fazemos, em geral, não é ainda considerado arte. Então não sou esperançosa, a imagem do Brasil com base nos escritores contemporâneos não difere da imagem dos tribunais ou da cúpula de qualquer empresa privada ou de alguns lugares reservados nas cidades: a imagem é branca, masculina, machista, racista, sem graça e muito acomodada sob palavras gastas.

Quais autoras/es, pensadoras/es, pessoas têm influência na sua obra?

A resposta a essa pergunta eu gostaria que fosse dada pelas pessoas que eventualmente venham a ler o meu trabalho. Gosto mais de alguns poetas que de outros, mas não tenho a consciência universal e não equívoca para dizer o que impacta o meu trabalho e o que não impacta.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Ago 2017
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
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