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Carolina Maria de Jesus - Clíris: poemas recolhidos. Rio de Janeiro: Desalinho; Ganesha Cartonera, 2019

Jesus, Carolina Maria de. - Clíris: poemas recolhidos . Rio de Janeiro: Desalinho; Ganesha Cartonera, 2019

Os papelões retornam a Carolina. Dessa vez, na encadernação de seu livro de poemas, finalmente publicados, em 2019, com o título que a poeta havia escolhido para ele: Clíris. Com organização de Ary Pimentel e Raffaella Fernandez, Clíris: poemas recolhidos reúne aos 56 poemas e às 14 canções de Carolina Maria de Jesus o prólogo que a própria autora escreveu e dois posfácios assinados por Raffaella Fernandez e Regina Dalcastagnè. O livro convoca seu leitor a abrir-se à reflexão já em sua capa: o sentido da forma escolhida pela Desalinho Publicações e a Ganesha Cartonera para a artesania dessa publicação estabelece com o conteúdo dos poemas uma perfeita isomorfia.

“O papelão descartado é nossa riqueza (os refugos da nossa sociedade)”. A frase estampa uma das postagens do professor Ary Pimentel na página de Facebook da Ganesha Cartonera, editora independente criada em 2018, baseada na Faculdade de Letras da UFRJ e em duas favelas do Rio de Janeiro: Nova Holanda (Maré) e Morro da Babilônia (Leme). A poesia de Carolina sobe o morro num livro impresso na gráfica Book7, em papel Offset 75g/m², usando fontes tipográficas Adobe Garamond e Master Of Break. Lá chegando, o livro, que saiu do (digamos) prelo, recebe a capa confeccionada do papelão das caixas compradas de catadores de rua. A mão entra em cena. O papelão é cortado, dobrado, pintado e costurado ao livro pelos oficineiros da Ganesha Cartonera. O que foi antes surge agora em um novo ciclo: o livro é protegido pela capa irrepetível. Assim, único, sai das mãos da artesania e se materializa nas mãos para a leitura. O leitor, então, pode recolher a poesia de Carolina Maria de Jesus.

No caso de Clíris, o processo de recolha e reciclagem também é a riqueza de seu conteúdo. Os poemas de Carolina recolhem os “refugos da sociedade”: negros, operários, assalariados, presidiários, colonos das fazendas, empregadas domésticas, mal amados, mulheres traídas, o poeta, a poetisa. Alguns títulos de poemas do livro podem ser ilustrativos desse aspecto: “Os feijões”, “Negros”, “Súplica do mendigo”, “O custo de vida atual”, “Agruras de poeta”, “A empregada”, “Barracão” “Operário”, “Súplica de poetisa”, “O colono e o fazendeiro”, “Súplica do encarcerado”, “Muitas fugiam ao me ver”, “Riso do poeta”, “Será que pedi a Deus para nascer?”, “Humanidade”, “Quadros”. Ela segue, assim, a linha traçada por muitos poetas que compreendem o poder que a palavra poética tem de fazer com que o real se apresente poeticamente, reconhecendo na poesia tanto sua função de expressão das experiências mais íntimas e profundas do ser humano quanto sua função de ação.

A liricidade de Carolina Maria de Jesus é, nesse sentido, atravessada pela política da escrita (Rancière, 1995RANCIÈRE, Jacques (1995). Políticas da escrita. Tradução de Raquel Ramalhete. Rio de Janeiro: Editora 34.) que tensiona o sentimento individual, único, e a radical e profunda expressão do todo. Em sua palavra lírica, torna-se uma constante o revelar-se do eu no espelho que vê imagens de outros/outras em si mesma, com suas angústias, solidões, medos, indignações, revoltas. Isso significa que sua poesia suplanta o contexto particularizante e, como pretende a lírica moderna (ou talvez a de todos os tempos), conflui para a universalização. Carolina tem consciência de que, na singularidade do sujeito lírico, enreda-se o drama coletivo, potencializando a máxima de Adorno em sua antológica Palestra sobre lírica e sociedade, de 1957: “Só entende aquilo que o poema diz quem escuta, em sua solidão, a voz da humanidade” (Adorno, 2003ADORNO, Theodor W. (2003). Palestra sobre lírica e sociedade. In: ADORNO, Theodor W. Notas de literatura I. Tradução de Jorge de Almeida. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34. p. 65-89., p. 67). Essa lírica radical aparece emoldurada nas 85 quadras do poema “Quadros”, de que destacamos algumas como exemplo:

Eu disse: o meu sonho é escrever! Responde o branco: ela é louca. O que as negras devem fazer... É ir pro tanque lavar roupa (Jesus, 2019JESUS, Carolina Maria de (2019). Clíris: poemas recolhidos. Organização de Raffaella Fernandez e Ary Pimentel. Rio de Janeiro: Desalinho; Ganesha Cartonera., p. 107). Saio de casa não deixo nada Nem um pedacinho de pão, Deixo minhas roupas molhadas Não as lavo por não ter sabão (Jesus, 2019JESUS, Carolina Maria de (2019). Clíris: poemas recolhidos. Organização de Raffaella Fernandez e Ary Pimentel. Rio de Janeiro: Desalinho; Ganesha Cartonera., p. 108). Num país subdesenvolvido Onde o povo não vai à escola Por não ser bem esclarecido O que aprende é pedir esmola (Jesus, 2019JESUS, Carolina Maria de (2019). Clíris: poemas recolhidos. Organização de Raffaella Fernandez e Ary Pimentel. Rio de Janeiro: Desalinho; Ganesha Cartonera., p. 111). Minha existência é sombria Vivo tão só neste mundo Minha amiga é a poesia Que não me deixa um segundo (Jesus, 2019JESUS, Carolina Maria de (2019). Clíris: poemas recolhidos. Organização de Raffaella Fernandez e Ary Pimentel. Rio de Janeiro: Desalinho; Ganesha Cartonera., p. 116). Coisa que eu não tenho inveja É da mulher que é casada Quando ela pede comida O marido quer dar pancada (Jesus, 2019JESUS, Carolina Maria de (2019). Clíris: poemas recolhidos. Organização de Raffaella Fernandez e Ary Pimentel. Rio de Janeiro: Desalinho; Ganesha Cartonera., p. 116).

A moldura das quadras segue a tradicional métrica popular das redondilhas (exceção feita, entre as citadas, apenas no verso “Eu disse: o meu sonho é escrever!”). Predominam a segmentação 3/7 e rimas alternadas, a revelar a periodicidade rítmica que recolhe nas imagens do cotidiano e de si mesma a música da indignação sobre o eu, sobre o todo, sobre o povo, e também sobre o que pode lhe oferecer seu sonho de escritora, sua poefilia. Note-se, na primeira quadra transcrita, como a escolha da pontuação, a alternância de rimas e o jogo de vozes ensejam com vigor a tensão que reverbera, entre o que a poeta ouve e o que sente, na consciência plena acerca do lugar que o poeta ocupa na sociedade - um lugar estranho, ou visto com estranhamento, mas um lugar. Afinal, como adiantamos na enumeração acima, ela não deixa de incluir a figura do poeta e da poetisa nos “refugos da sociedade”.

Poeta Poeta, em que medita? Por que vives triste assim? É que eu a acho bonita E você não gosta de mim. Poeta, tua alma é nobre. És triste, o que te desgosta? Amo-a, mas sou tão pobre E dos pobres ninguém gosta. Poeta, fita o espaço E deixa de meditar. É que... eu quero um abraço E você persiste em negar. Poeta, está triste eu vejo. Por que cisma tanto assim? Queria apenas um beijo, Não deu, não gosta de mim. Poeta! Não queixas suas aflições Aos que vivem em ricas vivendas Não lhe darão atenções Sofrimentos, para eles, são lendas (Jesus, 2019JESUS, Carolina Maria de (2019). Clíris: poemas recolhidos. Organização de Raffaella Fernandez e Ary Pimentel. Rio de Janeiro: Desalinho; Ganesha Cartonera., p. 97).

O poeta é nobre, mas é pobre. A rima - também pobre - é reveladora do desafio a que se propõe a voz lírica. Melhor seria dizer, no caso, vozes líricas, já que Carolina recolhe também na forma do poema o gênero do desafio a duas vozes, a disputa poética cantada e acompanhada de instrumentos musicais, muito comum no sertão nordestino brasileiro. Conhecido em todo o Brasil, o desafio veio de Portugal e, como explica Luis da Camara Cascudo, “é o canto amebeu dos pastores gregos, duelo de improvisação entre pastores, canto alternado, obrigando resposta às perguntas do adversário” (Cascudo, 1993CASCUDO, Luis da Camara (1993). Dicionário do folclore brasileiro. 7. ed. Rio de Janeiro: Itatiaia; São Paulo: Editora da USP., p. 287). Em “Poeta”, o trocado a cada dois versos entre os adversários é realizado na imaginação de Carolina em duas vozes de “tenção”, como também é conhecido o desafio, ainda segundo Camara Cascudo. A disputa é interna, consigo mesma, culminando na estrofe final, que rompe o jogo de vozes duplas para assumir outra tensão, tanto temática (a diferença de classe social), quanto formal, ainda que seja mantida a similaridade rítmica: o verso final é um decassílabo, mas sua segmentação mantém a cesura nas sílabas 3 e 7, ritmo predominante nas redondilhas das outras quadras do poema. O poema de Carolina Maria de Jesus revela, como vemos, um sofisticado paralelismo. Apenas para citar alguns outros exemplos, a sofisticação do ritmo de sua poesia percorre também “Quem foi que disse”, outro poema-desafio, “O infeliz”, uma litania, “O ébrio”, cujo eco em /e/, desde o título e espraiando-se no poema com a repetição do verso “O homem que bebe”, é um requinte de sonoridade e imagística.

O diálogo com a tradição torna ainda a se fazer presente na poesia de Carolina Maria de Jesus com a imagem da rosa, um dos símbolos mais recorrentes na linhagem da literatura lírica ocidental, que canta a fugacidade da vida e do tempo; a beleza e a realização sem defeito; a mística da virgem na chegada ao Empírio; a contradição de suas pétalas e espinhos, ou de seu puro amor incandescente; a forma rotunda e cíclica da rosácea, sem começo nem fim; a reflexão sobre a poesia e sua perenidade; a resistência na fragilidade. Dante, Gregório, Sóror Juana, Rilke, Cecília Meireles, Gabriela Mistral, Drummond são alguns dos nomes que nos vêm à mente quando pensamos na rosa e sua longa tradição lírica. A poesia de Carolina Maria de Jesus também recolhe a rosa. Neste que segue, a força da delicadeza é bastante reveladora de sua autoconsciência reflexiva acerca do que significa “ser” em poesia e no mundo:

A rosa Eu sou a flor mais formosa Disse a rosa Vaidosa! Sou a musa do poeta. Por todos sou contemplada E adorada. A rainha predileta Minhas pétalas aveludadas São perfumadas E acariciadas. Que aroma rescendente: Para que me serve esta essência, Se a existência Não me é concernente... Quando surgem as rajadas Sou desfolhada, Espalhada. Minha vida é um segundo. Transitivo é meu viver De ser... A flor rainha do mundo (Jesus, 2019JESUS, Carolina Maria de (2019). Clíris: poemas recolhidos. Organização de Raffaella Fernandez e Ary Pimentel. Rio de Janeiro: Desalinho; Ganesha Cartonera., p. 59).

Resta ainda fazer uma observação sobre o título escolhido por Carolina Maria de Jesus para seu livro de poemas, que, renegado na Antologia pessoal de 1996JESUS, Carolina Maria de (1996). Antologia pessoal: Carolina Maria de Jesus. Organização de José C. S. Bom Meihy. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ., foi finalmente respeitado nesta edição da Ganesha Cartonera. A palavra cliris não está no dicionário de latim de Torrinha. Há algumas grafias no dicionário grego-português de Isidro Pereira que podem aproximar-se da de κλιρισ. Nenhuma delas, no entanto, satisfaz esta resenhista. Clíris é neologismo de Carolina Maria de Jesus, sabedora de que poesia é a conjunção de imagens e sons que transmitem algum sentido, mas sabedora também de que os sons das palavras, por si sós, emanam uma beleza indefinível. Carolina é independente o suficiente para fazer-se e ser, em poesia, uma Clíris, palavra que só há na invenção e criação dos papelões refugados de Carolina Maria de Jesus.

Referências

  • ADORNO, Theodor W. (2003). Palestra sobre lírica e sociedade. In: ADORNO, Theodor W. Notas de literatura I Tradução de Jorge de Almeida. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34. p. 65-89.
  • CASCUDO, Luis da Camara (1993). Dicionário do folclore brasileiro. 7. ed. Rio de Janeiro: Itatiaia; São Paulo: Editora da USP.
  • JESUS, Carolina Maria de (1996). Antologia pessoal: Carolina Maria de Jesus. Organização de José C. S. Bom Meihy. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ.
  • JESUS, Carolina Maria de (2019). Clíris: poemas recolhidos. Organização de Raffaella Fernandez e Ary Pimentel. Rio de Janeiro: Desalinho; Ganesha Cartonera.
  • PEREIRA, S. J. Isidro (1976). Dicionário grego-português e português-grego Porto: Livraria Apostolado da Imprensa.
  • RANCIÈRE, Jacques (1995). Políticas da escrita Tradução de Raquel Ramalhete. Rio de Janeiro: Editora 34.
  • TORRINHA, Francisco (s.d.). Dicionário Latino Português Porto: Gráficos Reunidos.

Editora:

Regina Dalcastagnè

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Abr 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    15 Abr 2020
  • Aceito
    09 Dez 2020
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
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