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Ay Kakuyri Tama, eu moro na cidade: a poesia filosófica indígena de Márcia Kambeba no contexto do Estado-nação brasileiro

Ay Kakuyri Tama, I live in the city: the indigenous philosophical poetry of Márcia Kambeba in the context of the Brazilian nation-state

Ay Kakuyri Tama, yo vivo en la ciudad: la poesía filosófica indígena de Márcia Kambeba en el contexto del Estado-nación brasileño

Resumo

Abordamos a poética filosófica de Márcia Kambeba como um instrumento de insubordinação indígena em primeira pessoa contra as narrativas jurídico-legais formalistas, dicotômicas e segregacionistas no contexto do Estado-nação brasileiro. Para tanto, adotamos a perspectiva decolonial para analisar o discurso da filósofa no poema Ay kakuyri tama (Eu moro na cidade), em diálogo com autoras(es) que, tal qual ela, compreendem o corpo como território do político e, seu trânsito, um lócus de enunciação contra as opressões. Assim, tomando como texto guia as estrofes do poema, o artigo se divide em três seções: na primeira, a autora convida o mundo não indígena para sua dança ritual, um convite simbólico que remete o leitor aos primórdios da invasão dos europeus nas terras dos povos originários; na segunda, ao tempo que a poeta faz um relato saudoso dos tempos de infância, compreende que a luta e a guerra são uma constante em sua existência, analogia que propomos em relação ao processo de resistência dos povos indígenas, forçados a se conformar à lógica moderno-colonial estatal; e, por fim, à guisa de conclusão, a poeta reivindica seu lugar no mundo não indígena, compreendendo que as tensões inerentes a esse estar são próprias do seu trânsito e parte da própria resistência de uma identidade que a colonialidade insiste em apagar.

Palavras-chave:
poética filosófica; poesia indígena; Márcia Kambeba; lócus de enunciação

Abstract

We approach the philosophical poetics of Marcia Kambeba as an instrument of first-person indigenous insubordination against the formalistic judicial-legal, dichotomous and segregationist narratives in the context of the Brazilian Nation-State. In order to it, we adopt the decolonial analysis of the philosopher’s discuss in the poem Ay kakuyri tama (I live in the city), in dialogue with authors(s) who, like her, understand the body as territory of politics and its transit as a locus of enunciation against oppression. Thus, taking the verses of the poem as the guide text, the essay is divided into three sections: in the first, the author invites the non-indigenous world to her ritual dance, a symbolic invitation that guides the reader to the beginnings of the invasion of Europeans in the lands of the original peoples; in the second, as the poet makes a nostalgic narrative of her childhood times, understands that the struggle and the war are a constant in her existence, analogy that we propose in relation to the process of resistance of the indigenous peoples, forced to be conformed to the state-colonial-modern logic; and, finally, as a conclusion, the poet claims her place in the non-indigenous world, understanding that the tensions inherent to this state are unique and that this transit is part of the very resistance of an identity that coloniality insists on erasing.

Keywords:
philosophical poetics; indigenous poetry; Márcia Kambeba; lócus of enunciation

Resumen

Abordamos la poética filosófica de Márcia Kambeba como un instrumento de insubordinación indígena en primera persona contra las narrativas jurídico-legales formalistas, dicotómicas y segregacionistas en el contexto del Estado-Nación brasileño. Nos valemos, para tanto, del análisis decolonial del discurso de la filósofa en el poema Ay kakuyri Tama (Yo vivo en la ciudad), en diálogo con autoras(es) que, tal cual ella, comprenden el cuerpo como territorio del político y, su tránsito, un loto de enunciación contra las opresiones. Así, tomando como texto guía las estrofas del poema, el ensayo se divide en tres secciones: en el primero, la autora invita al mundo no indígena para su danza ritual. Una invitación simbólica que remite al lector a los inicios de la invasión de los europeos en las tierras de los pueblos originarios; en el segundo, como el poeta hace una narrativa nostálgica de sus tiempos de infancia, entiende que la lucha y la guerra son una constante en su existencia, analogía que proponemos en relación con el proceso de resistencia de los pueblos indígenas, constantemente obligados a conformarse a la lógica moderno-colonial estatal; y, por último, a modo de conclusión, la poeta reivindica su lugar en el mundo no-indígena, comprendiendo que las tensiones inherentes a ese estar son propias de su tránsito y parte de la propia resistencia de una identidad que la colonialidad insiste en borrar.

Palabras-clave:
poética filosófica; poesía indígena; Márcia Kambeba; lócus de enunciación

Nós estamos em guerra... Eu não sei porque você está me olhando com essa cara tão simpática. Nós estamos em guerra. O seu mundo e o meu mundo estão em guerra.

Ailton Krenak

Primeiras linhas: o literário não é apenas literário

Ay kakuyri tama. Ynua tama verano y tana rytama. Ruaia manuta tana cultura ymimiua, Sany may-tini, iapã iapuraxi tanu ritual.

Eu moro na cidade. Esta cidade também é nossa aldeia. Não apagamos nossa cultura ancestral. Vem homem branco, vamos dançar nosso ritual.

Márcia Kambeba

O campo do literário não é apenas literário. É também filosófico e político. É, sobretudo, da ordem do humano. O epistemicídio resultante da violenta investida dos europeus aos povos ameríndios comprometeu severamente as línguas por eles faladas, bem como a tradição oral de suas cosmovisões. Estima-se que, em 1500, nas terras que os invasores europeus convencionaram chamar de Brasil, viviam cerca de mil diferentes povos, falantes de diferentes línguas, as quais foram, paulatinamente, sucumbindo ao projeto de poder que impôs como modelo de racionalidade o idioma único falado pelo invasor. Passados quase cinco séculos da intrusão, a Constituição Federal, lei máxima do País, assegurou aos povos originários, ao menos no plano formal, a utilização de suas línguas maternas e de seus processos próprios de aprendizagem (Brasil, 1988BRASIL [Constituição (1988)] Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Presidência da República . Disponível em: Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm . Acesso em: 26 dez. 2021.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/con...
), a despeito de serem desconhecidas políticas que incentivem a sua difusão e perpetuação, à exceção de alguns núcleos de estudos de línguas indígenas junto às Universidades públicas.

A invenção do Estado-nação e do outro como racializado a partir do empreendimento colonial moderno deixou marcas indeléveis nas diversas civilizações que ancestralmente habitam o território nacional. Algumas delas não conseguiram sobreviver ao projeto pretensamente civilizatório para (re)contar sua versão dos fatos. Outras, a exemplo do povo Omágua-Kambeba, resistem e passam a reivindicar, não apenas o direito de (re)contar, mas também de escrever sua história e reescrever a História,1 1 Gerda Lerner (2019) afirma que é uma estratégia do patriarcado interditar as mulheres de narrar a História - aquela vivida e registrada, a despeito de elas terem papel fundamental em sua construção, sendo-lhes permitido, no máximo tecer suas histórias - aqui tomada apenas no sentido de experiência. O patriarcado dita quem pode escrever e interpretar a História. através dos olhares e das vozes poético-filosóficas dos subjugados. Márcia Kambeba é uma dessas vozes.

Ocupando, por direito ancestral e por direito civil, a dicotomia aldeia-cidade, Márcia Kambeba é um corpo político em trânsito. Um trânsito que é marca de seu povo Omágua, originado da migração dos Tupi em terras amazônicas (Kambeba, 2013KAMBEBA, Márcia Wayna (2013). Poemas e crônicas: Ay kakuyri tama (eu moro na cidade). Manaus: Grafisa Editora. ), na busca pela Terra sem males.2 2 Na cosmogonia dos povos Guarani, o mito da Terra sem Males ou Guajupiá (Paraíso) faz referência a uma terra onde não haveria fome, guerras ou doenças (Rocha, 2010). Omágua, o povo das águas. Assim como as águas dos rios correm para o mar, Kambeba flui através de sua poética da margem para o centro (e do centro para a margem), reivindicando o espaço urbano como seu também, falando em línguas, a partir de um lócus de enunciação fraturado,3 3 Categoria desenvolvida por María Lugones (2014), a partir do conceito de pensamento de fronteira, de Walter Mignolo (2017). Trata-se da adaptação concreta que as sujeitas racializadas fazem, negociando, de dentro desse lócus fraturado pela diferença colonial, formas de resistência e de resposta à colonialidade de gênero. sobre um humanismo pujante e ainda ignorado pelo Estado-nação: o humanismo da Terra sem males.

Cotejando, através da análise decolonial do discurso, o poema Ay kakuyri tama (Eu moro na cidade), de Márcia Kambeba, com as teorias do mundo-Estado e o mundo-aldeia, de Rita Segato, e da experiência de conhecer com o corpo, de Silvia Cusicanqui, este artigo tem por objetivo questionar o papel do Estado-nação e suas narrativas jurídico-legais em face dos povos indígenas no Brasil, os quais, transitando por territórios, tensionam línguas e linguagens - historicamente abafadas pela colonialidade do poder e do ser -, e fazem filosofia e literatura, a exemplo de Márcia Kambeba, guerreando contra os formalismos, os binarismos e as segregações de uma (i)lógica legal-nacionalista que os expurga e elimina, malgrado o que estatui a Constituição Federal.

Afinal, o campo do literário não é apenas literário. É também filosófico e político. É, sobretudo, da ordem do humano. De todos os humanos.

Entrelugares no Estado-nação: o mundo-aldeia convida o mundo-estado para sua dança ritual

Nasci na Uka sagrada, na mata por tempos vivi, na terra dos povos indígenas, sou Wayna, filha da mãe Aracy.

Minha casa era feita de palha, simples, na aldeia cresci, na lembrança que trago agora, de um lugar que eu nunca esqueci.

Meu canto era bem diferente, cantava na língua Tupi, hoje, meu canto guerreiro, se une aos Kambeba, aos Tembé, aos Guarani.

Márcia Kambeba

Em 1988, quando a pequena Márcia alcançava seus 9 anos de idade, a Constituição Federal do Brasil foi promulgada, passando a reconhecer aos povos indígenas “sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens” (Brasil, 1988BRASIL [Constituição (1988)] Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Presidência da República . Disponível em: Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm . Acesso em: 26 dez. 2021.
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, s.p.). Embalada pelas histórias do seu avô Daniel (Giacomo, 2021GIACOMO, Fred di (2021). Neta de boto, Márcia Kambeba é a primeira indígena na prefeitura de Belém. Uol, 20 jan. Disponível em: Disponível em: https://www.uol.com.br/ecoa/colunas/arte-fora-dos-centros/2021/01/26/marcia-kambeba.htm . Acesso em: 26 dez. 2020.
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), que se dizia neto de boto,4 4 A lenda do boto-cor-de-rosa, originária dos povos indígenas amazônicos, é contada para justificar a gravidez de uma mulher solteira. Disponível em: http://www.sohistoria.com.br/lendasemitos/boto/. Acesso em: 31 dez. 2021. a menina Márcia - que nessa época já havia se mudado da Aldeia Tikuna, onde nasceu, para a pequena São Paulo de Olivença, no Alto do Rio Solimões -, ainda não era capaz de atinar que, a partir da assinatura daquela importante lei, restaria revogada a legislação que antes situava os índios5 5 A despeito de seu caráter pejorativo, o termo índio é comumente utilizado na legislação pátria para se referir aos povos indígenas no Brasil, a exemplo da própria Constituição Federal, o que inclusive representou, à época, um certo avanço em relação ao Código Civil então em vigor, que os denominava de silvícolas (Brasil, 1916). Os termos posse e tutela fizeram parte da política do Estado para configurar a identidade indígena como transitória, já que se supunha e planejava que, ao longo da integração à civilização, os indígenas desapareceriam (Aldeados..., 2020). Neste artigo, usamos o termo índio em itálico para demarcar o modo como o Estado-nação brasileiro denomina os indígenas, contra o qual nos insurgimos. como tutelados do Estado brasileiro, situação que lhes derrogava a plena capacidade para realizar, ainda que não condição de povo, os atos da vida civil.6 6 Disponível em: https:/www.youtube.com/watch?v=ildN6lyXDNE. Acesso em: 31 dez. 2021.

Ailton Krenak (Guerras..., 2009GUERRAS do Brasil.doc (2018) - As guerras da conquista. 2019. 1 vídeo (26 min). Direção de Luiz Bolognesi. Produção de Lais Bodanzky e Luiz Bolognesi. Brasil: Buriti Filmes. ) - cujo pronunciamento/manifesto7 7 O Estado-nação, por meio de seus sistemas de justiça, pressiona sistematicamente os indígenas a adotarem a cartilha da integração como forma de, em troca, lhes fazer experimentar a cidadania plena, ao mesmo tempo que, uma vez integrados, continuam a padecer dos racismos da sociedade não indígena e do próprio Estado. em nome dos povos indígenas foi um dos pontos altos da Assembleia Nacional Constituinte -, conta que, ao chegarem às terras onde acharam por bem inventar o Brasil, os portugueses fediam, estavam famélicos e doentes, resultado de mais de quarenta dias entre o céu e o mar do Atlântico. Os tupinambás8 8 Tupinambás, denominação atribuída de forma genérica aos diversos povos que habitavam o litoral Brasileiro (Gândavo, 2008), o que também é marca da colonialidade homogeneizante de poder. Durante os séculos XVI e XVII, a língua falada pelos tupinambás, o tupi, foi chamada pelos portugueses de língua brasílica (os indígenas também eram chamados de brasis) e teve sua primeira representação escrita pelo padre jesuíta José de Anchieta (Navarro, 2005). que os receberam não hesitaram em ajudá-los, alimentá-los e curá-los de suas chagas, de sorte que, durante os primeiros anos de convivência, os portugueses só conseguiram sobreviver graças à alteridade indígena, pois foram aqui admitidos como mais um grupo na diferença. Em troca, os povos nativos receberam, além de espelhinhos e outras bugigangas, a escravização de seus corpos, a subjugação de suas mentes e a espoliação de seu ambiente. Onde os indígenas viam diversidade, os portugueses viam matérias-primas e mão de obra a custo zero.9 9 Contrariamente à narrativa corrente de que os indígenas não serviam à escravização porque eram preguiçosos, eles foram massivamente escravizados, foram torturados e assassinados quando resistiam aos trabalhos forçados. Somente em 1600, com o início de outra lucrativa atividade econômica às metrópoles europeias, o tráfico de pessoas da África, foi que o número de escravizados indígenas passou a ser menor que o de negras e negros africanos (Guerras..., 2009). Desde então, restou declarada a guerra entre o mundo-Estado e o mundo-aldeia.10 10 As categorias mundo-Estado e mundo-aldeia são apresentadas por Rita Segato (2021) para representar a dicotomia Estado-nação (neste artigo, o Brasil) e o mundo pré-intrusão colonial.

Guerra e paz. Mundo-Estado e mundo-aldeia. Branco e índio. Cidade e aldeia. Índio aldeado e índio desaldeado.11 11 A dicotomia índios aldeados e índios desaldeados foi cunhada pelos não indígenas para diferenciar indígenas que vivem nas terras indígenas que vivem fora dessas terras. Trata-se de distinção segregacionista e racista, pois se baseia em critério puramente material, sobrepujando a ligação de ordem ignorada pelo mundo-Estado do indivíduo indígena com seu território e com seu povo. A mais recente violência perpetrada pelo Estado-nação veio através da publicação da Resolução Funai nº 4/2021, publicada em 22/01/2021, ocasião em que o órgão indigenista, contrariando a Constituição Federal e a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho, inova nos critérios para heteroidentificação dos indígenas, restringindo, desse modo o acesso das populações às políticas públicas, sobretudo para excluir aqueles discriminados como desaldeados do Plano Nacional de Operacionalização de Vacinação (Aldeados..., 2020). Eis algumas das categorias dicotômicas (ou binarismos) que integram o espólio da colonização, marcas que se fazem sentir nos campos epistêmico, teórico, ético, estético e político, mesmo após a descolonização, as quais Aníbal Quijano (2005QUIJANO, Anibal (2005). Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, Edgardo (org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: Clacso. p. 117-142.) convencionou chamar de colonialidade do poder. Rita Segato (2021SEGATO, Rita (2021). Crítica da colonialidade em oito ensaios: e uma antropologia por demanda. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo . ) afirma que a dualidade típica dos povos indígenas se expressa como uma das formas do múltiplo, capturada a partir da entrada da frente colonial ultramar e, continuada, mais tarde, pela frente colonial-estatal. O dual, segundo a antropóloga, pressupõe o trânsito, a possibilidade de movimento - característica identificada por ela ao enfrentar a existência de papéis de gênero no mundo pré-intrusão12 12 A partir de estudos etnográficos que precedem, inclusive, a literatura decolonial, a autora identifica posições semelhantes ao que chamamos relações de gênero, entretanto, “o mundo tribal permite mais trânsito e circulação entre as posições do que o gênero ocidental moderno” (Segato, 2021, p. 100). - e marca a poética de Márcia Kambeba no seu trânsito entre o mundo-Estado e o mundo-aldeia.

Márcia Wayna Kambeba é indígena do povo Omágua/Kambeba, parida na aldeia Tikuna e trineta de boto. É, ao mesmo tempo, cidadã Brasileira, civilmente registrada como Márcia Vieira da Silva, natural do Amazonas, e também poeta, artista plástica, cantora, locutora, mestre em Geografia pela Universidade Federal do Amazonas e, atualmente, ouvidora-geral da Prefeitura de Belém, no Pará (Giacomo,2021GIACOMO, Fred di (2021). Neta de boto, Márcia Kambeba é a primeira indígena na prefeitura de Belém. Uol, 20 jan. Disponível em: Disponível em: https://www.uol.com.br/ecoa/colunas/arte-fora-dos-centros/2021/01/26/marcia-kambeba.htm . Acesso em: 26 dez. 2020.
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). Márcia é o trânsito em profusão. Ela transita, conhecendo com seu corpo indígena (Cusicanqui, 2018CUSICANQUI, Silvia Rivera (2018). Un mundo ch’ixi es posible: ensayos desde un presente en crisis. Buenos Aires: Tinta Limón . ), o entre-mundo aldeia/cidade e compreende que sua inserção no lócus fraturado de uma ordem hegemônica, inclusive através de seu discurso poético, é a melhor forma de fazer valer a sua voz e dizer da importância dos povos indígenas na ordem global, pois que “tanto o mundo-aldeia quanto o mundo-Estado se infiltram um no outro de maneiras deletérias e benéficas” (Segato, 2021SEGATO, Rita (2021). Crítica da colonialidade em oito ensaios: e uma antropologia por demanda. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo . , p. 96). No entanto, no que concerne à intrusão dos não indígenas no mundo-aldeia, o resultado, para os indígenas, é muito mais deletério que benéfico. Ainda assim, Davi Kopenawa, ao justificar aos seus parentes Yanomami a necessidade de transitar nesse entre-mundo, declara: “Preciso ensinar os meus pensamentos para eles” (A última..., 2021A ÚLTIMA floresta (2021). Direção: Luiz Bolognesi. Produção de Caio Gullane, Fabiano Gullane, Lais Bodanzky e Luiz Bolognesi. Brasil: Gullane Distribuidora, Netflix.), reivindicando assim sua capacidade de fala e demonstrando, ao mesmo tempo, a alteridade típica de seu povo, ainda que, para tanto, tenha que adotar o idioma nacional.13 13 No mesmo sentido, diante do pouco caso dos estadunidenses em aprender a linguagem mestiça, Gloria Anzaldúa se tornou especialista em inglês, “para irritar, para desafiar os professores arrogantes e racistas que pensavam que todas as crianças chicanas eram estúpidas e sujas”. (Anzaldúa, 2000, p. 230).

Noutro giro, existir em sua língua materna é ato político de suma importância aos povos indígenas. Ao apresentar as primeiras linhas de seu poema Ay kakuyri tama em seu idioma de nascença, Kambeba reafirma ao leitor a existência (e a resistência) de sua língua e de sua linguagem, as quais têm papel fundamental na preservação da memória, tão cara aos povos indígenas, já que a memória, tanto subjetiva quanto coletiva, se constitui um dos alvos primeiros do racismo moderno/colonial, que considerou as línguas nativas como inaptas ao pensamento racional - teológico ou secular - eram “línguas que revelavam a inferioridade dos seres humanos que as falavam” (Mignolo, 2017MIGNOLO, Walter D. (2017). Desafios decoloniais hoje. Revista Epistemologias do Sul, v. 1, n. 1, p. 12-32, maio., p. 18). Avocar essa vocalidade é ao mesmo tempo marca identitária e sinal de desobediência e de insubmissão à episteme hegemônica e homogeneizante. Por outro lado, prosseguir a narrativa poética valendo-se do idioma nacional é um ato simbólico de demarcação de seu território - categoria jurídica quase quimérica aos indígenas atualmente - no país da língua portuguesa hegemônica e excludente (e para os não indígenas, exclusivo). Noutro excerto poético, Márcia reafirma esse pensamento:

Não se pode dizer que os Kambeba, Esqueceram a língua Tupi, Ainda existem alguns falantes, Que não deixam o dialeto sumir, No ensinamento dos que sabem, Memorizo o que aprendi. Kumiça yuria! kumiça ypaçu! Tradução: Fala mata! Fala lago! May-tini na sua grandeza, Por não conseguir entender, Viu nossa fala com estranheza, Português fez o povo aprender (Kambeba, 2013KAMBEBA, Márcia Wayna (2013). Poemas e crônicas: Ay kakuyri tama (eu moro na cidade). Manaus: Grafisa Editora. , p. 37).

Conviver em um espaço em que a homogeneização se impôs por meio do conflito inspirou Sílvia Cusicanqui (2015CUSICANQUI, Silvia Rivera (2015). Sociología de la imagen: ensayos. Buenos Aires: Tinta Limón. ) a desenvolver um modo de (sobre)vida mimético, múltiplo e, concomitantemente, contraditório, compreendido como um estado transitório e superável: o conhecer com o corpo. A experiência de pensar e falar desde uma zona cinzenta - o ch’ixi -,14 14 Nas palavras de Cusicanqui (2015, p. 295): “ch’ixi literalmente se refiere al gris jaspeado, formado a partir de infinidad de puntos negros y blancos que se unifican para la percepción, pero permanecen puros, separados. Es un modo de pensar, de hablar y de percibir que se sustentan en lo múltiple y lo contradictorio, no como un estado transitorio que hay que superar (como en la dialéctica), sino como una fuerza explosiva y contenciosa, que potencia nuestra capacidad de pensamiento y acción. Se opone así a las ideas de sincretismo, hibridez y a la dialéctica de la síntesis, que siempre andan en busca de lo uno, la superación de las contradicciones a través de un tercer elemento, armonioso y completo en sí mismo”. que ao mesmo tempo que reconhece a existência das diferenças (o que é indizível ao Estado-nação), compreende que a unificação, muito comumente manejada sob o discurso de um pretenso nacionalismo, a hibridez e o sincretismo são formas de reverenciar o Estado uno, que disfarça o segregacionismo inerente aos espaços marginalizados por meio de um discurso jurídico igualmente homogeneizante e higienizado. Desse modo, conviver num espaço onde a(o) outra(o), discursivamente inventado(a)15 15 Em 1537, o Papa Paulo III declarou a humanidade dos ameríndios, o que, longe de significar a igualdade étnica entre os povos, serviu para conotar a ideia de que, para os europeus, nem todos os homens eram dignos de humanidade, tomando para si o paradigma da humanidade ideal (Borges, 2018). e continuamente reinventado pela colonial/modernidade, é vítima de sufocamento em suas diferenças é ao mesmo tempo dança e luta, uma zona onde a (não)conformidade - muitas vezes disfarçada de interação cultural - se aproxima, se tensiona, se choca, se afasta e segue no embate de uma dialética cuja síntese é o sobreviver. Para o poeta martinicano Édouard Glissant (2021GLISSANT, Édouard (2021). Poética da relação. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo. ), que também se vale de uma dialética sem síntese para teorizar a sua poética da Relação,16 16 Relacionando a dominação das metrópoles europeias sobre os povos africanos àquela sofrida pelos indígenas, Glissant (2021, p.32) conclui que os primeiros habitantes (povos indígenas) também foram “deportados por um saque estacionário”. ao reivindicarem para si o dizer poético, os sujeitos marginalizados se convidam, de maneira paradoxal, a pensar sobre cortes, rupturas e separações, muros e fronteiras internas. Nesse sentido, a poeta afirma:

Sou filha da selva, minha fala é Tupi. Trago em meu peito, as dores e as alegrias do povo Kambeba e na alma, a força de reafirmar a nossa identidade, que há tempo fico esquecida, diluída na história. Mas hoje, revivo e resgato a chama ancestral de nossa memória (Kambeba, 2013KAMBEBA, Márcia Wayna (2013). Poemas e crônicas: Ay kakuyri tama (eu moro na cidade). Manaus: Grafisa Editora. , p. 25).

Para além disso, por ser mulher, Márcia não escapa ao peso do patriarcado - seja ele o de seu território ou o nacional. Ao enfrentar a intersecção entre raça e gênero no contexto da colonialidade, María Lugones (2014) concluiu que o sistema imposto pelos dominadores, generificador e racializante, negou a condição de humanidade às colonizadas. Ao anunciar, no poema, que é filha da mãe Aracy, Márcia Kambeba nomeia sua mãe, exigindo que os não indígenas reconheçam a existência dessa mulher obliterada aos olhos da colonial-modernidade. Duas outras mulheres que têm seus nomes evocados por Kambeba são sua avó-mãe Assunta, professora na Aldeia Tikuna, e Tia Sueli, diretora da primeira escola em que ela estudou. Narra que, enquanto Tia Sueli lhe foi fundamental em sua iniciação na poesia, Mãe Assunta foi figura central em sua formação e é, também,

um resumo da terra em transe que tem sido a região amazônica no último século. O avô de Assunta (trisavô materno de Márcia) era espanhol e veio para o norte do Brasil explorar a borracha, atividade que escravizou milhares de indígenas na região. Isidoro casou-se com Maria, uma indígena cocama-kambeba que andava nua, se recusava a aprender português e falava pouco. A fala escassa é, para Márcia, uma das diversas evidências de que a matriarca foi roubada “no laço” e casada à força com o invasor (Giacomo, 2021GIACOMO, Fred di (2021). Neta de boto, Márcia Kambeba é a primeira indígena na prefeitura de Belém. Uol, 20 jan. Disponível em: Disponível em: https://www.uol.com.br/ecoa/colunas/arte-fora-dos-centros/2021/01/26/marcia-kambeba.htm . Acesso em: 26 dez. 2020.
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, s.p.).

O olhar pornográfico do invasor sobre tudo e todos que pudessem ser explorados não ficou adstrito aos períodos colonial e imperial, senão foi igualmente encampado pelo Estado republicano brasileiro. Muito contrariamente à narrativa higienizada do mito fundacional do Brasil,17 17 No que diz respeito às comunidades quilombolas, sugerimos a leitura da obra Os quilombos e a Nação, de autoria do colega integrante da Advocacia-Geral da União, Paulo Fernando Soares Pereira, na qual expressa que “O Estado-nação se apropriou da cultura negra quando lhe foi conveniente afirmar o mito fundador e, quando não houve conveniência, subalternizou-a e a combateu” (Pereira, 2020, p. 285). retratada na obra A primeira missa no Brasil,18 18 Obra do pintor brasileiro Victor Meirelles, feita entre 1859 e 1861. Atualmente encontra-se no Museu Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro (Prestes, 2011). Pero Vaz de Caminha (2021CAMINHA, Pero Vaz (2021). Carta de achamento do Brasil. Edição comentada por Sheila Hue. Campinas: Editora Unicamp. ), na conhecida missiva ao então rei de Portugal, dando conta da descoberta das novas terras, foi obscenamente textual ao comparar os sexos das europeias e das indígenas,19 19 “E uma daquelas moças era toda tingida, de baixo a cima daquela tintura; e certo era tão bem-feita e tão redonda, e sua vergonha (que ela não tinha) tão graciosa, que a muitas mulheres da nossa terra, vendo-lhe tais feições, fizera vergonha, por não terem a sua como ela. Nenhum deles era fanado, mas, todos assim como nós” (Caminha, 2021). imprimindo a estas últimas os estigmas de hiperssexualizadas e bestiais e, portanto, passíveis de dominação, inclusive a sexual. A expressão mencionada por Márcia de que mulheres indígenas eram roubadas no laço nada mais descreve do que estupros acobertados pelo Estado ao longo de sua história, evidenciando a racialização e o patriarcado colonial-moderno como constitutivos dos processos de miscigenação20 20 Tomamos aqui a miscigenação na perspectiva de oportunidade de “poder ver no espelho - raça, corporalidade, paisagem que nos habita - quem somos, de onde viemos, que linhagens podemos recuperar, que histórias interceptadas e censuradas podemos suturar com o presente de forma a lhes proporcionar o futuro” (Segato, 2021, p. 37-38). (ou criollización), modernização e expansão contínua sob a égide do Estado Republicano, em processo incessante que só se agrava (Segato, 2021SEGATO, Rita (2021). Crítica da colonialidade em oito ensaios: e uma antropologia por demanda. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo . , p. 65).

No início da missão dita civilizatória, os invasores buscaram na demonização dos corpos nativos, de sua fala21 21 “A língua deste gentio toda pela costa é, uma: carece de três letras - scilicet, não se acha nela F, nem L, nem R, cousa digna de espanto, porque assim não têm Fé, nem Lei, nem Rei; e desta maneira vivem sem Justiça e desordenadamente” (Gândavo, 2008, p. 65). e de suas crenças a justificativa torpe para sua submissão e escravização. Susana de Castro (2018CASTRO, Susana de (2018). Condescendência: estratégia pater-colonial de poder. Revista Fundamentos, v. 1, n. 1, p. 51-59. Disponível em: Disponível em: https://revistas.ufpi.br/index.php/fundamentos/article/view/7863/4836 . Acesso em: 20 jun. 2021.
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) aponta a condescendência como uma das estratégias usadas pelos europeus, os quais, sob a desculpa de salvar os locais de uma atmosfera de barbárie, aproveitaram para inseri-los na lógica feroz do mercantil-capitalismo. Tanto é assim que, já em 20 de março de 1570 - note-se que a ocupação portuguesa no território da colônia só se iniciou efetivamente a partir de 1530 - , foi promulgada por Sebastião I, sob as bênçãos da Igreja Católica, a “Lei sobre a Liberdade dos Gentios” (Varnhagen, 1975VARNHAGEN, Francisco Adolfo de (1975). História geral do Brasil. São Paulo: Melhoramentos. , p. 345), a qual estabeleceu que todos os gentios (denominação dada aos indígenas, à semelhança de bárbaros) eram livres, exceto aqueles submetidos às chamadas Guerras Justas, pleonasmo para nomear as expedições autorizadas a perseguir, escravizar e matar22 22 Desde o início da invasão, armas biológicas têm sido utilizadas contra os povos indígenas. “José de Anchieta conta que 30 mil tupis morreram na região do Recôncavo Baiano em poucos meses, vitimados pela epidemia de varíola que durou de 1562 a 1565. Diferentemente dos europeus, eles ainda não tinham desenvolvido anticorpos de qualquer espécie contra a doença” (Ninguém..., 2020, s.p.). Trata-se de fato cuja dimensão, comparável a um holocausto, é completamente ignorada pela historiografia dos genocídios da humanidade (Guerras..., 2019). indígenas que não declarassem o credo católico.

Olhos voltados aos tempos republicanos,23 23 A despeito da idílica interpretação de Gilberto Freyre (2005) sobre a formação da família brasileira, com esteio no mito da democracia racial, ao longo da história republicana do País, os povos indígenas continuaram sendo alvo das políticas de morte do Estado-nação. Em 1963, servidores do Serviço de Proteção aos Índios (SPI), distribuíram aos Cinta Larga, em Rondônia, itens contaminados com arsênico, resultando na morte de 3.500 indígenas. O episódio, conhecido como Massacre do Paralelo 11, também “incluiu do roubo ao estupro, passando por grilagem, assassinato, suborno, tortura e outras agressões que chocaram o então ministro do Interior, general Albuquerque Lima, que mandou demitir um dos principais envolvidos no incidente, o então chefe do SPI, major Luiz Vinhas Neves, responsável pela chacina dos Cinta Larga” (Massacre..., 2006, n. p.). Mais recentemente, o relatório final da Comissão da Verdade apontou que, durante a ditadura militar no Brasil, foram assassinados 8.350 indígenas. Disponível em: http://cnv.memoriasreveladas.gov.br index.php/outros-destaques/574-conheca-e-acesse-o-relatorio-final-da-cnv. Acesso em: 4 jan. 2022). já sob a vigência da atual Constituição, Márcia lembra presenciar, quando de sua infância na pequena Belém dos Solimões, a resistência dramática do povo Omágua/Kambeba à investida de uma seita cristã conduzida por um missionário chamado Irmão José, conhecida como Ordem de Santa Cruz.

Ele andava carregando uma cruz nas costas por todo canto onde passava, com uma túnica igual à de Jesus, barba que batia na barriga, cabelo no ombro e uma faixa no tórax escrita Santa Cruz [...]. Foi o período em que os tikuna mais se mataram, mais se envenenaram. Porque quando uma família indígena se convertia para o Irmão José, ela tinha que mudar todo seu comportamento. E os jovens não queriam. Então eles tomavam DDT (Giacomo, 2021GIACOMO, Fred di (2021). Neta de boto, Márcia Kambeba é a primeira indígena na prefeitura de Belém. Uol, 20 jan. Disponível em: Disponível em: https://www.uol.com.br/ecoa/colunas/arte-fora-dos-centros/2021/01/26/marcia-kambeba.htm . Acesso em: 26 dez. 2020.
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, s.p.).

A autodeterminação dos povos defendida por Rita Segato (2021SEGATO, Rita (2021). Crítica da colonialidade em oito ensaios: e uma antropologia por demanda. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo . 24 24 Contrariando o discurso do relativismo cultural, Rita Segato (2021), ao ser chamada a opinar em caso que o Estado brasileiro caracterizou como infanticídios em certas etnias indígenas, defendeu a ideia de pluralismo histórico entre os diversos povos que ocupam o território nacional, de modo que cada povo deve ter autonomia para tecer os fios de sua história, tomando cada episteme como um vetor histórico cuja experiência acumulativa não é estanque. ) é premissa básica à descolonização do discurso modernizador do mundo-Estado - seja ele religioso, científico ou jurídico. Márcia narra que o consumo do pajuaru - bebida à base de mandioca -, e a festa da moça nova, na qual os Kambeba festejam a primeira menstruação das meninas, estavam entre as interdições impostas pelos missionários evangélicos. A respeito dessas investidas ideológicas, típicas da colonialidade do ser25 25 A idealização de graus de humanidade de acordo com a raça imprime à colonialidade do poder uma dimensão ontológica, expressa na experiência de ser tomado como inferior (Maldonado-Torres, 2007). , Márcia procura alertar os parentes:

Pastor não pode exigir ‘deixa de falar sua língua’, ‘deixa de bater seu maracá’, sabe? Hoje eu consigo descolonizar a religião que quer catequizar nossa cultura. [...] Eu pesquiso o sagrado, mas falo dos encantados na posição de indígena mesmo, não só de pesquisadora. Não tenho vergonha de dizer que muito do que eu escrevo não sou eu quem escreve, mas sai como eu estivesse em um transe. Muito do que eu falo é como se várias pessoas estivessem falando no meu ouvido. [...] O sagrado está em saber usar ervas, em você respeitar o valor de um maracá, em você entender o som de um tambor que te conecta com o coração da terra (Giacomo, 2021GIACOMO, Fred di (2021). Neta de boto, Márcia Kambeba é a primeira indígena na prefeitura de Belém. Uol, 20 jan. Disponível em: Disponível em: https://www.uol.com.br/ecoa/colunas/arte-fora-dos-centros/2021/01/26/marcia-kambeba.htm . Acesso em: 26 dez. 2020.
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, s.p.).

Para ela, tanto a escrita como o canto têm peso ancestral, de maneira que a literatura indígena se diferencia de outras literaturas pelo fato de “carregar um povo, história de vida, identidade, espiritualidade” (Kambeba, 2018KAMBEBA, Márcia Wayna (2018). Literatura indígena: da oralidade à memória escrita In: DORRICO, Julie et al. (org.). Literatura indígena brasileira contemporânea: criação, crítica e recepção. Porto Alegre: Editora Fi. , p. 40). Sua escrita, assim como seu canto, impregna-se de referências e simbologias adquiridas ao longo de “anos de convivência com os mais velhos, tidos como sábios e guardiões de saberes” (Kambeba, 2018KAMBEBA, Márcia Wayna (2018). Literatura indígena: da oralidade à memória escrita In: DORRICO, Julie et al. (org.). Literatura indígena brasileira contemporânea: criação, crítica e recepção. Porto Alegre: Editora Fi. , p. 40), repassados aos seus pela oralidade, cuja prática não significa algo cristalizado no tempo, mas sim, a própria cultura em movimento.

É por isso que a conexão com a terra e com a natureza constitui o sagrado dos povos indígenas. Para eles, a terra não é apenas o local da coleta do alimento material, é, sobretudo, fonte da conexão com seus ancestrais e o que garante o equilíbrio das forças positivas e negativas do universo26 26 Não existe, portanto, diferença entre a natureza acordada e o mundo dos sonhos. Tudo está entrelaçado, de maneira que cada ente, inclusive, inorgânico possui espírito (O povo..., 2012). . Um dos dispositivos transitórios da Constituição Federal afirma que, num prazo de cinco anos contados de sua promulgação, o Estado brasileiro deveria concluir a demarcação das terras indígenas. Em sentido diametralmente oposto ao que dita a Carta Magna, desde a assunção pelo atual governo brasileiro de uma política abertamente anti-indígena, recorrentes investidas - tanto formais, por meio de decretos e propostas legislativas,27 27 O Projeto de Lei nº 191, de autoria do Poder Executivo federal e cuja aprovação é uma de suas prioridades, não se acanha em, ao arrepio do texto constitucional, prever que “é admitida a outorga de permissão de lavra garimpeira em terras indígenas exclusivamente nas zonas de garimpagem previamente definidas pela [Agência Nacional de Mineração] ANM, desde que haja consentimento das comunidades indígenas afetadas, nos termos do disposto em regulamento e observadas as diretrizes estabelecidas pelo Ministério de Minas e Energia”. A proposta pende de apreciação pelas Comissões Especiais da Câmara Legislativa. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2236765. Acesso em: 2 jan. 2022. quanto informais, a exemplo das intrusões ilegais de garimpeiros28 28 “Em 2019, com a entrada de um novo presidente, mais de 20 mil garimpeiros voltaram a invadir o território Yanomami, derrubando a floresta, envenenando os rios com mercúrio e trazendo a Covid-19 para as aldeias. Em vez de cumprir a Constituição e proteger os índios, o novo governo tenta legalizar a invasão das terras indígenas por garimpeiros” (A última..., 2021). e madeireiros - têm sido registradas contra as terras dos povos da floresta. No momento de elaboração deste artigo, pende de julgamento no Supremo Tribunal Federal ação judicial que discute se deve haver um marco temporal a ser considerado para a demarcação de novas terras indígenas no País, - o que particularmente considero um dos ataques mais acintosos aos povos indígenas, haja vista conjugar discurso jurídico, moldável aos interesses variados, a um grande poderio empresarial. O nascedouro dessa polêmica reside em um parecer jurídico da Advocacia-Geral da União,29 29 O Parecer Normativo nº 01/2017 da Advocacia-Geral da União, chamado pelo Conselho Missionário Indigenista (Cimi) de parecer antidemarcação, foi exarado no contexto do governo do ex-presidente Michel Temer e teve sua eficácia administrativa suspensa pelo STF em decisão liminar proferida em 7/5/2020 (Cimi, 2021). que tomou como base, para futuras demarcações, o que restou decidido pelo Supremo Tribunal Federal (STF), no caso Raposa Serra do Sol30 30 Trata-se de decisão favorável aos povos Wapichana, Patamona, Makuxi, Taurepang e Ingarikó, proferida pelo STF em ação popular ajuizada pelo senador eleito Augusto Affonso Botelho Neto, de Roraima, questionando a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. A ação pedia a declaração de nulidade da Portaria nº 534 do Ministério da Justiça, homologada pela Presidência da República em 15/04/2005, que decidiu pela demarcação da terra indígena de maneira contínua, promovendo a desintrusão de pessoas não indígenas que ocupassem o território naquela data. Disponível em: https://cimi.org.br/2019/10/raposa-serra-do-sol-como-esta-a-terra-indigena-apos-uma-decada-da-historica-decisao-do-stf/. Acesso em: 2 jan. 2022. (Brasil, 2009BRASIL (2009). Supremo Tribunal Federal. Petição n. 3.388. Ementa: Ação Popular. Liminar Indeferida. Demarcação da Reserva Indígena Raposa Serra do Sol. [...] Brasília: STF. Disponível em:Disponível em:http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=630133 . Acesso em: 30 dez. 2021.
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), de sorte que o parâmetro a ser levado em consideração seria a presença de indígenas no local reivindicado na data da promulgação da Constituição. Essa manobra do Estado brasileiro - ao arrepio do que determinou o STF, de que o parâmetro adotado no caso Raposa Terra do Sol não valeria para outros casos semelhantes -, foi perfeitamente aderido por aqueles que detêm o poderio econômico nacional e que acreditam que “floresta boa é floresta derrubada e asfaltada, e índio bom é o índio que colabora com o modelo predatório” (Cimi, 2021CIMI - CONSELHO INDIGENISTA MISSIONÁRIO. Nota do Cimi: autorização do governo para garimpo em áreas preservadas é temerária e coloca povos indígenas em risco (2021). Brasília: Cimi, 8 dez. Disponível em: Disponível em: https://cimi.org.br/2021/12/nota-cimi-autorizacao-governo-garimpo-areas-preservadas/ . Acesso em: 29 dez. 2021.
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, s.p.). O resultado imediato, no âmbito da Fundação Nacional do Índio (Funai), órgão responsável pela demarcação, é a paralisação de cerca de 27 processos administrativos para reconhecimento oficial das terras indígenas (Cimi, 2021CIMI - CONSELHO INDIGENISTA MISSIONÁRIO. Nota do Cimi: autorização do governo para garimpo em áreas preservadas é temerária e coloca povos indígenas em risco (2021). Brasília: Cimi, 8 dez. Disponível em: Disponível em: https://cimi.org.br/2021/12/nota-cimi-autorizacao-governo-garimpo-areas-preservadas/ . Acesso em: 29 dez. 2021.
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).

No âmbito da querela instalada no STF, o voto paradigma, pronunciado pelo relator do processo, Ministro Edson Fachin, entendeu que os “direitos territoriais indígenas consistem em direito fundamental dos povos indígenas e se concretizam no direito originário sobre as terras que tradicionalmente ocupam” (STF, 2021, s.p.), estabelecendo que o ato de demarcação é apenas declaratório do direito à posse imemorial das terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas e que “a proteção constitucional aos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam independe da existência de um marco temporal” na data em que foi promulgada a Constituição (STF, 2021, s.p.). A despeito do entendimento expresso no referido voto, deve-se ressaltar o protagonismo dos povos indígenas que, organizados em caravanas, se deslocaram até Brasília, com custeio próprio ou por meio de financiamento coletivo da sociedade civil, para demonstrar à Corte Suprema - totalmente formada por pessoas lidas como brancas - a urgência na decisão da ação. Não obstante, após longos dias de espera, o Ministro Alexandre de Moraes solicitou a suspensão do julgamento, alegando que precisaria de mais tempo para analisar o caso. A retomada do julgamento pelo STF, que já conta com um voto dissonante em relação ao voto paradigma,31 31 O voto contrário ao do Ministro relator foi pronunciado pelo ministro Kassio Nunes Marques, também indicado pelo atual presidente da República em 22/10/2020 (Brasil, 2021). segue sem previsão para acontecer. A situação se torna mais dramática ante a recente indicação, pelo chefe do Poder Executivo de um novo ministro do STF,32 32 Trata-se do ministro André Mendonça, nomeado pelo atual presidente da República em 02/12/2021. Membro de carreira da Advocacia-Geral da União, chefiou o órgão entre os anos de 2020 e 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-dez-16/andre-mendonca-toma-posse-stf-assume-900-processos. Acesso em: 4 jan. 2022. de quem os povos indígenas não esperam encontrar qualquer empatia, situação que corrobora a tese por mim defendida neste texto de que o Estado, mancomunado ao e/ou refém do poder econômico-empresarial, vale-se do discurso jurídico-legal para referendar opressões às populações marginalizadas, não obstante a capa eufemística, formalística e analgésica de que se vive sob um estado democrático de direito.

A narrativa segundo a qual o povo brasileiro forma uma cultura sincrética, um povo novo que se sabe, se sente e se comporta “como uma só gente, pertencente a uma mesma etnia” (Ribeiro, 1995RIBEIRO, Darcy (1995). O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras. , p. 22) serviu bem aos interesses hegemônicos para a criação de um ente homogêneo acrítico e atemporal como mito que se reinscreve no discurso nacionalista e desenvolvimentista, por vezes reencenado no cenário jurídico do país. Os argumentos fantásticos da neutralidade do saber e da universalidade dos princípios do formalismo positivista, que justificam a ordem liberal-individualista e racional monista ocidental, se veem agora confrontados ante a crescente reivindicação de recuperação da verdadeira história pelos povos vencidos e subalternizados, aquela que nem sempre foi registrada, traduzida ou interpretada. A despeito da pouca fé depositada no Estado, que no dizer de Pierre Clastres (2014CLASTRES, Pierre (2014). A sociedade contra o Estado: pesquisas de antropologia política. São Paulo: Cosac Naify. ), representa o Uno, concentrando em si todo o mal, acreditamos forçoso reconhecer a luta aguerrida de “uma geração de juristas imbuídos pela força da crítica, da transgressão, do inconformismo e da postura emancipadora” (Wolkmer, 2006WOLKMER, Antonio Carlos (org.) (2006). Fundamentos de história de direito. Belo Horizonte: Del Rey. , p. 12), a exemplo dos inúmeros advogados que, na representação dos povos indígenas, se pronunciaram em plenário quando do julgamento do marco temporal, cuja decisão final exprimirá se a Corte máxima do país realmente está disposta a dar efetividade ao direito material33 33 Direito material aduz aos fins do direito, ou seja, à efetivação daquilo que o direito garante ou exige. O direito formal, aspecto complementar daquele, refere-se à instrumentalização para a realização da garantia ou exigência. Disponível em: https://direitosBrasil.com/direito-material-e-direito-formal/. Acesso em: 1 jan. 2022. expresso na Constituição ou se continuará a referendar opressões típicas dos racismos institucional e cultural da sociedade brasileira,34 34 No contexto do Estado-nação, o combate ao racismo institucional e cultural só é possível por meio de políticas públicas que compreendam sua complexidade, o que é um tabu para as elites Brasileiras, nelas incluídas “as legislativas, administrativas e judiciárias” (Pereira, 2020, p. 272). comumente disfarçados pelo mito da democracia racial e perfumados pela democracia do direito.

Considerações finais: resistir para existir, escrever para transcender

Hoje, no mundo em que vivo, minha selva, em pedra se tornou, não tenho a calma de outrora, minha rotina também já mudou.

Em convívio com a sociedade, minha cara de “índia” não se transformou, posso ser quem tu és, sem perder a essência que sou,

Mantenho meu ser indígena, na minha Identidade, Falando da importância do meu povo, mesmo vivendo na cidade.

Márcia Kambeba

A poesia-experiência, a experiência-poética de Márcia Kambeba e a filosofia que delas flui são os motivos que nos levaram a refletir a resistência dos povos indígenas no Brasil à colonialidade encampada pelo discurso jurídico, legitimador histórico da submissão e da opressão protagonizadas pela “frente estatal-empresarial-midiática-cristã” (Segato, 2021SEGATO, Rita (2021). Crítica da colonialidade em oito ensaios: e uma antropologia por demanda. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo . , p. 121). Em Ay kakuyri tama (Eu moro na cidade), Kambeba chama os não indígenas para dançar suas danças rituais, simbolizando a alteridade e a diversidade características do seu povo, ao mesmo tempo em que deixa nítida sua posição como guerreira, demonstrando que, se for preciso - e sabemos que essa é uma constante para os indígenas -, eles sabem e vão guerrear. Em suma, o poema retrata o arco da narrativa de estelionato histórico e secular sofrido por todos os povos indígenas do Brasil, desde o momento em que o primeiro pé europeu pisou em Pindorama35 35 Pindorama (em tupi-guarani: pindó-rama ou pindó-retama “terra/lugar/região das palmeiras”) é uma designação pré-cabralina dada às regiões que, mais tarde, formariam o Brasil. Por extensão de significado, é o nome indígena por excelência do Brasil. Disponível em: https://bit.ly/3utOqSU. Acesso em: 2 jan. 2022. até os dias de hoje.

Rita Segato (2021SEGATO, Rita (2021). Crítica da colonialidade em oito ensaios: e uma antropologia por demanda. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo . ) questiona se seria possível vivermos decolonialmente no contexto do Estado-nação, sobretudo ante à sua cada vez mais pornográfica relação com o mercado, dentro do contexto do capitalismo neoliberal. Para Silvia Cusicanqui (2018CUSICANQUI, Silvia Rivera (2018). Un mundo ch’ixi es posible: ensayos desde un presente en crisis. Buenos Aires: Tinta Limón . ), conhecer a zona gris a partir de sua corporalidade aymara36 36 Os Aymara (Aimará ou Aimara) - também conhecidos como Quolla ou Kolla - estabeleceram-se anteriormente à invasão colombiana no sul do Peru, na Bolívia, na Argentina e no Chile. Disponível em: https://bit.ly/3amp7v9. Acesso em: 30 dez. 2021. implica a descolonização do olhar, conectando-se com a vida através de todos os outros sentidos e do que deles nos escapa - os sonhos, o imaginário, o intangível - deshieraquizar la mirada - encurtar as distâncias e os segregacionismos criados pelo mundo moderno-colonial a partir do coração, de maneira inexplicável ao racional. Acreditamos, pois, que o olhar indígena é uma opção ao mundo-Estado, com suas narrativas formalistas ilusórias e ao capitalismo totalizante e totalitário. Essa opção decolonial se vislumbra a partir do fazer comunal e existe para além de qualquer mundo-Estado, com suas diversidades de histórias, seus tempos locais e suas belezas poéticas.

Ao longo deste artigo, defendemos que uma das formas mais violentas de intrusão da colonialidade do poder é a própria jurisdição estatal, ou seja, o direito que o Estado-nação se arvora de dizer o direito de maneira homogeneizante sobre todos que vivem em seu território. Dizer o direito sem olhar a quem é convalidar a opressão do mais forte - no caso do Brasil, do mais branco, do mais rico e do mais macho. Segundo Segato (2021SEGATO, Rita (2021). Crítica da colonialidade em oito ensaios: e uma antropologia por demanda. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo . ), uma das formas de o Estado recompor o tecido comunitário esgarçado pela colonialidade seria a devolução aos povos sua capacidade de autodeterminação, de sua própria jurisdição interna e de tecer a trama de sua própria história, ao mesmo tempo que permite que o discurso igualitário da modernidade penetre as comunidades, muito embora tal discurso, conforme apontado ao longo desta exposição, sirva apenas de recurso formalístico para a manutenção das estruturas de poder, em especial, o empresarial.

Na poesia de Márcia Kambeba, a convocação à luta é uma constante. Para além da luta solitária e atrevida, comum às escritoras não brancas (Anzaldúa, 2000ANZALDÚA, Gloria (2000). Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo. Revista Estudos Feministas, v. 8, n. 1, p. 229-236, jan. ), em Ay kakuyri tama, Kambeba toma posse de seu lócus de enunciação através da escrita em primeira pessoa, mas fala, ao mesmo tempo, de um canto guerreiro coletivo, o canto para a guerra à qual estão submetidos, desde 1500, todos os povos indígenas no Brasil, que almejam nada além do que o estado democrático de direito lhes garante em sua Carta Magna - ou seja, de acordo com interpretação recente do STF, que ressalta: “quem não vê a diferença não promove a igualdade” (Brasil, 2021BRASIL (2021). Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 1.017.365. Relator: Min. Edson Fachin, 2021, Tribunal Pleno. Brasília: STF . Disponível em:Disponível em:https://www.conjur.com.br/2021-set-09/fachin-vota-tese-marco-temporal . Acesso em: 30 dez. 2021.
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, s.p.).

O belo é da natureza dos povos indígenas, de maneira que chega a ser pleonástico dizer que o falar indígena é poético. Escrever e escrever poesia para os povos indígenas, no entanto, é necessário e urgente. Para nós, pessoas não indígenas, escutá-los e lê-los é, mais do que nunca, necessário e urgente.

Referências

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  • VARNHAGEN, Francisco Adolfo de (1975). História geral do Brasil. São Paulo: Melhoramentos.
  • WOLKMER, Antonio Carlos (org.) (2006). Fundamentos de história de direito. Belo Horizonte: Del Rey.
  • 1
    Gerda Lerner (2019LERNER, Gerda (2019). A criação do patriarcado: história da opressão das mulheres pelos homens. São Paulo: Cultrix. ) afirma que é uma estratégia do patriarcado interditar as mulheres de narrar a História - aquela vivida e registrada, a despeito de elas terem papel fundamental em sua construção, sendo-lhes permitido, no máximo tecer suas histórias - aqui tomada apenas no sentido de experiência. O patriarcado dita quem pode escrever e interpretar a História.
  • 2
    Na cosmogonia dos povos Guarani, o mito da Terra sem Males ou Guajupiá (Paraíso) faz referência a uma terra onde não haveria fome, guerras ou doenças (Rocha, 2010ROCHA, Joana D’Arc Portella (2010). Terra sem mal: o mito guarani na demarcação de terras indígenas. Dissertação (Mestrado em Geografia) -Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria.).
  • 3
    Categoria desenvolvida por María Lugones (2014LUGONES, María (2008). Colonialidad y Género. Revista Tábula Rasa, n. 9, p. 73-102, dez. Disponível em: Disponível em: http://www.scielo.org.co/pdf/tara/n9/n9a06.pdf . Acesso em: 24 maio 2021.
    http://www.scielo.org.co/pdf/tara/n9/n9a...
    ), a partir do conceito de pensamento de fronteira, de Walter Mignolo (2017MIGNOLO, Walter D. (2017). Desafios decoloniais hoje. Revista Epistemologias do Sul, v. 1, n. 1, p. 12-32, maio.). Trata-se da adaptação concreta que as sujeitas racializadas fazem, negociando, de dentro desse lócus fraturado pela diferença colonial, formas de resistência e de resposta à colonialidade de gênero.
  • 4
    A lenda do boto-cor-de-rosa, originária dos povos indígenas amazônicos, é contada para justificar a gravidez de uma mulher solteira. Disponível em: http://www.sohistoria.com.br/lendasemitos/boto/. Acesso em: 31 dez. 2021.
  • 5
    A despeito de seu caráter pejorativo, o termo índio é comumente utilizado na legislação pátria para se referir aos povos indígenas no Brasil, a exemplo da própria Constituição Federal, o que inclusive representou, à época, um certo avanço em relação ao Código Civil então em vigor, que os denominava de silvícolas (Brasil, 1916BRASIL (1916). Lei nº 3.071, de 1º de janeiro de 1916. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l3071.htm . Acesso em: 26 dez. 2021.
    http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/lei...
    ). Os termos posse e tutela fizeram parte da política do Estado para configurar a identidade indígena como transitória, já que se supunha e planejava que, ao longo da integração à civilização, os indígenas desapareceriam (Aldeados..., 2020ALDEADOS nas políticas de controle e homogeneização do estado civil-militar (2020). Rede CO(VIDA). Disponível em: Disponível em: https://www.redecovida2020.com/aldeados . Acesso em: 30 dez. 2021.
    https://www.redecovida2020.com/aldeados...
    ). Neste artigo, usamos o termo índio em itálico para demarcar o modo como o Estado-nação brasileiro denomina os indígenas, contra o qual nos insurgimos.
  • 6
    Disponível em: https:/www.youtube.com/watch?v=ildN6lyXDNE. Acesso em: 31 dez. 2021.
  • 7
    O Estado-nação, por meio de seus sistemas de justiça, pressiona sistematicamente os indígenas a adotarem a cartilha da integração como forma de, em troca, lhes fazer experimentar a cidadania plena, ao mesmo tempo que, uma vez integrados, continuam a padecer dos racismos da sociedade não indígena e do próprio Estado.
  • 8
    Tupinambás, denominação atribuída de forma genérica aos diversos povos que habitavam o litoral Brasileiro (Gândavo, 2008GÂNDAVO, Pero de Magalhães (2008). Tratado da Terra do Brasil: história da província de Santa Cruz, a que vulgarmente chamamos Brasil. Brasília: Senado Federal.), o que também é marca da colonialidade homogeneizante de poder. Durante os séculos XVI e XVII, a língua falada pelos tupinambás, o tupi, foi chamada pelos portugueses de língua brasílica (os indígenas também eram chamados de brasis) e teve sua primeira representação escrita pelo padre jesuíta José de Anchieta (Navarro, 2005NAVARRO, Eduardo de Almeida (2005). Método moderno de tupi antigo: a língua do Brasil dos primeiros séculos. São Paulo: Global. ).
  • 9
    Contrariamente à narrativa corrente de que os indígenas não serviam à escravização porque eram preguiçosos, eles foram massivamente escravizados, foram torturados e assassinados quando resistiam aos trabalhos forçados. Somente em 1600, com o início de outra lucrativa atividade econômica às metrópoles europeias, o tráfico de pessoas da África, foi que o número de escravizados indígenas passou a ser menor que o de negras e negros africanos (Guerras..., 2009GUERRAS do Brasil.doc (2018) - As guerras da conquista. 2019. 1 vídeo (26 min). Direção de Luiz Bolognesi. Produção de Lais Bodanzky e Luiz Bolognesi. Brasil: Buriti Filmes. ).
  • 10
    As categorias mundo-Estado e mundo-aldeia são apresentadas por Rita Segato (2021SEGATO, Rita (2021). Crítica da colonialidade em oito ensaios: e uma antropologia por demanda. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo . ) para representar a dicotomia Estado-nação (neste artigo, o Brasil) e o mundo pré-intrusão colonial.
  • 11
    A dicotomia índios aldeados e índios desaldeados foi cunhada pelos não indígenas para diferenciar indígenas que vivem nas terras indígenas que vivem fora dessas terras. Trata-se de distinção segregacionista e racista, pois se baseia em critério puramente material, sobrepujando a ligação de ordem ignorada pelo mundo-Estado do indivíduo indígena com seu território e com seu povo. A mais recente violência perpetrada pelo Estado-nação veio através da publicação da Resolução Funai nº 4/2021, publicada em 22/01/2021, ocasião em que o órgão indigenista, contrariando a Constituição Federal e a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho, inova nos critérios para heteroidentificação dos indígenas, restringindo, desse modo o acesso das populações às políticas públicas, sobretudo para excluir aqueles discriminados como desaldeados do Plano Nacional de Operacionalização de Vacinação (Aldeados..., 2020ALDEADOS nas políticas de controle e homogeneização do estado civil-militar (2020). Rede CO(VIDA). Disponível em: Disponível em: https://www.redecovida2020.com/aldeados . Acesso em: 30 dez. 2021.
    https://www.redecovida2020.com/aldeados...
    ).
  • 12
    A partir de estudos etnográficos que precedem, inclusive, a literatura decolonial, a autora identifica posições semelhantes ao que chamamos relações de gênero, entretanto, “o mundo tribal permite mais trânsito e circulação entre as posições do que o gênero ocidental moderno” (Segato, 2021SEGATO, Rita (2021). Crítica da colonialidade em oito ensaios: e uma antropologia por demanda. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo . , p. 100).
  • 13
    No mesmo sentido, diante do pouco caso dos estadunidenses em aprender a linguagem mestiça, Gloria Anzaldúa se tornou especialista em inglês, “para irritar, para desafiar os professores arrogantes e racistas que pensavam que todas as crianças chicanas eram estúpidas e sujas”. (Anzaldúa, 2000ANZALDÚA, Gloria (2000). Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo. Revista Estudos Feministas, v. 8, n. 1, p. 229-236, jan. , p. 230).
  • 14
    Nas palavras de Cusicanqui (2015CUSICANQUI, Silvia Rivera (2015). Sociología de la imagen: ensayos. Buenos Aires: Tinta Limón. , p. 295): “ch’ixi literalmente se refiere al gris jaspeado, formado a partir de infinidad de puntos negros y blancos que se unifican para la percepción, pero permanecen puros, separados. Es un modo de pensar, de hablar y de percibir que se sustentan en lo múltiple y lo contradictorio, no como un estado transitorio que hay que superar (como en la dialéctica), sino como una fuerza explosiva y contenciosa, que potencia nuestra capacidad de pensamiento y acción. Se opone así a las ideas de sincretismo, hibridez y a la dialéctica de la síntesis, que siempre andan en busca de lo uno, la superación de las contradicciones a través de un tercer elemento, armonioso y completo en sí mismo”.
  • 15
    Em 1537, o Papa Paulo III declarou a humanidade dos ameríndios, o que, longe de significar a igualdade étnica entre os povos, serviu para conotar a ideia de que, para os europeus, nem todos os homens eram dignos de humanidade, tomando para si o paradigma da humanidade ideal (Borges, 2018BORGES, Cristina (2018). Colonialidade do ser e sustentação do racismo: entendimento à luz de Nelson Maldonado-Torres. In: CONGRESSO EM DESENVOLVIMENTO SOCIAL, 4., 2018, Montes Claros. Anais [...]. Montes Claros: PPGDS/Unimontes. p. 2261-2268. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3agZ3l0 . Acesso em: 30 dez. 2021.
    https://bit.ly/3agZ3l0...
    ).
  • 16
    Relacionando a dominação das metrópoles europeias sobre os povos africanos àquela sofrida pelos indígenas, Glissant (2021GLISSANT, Édouard (2021). Poética da relação. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo. , p.32) conclui que os primeiros habitantes (povos indígenas) também foram “deportados por um saque estacionário”.
  • 17
    No que diz respeito às comunidades quilombolas, sugerimos a leitura da obra Os quilombos e a Nação, de autoria do colega integrante da Advocacia-Geral da União, Paulo Fernando Soares Pereira, na qual expressa que “O Estado-nação se apropriou da cultura negra quando lhe foi conveniente afirmar o mito fundador e, quando não houve conveniência, subalternizou-a e a combateu” (Pereira, 2020PEREIRA, Paulo Fernando Soares (2020). Os quilombos e a nação: inclusão constitucional, políticas públicas e antirracismo patrimonial. Rio de Janeiro: Lumen Juris. , p. 285).
  • 18
    Obra do pintor brasileiro Victor Meirelles, feita entre 1859 e 1861. Atualmente encontra-se no Museu Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro (Prestes, 2011PRESTES, Roberta Ribeiro (2011). A Primeira Missa no Brasil em dois tempos. Oficina do Historiador, v. 3, n. 2, p. 141-157, 2 ago.).
  • 19
    “E uma daquelas moças era toda tingida, de baixo a cima daquela tintura; e certo era tão bem-feita e tão redonda, e sua vergonha (que ela não tinha) tão graciosa, que a muitas mulheres da nossa terra, vendo-lhe tais feições, fizera vergonha, por não terem a sua como ela. Nenhum deles era fanado, mas, todos assim como nós” (Caminha, 2021CAMINHA, Pero Vaz (2021). Carta de achamento do Brasil. Edição comentada por Sheila Hue. Campinas: Editora Unicamp. ).
  • 20
    Tomamos aqui a miscigenação na perspectiva de oportunidade de “poder ver no espelho - raça, corporalidade, paisagem que nos habita - quem somos, de onde viemos, que linhagens podemos recuperar, que histórias interceptadas e censuradas podemos suturar com o presente de forma a lhes proporcionar o futuro” (Segato, 2021SEGATO, Rita (2021). Crítica da colonialidade em oito ensaios: e uma antropologia por demanda. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo . , p. 37-38).
  • 21
    “A língua deste gentio toda pela costa é, uma: carece de três letras - scilicet, não se acha nela F, nem L, nem R, cousa digna de espanto, porque assim não têm Fé, nem Lei, nem Rei; e desta maneira vivem sem Justiça e desordenadamente” (Gândavo, 2008GÂNDAVO, Pero de Magalhães (2008). Tratado da Terra do Brasil: história da província de Santa Cruz, a que vulgarmente chamamos Brasil. Brasília: Senado Federal., p. 65).
  • 22
    Desde o início da invasão, armas biológicas têm sido utilizadas contra os povos indígenas. “José de Anchieta conta que 30 mil tupis morreram na região do Recôncavo Baiano em poucos meses, vitimados pela epidemia de varíola que durou de 1562 a 1565. Diferentemente dos europeus, eles ainda não tinham desenvolvido anticorpos de qualquer espécie contra a doença” (Ninguém..., 2020NINGUÉM entra e ninguém sai (2020). Uma gota no oceano, 24 mar. Disponível em: Disponível em: https://umagotanooceano.org/ninguem-entra-ninguem-sai/ . Acesso em: 04 jan. 2022.
    https://umagotanooceano.org/ninguem-entr...
    , s.p.). Trata-se de fato cuja dimensão, comparável a um holocausto, é completamente ignorada pela historiografia dos genocídios da humanidade (Guerras..., 2019GUERRAS do Brasil.doc (2018) - As guerras da conquista. 2019. 1 vídeo (26 min). Direção de Luiz Bolognesi. Produção de Lais Bodanzky e Luiz Bolognesi. Brasil: Buriti Filmes. ).
  • 23
    A despeito da idílica interpretação de Gilberto Freyre (2005FREYRE, Gilberto (2005). Casa-grande e senzala. São Paulo: Global Editora. ) sobre a formação da família brasileira, com esteio no mito da democracia racial, ao longo da história republicana do País, os povos indígenas continuaram sendo alvo das políticas de morte do Estado-nação. Em 1963, servidores do Serviço de Proteção aos Índios (SPI), distribuíram aos Cinta Larga, em Rondônia, itens contaminados com arsênico, resultando na morte de 3.500 indígenas. O episódio, conhecido como Massacre do Paralelo 11, também “incluiu do roubo ao estupro, passando por grilagem, assassinato, suborno, tortura e outras agressões que chocaram o então ministro do Interior, general Albuquerque Lima, que mandou demitir um dos principais envolvidos no incidente, o então chefe do SPI, major Luiz Vinhas Neves, responsável pela chacina dos Cinta Larga” (Massacre..., 2006MASSACRE do Paralelo 11 extermina 3.500 índios (2006). Terras Indígenas no Brasil. Brasília: ISA. Disponível em: Disponível em: https://terrasindigenas.org.br/noticia/17879 . Acesso em: 4 jan. 2022.
    https://terrasindigenas.org.br/noticia/1...
    , n. p.). Mais recentemente, o relatório final da Comissão da Verdade apontou que, durante a ditadura militar no Brasil, foram assassinados 8.350 indígenas. Disponível em: http://cnv.memoriasreveladas.gov.br index.php/outros-destaques/574-conheca-e-acesse-o-relatorio-final-da-cnv. Acesso em: 4 jan. 2022).
  • 24
    Contrariando o discurso do relativismo cultural, Rita Segato (2021SEGATO, Rita (2021). Crítica da colonialidade em oito ensaios: e uma antropologia por demanda. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo . ), ao ser chamada a opinar em caso que o Estado brasileiro caracterizou como infanticídios em certas etnias indígenas, defendeu a ideia de pluralismo histórico entre os diversos povos que ocupam o território nacional, de modo que cada povo deve ter autonomia para tecer os fios de sua história, tomando cada episteme como um vetor histórico cuja experiência acumulativa não é estanque.
  • 25
    A idealização de graus de humanidade de acordo com a raça imprime à colonialidade do poder uma dimensão ontológica, expressa na experiência de ser tomado como inferior (Maldonado-Torres, 2007MALDONADO-TORRES, Nelson (2007). Sobre la colonialidad del ser: contribuciones al desarrollo de un concepto. In: CASTRO-GÓMEZ, Santiago; GROSFOGUEL, Ramón. El giro decolonial: reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Siglo del Hombre Editores. p. 127-167.).
  • 26
    Não existe, portanto, diferença entre a natureza acordada e o mundo dos sonhos. Tudo está entrelaçado, de maneira que cada ente, inclusive, inorgânico possui espírito (O povo..., 2012O POVO brasileiro de Darcy Ribeiro (2012) - Matriz Tupi. 1 vídeo (26 min). Disponível em: Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=rQOPdiEdX24 . Acesso em 26 dez. 2021.
    https://www.youtube.com/watch?v=rQOPdiEd...
    ).
  • 27
    O Projeto de Lei nº 191, de autoria do Poder Executivo federal e cuja aprovação é uma de suas prioridades, não se acanha em, ao arrepio do texto constitucional, prever que “é admitida a outorga de permissão de lavra garimpeira em terras indígenas exclusivamente nas zonas de garimpagem previamente definidas pela [Agência Nacional de Mineração] ANM, desde que haja consentimento das comunidades indígenas afetadas, nos termos do disposto em regulamento e observadas as diretrizes estabelecidas pelo Ministério de Minas e Energia”. A proposta pende de apreciação pelas Comissões Especiais da Câmara Legislativa. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2236765. Acesso em: 2 jan. 2022.
  • 28
    “Em 2019, com a entrada de um novo presidente, mais de 20 mil garimpeiros voltaram a invadir o território Yanomami, derrubando a floresta, envenenando os rios com mercúrio e trazendo a Covid-19 para as aldeias. Em vez de cumprir a Constituição e proteger os índios, o novo governo tenta legalizar a invasão das terras indígenas por garimpeiros” (A última..., 2021A ÚLTIMA floresta (2021). Direção: Luiz Bolognesi. Produção de Caio Gullane, Fabiano Gullane, Lais Bodanzky e Luiz Bolognesi. Brasil: Gullane Distribuidora, Netflix.).
  • 29
    O Parecer Normativo nº 01/2017 da Advocacia-Geral da União, chamado pelo Conselho Missionário Indigenista (Cimi) de parecer antidemarcação, foi exarado no contexto do governo do ex-presidente Michel Temer e teve sua eficácia administrativa suspensa pelo STF em decisão liminar proferida em 7/5/2020 (Cimi, 2021CIMI - CONSELHO INDIGENISTA MISSIONÁRIO. Nota do Cimi: autorização do governo para garimpo em áreas preservadas é temerária e coloca povos indígenas em risco (2021). Brasília: Cimi, 8 dez. Disponível em: Disponível em: https://cimi.org.br/2021/12/nota-cimi-autorizacao-governo-garimpo-areas-preservadas/ . Acesso em: 29 dez. 2021.
    https://cimi.org.br/2021/12/nota-cimi-au...
    ).
  • 30
    Trata-se de decisão favorável aos povos Wapichana, Patamona, Makuxi, Taurepang e Ingarikó, proferida pelo STF em ação popular ajuizada pelo senador eleito Augusto Affonso Botelho Neto, de Roraima, questionando a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. A ação pedia a declaração de nulidade da Portaria nº 534 do Ministério da Justiça, homologada pela Presidência da República em 15/04/2005, que decidiu pela demarcação da terra indígena de maneira contínua, promovendo a desintrusão de pessoas não indígenas que ocupassem o território naquela data. Disponível em: https://cimi.org.br/2019/10/raposa-serra-do-sol-como-esta-a-terra-indigena-apos-uma-decada-da-historica-decisao-do-stf/. Acesso em: 2 jan. 2022.
  • 31
    O voto contrário ao do Ministro relator foi pronunciado pelo ministro Kassio Nunes Marques, também indicado pelo atual presidente da República em 22/10/2020 (Brasil, 2021BRASIL (2021). Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 1.017.365. Relator: Min. Edson Fachin, 2021, Tribunal Pleno. Brasília: STF . Disponível em:Disponível em:https://www.conjur.com.br/2021-set-09/fachin-vota-tese-marco-temporal . Acesso em: 30 dez. 2021.
    https://www.conjur.com.br/2021-set-09/fa...
    ).
  • 32
    Trata-se do ministro André Mendonça, nomeado pelo atual presidente da República em 02/12/2021. Membro de carreira da Advocacia-Geral da União, chefiou o órgão entre os anos de 2020 e 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-dez-16/andre-mendonca-toma-posse-stf-assume-900-processos. Acesso em: 4 jan. 2022.
  • 33
    Direito material aduz aos fins do direito, ou seja, à efetivação daquilo que o direito garante ou exige. O direito formal, aspecto complementar daquele, refere-se à instrumentalização para a realização da garantia ou exigência. Disponível em: https://direitosBrasil.com/direito-material-e-direito-formal/. Acesso em: 1 jan. 2022.
  • 34
    No contexto do Estado-nação, o combate ao racismo institucional e cultural só é possível por meio de políticas públicas que compreendam sua complexidade, o que é um tabu para as elites Brasileiras, nelas incluídas “as legislativas, administrativas e judiciárias” (Pereira, 2020PEREIRA, Paulo Fernando Soares (2020). Os quilombos e a nação: inclusão constitucional, políticas públicas e antirracismo patrimonial. Rio de Janeiro: Lumen Juris. , p. 272).
  • 35
    Pindorama (em tupi-guarani: pindó-rama ou pindó-retama “terra/lugar/região das palmeiras”) é uma designação pré-cabralina dada às regiões que, mais tarde, formariam o Brasil. Por extensão de significado, é o nome indígena por excelência do Brasil. Disponível em: https://bit.ly/3utOqSU. Acesso em: 2 jan. 2022.
  • 36
    Os Aymara (Aimará ou Aimara) - também conhecidos como Quolla ou Kolla - estabeleceram-se anteriormente à invasão colombiana no sul do Peru, na Bolívia, na Argentina e no Chile. Disponível em: https://bit.ly/3amp7v9. Acesso em: 30 dez. 2021.

Editora:

Cristiane da Silva Alves

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    28 Fev 2022
  • Aceito
    26 Maio 2022
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
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