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Cultura de massa e cultura compartilhada em Tupinilândia

Mass culture and parody in Tupinilândia

Cultura de masas y cultura compartida em Tupinilândia

Resumo

O romance Tupinilândia, de Samir Machado de Machado, publicado em 2018, utiliza a cultura de massa para falar dela mesma e de como ela alicerça a memória coletiva e também as aspirações de uma sociedade em um contexto capitalista. O presente artigo mostra como Machado, ao construir uma narrativa paródica, como definido por Hutcheon (1988), com elementos da cultura de massa, sem recair em adesão nem em homenagem acrítica ou rechaço, consegue estabelecer um jogo que permite uma reflexão acerca da história do país, de questões contemporâneas como capitalismo e memória, pontos levantados com profundidade em um romance paródico da literatura de entretenimento. Para tanto, foram selecionados personagens e momentos históricos utilizados pelo autor, bem como referências a elementos de época, a fim de compreender o repertório factual no qual Tupinilândia se sustenta. Ainda, foram analisadas passagens que ecoam histórias clássicas de aventura e mobilizam o conhecimento geral desse tipo de narrativa. Observa-se que Tupinilândia tanto reflete tendências na literatura brasileira contemporânea apontadas por Schollhammer (2009) quanto cria um espaço particular, com sua reflexão sofisticada tanto acerca da realidade brasileira atual, questionando o papel da distopia como mero sarcasmo diante dos absurdos que nos cercam, quanto da maneira como a nossa sociedade lida com memória e nostalgia: uma fantasia seletiva na qual elementos relevantes são eliminados com descaso, e aqueles que são danosos estão sempre sujeitos a retornarem.

Palavras-chave
literatura brasileira contemporânea; cultura de massa; paródia; Tupinilândia

Abstract

The novel Tupinilândia, by Samir Machado de Machado, published in 2018, uses mass culture to talk about itself, and how it sustains the collective memory as well as the aspirations of a society in a capitalist context. This article showed how Machado, by building a parodic narrative, as defined by Hutcheon (1988), with elements of mass culture, without falling back into adherence and uncritical homage or rejection, manages to establish a game that allows a reflection on the country’s history, of contemporary issues such as capitalism and memory, points raised in depth in a parodic novel of entertainment literature. For that, historical characters and events mentioned by the author were selected, as well as cultural references to that period of History, in order to understand the factual repertoire on which Tupinilândia is based. Passages that echo classic adventure stories and mobilize the general knowledge of this type of narrative were also highlighted. It was observed that Tupinilândia both reflects trends in contemporary Brazilian literature pointed out by Schollhammer (2009SCHOLLHAMMER, Karl E. (2009). Ficção brasileira contemporânea. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.), in how much it creates a particular space with his sophisticated reflection both about the current Brazilian reality, questioning the role of dystopia as mere sarcasm in the face of of the absurdities that surround us, and about the way in which our society deals with memory and nostalgia, a selective fantasy in which relevant elements are disregarded, and those that are harmful are always at risk to return.

Keywords:
Brazilian contemporary literature; mass culture; parody; Tupinilândia

Resumen

La novela Tupinilândia, de Samir Machado de Machado, publicada en 2018, utiliza la cultura de masas para hablar de sí misma y de cómo sustenta la memoria colectiva y también las aspiraciones de una sociedad en un contexto capitalista. Este artículo muestra cómo Machado, al construir una narrativa paródica, tal como la define Hutcheon (1988HUTCHEON, Linda (1988). A poética do pós-modernismo. Tradução de Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago.), con elementos de la cultura de masas, sin caer en la adhesión y el homenaje o el rechazo acríticos, logra establecer un juego que permite reflexionar sobre la historia del país, de temas contemporáneos como el capitalismo y la memoria, puntos planteados en profundidad en una novela paródica de la literatura de entretenimiento. Para eso, fueron apuntados personajes y eventos históricos mencionados por el autor, así como referencias a ese período de la Historia, con el fin de comprender el repertorio factual en el que se basa Tupinilândia. También destacamos pasajes que hacen eco de las historias de aventuras clásicas y movilizan el conocimiento general de este tipo de narrativa. Se observa que Tupinilândia refleja tendencias de la literatura brasileña contemporánea señaladas por Schollhammer (2009SCHOLLHAMMER, Karl E. (2009). Ficção brasileira contemporânea. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.), en la medida en que crea un espacio particular, con su sofisticada reflexión tanto sobre la realidad brasileña actual, cuestionando el papel de la distopía como mero sarcasmo en la cara de los absurdos que nos rodean, y de la forma en que nuestra sociedad trata la memoria y la nostalgia: una fantasía selectiva en la que se descartan elementos que en realidad son relevantes, y los que son nocivos siempre corren el riesgo de volver.

Palabras clave:
literatura contemporánea brasileña; cultura de masas; parodia; Tupinilândia

A temática e o tom do romance Tupinilândia, publicado por Samir Machado de Machado em 2018, podem provocar no leitor a impressão de estar diante de um blockbuster. A trama, envolvente, mantém-se em um ritmo que, se não é veloz, tampouco se desvia do intuito de contar uma história cujo interesse não decresce, mesmo após situações plausíveis, às vezes até previsíveis, e outras intencionalmente (ou não?) rocambolescas. Porém Tupinilândia está longe de se restringir ao papel de literatura digerível própria para momentos de lazer, sem que lhe falte a leveza, qualidade muitas vezes compreendida, equivocadamente, como superficialidade.

Tupinilândia narra a história de um parque temático homônimo, construído nos anos 1980, por João Amadeus Flynguer, um rico empresário, excêntrico, aficionado por Walt Disney desde sua infância, nos anos 1940, e entusiasmado com o processo de redemocratização do Brasil décadas depois. A trama expõe a construção do parque, as atrações dedicadas a diferentes marcas e personagens brasileiras e recria o clima de ansiedade anterior à inauguração, entretanto todas as atividades são subitamente interrompidas por causa da insurreição de generais inconformados com o fim da ditadura militar, que tomam o controle do local.

Saltamos algumas décadas, e o romance apresenta-nos, já nos anos 2000, um arqueólogo interessado em desvendar o mistério por trás desse estranho capítulo da história recente do país. Ele consegue um financiamento para viajar à região com um pequeno grupo e lá encontra um mundo à parte, com pessoas que vivem nas ruínas do parque, sob o domínio despótico de militares, sem saber que a ditadura havia acabado. Um vigoroso embate opõe o arqueólogo e sua equipe ao comando militar que dominava o local, levando ao fim daquela experiência distópica e a uma série de reflexões a respeito da nostalgia e do tratamento ambivalente que o Brasil concede a seu passado, especialmente no que diz respeito aos momentos mais obscuros da história.

O convívio entre personagens ficcionais e históricas e as alusões a episódios que envolvem personagens reais são artifícios usuais em romances históricos, sendo perceptíveis em toda a narrativa, que se divide em duas partes, cada uma sobre um período da nossa história recente: os anos 80 do século passado e os anos iniciais do século XXI. Tal recurso, todavia, está longe de permitir a simples inclusão dessa narrativa no rol dos romances históricos tradicionais, pois toda a reconstrução do passado se reveste de ironia e conduz a reflexões de surpreendente atualidade, algo imprevisível, seguramente, no momento da criação da obra. Episódios históricos têm pouco espaço na ficção, que recria minuciosamente as atividades culturais e de entretenimento que marcaram os anos finais do século passado, transformando a leitura em um exercício fascinante para quem viveu a época. Ainda que em registro ficcional, Tupinilândia equivale a um precioso repositório da nossa história recente.

Personagens que poderiam ter vivido no Brasil na primeira metade do século passado, caso de João Amadeus Flynguer, ombreiam às vezes com personagens da história do Brasil, como Getúlio Vargas, ou da história da cultura e do entretenimento, como Walt Disney, um dos inspiradores do parque, que induz Flynguer a adotar o nome de Tupinilândia, e propulsor indireto de todo o enredo. Essa é uma parte curta, porém significativa, da obra, sintetizada em um prólogo de menos de 20 páginas, encabeçado pelo título “Maio, 1981”. Essa data refere-se ao tempo ficcional em que Amadeus decide documentar a criação do parque, mas o conteúdo narrado volta à sua infância, em 1941, quando teve a oportunidade de conhecer Walt Disney, em visita ao Rio de Janeiro. O parque seria construído na Amazônia, pois outro mote inspirador para Flynguer era Fordlândia, a cidade que Henry Ford criou na região, sem ter logrado êxito, mas cujas ruínas ainda existem, até com a mesma denominação, em um distrito de Aveiro, no Pará.

Após o prólogo, deparamos com a primeira parte do livro, sobre a construção do parque. O detalhamento sobre sua inspiração e suas providências é narrado por seu criador ao jovem jornalista Tiago Monteiro, contratado para escrever a “biografia de uma ideia” (Machado, 2018MACHADO, Samir M. (2018). Tupinilândia. São Paulo: Todavia., p. 57), como lhe explicou Helena, a filha de Amadeus, ao entregar-lhe uma pasta contendo algum material publicitário e o diário com informes sobre o planejamento inicial e as circunstâncias da criação do parque. Entre os impressos, estavam gibis protagonizados por personagens de Tupinilândia, reforçando o caráter do parque em ser uma releitura brasileira do universo concebido por Walt Disney. Em seu diário, Amadeus anotou que havia solicitado ao governo uma concessão de terras e acrescenta que meses depois “o Andreazza1 1 Mário Andreazza, político e militar, havia sido ministro dos Transportes no governo do general Médici. me ligou para informar que nossa concessão foi aprovada” (Machado, 2018MACHADO, Samir M. (2018). Tupinilândia. São Paulo: Todavia., p. 74).

A concessão da área de 13 km2 2 O general Amaury Kruel participou do golpe de Estado que destituiu João Goulart em 1964, mas não teve nenhum papel expressivo nos governos seguintes (Gaspari, 2016, p. 325) destinava-se à construção de Tupinilândia, o gigantesco parque voltado para temáticas brasileiras, contudo os documentos oficiais registraram um novo município, denominado Amadeus Severo (em homenagem ao pai do solicitante), para ser administrado por um interventor militar, o general Newton Kruel. A nomeação de interventores tinha como objetivo enviar para regiões remotas alguns generais de extrema-direita, adeptos do endurecimento do regime militar, que sabotavam a distensão “lenta, gradual e segura” promovida pelo general presidente Geisel para atender às campanhas da sociedade civil em prol da redemocratização do país.

Em seu afã de boicotar a abertura, o interventor Newton Kruel promoveu uma guerra particular contra o empreendimento, para, naquela região remota, instituir uma versão “particular” de ditadura. Com esse intuito, Kruel reuniu um grupo de militares fanáticos e com eles invadiu o parque, levando-o à derrocada e à morte de seu criador.

A criação do parque temático é, de certa forma, a combinação de duas utopias: a ideia de um parque como os de Walt Disney como pequenas cidades utópicas regidas pela diversão e por um consumismo ingênuo; e a utopia do Brasil no rastro do “milagre econômico” do regime militar. A exaltação de empresas e produtos nacionais por meio das atrações do parque e da criação de personagens, como marcas de um ufanismo capitalista e acrítico, dá corpo à utopia de Flynguer, que descreve a si mesmo como um “utopista” (Machado, 2018MACHADO, Samir M. (2018). Tupinilândia. São Paulo: Todavia., p. 152), e também a outra, generalizada e propagandeada. Essa utopia está relacionada à nostalgia, amplamente explorada no romance e que é discutida nele na perspectiva de “restauração” ou “retorno”:

Aconteceu a industrialização e a cultura de massa, que gerou um dos grandes fenômenos do século XX: a privatização e a internalização da nostalgia. O desejo de “retorno ao lar” foi substituído pelo desejo de retorno à própria infância, fazendo com que cada vez mais a nostalgia se tornasse desajustada não com o progresso em si, mas com a noção que tínhamos de maturidade (Machado, 2018MACHADO, Samir M. (2018). Tupinilândia. São Paulo: Todavia., p. 265).

As utopias aqui apresentadas demonstram as duas faces da nostalgia: sua dimensão de retorno ao lar, ou o que é definido como um aspecto nacional da nostalgia, e a individualização, expressa tanto nas memórias afetivas quanto em Tupinilândia como reflexo da infância de Flynguer, um aficionado pela Disney e por seu criador desde que o conheceu pessoalmente, quando criança.

Na segunda parte do livro, o arqueólogo e professor universitário Artur Flinguer (sem parentesco com Amadeus) encontra notícias sobre Tupinilândia, cujas revistas em quadrinho fizeram parte de sua infância nos anos 1980. Seu interesse pelo empreendimento é, portanto, também uma manifestação da nostalgia em seu caráter de retorno à infância, e é esse impulso que o leva a obter um financiamento, que lhe permite organizar uma expedição ao local com um pequeno grupo: sua filha, Lara, com o namorado, Benjamim, como bolsistas do projeto, além dos pesquisadores Donald Kastensmidt e Marcos Tavares.

O grupo embarca para Belém do Pará, onde Artur é surpreendido por Ernesto Danilo, que se apresenta como arqueólogo (sendo desmentido quase imediatamente) e que, acompanhado de dois seguranças, o agride, simulando um assalto:

– Escute, se é dinheiro que vocês querem… – Artur murmurou.

– Não se faça de desentendido. Você sabe que não se trata de dinheiro. Se trata de dar um recado. Nós tínhamos um acordo. Vocês deveriam deixar Tupinilândia em paz (Machado, 2018MACHADO, Samir M. (2018). Tupinilândia. São Paulo: Todavia., p. 307).

Com a derrocada do parque, havia sido estabelecido um pacto entre Helena Flynguer, herdeira de todo o empreendimento e de uma grande empreiteira, e o general Newton Kruel, que permaneceu lá, como interventor, com um grupo de fanáticos integralistas, zelando para que a área permanecesse isolada do restante do país e do mundo. Trata-se da conversão da utopia em distopia. Aquele universo idílico se converte em um cenário de pesadelo pelo exagero de algumas características promovido pelo general e pela cristalização de Tupinilândia no tempo, um território em que a ditadura militar não teria acabado. Alguns dos traços do cenário utópico — o fato de ser regido por militares, o consumismo, o ufanismo —, quando exagerados e distorcidos, são o que fundamentam a distopia e consequência da falta de pensamento crítico diante dos elementos fundantes da realidade que se consolida como utópica. Temos, assim, um microcosmos totalitário e alienado em que cidadãos são chamados de consumidores.

Esse isolamento exigia espiões atentos fora de Tupinilândia. Assim, Artur, desconhecendo esse pacto, organizou a expedição, sabotada e combatida pela milícia de Kruel. Esse nome parece ter-se inspirado em dois generais, figuras históricas referidas por Elio Gaspari em A ditadura acabada (2016GASPARI, Elio (2016). A ditadura acabada. Rio de Janeiro: Intrínseca.): Amaury Kruel2 2 O general Amaury Kruel participou do golpe de Estado que destituiu João Goulart em 1964, mas não teve nenhum papel expressivo nos governos seguintes (Gaspari, 2016, p. 325) e Newton Cruz3 3 O general Newton Cruz, conhecido pelo apelido de Nini, embora tenha desempenhado cargos relevantes para o sistema ditatorial, incluindo o de chefe da Agência Central do Serviço Nacional de Informações, foi preterido na promoção ao generalato do exército (Gaspari, 2016, p. 352) e passou para a reserva em 1985. . O fictício Newton Kruel era adepto do integralismo, um movimento ultradireitista criado nos anos 1930 e existente até hoje. Outro general, que também seria afastado, surge na ficção com seu verdadeiro nome: Sylvio Frota, apontado como “o mais ferrenho opositor da redemocratização” (Machado, 2018MACHADO, Samir M. (2018). Tupinilândia. São Paulo: Todavia., p. 45). De acordo com Gaspari (2016GASPARI, Elio (2016). A ditadura acabada. Rio de Janeiro: Intrínseca., p. 286), Frota entrou em conflito com Geisel, o que resultou em sua destituição.

Ao desnudar um dos muitos esquemas possíveis entre empreiteiros ricos e governantes sem escrúpulos, com personagens ficcionais calcadas na realidade brasileira, Tupinilândia consagra-se como uma narrativa capaz de se contrapor a certo discurso historiográfico “oficial” que, cultivado com alguma discrição ao longo dos anos, lamentavelmente foi alçado à ribalta em tempos recentes.

A luta pelo poder — em variadas esferas — mobiliza boa parte da narrativa, porém esse enredo é permeado por uma concepção original e altamente inovadora da cultura de massa, reconhecendo sua presença sem preconceito nem descrédito.

Samir Machado de Machado é um desses escritores que conseguem apropriar-se da cultura de massa, tornando-a indispensável à construção ficcional. Desse modo, as personagens podem expressar seu gosto por qualquer dos componentes mais frequentes em seu mundo, como cinema, música ou propaganda, por exemplo, e ao mesmo tempo ser porta-vozes da denúncia dos problemas decorrentes da imersão no consumismo acrítico. O autor alia a cultura de massa à cultura popular brasileira e à história recente do país, em uma miscelânea cuidadosamente elaborada, expressa na visão de João Amadeus Flynguer sobre o seu empreendimento:

Eu também não gosto do termo “cultura popular”. Primeiro que ele traz uma ideia elitista, uma divisão entre uma cultura “da elite” e outra “do povo”. Segundo, que faz parecer algo distante, do ponto de vista crítico. Como se não estivéssemos todos imersos nela, também. Acho que o mais correto seria chamar de “cultura compartilhada”, porque isso incorpora os diversos tipos sociais que a têm em comum (Machado, 2018MACHADO, Samir M. (2018). Tupinilândia. São Paulo: Todavia., p. 71).

A narrativa de Tupinilândia, nesse sentido, parece promover a reconciliação de uma literatura mais sofisticada com a cultura de massa, mediante uma narrativa que não estabelece hierarquia entre o popular e demais elementos do texto. Assim, ao mesmo tempo, encontramos referências ao cânone literário norte-americano, como a definição da riqueza por Beto, filho de João Amadeus, com base em uma frase de Scott Fitzgerald (Machado, 2018MACHADO, Samir M. (2018). Tupinilândia. São Paulo: Todavia., p. 48) e uma citação de Mark Twain, e também menções ao universo das histórias em quadrinho, como o elogio a Carl Barks (Machado, 2018MACHADO, Samir M. (2018). Tupinilândia. São Paulo: Todavia., p. 151), cultuado autor de quadrinhos da Disney.

Em relação à cultura brasileira, há em Tupinilândia elementos variados, como piadas populares e marcas, produtos, empresas. Já no prólogo, no trecho intitulado “Rir é o melhor remédio”, o autor apresenta uma piada de papagaio dessas bastante conhecidas (Machado, 2018MACHADO, Samir M. (2018). Tupinilândia. São Paulo: Todavia., p. 17). Ele não hesita em incluir na obra uma enorme quantidade de referências intertextuais, ciente de que muitas delas não estão ao alcance de leitores mais novos. É o caso desse subtítulo, extraído de uma seção existente, em décadas passadas, em Seleções, a versão brasileira do Reader’s Digest, uma revista norte-americana de grande circulação entre a classe média na época. Em outro momento, Alexandre, um amigo de Tiago, repete outra anedota familiar, a de que o jornal Folha de S.Paulo, durante a ditadura, era o periódico de maior tiragem do país, por conta de policiais infiltrados na redação (Machado, 2018MACHADO, Samir M. (2018). Tupinilândia. São Paulo: Todavia., p. 440).

As anedotas são elementos da cultura que fogem às diferenças socioeconômicas, de conhecimento geral e por vezes atravessam gerações. Ao situá-las na narrativa, ao lado de tantas menções daquilo a que nos referimos como cultura de massa, produtos da indústria cultural massificada, Machado (2018MACHADO, Samir M. (2018). Tupinilândia. São Paulo: Todavia.) parece apontar para uma reconciliação com esse universo tão próprio do capitalismo da segunda metade do século 20, estabelecida do ponto de vista do indivíduo, cujas memórias obrigatoriamente passam por elementos do cotidiano, agora misturado a marcas, produtos, indissociável daquilo que é comprado e consumido, que chega ao público-alvo por intermédio da publicidade e dos meios de comunicação.

Os produtos da sociedade de consumo que aparecem em Tupinilândia principalmente como atrações do parque temático são como estrelas do universo de cultura compartilhada delineado em Tupinilândia:

Circundando o País do Futuro, a Montanha-Russa Grasslite seria anunciada como a maior da América Latina quando Tupinilândia fosse oficialmente inaugurada. O Cinerama Sukita, instalado num prédio que lembrava uma estação espacial sessentista, tinha sessões regulares de documentários com uma tecnologia de projeção tripla sobre tela curva — algo que já estava saindo de moda no exterior, mas que nunca havia propriamente chegado ao Brasil e, portanto, ainda era novidade aqui. E uma sala de cinema anunciava sessões de Marcelo Zona Sul e Os Trapalhões no rabo do cometa (Machado, 2018MACHADO, Samir M. (2018). Tupinilândia. São Paulo: Todavia., p. 140).

Nessa descrição, é possível observar que o patriotismo se expressa no enaltecimento de marcas nacionais, Glasslite e Sukita, uma visão do país com uma nação que vivera o milagre econômico dos anos 1960 e 70 somada ao imaginário da década da corrida espacial e da chegada do homem à lua. O subtítulo “País do futuro” (Machado, 2018MACHADO, Samir M. (2018). Tupinilândia. São Paulo: Todavia., p. 139) remete à obra homônima, do escritor austríaco Stefan Zweig, que se encantou com o Brasil, onde se exilou, durante a Segunda Guerra Mundial, porém não impede um leitor mais atento (ou mais antigo) de reconhecer a ironia involuntária, visto que, em profunda depressão ante o que acontecia no seu país e no mundo, Zweig se suicidou em Petrópolis (RJ) em 1942. A biografia de Zweig não deixa de estabelecer, de certa forma, um paralelo com a transição de utopia a distopia apresentada no romance de Samir Machado de Machado. A expressão de Zweig logo se popularizou, pois incorpora dois elementos centrais do imaginário popular diante da industrialização e da sociedade de consumo, como evidenciam no texto a Glasslite, empresa conhecida por seus brinquedos de plástico, e a Sukita, marca de refrigerantes que patrocina um moderno cinema, outro ponto importante dessa utopia capitalista e massificada.

Um fato curioso desse cinema é o uso de tecnologia já obsoleta em outros países, uma ironia a respeito dessa modernidade, que parece ecoar o aforismo de Millôr Fernandes, desdobramento da frase elaborada por Zweig: “O Brasil tem um enorme passado pela frente”. Outro dado importante são os filmes exibidos ali: duas produções brasileiras, e não hollywoodianas, reforçando a valorização daquilo que é nacional e genuinamente popular no projeto. O conjunto, então, é de uma modernidade estrangeira, descaracterizada, com roupagem nacional que lhe confere autenticidade e uma relação próxima com um suposto visitante. Não à toa, na Tupinilândia decadente e isolada dos anos 2000, os moradores do parque em ruínas são chamados de consumidores pelos generais em vez de cidadãos, em anúncios feitos pelo sistema de som do parque: “Atenção. Tupinilândia convida todos os seus consumidores a participarem do julgamento na arena esportiva” (Machado, 2018MACHADO, Samir M. (2018). Tupinilândia. São Paulo: Todavia., p. 344).

Como um todo, a narrativa de Machado apropria-se da linguagem cinematográfica, de um tipo de ação próprio das grandes produções do cinema, que alcançam sucessos nas bilheterias dos cinemas brasileiros, como aqueles estrelados pelo grupo humorístico Os Trapalhões, supracitado, e filmes de Hollywood dos anos 1980. A presença do cinema na literatura brasileira contemporânea é fenômeno já notado por Schollhammer (2009SCHOLLHAMMER, Karl E. (2009). Ficção brasileira contemporânea. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira., p. 38), juntamente com o hibridismo, também observado em Machado, da linguagem publicitária, dos quadrinhos e de outros traços da cultura de massa apontados aqui.

Tanto os eventos em si como o ritmo em que são narrados, as inserções de humor e romance parecem evocar essas grandes produções, calcadas na bagagem do espectador, agora leitor, tornando essas cenas facilmente compreensíveis e relacionáveis a esse universo por meio da memória afetiva:

Lara não pensou duas vezes: dependurando-se no lado externo do corrimão, escorregou pelo janelão de vidro inclinado até descer no deque inferior, e dele saltou da balsa para o topo da barreira de concreto do açude, que tinha três palmos de grossura. Ela deitou o corpo ao longo de sua extensão, enrolou uma ponta da corda ao redor da mão e esticou o braço para baixo, oferecendo o laço (Machado, 2018MACHADO, Samir M. (2018). Tupinilândia. São Paulo: Todavia., p. 366).

Para o espectador de filmes de aventura, cenas como essa são familiares. Uma personagem que, até onde sabemos, não possui nenhum treinamento em acrobacias ou artes marciais de repente é dotada de enorme destreza e força. São inúmeras passagens assim na história do cinema. O trecho anterior não parece dialogar com nenhum filme especificamente, mas com uma escola de roteiristas e diretores consagrados. Outro exemplo de cena familiar a gerações crescidas em meio a filmes de Hollywood é o embate entre Ernesto e Artur a bordo de um avião, quando deixam Tupinilândia:

Ernesto que se abraçou em Artur e jogou todo o seu peso na direção da porta aberta; e Artur buscando qualquer coisa na qual pudesse se agarrar enquanto os dois se inclinavam para fora do avião. […] [Artur] chuta o rosto de Ernesto uma, duas, três vezes, até fazer que o desgraçado o largue. E Ernesto o larga. É uma imagem com a duração de microssegundos: o olhar de surpresa, o corpo do integralista solto no espaço, um borrão de movimento e um borrifo vermelho-carne triturado (Machado, 2018MACHADO, Samir M. (2018). Tupinilândia. São Paulo: Todavia., p. 433).

A luta corporal que coloca a vida dos dois em perigo, a reviravolta final, em que o vilão é derrotado, a imagem congelada antes da queda, ou do tiro fatal, são cenas frequentemente recriadas no cinema há muito tempo. Em Tupinilândia, elas também são utilizadas, de forma que no acúmulo o romance se remete a essas produções sem se voltar a nenhuma específica (embora algumas aproximações sejam mais sugestivas, como a relação entre Tupinilândia e Jurassic Park — Parque dos Dinossauros, mencionada na epígrafe e considerando que um dos mundos do parque de João Amadeus é dedicado a esses animais pré-históricos). É aquilo que Irina Rajewsky (2005RAJEWSKY, Irina O. (2005). Intermediality, intertextuality, and remediation: a literary perspective on intermediality. Intermedialités, Montréal, n. 6, p. 43-64.) aponta como “referências intermidiáticas”, ou seja, “a evocação ou imitação de certas técnicas fílmicas como zoom, fade, e montagem” (Rajewsky, 2005RAJEWSKY, Irina O. (2005). Intermediality, intertextuality, and remediation: a literary perspective on intermediality. Intermedialités, Montréal, n. 6, p. 43-64., p. 52). Essas técnicas, além do desenrolar das ações, também são reproduzidas por Machado de Machado, como se vê a seguir, no momento que o general Newton Kruel aparece no comando do ataque que ocorre na inauguração do parque:

Botas e luvas de cavalariano, fardão de general de três estrelas. Rosto comum: cabeça redonda, sobrancelhas felpudas, olheiras fundas e escuras, bochechas já um pouco caídas pela idade, como se sua face estivesse num lento processo de derretimento. Recebeu a saudação e atravessou a fileira de soldados caminhando até a frente do portão, dando-se conta das câmeras de vigilância que estavam voltadas para ele. Olhou para o alto, tirando o quepe e revelando os cabelos brancos volumosos e revoltos (Machado, 2018MACHADO, Samir M. (2018). Tupinilândia. São Paulo: Todavia., p. 187).

Nota-se inicialmente como o autor, nesse trecho, reproduz os movimentos de uma câmera, focada em detalhes e na reverência dos soldados diante dele, para depois revelar de quem se trata.

É possível relacionar as passagens citadas e diversas outras presentes em Tupinilândia em que o repertório de filmes de aventura do leitor é mobilizado com outros autores da literatura contemporânea brasileira que Schollhammer (2009SCHOLLHAMMER, Karl E. (2009). Ficção brasileira contemporânea. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira., p. 39) observa utilizarem o pastiche e os clichês dos gêneros considerados menores, como faz Rubem Fonseca com o gênero policial. Todavia, o caráter metalinguístico da obra de Samir, que emprega padrões da cultura de massa para falar dela, é também metafórico, pois por trás das aventuras e da fantasia do parque temático há um questionamento sobre o Brasil atual, tanto em sua política quanto no revisionismo histórico.

Vemos, portanto, que não se trata de elogio acrítico à cultura de massa, superando uma lógica binária de adesão ou rejeição: a contemporaneidade torna isso pouco proveitoso e talvez impossível, pois as memórias e a nostalgia se constroem no texto tomando esses produtos, tanto culturais quanto bens de consumo, como pontos em que tais sentimentos se materializam. Nessa perspectiva, é possível entender que Tupinilândia é, de certa forma, um museu, em sua proposta de agregar e exibir um repositório da cultura de massa nacional, tomando bem de consumo como base dessa memória coletiva, porém com consumidores em vez de visitantes (ou cidadãos, quando alguns passam a viver ali). Apaga-se a diferenciação que torna o museu especial:

No museu nos defrontamos com objetos enquanto objetos, em suas múltiplas significações e funções — ao contrário, por exemplo, do que ocorre num supermercado. Objetos de nosso cotidiano (mas fora desse contexto e, portanto, capazes de atrair a observação) ou estranhos à vida corrente (capazes, por isso, de incorporar à minha as experiências alheias). Doutra parte, é a função documental do museu (por via de um acervo, completado por bancos de dados) que garante não só a democratização da experiência e do conhecimento humanos e da fruição diferencial de bens, como, ainda, a possibilidade de fazer com que a mudança — atributo capital de toda realidade humana — deixe de ser um salto do escuro para o vazio e passe a ser inteligível (Meneses, 1994MENESES, Ulpiano T. B. (1994). Do teatro da memória ao laboratório da História: a exposição museológica e o conhecimento histórico. Anais do Museu Paulista: História e Cultura Material, São Paulo, v. 2, n. 1, p. 9-42. https://doi.org/10.1590/S0101-47141994000100002
https://doi.org/10.1590/S0101-4714199400...
, p. 12).

Em uma leitura distópica, podemos dizer que em Tupinilândia, assim como o cidadão se converte em consumidor, as arte e cultura nacionais são resumidas à cultura de massa. Trata-se da conversão de classes em massas a que Walter Benjamin (2022BENJAMIN, Walter (2022). A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas I: magia e técnica, arte e política. 8. ed. São Paulo: Brasiliense. p. 179-212., p. 195) se refere. Sem que seja necessário o retorno direto às teorias de Adorno (2009ADORNO, Theodor W. (2009). Indústria cultural e sociedade. 5ª ed. São Paulo: Paz e Terra.) e Benjamin (2022BENJAMIN, Walter (2022). A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas I: magia e técnica, arte e política. 8. ed. São Paulo: Brasiliense. p. 179-212.), podemos considerar a cultura de massa como um fenômeno mercadológico pelo qual os produtos culturais são expostos a um enorme contingente de possíveis consumidores. Umberto Eco (2001ECO, Umberto (2001). Apocalípticos e integrados. São Paulo: Perspectiva.) tentou sistematizar essa questão, primeiramente situando a cultura de massa no banco dos réus e apresentando, a seguir, uma série de argumentos que poderiam justificá-la. Entre suas acusações, destaca-se o papel dos meios de comunicação de massa entre um público incônscio de si mesmo como grupo social caracterizado e que, por isso mesmo, não pode manifestar exigências. Além disso, Eco (2001ECO, Umberto (2001). Apocalípticos e integrados. São Paulo: Perspectiva.) inclui esse grupo num circuito comercial em que,

sujeitos à “lei da oferta e da procura”, dão ao público somente o que ele quer, ou, o que é pior, seguindo as leis de uma economia baseada no consumo e sustentada pela ação persuasiva da publicidade, sugerem ao público o que este deve desejar. […] Encorajam uma visão passiva e acrítica do mundo […], entorpecem toda consciência histórica […] e assumem os modos exteriores de uma cultura popular mas, ao invés de crescerem espontaneamente de baixo, são impostos de cima (Eco, 2001ECO, Umberto (2001). Apocalípticos e integrados. São Paulo: Perspectiva., p. 40).

Ao optar pela defesa da cultura de massa, o crítico italiano ressalta que muitos a consideram válida porque a homogeneização do gosto contribuiria para eliminar diferenças de casta e unificar as sensibilidades nacionais. Nesse ponto de vista, a cultura de massa não é estilística nem culturalmente conservadora, pois introduz novos modos de falar, levando a uma renovação. Dessa maneira, as obras culturais poderiam tornar-se disponíveis a preços acessíveis a um público mais amplo. Essa lógica encontramos em Tupinilândia, um romance inovador na sua permeabilidade a elementos homogêneos em termos de classe. Ademais, trata-se de uma obra que utiliza a linguagem típica de produtos que encorajam a visão passiva e acrítica do mundo a que Eco (2001ECO, Umberto (2001). Apocalípticos e integrados. São Paulo: Perspectiva.) se refere para criticar isso. Porém, dada a reverência feita a esse universo, não se trata meramente de uma paródia destrutiva.

Deve-se salientar ainda outro aspecto, relacionado à questão política e à desmistificação do discurso da história oficial: tanto o aspecto físico quanto o gestual da autoridade militar evocam figuras muito semelhantes às que eram exibidas nos telejornais durante a ditadura. Nesse sentido, podemos pensar que Machado utiliza um repertório que também se insere no que Eco (2001ECO, Umberto (2001). Apocalípticos e integrados. São Paulo: Perspectiva.) analisa a respeito da cultura de massa: “Ela é hoje manobrada por ‘grupos econômicos’ que miram fins lucrativos, e realizada por ‘executores especializados’ em fornecer ao cliente o que julgam mais vendável, sem que se verifique uma intervenção maciça dos homens de cultura na produção” (Eco, 2001ECO, Umberto (2001). Apocalípticos e integrados. São Paulo: Perspectiva., p. 51). Afinal, também os telejornais brasileiros, dados a concentração das empresas de mídia no Brasil e seu poder econômico e político, são produtos de grandes grupos econômicos que visam ao lucro, inseridos em uma lógica de mercado e de imagens e discursos homogeneizantes.

Ademais, em Tupinilândia, há uma rápida menção a Charles Chaplin e outra mais contundente, ao filme Fitzcarraldo, de Werner Herzog, relacionado a dois diferentes episódios da narrativa: “A imagem daquele homem no topo de uma torre de rádio no interior do Pará, conduzindo seu exército de peões e soldados-índios em sua construção colossal, ao som de música clássica. Não havia algo assim naquele filme do Herzog a que assistira no Baltimore no ano passado?” (Machado, 2018MACHADO, Samir M. (2018). Tupinilândia. São Paulo: Todavia., p. 79); “A selva desafiaria também o cineasta alemão Werner Herzog durante as filmagens de Fitzcarraldo — em que fez um navio inteiro subir uma montanha pelo puro impacto da imagem na tela do cinema. ‘A natureza aqui é violenta’, dissera Herzog” (Machado, 2018MACHADO, Samir M. (2018). Tupinilândia. São Paulo: Todavia., p. 314).

É preciso, porém, qualificar a nostalgia de que Tupinilândia fala e, assim, compreender a leitura que a obra proporciona a respeito do Brasil, não propondo um revisionismo histórico, afinal a narrativa insere fatos e personagens reais no ficcional, e não o contrário, mas fazendo uma reflexão do presente ante o passado. Isso não é feito de maneira subliminar, e sim direta, com o uso do trabalho da pesquisadora russa Svetlana Boym (2002BOYM, Svetlana (2002). The future of nostalgia. Nova York: Basic Books.) sobre nostalgia, mencionado por Artur, o arqueólogo que pretende estudar as ruínas de Tupinilândia. É ele quem fala da substituição da nostalgia em tempos de cultura de massa, que deixou de ser nacional para ser individualizada, ou seja, que carrega consigo um constante desejo de retorno à infância em vez de almejar a restauração da pátria-mãe de outrora, para refletir sobre a contemporaneidade:

O que nos traz aos dias atuais, onde a pós-modernidade, essa releitura consciente de si mesma, resgatou a nostalgia e a casou com a cultura pop. Mas a manteve presa dentro de “citações” e de “referências” que a tornaram apenas um estilo decorativo, não uma linguagem nova. Vemos isso em trechos de músicas dos anos 80 que são “sampleados” em canções novas, vemos isso nas releituras de personagens infantojuvenis que são revistos sob a ótica sombria de nossa obsessão com o “realismo” (Machado, 2018MACHADO, Samir M. (2018). Tupinilândia. São Paulo: Todavia., p. 267).

Tupinilândia parece rejeitar essa lógica pós-moderna. As citações ao passado não são decorativas, e sim parte da narrativa, de forma que personalidades reais interagem com personagens ficcionais. O romance de Samir Machado de Machado parece ecoar o parque temático, em que crianças abraçam suas personagens favoritas e tiram fotos com elas: na narrativa, pessoas que ficaram nos livros de história ou nos escândalos de corrupção reportados pelos jornais ganham vida no parque Tupinilândia e nós, visitando suas atrações, as vemos em ação. Ademais, as cenas de filmes que, se apenas citadas, evocariam uma nostalgia estática, são a substância em que uma reflexão mais profunda ganha fôlego quando ativadas pelas personagens. Trata-se, portanto, de uma nostalgia que não se encerra na autorreflexão, ou seja, está mais próxima do que Boym (2002BOYM, Svetlana (2002). The future of nostalgia. Nova York: Basic Books.) chama de “nostalgia criativa”:

A cultura é cada vez mais prensada entre a cultura de entretenimento e a religião, enquanto a educação é compreendida mais e mais como administração e terapia, em vez do processo de aprendizado do pensamento crítico. Com o encolhimento do papel da arte e das humanidades, há menos espaço para explorarmos a nostalgia, o que é compensado com uma hiper abundância de readymades nostálgicos. O problema com nostalgia pré-fabricada é que ela não nos ajuda a lidar com o futuro. A nostalgia criativa revela as fantasias dos nossos tempos, e nessas fantasias e potencialidades o futuro surge (Boym, 2002BOYM, Svetlana (2002). The future of nostalgia. Nova York: Basic Books., p. 351).

Baseados no conceito exposto por Boym (2002BOYM, Svetlana (2002). The future of nostalgia. Nova York: Basic Books.), podemos compreender que a proposta literária de Tupinilândia contém um jogo sofisticado de reflexão sobre a cultura de massa e o Brasil. Isso porque a narrativa usa a nostalgia criativa, isto é, um exercício criativo calcado na identificação coletiva dos tentáculos nostálgicos da cultura de massa, para revelar não nossas fantasias, como Boym (2002BOYM, Svetlana (2002). The future of nostalgia. Nova York: Basic Books.) pontua, mas fantasmas. Ao tratar o entulho da ditadura militar como uma cidade perdida com generais e uma população parados no tempo, Machado (2018MACHADO, Samir M. (2018). Tupinilândia. São Paulo: Todavia.) sugere que esse período da nossa história ainda não está completamente superado. Acaba por apontar, no sentido de um futuro, que separar o afeto que nos despertam os objetos, filmes, nossa vida cotidiana da época do autoritarismo e da crise financeira dos anos 1980, ou seja, um tratamento crítico desse passado recente, seria o único caminho possível para romper ciclos históricos.

Essa visão expressa-se na história de Tupinilândia com a dupla derrocada do parque. Há a noção de que se trata de um projeto fadado ao fracasso, ao mesmo tempo que o parque em ruínas e sua destruição se tornam alegorias da cultura de entretenimento somadas a um estereótipo de religião, pois a vida que Artur e sua equipe encontram em Tupinilândia nos anos 2000 é muito similar à de uma seita religiosa. Tais alegorias erguem-se sobre uma ideia de patriotismo equivocada e sem sentido, porém há mais do que isso: também o autor, ao usar essas imagens em um romance de entretenimento, que, todavia, não deixa de fazer uma critica ao consumismo, à história recente do país e à maneira como o Brasil lida com seu passado e seu patrimônio, elabora uma fantasia potente, no sentido de lançar questões que o autor parece julgar relevantes para uma reflexão acerca do futuro do país.

É a partir daí que entendemos a ironia em Tupinilândia. Se pensarmos os dados reais, de marcas a pessoas, como ready-mades literários, no sentido de que são matéria pronta da qual o autor se apropria e que insere em outro contexto, Tupinilândia insere-se em uma tendência da literatura contemporânea (Mathew, 2015MATHEW, Shaj (2015). Welcome to literature’s duchamp moment: avant-garde fiction is starting to resemble conceptual art. The new republic. Disponível em: https://newrepublic.com/article/121603/avant-garde-literature-starting-resemble-conceptual-art. Acesso em: 9 mar. 2021
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), dessa literatura capaz de distorcer o real pela absorção dele. A ironia, dúbia por definição, é reforçada pelo elemento do ready-made, que faz com que a cultura de massa seja criticada e homenageada em igual medida, que a adesão a uma memória calcada no consumo seja celebrada ao mesmo tempo que é colocada como inevitável. Por meio desses readymades, enxergamos o aspecto irônico daquilo que é ficcional, na chave do paródico.

O paródico, como explica Hutcheon (1988HUTCHEON, Linda (1988). A poética do pós-modernismo. Tradução de Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago., p. 51), tira a repetição do passado da nostalgia sentimental e da ingenuidade, sendo a forma que permite ao artista falar “para um discurso a partir de dentro desse discurso, mas sem ser totalmente recuperado por ele” (Hutcheon, 1988HUTCHEON, Linda (1988). A poética do pós-modernismo. Tradução de Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago., p. 58). Em alguns exemplos aqui citados, temos esses três elementos em Tupinilândia. Machado (2018MACHADO, Samir M. (2018). Tupinilândia. São Paulo: Todavia.) fala para um discurso quando se remete a elementos do Brasil atual, como a construção de Belo Monte, a corrupção das empreiteiras, o descaso com a preservação da memória nacional. Os ready-mades literários, seja a menção a produtos e marcas, seja o uso de um tipo de ação típica do cinema hollywoodiano, são expressões de um discurso, entretanto o deslocamento para o contexto brasileiro e o dessa cidade perdida imaginada pelo autor estabelecem a ironia paródica que faz toda a engrenagem funcionar.

Muito de Tupinilândia, afinal, é real ou muito próximo do que vemos no noticiário. João Amadeus Flynguer é uma personagem muito parecida com tantos empresários que acompanham décadas de Brasil, e o desenrolar da sua empreiteira, quando sua filha, Helena, passa a comandá-la, não é diferente de tantas que surgiram no regime militar e executam obras públicas, eventualmente alvo de investigações e processos. Generais saudosos da ditadura, de fato, vêm tentando reescrever a história das últimas décadas, e os comentaristas políticos atribuem isso à situação mal resolvida que a Lei da Anistia deixou. O acerto combinado entre a proprietária da empreiteira e o interventor teve por alvo camuflar todo o ocorrido, para que não viessem a público a compra, pelo empreiteiro, de uma imensa área na Amazônia nem a criação de um município fictício, que nem chegaria a constar dos mapas.

Tupinilândia, o parque, é símbolo de diversos empreendimentos faraônicos abandonados, após o desperdício ou a malversação de verbas astronômicas, como tantas obras públicas e esqueletos de concreto que assombram o país. Enfim, há tanta realidade em Tupinilândia que o simples fato de o romance ser uma aventura cheia de reviravoltas, alicerçada no repositório coletivo do desenrolar de cenas da linguagem cinematográfica de filmes comerciais consagrados, já é, por si só, uma utopia irônica. A memória afetiva disparada pela familiaridade que temos com essas cenas de luta, certo tipo de humor, além das referências nominais a produtos, locais e dados, cria uma embalagem palatável e nostálgica de episódios de violência, crise econômica e corrupção. Passa-se a idealizar uma realidade na qual a vida seria um pesadelo insuportável. A utopia, portanto, não passaria de um invólucro que, quando se torna visível, se transforma em um discurso irônico diante daquilo que mascara.

Seguindo esse raciocínio, o fim do romance também oferece uma visão arrojada da ironia de uma ficção absurda e, ainda assim, próxima ao real. O povo de Tupinilândia, os consumidores, revolta-se. Perseguições aos militares levam a um tiroteio em meio ao aquário ligado ao Rio Xingu, rompendo seus vidros. A água toma rapidamente o Centro Cívico, provocando a fuga desesperada de todos. O fim submerso do parque Tupinilândia, encerrando sua história, com seus generais que o governaram como um mundo à parte, lembra a história de Atlântida, o reino perdido situado em uma ilha que desapareceu para todo o sempre.

Do ponto de vista do jogo estabelecido entre utopia e distopia, o alagamento do território em que se situa Tupinilândia representa a morte tanto da utopia quanto da distopia, indicando a interdependêndia das duas projeções, e também reforçando que são faces de uma mesma moeda. Novamente há aí uma mensagem irônica, a de que a realidade acachapa ambas, mostrando-se mais absurda e destrutiva, pois, com a água tomando toda aquela região, é um acontecimento no romance que evoca a construção da usina hidrelétrica de Belo Monte e o alagamento por conta do empreendimento. Faz-se preciso destacar que, na narrativa, o parque fica no município de Altamira (PA), onde de fato foi construída a usina, e Artur justifica sua ida urgente ao parque com a iminente destruição da região: “Havia a possibilidade real de que a região do parque fosse cedo ou tarde afogada pela hidrelétrica de Belo Monte” (Machado, 2018MACHADO, Samir M. (2018). Tupinilândia. São Paulo: Todavia., p. 276).

Assim, quando são descritas as cenas impressionantes de um volume descomunal de água apagando um prédio e as memórias que ele abriga, isso nada mais é do que o que de fato ocorreu naquela região. Ademais, se a violência da narrativa impressiona, também Altamira, depois das obras da usina, se tornou um dos municípios mais violentos do país. O real é um pretexto presente no romance (a pesquisa de Artur antes de as barragens serem feitas e do desaparecimento do parque), mas, como Tupinilândia, ele se afoga na ficção, que são as águas do aquário e do Xingu responsáveis pelo fim do parque. É como se, diante da realidade, se impusesse o questionamento sobre o papel da utopia e da distopia. Tomando apenas o parque como alegoria, vemos a água levando nossa memória, aquilo que temos de valor, lembramos as hidrelétricas e a usina, hoje em funcionamento, e chocamo-nos com o alcance tristemente alegórico dessa narrativa ficcional.

Mesmo seu papel como repositório da memória nacional, função de um museu convertido em parque temático, uma ode ao consumo e às massas, tem os pés fincados na realidade, uma vez que essas instituições buscam se afirmar como locais de entretenimento (ainda que sem deixar seu caráter educativo totalmente de lado), sendo até reestruturadas tomando os parques da Disney como modelo, uma modernização chamada, em inglês, “disneyfication” (Macdonald e Alsford, 1995MACDONALD, George F.; ALSFORD, Stephen (1995). Museums and theme parks: Worlds in collision? Museum Management and Curatorship, v. 14, n. 2, p. 129-147. https://doi.org/10.1016/0260-4779(95)00050-3
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, p. 141).

Dessa forma, o romance acaba por inferir que, ainda pior do que encontrar traços da realidade em uma narrativa que flerta com o distópico, é perceber que o que há de mais real nesse romance é o apagamento completo do passado em prol de um discurso vazio de desenvolvimentismo, seja com a construção de uma usina hidrelétrica, seja com a promessa de que o consumo pode substituir a cidadania. O uso da cultura de massa aqui, não apenas como referência a produtos, mas como verdadeira carne do romance, como a elaboração de cenas e a maneira como a história se desenrola, não é mero entretenimento, apesar de poder ser (dependendo do leitor): é o desvelamento da utopia que rapidamente se converte em distopia, e cabe à literatura questionar, por meio do imaginário coletivo, a nossa realidade.

  • 1
    Mário Andreazza, político e militar, havia sido ministro dos Transportes no governo do general Médici.
  • 2
    O general Amaury Kruel participou do golpe de Estado que destituiu João Goulart em 1964, mas não teve nenhum papel expressivo nos governos seguintes (Gaspari, 2016GASPARI, Elio (2016). A ditadura acabada. Rio de Janeiro: Intrínseca., p. 325)
  • 3
    O general Newton Cruz, conhecido pelo apelido de Nini, embora tenha desempenhado cargos relevantes para o sistema ditatorial, incluindo o de chefe da Agência Central do Serviço Nacional de Informações, foi preterido na promoção ao generalato do exército (Gaspari, 2016GASPARI, Elio (2016). A ditadura acabada. Rio de Janeiro: Intrínseca., p. 352) e passou para a reserva em 1985.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    15 Ago 2022
  • Aceito
    13 Mar 2023
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
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