Resumo:
A institucionalização e consequentemente a preservação de arquivos pessoais de mulheres é quantitativamente menor quando comparado aos arquivos pessoais de homens, nas instituições de salvaguarda de acervos. Desta forma este artigo visa refletir as formas de disponibilização dos arquivos pessoais de mulheres institucionalizados. Para tal, discutiremos a elaboração de instrumentos de pesquisa como forma de ampliação do acesso a esses arquivos. A metodologia se deu por meio de revisão de literatura de caráter descritivo sobre arquivos pessoais, arquivos pessoais de mulheres e na pesquisa nos instrumentos de pesquisa institucionais para compararmos a quantidade de arquivos considerando a perspectiva de gênero. Ainda que em menor número a acessibilidade desses arquivos potencializa as pesquisas sobre mulheres contrapondo a sua invisibilidade histórica. Essa acessibilidade pode ser ampliada por meio de elaboração de instrumentos de pesquisa, mas deve ser atrelado aos usos de tecnologia objetivando uma maior divulgação.
Palavras-chave:
arquivos pessoais; arquivos de mulheres; instrumentos de pesquisa
Abstract:
The institutionalization and consequently the preservation of women’s personal archives is quantitatively lower when compared to men’s personal archives in archival institutions. In this way, this article aims to reflect on the ways in which the personal files of institutionalized women are made available. To this end, we will discuss the development of research instruments as a way of expanding access to these archives. The methodology was carried out through a literature review of a descriptive nature, examining articles and books published with relevance to the themes of personal files, women’s personal files and research on institutional research instruments to compare the number of files considering the gender perspective. Although fewer in number, the accessibility of these archives enhances research on women, countering their historically permeated historical invisibility. This accessibility can be increased through the development of research instruments, but this must be linked to the uses of technology with the aim of greater dissemination.
Keywords:
personal archives; women’s files; research instruments
1 Introdução
Historicamente observa-se a invisibilidade de arquivos pessoais de mulheres em detrimento de arquivos pessoais de homens e muitas vezes de arquivos privados institucionais preservados em arquivos, centro de memória e documentação.
Ao avaliarmos a Declaração de Interesse Público e Social na página do Conselho Nacional de Arquivos (Conarq), contabiliza-se dez arquivos privados institucionais, dez arquivos privados de homens e um arquivo privado de mulher e mesmo este arquivo foi submetido junto ao arquivo de um homem Darcy Ribeiro e ao ser avaliado optou-se pelo desmembramento do arquivo. Desta forma nenhum arquivo pessoal de mulher foi submetido para ser declarado como de interesse público e social, até o momento da pesquisa1.
Ao compararmos a quantidade de arquivos pessoais de homens e mulheres em instituições de salvaguarda de arquivos públicos, mas também privados, tais como Arquivo Nacional (Brasil), Arquivo do Estado de São Paulo (APESP), Arquivo Histórico Municipal de São Paulo (AHM/SP), Instituto Moreira Salles (IMS), Instituto de Estudos Brasileiros, da Universidade de São Paulo (IEB/USP), Centro de Pesquisa e Documentação Histórica Contemporânea do Brasil, da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC/FGV) e Arquivo Edgard Leuenroth (AEL) verifica-se o número menor de arquivos de mulheres em detrimento de arquivos de homens institucionalizados. Também observa-se acervos e documentos de mulheres anexos aos de homens, ou até mesmo de casais e familiares.
Deste modo a pesquisa focada em arquivos pessoais, sob a perspectiva de gênero, se dá, pois, as fontes sobre mulheres são mais perceptíveis neste tipo de acervo. Como historicamente as mulheres foram excluídas de funções públicas, sendo os homens priorizados. A mulher foi relegada a funções domésticas, o que pode explicar ser mais fácil encontrarmos fontes sobre mulheres nos arquivos pessoais.
Sobre a dificuldade de encontrar obras de mulheres comparadas à de homens, Virginia Woolf (2014, p. 24) também trata da dificuldade de encontrar obras de mulheres comparadas às de homens nas bibliotecas universitárias inglesas. Segundo a autora, as mulheres por vezes não escrevem sobre a própria vida e raramente mantém um diário, restando por vezes apenas um punhado de cartas. Desta forma não deixaram obras, poemas e escritos preservados.
Beauvoir na obra O Segundo Sexo questiona que ser mulher não, é algo natural, é aprendido no processo de socialização e na construção da identidade de gênero. A autora tenta desmistificar a construção da feminilidade, a partir de uma supremacia masculina, a concepção de feminilidade é uma criação de homens com intuito de auto limitá-las. Cunhando a frase célebre “não se nasce mulher, torna-se mulher” (Beauvoir, 2009, p. 307). As mulheres ficaram “aprisionadas” nas famílias devido ao papel vinculado ao feminino.
Existe uma demarcação percebida no processo de divisão do trabalho entre homens e mulheres, onde se entende que aos homens se vincula a esfera de produção, da vida pública e como “chefes de família” e as mulheres vinculam-se à esfera doméstica, da vida privada, como mães. Para Mary Del Priore (1997, p. 388-389) “Os homens aparecem inseridos nas relações de produção e as mulheres nas de reprodução, que são diretamente dedutíveis das primeiras”.
A mesma lógica privada, no entanto, não se aplica às mulheres negras, há desigualdade nas relações de raça, além das relações de gênero, ainda que muitas mulheres brancas tenham sido privadas da esfera pública. As mulheres negras no processo de escravidão e pós-escravidão trabalhavam fora de casa. As mulheres negras raramente foram “[...] apenas donas de casa” muito antes das mulheres brancas assumirem a dupla jornada do trabalho público com o trabalho privado (doméstico). As mulheres negras já carregavam o “fardo duplo do trabalho assalariado e das tarefas domésticas” (Davis, 2016, p. 226-227).
Gonzalez (2020, p. 52) chama a atenção para a maneira como a mulher negra é praticamente excluída dos textos e do discurso do movimento feminino em nosso país. A maioria dos textos, apesar de tratarem das relações de dominação sexual, social e econômica a que a mulher está submetida, assim como da situação das mulheres das camadas mais pobres etc., não atentam para o fato da opressão racial.
As mulheres negras são atingidas por múltiplas desigualdades, a de gênero, a de raça e consequentemente a de classe, conceito entendido como interseccionalidade. A perspectiva de interseccionalidade “[...] as consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos de subordinação” (Crenshaw, 2002, p. 177).
Considerando todo o exposto até aqui é importante estudar a história das mulheres, marcada muitas vezes pela invisibilidade. Para a autora Aronovich (2019, p. 22-23) “[...] a História das Mulheres é uma história de exclusão, de apagamentos, de sabotagens e de desvalorizações”, por isso a relevância a conhecer a história das mulheres, para minimizar a tentativa de diminuir o protagonismo de suas lutas. A inclusão e o incentivo de ingresso de arquivos pessoais de mulheres, considera que uma vez institucionalizados que sejam difundidos para auxiliar no processo de valorização das mulheres ao longo da história.
A dificuldade de encontrar registros e fontes sobre as mulheres dificulta a escrita de suas histórias e a recuperação de suas memórias, considerando que a escrita da história necessita de material para subsidiá-la por meio de fontes, documentos e registros, ainda que orais, pois muitas vezes os acontecimentos não estão registrados em documentos e arquivados nas instituições.
Dentre o apresentado compreende-se a maior invisibilidade de arquivos pessoais de mulheres institucionalizadas. A contribuição para que haja mudança nesse cenário, considerando que políticas de acervo para inclusão de arquivos de mulheres se dão a longo prazo, se dá por meio da acessibilidade de arquivos pessoais de mulheres já institucionalizadas. Essa acessibilidade por ser desenvolvida por meio da elaboração de instrumentos de pesquisa, tais como guias, inventários e catálogos e sua possível difusão em bases de dados.
A metodologia para este artigo utilizou a revisão de literatura principalmente sobre os temas arquivos pessoais Bellotto (2012, 2014) e Camargo (2009), arquivos pessoais de mulheres Perrot (2007), Ackelsberg (1997), para os instrumentos de pesquisas foi utilizada a Norma Geral Internacional de Descrição Arquivística (ISAD-G) (CIA, 2000) referenciadas ao longo do texto e os instrumentos de pesquisa e bases de dados das instituições Arquivo Nacional (Brasil), Arquivo do Estado de São Paulo (APESP), Arquivo Histórico Municipal de São Paulo (AHM/SP), Instituto Moreira Salles (IMS), Instituto de Estudos Brasileiros, da Universidade de São Paulo (IEB/USP), Centro de Pesquisa e Documentação Histórica Contemporânea do Brasil, da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC/FGV) e Arquivo Edgard Leuenroth (AEL) por serem instituições reconhecidas pelo número de arquivos pessoais para quantificação dos acervos de mulheres e homens institucionalizados.
Este artigo após uma breve introdução, apresenta o referencial teórico sobre arquivos pessoais e de mulheres e sobre instrumentos de pesquisa visando a acessibilidade, e por fim as considerações finais.
2 Arquivos pessoais
No Brasil a literatura arquivística tem se debruçado sobre os arquivos pessoais se constituírem como arquivos. A discussão avançou e hoje de acordo com a literatura arquivística os arquivos pessoais constituem uma subcategoria dos arquivos privados. De modo que utilizo neste trabalho as definições dadas pelos principais dicionários de arquivologia brasileiros e as principais teóricas sobre a temática dos arquivos Bellotto (2012, 2014) e dos arquivos pessoais Camargo (2009).
Segundo o Dicionário Brasileiro de Terminologia Arquivística do Arquivo Nacional são considerados arquivos privados “[...] arquivo de entidade coletiva de direito privado, família ou pessoa” e arquivos pessoais “arquivo de pessoa física” (Arquivo Nacional, 2005, p. 34).
O Dicionário de Terminologia Arquivística (Bellotto; Camargo, 1996, p. 8) não possui a definição de arquivos pessoais, mas conceitua arquivos privados como “[...] conjunto de documentos acumulados em decorrência das atividades de pessoas físicas e jurídicas de direito privado, depositados ou não em instituições públicas”. Bellotto (2012, p. 254) complementa que se deve distinguir os arquivos privados institucionais, dos arquivos familiares ou pessoais.
Para Ana Maria de Almeida Camargo “[...] os arquivos de pessoas devem ser tratados como arquivos, isto é, devem ficar ancorados ao contexto em que foram produzidos” (2009, p. 36). Caso os arquivos pessoais não sejam tratados como arquivos, os documentos perdem seu efeito de representatividade que os singulariza. Assim, os documentos pertencentes aos arquivos pessoais devem receber o tratamento dado ao documento arquivístico, reunido através de um fundo. Segundo as autoras (Camargo; Goulart, 2007, p. 35):
Necessidade de tratar o arquivo pessoal como indissociável, cujas parcelas só têm sentido se consideradas em suas mútuas articulações e quando se reconhecem seus nexos com as atividades e funções que se originaram. Qualquer outro tratamento que passasse eu longo desse esforço de contextualização, que é na verdade a operação-chave da metodologia arquivística, poria em risco a organicidade da documentação.
Para Bellotto (2012, p. 256), mesmo dentro dessa categorização arquivo pessoal deve-se observar que todo ser humano em idade adulta acaba constituindo um arquivo, desta forma é preciso especificá-lo dentro de uma instituição arquivística.
Os documentos de arquivo não possuem razão de ser isoladamente, ou seja, sua existência só faz sentido quando o documento está relacionado ao meio que o produziu, ao contrário dos documentos encontrados em bibliotecas e museus. Deste modo, a função pela qual o documento é criado é o que determina o seu destino de armazenamento, e não o suporte do qual o documento é constituído (Bellotto, 2014, p. 39).
No entanto, muitos arquivos pessoais - erroneamente - são enviados para bibliotecas e museus, pois não foram identificados com o contexto de produção e acumulação da pessoa física que o gerou. Assim, os documentos em vez de serem atrelados ao contexto que permite enviá-los a um arquivo, como acontece com os arquivos institucionais, muitas vezes os arquivos pessoais não seguem esse caminho (Camargo; Goulart, 2007, p. 41).
Em suma, em um arquivo, os documentos são tratados em seu conjunto. Ao serem produzidos, os documentos arquivísticos respondem à função de provar e testemunhar, mas passada a função legal e/ou administrativa pelo qual foi criado, ou seja, seu valor primário, o documento de arquivo pode adquirir outro “valor” passando a ser utilizado para a pesquisa acadêmica, histórica, científica ou para finalidades culturais, caracterizado pelo valor secundário. Essa definição discutida por Bellotto (2012, p. 267) entende que no arquivo pessoal, fase de uso primário é caracterizado pela acumulação e utilização em vida “[...] o arquivo serve ao próprio titular, em suas atividades de trabalho e para comprovações que se façam necessárias no seu cotidiano, além do relacionamento com pessoas e instituições, dentro e fora da vida intelectual”. Passado para a fase secundária, seu potencial de pesquisa aumenta visto que o objetivo não é mais o jurídico ou profissional do próprio titular do arquivo e, sim, o da pesquisa científica feita por pesquisadores2.
Ainda segundo a autora, entendemos que um arquivo permanente não se constrói aleatoriamente. Não existem documentos que nascem históricos, assim como não podemos conceber um arquivo com documentos que só informem o início ou o fim de determinadas atividades ou atos decisivos (Bellotto, 2012, p. 27).
Para que o percurso natural do documento - da administração a história - seja mantido é importante garantir que os princípios arquivísticos sejam respeitados, desta forma o arquivista deve trabalhar com o intuito de preservar a organização do arquivo em obediência à competência e as atividades da instituição que produziu e/ou acumulou, assim como suas estruturas e funções, sem dispersão, garantindo ao arquivo a continuidade de sua formação natural e orgânica.
Para a autora Oliveira (2012, p. 33) os arquivos pessoais são arquivos e precisam ser preservados, assim como os arquivos públicos:
Entendo o ‘arquivo pessoal’ como um conjunto de documentos produzidos, ou recebidos, e mantidos por uma pessoa física ao longo de sua vida e em decorrência de suas atividades e função social. Esses documentos, em qualquer forma ou suporte, representam a vida de seu titular, suas redes de relacionamento pessoal ou de negócios. Representam também o seu íntimo, suas obras etc. São, obviamente, registros de seu papel na sociedade, num sentido amplo. Cumpre ainda notar que os documentos que constituem os arquivos pessoais apresentam as cinco características dos documentos de arquivo: autenticidade, imparcialidade, organicidade, naturalidade e unicidade.
A autora reforça a importância da definição do arquivo pessoal como arquivo quando cumpre as características do documento arquivístico sendo produzido e/ou recebido por uma pessoa em decorrência de suas atividades em vida.
Dito isso, colocada as particularidades deste tipo de arquivo, compreendendo o arquivo pessoal como arquivo e considerando as relações que a documentação estabelece entre si, conclui-se que os documentos pertencentes aos arquivos pessoais devem receber tratamento arquivístico.
Até aqui expus as definições dos arquivos pessoais, a seguir discorro sobre a especificidades dos arquivos pessoais de mulheres e sua institucionalização.
3 Arquivos pessoais de mulheres
Arquivo pessoal, para Bellotto (2012, p. 266), entende-se o conjunto de documentos textuais, audiovisuais, iconográficos resultantes da vida e das atividades de estadistas, políticos, administradores, cientistas, artistas, líderes profissionais, etc. Nesta definição podemos nos confrontar com questões que historicamente retiraram as mulheres dos espaços de poder, produção científica, cultural, entre outros.
A autora complementa: “[...] pessoas cuja maneira de pensar, agir, atuar e viver possam ter interesse para as pesquisas” (Bellotto, 2012, p. 266). Nesta perspectiva, mais abrangente, pensando na importância do ingresso de documentos de mulheres nos arquivos, observa-se a necessidade de inserção desses documentos nos arquivos, por serem acervos relevantes para compreensão de aspectos sociais, culturais e até mesmos científicos.
Ainda de acordo com Bellotto (2012, p. 268) os arquivos pessoais como fontes de pesquisa apresentam quatro formas de possibilidade de uso: como documentação básica, como documentação alternativa, como documentação subsidiária ou como documentação paralela.
Não obstante, é importante salientar que a prática de recolher arquivos pessoais ganhou ênfase no começo do séc. XX, principalmente após as guerras mundiais3 com a institucionalização de documentos pessoais como tentativa de preservação da produção em âmbito privado. A autora afirma (Oliveira, 2013, p. 32-3):
No século XIX, os arquivos pessoais ganharam espaço na prática arquivística francesa, inglesa e americana. Esse movimento foi impulsionado pelas sociedades históricas que passaram a reconhecer papéis produzidos na vida privada como fonte para a pesquisa do historiador. Ao longo do século XX, a posição desses arquivos se fortaleceu principalmente como resultado das grandes guerras e do receio da evasão ou perda desses registros. Um dos mecanismos encontrados na sociedade para a preservação desse legado produzido no âmbito privado - e considerando de relevância para a memória - é a sua institucionalização, seja em bibliotecas, museus, arquivos de sociedades históricas, universidades, centros de documentação, instituições arquivísticas etc.
No entanto, documentos pessoais e institucionais privados que perfazem a vida pública e econômica como de escritores, políticos e empresas por vezes transpõem a barreira. No entanto, é muito mais difícil para as pessoas comuns, e ainda mais para as mulheres, superar esses obstáculos (Perrot, 2007, p. 27).
Nos arquivos pessoais a presença de mulheres é mais perceptível, sob o olhar privado e muitas vezes íntimo, esses arquivos acabam oferecendo novas perspectivas por meio de discursos menos oficiais e institucionalizados. Curiosamente os registros individuais ganham notoriedade pessoal de forma coletiva quando inseridos na institucionalidade, ou seja, quando ingressam nos arquivos, deste modo se constituem como fontes na construção da memória de uma sociedade (Oliveira, 2013, p. 48).
Sobre a prática de arquivamento pessoal podemos considerar que no caso dos arquivos de mulheres, embora exista uma prática de arquivamento, muitas vezes essa prática é silenciada através da destruição de seus registros. Em muitos casos os documentos sobre mulheres não resistem ao tempo, ou seja, são menos frequentes nas instituições de guarda, de modo que esse ato de resistência se torna ainda mais latente quando são encontrados nos arquivos.
Por isso a importância da institucionalização e preservação de documentos de mulheres considerando as dificuldades de registros dos materiais preservados. Conforme os autores (Borges; Murguia, 2014, p. 20) assim como os arquivos públicos, os arquivos privados podem ser mais acessados e difundidos, ou seja, tornam-se mais acessíveis, quando custodiados por instituições que considerem “[...] a preservação como função arquivística”. Desta forma a aquisição de arquivos pessoais é fundamental à preservação e ao acesso.
Ao pesquisarmos os instrumentos de pesquisa e bases de dados de algumas das principais instituições públicas e privadas que custodiam arquivos privados, tais como Arquivo Nacional (Brasil), Arquivo do Estado de São Paulo (APESP), Arquivo Histórico Municipal de São Paulo (AHM/SP), Instituto Moreira Salles (IMS), Instituto de Estudos Brasileiros, da Universidade de São Paulo (IEB/USP), Centro de Pesquisa e Documentação Histórica Contemporânea do Brasil, da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC/FGV) e Arquivo Edgard Leuenroth (AEL) verificamos um número menor de arquivos de mulheres preservados em detrimento ao número de arquivos de homens, como apresentado na Tabela 1.
-
a quantificação dos arquivos de mulheres considerou fundos e coleções pessoais;
-
foram consultados, para a quantificação citada acima, as bases de dados disponíveis nos sites institucionais e os instrumentos de pesquisa como guia de fundos;
-
no IEB três arquivos/coleções de mulheres e homens foram considerados individualmente pelo guia, mas constam como de casais no artigo sobre arquivos pessoais de casais de Ribas (2020), são eles: Aracy de Carvalho Guimarães Rosa e João Guimarães Rosa; Julieta de Godoy Ladeira e Osman Lins; Lídia Besouchet e Newton Freitas. Para efeitos de quantificação consideramos as informações do guia.
Na tabela 1 observa-se, do ponto de vista de gênero, uma quantidade maior de arquivos/coleções pessoais de homens comparado ao número de arquivos/coleções pessoais de mulheres em todas as instituições pesquisadas.
Dito isto, de acordo com as informações pesquisadas, verifica-se que no melhor dos cenários a presença de arquivos pessoais de mulheres nas instituições citadas não chega a 30% do acervo total disponibilizado pela instituição.
Além da quantidade mais limitada de arquivos de mulheres nas instituições, também nos deparamos com informações fragmentadas e dispersas sobre as mulheres que podem conter arquivos anexados aos arquivos de titulares homens, como nos casos de casais e famílias. Um exemplo muito comum em instituições de guarda de acervo arquivístico privado são os arquivos de casal ou de família.
No CPDOC/FGV quatro arquivos de mulheres, dos 11 arquivos depositados na instituição, chegaram como anexo dos arquivos de homens, de quem essas mulheres eram esposas ou mães (Monteiro et al., 2019. p. 78)4.
Também no Instituto de Estudos Brasileiros, da Universidade de São Paulo - IEB/USP5 possui arquivos pessoais de casais que estão sendo tratados individualmente, por exemplo, para o arquivo do casal Lídia Besouchet e Newton Freitas, há o fundo Lídia Besouchet e o fundo Newton Freitas (Ribas, 2020, p. 1).
Entendo como apontado no começo deste artigo que a invisibilidade das fontes documentais sobre mulheres se deve, pois ao longo da história as mulheres terem sido marginalizadas da esfera pública. O que leva ao número menor de seus registros. E como apontado por Perrot (2007) mesmo que possa haver mais registros na esfera privada, como vemos nos números de acervos institucionalizados, esses números não transpõem comparativamente o número de acervos de homens.
4 A institucionalização de arquivos pessoais de mulheres
A incorporação e/ou resgate de fontes das trajetórias femininas e sobre mulheres nas instituições de guarda, como os arquivos, é urgente e necessária. O que pode ser obtido por meio da institucionalização de arquivos pessoais de mulheres. Os investimentos na memória, segundo Heymann (2005, p. 3) são eles projetos institucionais, homenagens, comemorações, tem por objetivo fixar no passado as posições dos protagonistas, produtor do arquivo, ou herdeiros, ocupados no presente ou que almejam projeções para o futuro.
Deste modo, um processo de resgate das trajetórias de mulheres visa inverter a lógica até então posta. Como dito anteriormente uma das formas de inclusão desses acervos pode se dar por meio da inserção de arquivos privados nas instituições arquivísticas e até mesmos culturais. No entanto, assim como nos arquivos públicos, existe uma dificuldade enorme na constituição desses acervos, devido à autodestruição da memória feminina pelas próprias mulheres de seus papéis pessoais convencidas de sua insignificância. Como escreve Perrot (2007, p. 22), todos esses pontos ajudam a justificar a falta de fontes sobre a existência da mulher, assim como sua existência, história e trajetórias: “[...] no teatro da memória, as mulheres são uma leve sombra”.
A invisibilidade de fontes documentais de mulheres e sobre mulheres nos arquivos enfatizada por Perrot ressalta a dificuldade da entrada de arquivos privados em arquivos públicos, no entanto, como mencionado para homens políticos e escritores sempre foi mais fácil transpor esse obstáculo. O menor número de arquivos pessoais de mulheres institucionalizados potencializa a ausência de mulheres também na história. Por isso a importância da introdução de arquivos pessoais de mulheres entendidas e valorizadas como patrimônio documental:
Os arquivos pessoais, ao representarem uma parcela da memória coletiva, contribuem ao lado dos arquivos de origem institucional para a salvaguarda do patrimônio documental e a compreensão das sociedades modernas. Interessam como fonte de pesquisa e são dotados de uma singularidade. Não se criam com uma finalidade histórica e cultural inicial, mas são formados por homens e mulheres ao longo de uma vida, e adquirem valor testemunhal por um gesto de quem os produziu e/ou de quem os identificou e lhes atribuiu significado social e cultural (Santos, 2012, p. 49).
Os arquivos pessoais de mulheres inseridos em um contexto público, junto aos demais arquivos, constituem importantes fontes de pesquisa. Deste modo, esta inserção contribui para potencializar e ampliar as pesquisas que considerem mulheres no ambiente público.
Neste sentido foram e têm se desenvolvido iniciativas de mulheres, e principalmente feministas, para que mudanças importantes fossem realizadas na estrutura hierarquizada de nossa sociedade:
O feminismo questionou a forma androcêntrica de organização de arquivos, bibliotecas, centros de documentação, livrarias e museus. Questionou a invisibilidade, a dispersão e até o desinteresse pela preservação, conservação e divulgação de documentos, outras fontes de informação e inúmeros bens culturais produzidos por/com mulheres ou sobre mulheres. Nessa direção, os acadêmicos que se dedicaram aos estudos da história das/com as mulheres e de gênero tiveram que revisitar, reler e reinterpretar as fontes que utilizaram para seus estudos, entre as quais estavam, obviamente, documentos de arquivo (Vassalo, 2018, p. 81, tradução nossa).
O olhar androcêntrico que considera o masculino como o único modelo de representação coletiva é refletido também no arquivo. Questionando esta lógica nas instituições de salvaguarda, o feminismo indaga sobre a carência de fontes sobre mulheres tentando subverter esse cenário. A colocação das feministas e de pesquisadores e pesquisadoras interessadas em difundir a história sob a perspectiva feminina reforça a importância das fontes documentais nos arquivos e demais instituições de salvaguarda.
Sem a inquietação para mudar como os arquivos e como as pesquisas são conduzidas continuaremos com uma história tradicional vista por um único olhar. De acordo com (Ackelsberg, 1997, p. 47-48):
À medida que as feministas e outros repetidamente levantavam tais questões, a escrita da história social da história do trabalho (mais lentamente, talvez) têm gradualmente se transformado. Temos encontrado, pelo menos em alguns estudos, mais atenção voltada à interação entre o local de trabalho e a comunidade e esforços para explorar aquele contexto mais amplo. Há importantes lições aqui para arquivistas: para que se reflita inteiramente as experiências de um movimento, é necessário que se olhe-e, portanto, que se colecione - consideravelmente para além dos documentos e registros tradicionais do “movimento trabalhista”.
De acordo com a autora é necessário, colocando como exemplo a história do trabalho, “colecionar” os documentos que tratem de outros temas, para além dos registros ditos tradicionais.
No texto Arquivos, história social e história das mulheres, a autora indaga “História é sobretudo narrativa” de modo que “Como se pode fazer história social sem arquivos? Sem documentos que possam ser ligados para que se conte uma história?” (Ackelsberg, 1997, p. 40). Deste modo, sem fontes sobre mulheres, como escrever uma história que também as contemple?
Os arquivos são depositários de fontes documentais que possibilitam que os historiadores e historiadoras recriem narrativas. Sem fontes documentais sobre mulheres dificilmente novas perspectivas dadas a história sob um viés masculino será mudada. Para isso, as narrativas particulares também merecem ser estudadas. Os arquivos pessoais de mulheres disponibilizados ampliam o contexto de pesquisa e dão suporte a acervos e documentos já institucionalizados.
O arquivo é uma importante ferramenta como fonte primária na geração de narrativas históricas e culturais, no processo de conformação e sustentação das memórias e identidades, ao preservar e disponibilizar aos cidadãos o patrimônio documental de uma comunidade. Por esta razão os documentos arquivísticos devem refletir e/ou expressar de alguma forma a reunião dessas memórias, desta forma facilitará a emergência de novos discursos e ações educativas, políticas e midiáticas visando alcançar a equidade de gênero em todos os níveis da vida social e cultural (Acevedo, 2016, p. 57).
É inegável que os arquivos são espaços de poder. A noção de que os arquivos são lugares neutros, sem interesses adquiridos, foi minada pelas atuais abordagens filosóficas e teóricas do conceito de “Arquivo”. O poder arquivístico é, em parte, o poder de permitir que vozes sejam ouvidas. Consiste em destacar determinadas narrativas e incluir determinados tipos de registros produzidos por determinados grupos. O poder do arquivo é testemunhado no ato de inclusão, mas este é apenas um dos seus componentes. O poder de excluir é um aspecto fundamental do arquivo. Inevitavelmente, há distorções, omissões, rasuras e silêncios no arquivo. Nem toda história é contada (Carter, 2006, p. 216, tradução nossa).
De modo que é importante questionar o mito arquivístico da neutralidade e objetividade, sancionando uma forte tradição dos arquivos e arquivistas em documentar principalmente a cultura dominante e dos criadores de documentos, privilegiando narrativas oficiais do Estado, em detrimento, por exemplo, das histórias privadas dos indivíduos. Outro cânone é as regras de evidência e autenticidade que favorecem os documentos textuais, dos quais tais regras derivam, em detrimento de outras formas de vivenciar o presente e, portanto, de ver o passado. Pois eles trazem aspectos de valores positivistas e “científicos” inibem os arquivistas de adotar outras formas múltiplas de ver e conhecer (Schwartz; Cook, 2002, p. 18, tradução nossa).
Observamos os apontamentos acima quando realizamos pesquisas de fontes sobre mulheres, negros, povos indígenas, ou seja, de grupos subjugados, considerados minorias, não quantitativamente, mas muitas vezes de processos decisórios e de representatividade, esses acervos nos arquivos possuem menor representatividade.
Considerar a natureza de gênero da atividade arquivística ao longo do tempo é um exemplo claro de que os arquivos não são (e, na verdade, nunca foram) instituições neutras e objetivas na sociedade. Os arquivos, desde as suas origens no mundo antigo, excluíram sistematicamente dos seus acervos registros sobre ou feitos por mulheres e, como instituições, têm sido agentes voluntários na criação do patriarcado, apoiando aqueles que estão no poder contra os marginalizados. Como Bonnie Smith mostrou recentemente em “The Gender of History: Men, Women, and Historical Practice”6, em que relata que historiadores e arquivistas ignoraram no seu trabalho a vida real nas famílias, nas explorações agrícolas, nas fábricas e na comunidade local, e as histórias e experiências das mulheres, entre outros, em favor da política nacional, da administração, da diplomacia, e da guerra, as experiências dos homens no poder (Schwartz; Cook, 2002, p. 18, tradução nossa).
Isto posto, ainda que historicamente saibamos da participação das mulheres em importantes acontecimentos históricos, sociais, culturais e políticos brasileiros, nem sempre essa participação é refletida nas instituições de salvaguarda de acervo e na dita história tradicional.
É significativo considerarmos que os acervos não são constituídos de processos involuntários e orgânicos nas instituições de guarda, mas são reflexos de processos políticos e humanos que ao longo da história não se mostraram inclusivos. De acordo com (Bloch, 2001, p. 82):
A despeito do que às vezes parecem imaginar os iniciantes, os documentos não surgem, aqui ou ali, por efeito [de não se sabe] qual misterioso decreto dos deuses. Sua presença ou ausência em tais arquivos, em tal biblioteca, em tal solo deriva de causas humanas que não escapam de modo algum à análise, e os problemas que sua transmissão coloca, longe de terem apenas o alcance de exercícios de técnicos, tocam eles mesmos no mais íntimo da vida do passado, pois o que se encontra assim posto em jogo é nada menos do que a passagem da lembrança através das gerações.
É necessário um processo proativo de guarda e difusão de documentos alheios à história tradicional por meio das instituições. Os arquivistas são constantemente confrontados com escolhas sobre o que incluir e o que excluir, permitindo que algumas vozes sejam ouvidas, enquanto outras são silenciadas. Recursos limitados e/ou falta de compreensão garantem que todos os registros não recebam a mesma atenção, que alguns será negado a um lugar nos arquivos. Isto pode ser resultado de decisões passivas ou inconscientes por parte do arquivista devido a restrições fiscais e demandas crescentes. Estas decisões, combinadas com a exclusão ativa de certas vozes dissidentes e registros não conformes, têm um impacto drástico na forma dos arquivos e têm grandes implicações para o estado da memória social (Carter, 2006, p. 219, tradução nossa).
No entanto, entendemos que a decisão é mais institucional do que profissional, ou seja, do arquivista, se não há arquivo, coleção, acervo e ou documentos sobre mulheres institucionalizados o trabalho de visibilidade realizado pelo arquivista fica comprometido.
Pressupondo que as fontes documentais sobre mulheres estejam mais presentes nos arquivos, as investigações nesses documentos poderão propiciar pesquisas que farão emergir uma história com novas perspectivas. Uma nova história poderá reorientar conceitos fixos que legitimam o poder dos homens tornando as mulheres mais visíveis, de modo a dar mais evidência como sujeitos históricos e de suas lutas (Scott, 1995, p. 39).
Diante de tudo que foi exposto e em consonância com a invisibilidade de arquivos pessoais de mulheres, sendo o arquivo uma importante ferramenta como fonte para narrativas históricas e culturais, veremos a seguir como o cenário dos arquivos pessoais de mulheres pode ser potencializado em termos de acessibilidade, com a construção de instrumentos de pesquisa.
5 Instrumentos de pesquisa para difusão de arquivos pessoais de mulheres
Dedicaremos esta seção a informações sobre a construção de instrumentos de pesquisa. Os instrumentos de pesquisa podem ser guias, inventários e catálogos e todos podem ser inseridos e ampliados em bases de dados. Para a construção de instrumentos de pesquisa existem normativas nacionais e internacionais específicas que veremos a seguir.
Por princípios básicos da Arquivística cito Bellotto (2012): o princípio da proveniência: os arquivos devem ser organizados obedecendo às competências e atividades do seu produtor; o princípio da organicidade: onde os arquivos devem espelhar a estrutura, funções e atividades do produtor/acumulador do arquivo e o princípio da indivisibilidade: onde os arquivos devem permanecer reunidos sem dispersão, alienação ou destruição indevida.
Por meio do processo descritivo as informações chegam de forma lógica para o pesquisador na construção do instrumento de pesquisa. O tratamento arquivístico pautado na estrutura do fundo garante os princípios básicos citados por Bellotto.
De acordo com as citações acima a descrição arquivística compreende uma sequência lógica de operações que se inicia com a observação e análise do documento identificado para obtenção de informações significativas para o acesso. Seguindo com a sistematização das informações mediante estruturas descritivas (preferencialmente sobre uma base de dados), a descrição se materializa nos chamados instrumentos de descrição. Os instrumentos são formados por um produto apresentado ao usuário com as informações coletadas nas estruturas descritivas segundo Boadas i Raset; Suquet; Casellas Serra (2001, p. 173).
Antes, porém, para a realização da descrição documental existem normas nacionais e internacionais e modelos de sistemas informatizados que padronizam as informações, garantindo assim um maior fluxo entre as instituições e facilitando o acesso do pesquisador.
Para a descrição de documentos pautadas nas normas arquivísticas temos a Norma Geral Internacional de Descrição Arquivística (ISAD-G) e a adaptação da ISAD(G) que inclui uma área a mais de descrição a Norma Brasileira de Descrição Arquivística (NOBRADE). A descrição arquivística é realizada obedecendo uma estrutura multinível, do geral para o particular, o documento constitui-se em um “conjunto”, distinguindo-se das normas bibliográficas onde a descrição é realizada item a item.
A ISAD(G) foi a primeira tentativa de âmbito internacional criada com intuito de padronizar a descrição arquivística, consequentemente dela surgiram outras normas internacionais e nacionais, do mesmo modo pode ser utilizada com os padrões nacionais existentes em cada país. Basicamente é uma norma que contém regras gerais para as descrições arquivísticas aplicáveis em documentos em qualquer formato ou suporte (CIA, 2000).
A estrutura da norma é dividida em sete áreas de informação descritiva, sendo elas: área de identificação, contextualização, conteúdo e estrutura, condições de acesso e uso, fontes relacionadas, notas e controle da descrição. Apenas seis campos são obrigatórios para o processo de descrição e que são essenciais para o intercâmbio internacional de informações, são eles da área de identificação: código de referência, título, data(s), nível de descrição, dimensão da unidade de descrição e da área de contextualização: nome(s) do(s) produtor(es). Os demais campos são indexados de acordo com o andamento da organização arquivística dos fundos, do interesse da instituição e perfil de seus pesquisadores/usuários.
O autor André Lopez (2002, p. 14) destaca que a norma ISAD(G) propõe padronizar a descrição arquivística, do geral ao particular, ou seja, do fundo ao item documental. A importância da descrição arquivística seguindo esta norma se dá, pois através do sistema multinível, a descrição se faz obedecendo à estrutura do fundo, intimamente ligado ao princípio da proveniência7:
A importância de um instrumento como a ISAD(G) para a comunidade arquivística é mais evidente quando pensamos nas possibilidades abertas pelo avanço da informática em nível mundial. Para que a troca eletrônica de informações entre os acervos seja satisfatória é necessário que, cada vez mais, os arquivistas comecem a falar a mesma língua. Nesse sentido, é fundamental o estabelecimento de diretrizes básicas para todas as atividades relacionadas à organização arquivística, inclusive a descrição. A normalização da descrição arquivística também facilita o acesso às informações do acervo por parte dos mais diversos consulentes. [...] A normalização contribui não apenas para o intercâmbio entre diferentes instituições, como também facilita o acesso e a consulta em geral (Lopez, 2002, p. 16).
Os autores Boadas i Raset; Suquet; Casellas Serra (2001, p. 174) destacam que durante as diferentes operações realizadas para a descrição documental é importante a utilização de modelos normalizados existentes como estruturas descritivas e listas de descritores. Os padrões de descrição agilizam o trabalho técnico e a consulta pelo usuário, e permitem também um intercâmbio de informações/dados entre os sistemas e instituições, além da integração de programas de difusão com poder de alcance e repercussão mais amplos.
Os instrumentos de pesquisa são importantes ferramentas de gestão da informação, pois é a ferramenta que comunica ao pesquisador usuário as informações contidas em um arquivo. São as ferramentas utilizadas para descrever um arquivo, ou parte dele, com função de disponibilizar informação e documentos para a consulta. Apresentam-se na forma de guia, inventários, catálogos e índices. Em geral, são elaborados para difusão, motivo pelo qual são publicados e hoje disponibilizados em bases de dados (Lopez, 2002, p. 10-11).
O primeiro instrumento a ser disponibilizado pelos arquivos são os guias. Nele são apresentadas as informações de conjuntos documentais amplos, desta forma o consulente, pesquisador tem uma ideia do tipo de conteúdo e temática que aquela instituição disponibiliza. Depois de realizado o guia, a instituição pode partir para instrumentos mais específicos, tais como inventário e catálogos que vão tomar como base o acervo mais organizado por meio de grupos, séries e itens documentais.
Os guias de fundos constituem um papel importante como instrumento de pesquisa, pois o guia permite um panorama do acervo arquivístico. Para a elaboração do guia deve ser considerada não apenas as informações de organização e tratamento técnico do acervo, mas informações institucionais, tais como endereço, horários e dias de atendimento e procedimentos para pesquisa presencial, e quando houver informações para a pesquisa on-line. Condições de restrição a consulta devem ser apontadas, políticas de reprodução quando houver, prestação de serviço.
Um pequeno histórico institucional também é comum, a fim de apresentar a instituição. Sobre os acervos institucionalizados o guia deve informar os fundos/coleções custodiados, e para cada conjunto documental deve conter informações sobre, nível de organização física, volume documental, data-limite, produtores, história administrativa / biografia e história arquivística e procedência.
No âmbito dos arquivos pessoais as especificidades são mais notadas, pois comumente abrangem uma gama maior de formatos e suportes de documentos:
O arquivo pessoal é regulado pela vida cotidiana de seu produtor e, posteriormente, pode ser afetado pelas interferências, muitas vezes não registradas, dos herdeiros e seus sucessores. O trabalho de pesquisa exige um garimpo mais profundo nas fontes secundárias e primárias. É o arquivista quem analisa esse contexto de produção, de acumulação e de aquisição, e cabe a ele, em seu trabalho de pesquisa, remontar a história desse acervo (Oliveira, 2010, p. 50).
Considerando que nosso objeto de pesquisa são os arquivos pessoais de mulheres, as informações coletadas, como aponta a autora, potencializam as pesquisas quando na disponibilização de arquivos pessoais de mulheres. Disponibilizar a vida cotidiana da produtora, interferências, assim como remontar a história do acervo amplifica os usos que podem ser dados às fontes encontradas nos arquivos pessoais de mulheres. As informações coletadas, além de auxiliar na compreensão do produtor, são peças-chaves na produção dos instrumentos de pesquisas.
Realizado o trabalho para a elaboração de qualquer um dos instrumentos de pesquisa, sua difusão também é importante. Anteriormente a divulgação dos instrumentos se dava apenas pela publicação dos instrumentos, guias, inventários e catálogos, como impressões, e atualmente, mais comumente em arquivos pdf. No entanto, com o advento da tecnologia a possibilidade de ampliar as informações em bases de dados se faz necessária.
As mudanças tecnológicas também ampliaram não só as formas de divulgação, mas a percepção e a recepção do público interessado, a internet e as facilidades de buscadores online, sites de busca alteraram a formas de realizar pesquisas:
Os usuários buscam distintas informações para atender múltiplos objetivos de pesquisa. Um serviço de arquivo que anteriormente era considerado especializado em atender a um perfil de pesquisador com objeto de pesquisa centrado em uma área específica do conhecimento, com a utilização da web, por parte de um conjunto variado e não identificável de usuários, pode surpreender-se com demandas até então inusitadas (Oliveira, 2006, p. 112).
Aumentar as possibilidades de difusão para além da elaboração de instrumentos que possam dar meios de ampliação da pesquisa e divulgação do acervo, também devem considerar utilizar as novas tecnologias.
Os arquivos podem representar o poder, mas definitivamente possuem poder “Os arquivos têm o poder de privilegiar ou marginalizar” (Schwartz; Cook, 2002, p. 13, tradução nossa). Ainda segundo esta perspectiva a “[...] visibilidade ou não desse lugar de poder que os arquivos ocupam - no plano real da sociedade ou no imaginário daqueles que compõem a sociedade - está diretamente ligada ao papel que o profissional dos arquivos exerce” (Oliveira, 2010, p. 57).
Considerando os apontamentos anteriores é importante compreender que a questão da visibilidade também está atrelada ao “poder” que possui os arquivos. Deste modo cabe à instituição e aos profissionais que a compõem exercitar ações que viabilizem acervos historicamente marginalizados, para além da questão de gênero, também racial, social, etnia e grupos socialmente subjugados. Conforme essas considerações é importante compreender “[...] tornar os arquivos acessíveis é fazer escolhas: é o arquivista quem, com base em suas visões subjetivas e observações, decide o que será mantido, o que será divulgado, o que receberá atenção individual e o que será explicado” (Thomassen, 2004, p. 428, apudOliveira, 2010, p. 57).
Salientar que apesar de entendermos a responsabilidade do arquivista, nas ações de visibilidade dos documentos, a premissa deve ser considerada institucionalmente. Individualmente não é possível fazer escolhas, viabilizar e atender a perspectiva de visibilizar acervos, se também não estiver atrelada a uma perspectiva institucional.
6 Considerações finais
Este artigo trouxe à luz a possibilidade de difusão dos arquivos pessoais de mulheres por meio da elaboração e difusão de instrumentos de pesquisa. Discutimos as considerações sobre os arquivos pessoais, sobre os arquivos pessoais de mulheres e sobre os instrumentos de pesquisa.
Ao avaliarmos a institucionalização de arquivos privados em arquivos, centros de documentação e memória, verifica-se que existem mais arquivos pessoais de homens preservados, do que de mulheres. Muito se deve às mulheres terem historicamente sido retiradas das atividades públicas. Para tal, analisamos autoras que discutem os papéis do que é feminino relegado às mulheres e que historicamente perpetuou as mulheres em atividades privadas, deixando as atividades públicas aos homens.
Dito isso, entendemos esse apagamento das fontes de mulheres, no entanto, ainda que em menor número, existem fontes sobre mulheres em instituições de salvaguarda, assim como arquivos pessoais de mulheres institucionalizadas. Deste modo entendemos que uma das formas de dar visibilidade a esses arquivos é por meio da construção e disponibilização de instrumentos de pesquisa.
Os instrumentos de pesquisa são uma importante ferramenta arquivística de descrição e difusão de arquivos e coleções institucionalizados, os instrumentos podem ser guias, inventários e catálogos e constituem um meio de dialogar as informações dos arquivos com o público e pesquisadores.
Uma vez institucionalizados cabe também ao arquivista desempenhar o papel de visibilizar o acervo, no entanto não se trata de uma tentativa individualizada. As instituições precisam perpetuar formas de difundir seus documentos e de visibilizar acervos marginalizados, como é caso, neste artigo, dos arquivos pessoais de mulheres, mas que ocorrem também em fontes documentais dos povos negros, indígenas, comunidade LGBTQ+ (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transsexuais, queers) e grupos socialmente subjugados.
Por fim, ao construir instrumentos de pesquisas para visibilizar arquivos pessoais de mulheres uma etapa importante de difusão é estabelecida. A partir dela utilizar os instrumentos de pesquisa por meio da tecnologia potencializa as formas de pesquisa que devem ser consideradas.
Referências
- ACEVEDO, Emma de Ramón et al La creación del Archivo mujeres y géneros en el Archivo Nacional de Chile. In: Ibermuseos (org.). La memoria femenina: mujeres en la historia, historia de mujeres. Madrid: Secretaria General Técnica, Subdirección General de Documentación y Publicaciones, 2016. p. 55-63.
- ACKELSBERG, Martha. Arquivos, história social e história das mulheres. Cadernos AEL, São Paulo, n. 5/6, p. 37-50, 1996/1997.
- ARONOVICH, Lola. Prefácio. In: LERNER, Gerda. A criação do patriarcado: história da opressão das mulheres pelos homens. São Paulo, Cultrix, 2019. p. 19-25.
- ARQUIVO NACIONAL (Brasil). Dicionário brasileiro de terminologia arquivística. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2005.
- BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.
- BELLOTTO, Heloísa Liberalli. Arquivos permanentes: tratamento documental. 4. ed. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2012.
- BELLOTTO, Heloísa Liberalli. Arquivo estudos e reflexões. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2014.
- BLOCH, Marc. Apologia da história, ou, o ofício de historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
- BOADAS i RASET, Joan; SUQUET, Maria Angels; CASELLAS SERRA, Lluís-Esteve. Manual para la gestión de fondos y colecciones fotográficas, 2001 . Girona: CRDI, 2001.
- BORGES, Renata Silva; MURGUIA, Eduardo Ismael. Aquisição de arquivos pessoais. In: YÁRRITU ABELLÁS, José Benito; FRADE, Everaldo Pereira; SILVA, Maria Celina de Mello (org.). Arquivos pessoais: constituição, preservação e usos. Rio de Janeiro: Museu de Astronomia e Ciências Afins, 2014.
- CAMARGO, Ana Maria de Almeida. Os Arquivos pessoais são arquivos. Revista do Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte, p. 27-39, 2009.
- CAMARGO, Ana Maria de Almeida; GOULART, Silvana. Tempo e circunstância: a abordagem contextual dos arquivos pessoais. São Paulo: Instituto Fernando Henrique Cardoso, 2007.
- CAMARGO, Ana Maria de Almeida; BELLOTTO, Heloísa Liberalli. (org.) Dicionário de Terminologia Arquivística. São Paulo: AAB-SP/SEC, 1996.
- CARTER, Rodney G. S. Of things said and unsaid: power, archival silences, and power in silence. Archivaria, Ottawa, n. 61, p. 215-233, 2006.
- CONSELHO INTERNACIONAL DE ARQUIVOS (CIA). ISAD(G): Norma geral internacional de descrição arquivística. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional , 2000.
-
CRENSHAW, Kimberlé W. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 10, n. 1, p. 171-188, 2002. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0104-026X2002000100011 Acesso em: 16 jul. 2023.
» https://doi.org/10.1590/S0104-026X2002000100011 - DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016.
- DEL PRIORE, Mary. História do cotidiano e da vida privada. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo. Domínios da história: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997.
- GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano. In: RIOS, Flávia; LIMA, Márcia (org.). Ensaios, intervenções e diálogos. São Paulo: Zahar, 2020.
- HEYMANN, Luciana. De “arquivo pessoal” a “patrimônio nacional”: reflexões acerca da produção de “legados”. Rio de Janeiro: CPDOC, 2005.
- LOPEZ, André Porto Ancona. Como descrever documentos de arquivo: elaboração de instrumentos de pesquisa. São Paulo: Arquivo do Estado, Imprensa Oficial, 2002.
- MONTEIRO, Alessandra Nóbrega; COSTA, Anna Beatriz Oliveira Menezes; ALVES, Carolina Gonçalves; MENDES, Juliana Maia. Arquivos pessoais de mulheres: a experiência da Escola de Ciências Sociais (FGV CPDOC). In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE SABERES ARQUIVÍSTICOS, 9.,2019, Coimbra. Anais [...]. [S.l.:s.n], 2019. p. 73-87.
- OLIVEIRA, Lucia Maria Velloso. Modelagem e status científico da descrição arquivística no campo dos arquivos pessoais. 2010. Tese (Doutorado) - Programa de Pós-Graduação em História Social, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.
- OLIVEIRA, Lucia Maria Velloso. Descrição e pesquisa: reflexões em torno dos arquivos pessoais. Rio de Janeiro: Móbile, 2012.
- OLIVEIRA, Lucia Maria Velloso. Descrição arquivística e os arquivos pessoais: conhecer os arquivos pessoais para compreender a sociedade. Arquivo & Administração. Rio de Janeiro, v. 12, n. 2, p. 28-51, 2013.
- OLIVEIRA, Lucia Maria Velloso. O usuário como agente no processo de transferência dos conteúdos informacionais arquivísticos. Rio de Janeiro: UFF, IBICT, 2006.
- PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. São Paulo: Contexto, 2007.
- RIBAS, Elisabete Marins. Arquivos pessoais de casais: reflexões sobre sua classificação a partir do acervo do Arquivo IEB - USP. In: SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE ARQUIVOS, São Paulo, 2020. Anais [...]. São Paulo: ARQ-SP, 2020.
- SANTOS, Paulo Roberto Elian. Arquivos de cientistas: gênese documental e procedimentos de organização. São Paulo: ARQ-SP , 2012.
-
SCHWARTZ, Joan; COOK, Terry. Archives, records, and power: from (postmodern) theory to (archival) performance. Archival Science, New York, n. 2, p. 171-185, 2002. Disponível em: https://doi.org/10.1007/BF02435620 Acesso em: 16 jul. 2023.
» https://doi.org/10.1007/BF02435620 - SCOTT, Joan Wallach. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Revista Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 2, n. 2, p. 71-99, 1995.
-
VASSALO, Jaqueline. Mujeres y patrimonio cultural: el desafió de preservar lo que se invisibiliza. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, n. 71, p. 80-94, 2018. Disponível em: https://doi.org/10.11606/issn.2316-901X.v0i71p80-94 Acesso em: 16 jul. 2023.
» https://doi.org/10.11606/issn.2316-901X.v0i71p80-94 - WOOLF, Virginia. Um teto todo seu. São Paulo: Tordesilhas, 2014.
-
1
A pesquisa foi realizada no 1º semestre de 2024.
-
2
No entanto, para a autora é importante ressaltar que a “segunda-idade” dos arquivos pessoais corresponde à “terceira-idade” se considerarmos arquivos públicos e/ou institucionais.
-
3
As grandes guerras mundiais: Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e a Segunda Guerra Mundial (1939-1945).
-
4
Arquivos de mulheres anteriormente anexados aos de homens: Delminda Aranha, Luiza Aranha, Hermínia Collor e Hilda Machado.
-
5
Arquivos dos casais no IEB: João Guimarães Rosa e Aracy de Carvalho Guimarães Rosa; Osman Lins e Julieta de Godoy Ladeira; Lídia Besouchet e Newton Freitas; Emilie Chamie e Mário Chamie; e Antonio Candido e Gilda de Mello e Souza.
-
6
Como Bonnie Smith mostrou em The Gender of History: Men, Women, and Historical Practice, a ascensão da história “profissional” no século XIX (que coincidiu exatamente com a profissionalização dos arquivistas - que foram treinados como tais historiadores) espremido a narração de histórias, o fantasmagórico e o psíquico, o espiritual e o feminino (e, claro, todas as mulheres praticantes “amadoras”), em favor dos homens (exclusivamente) que buscam uma história “científica” e “profissional” dentro do claustro de os arquivos e o campo de batalha do altamente competitivo seminário universitário
-
7
Princípio segundo o qual os arquivos originários de uma instituição ou de uma pessoa devem manter sua individualidade, não sendo misturados aos de origem diversa (Camargo; Bellotto, 1996, p. 61).
-
8
Thomassen, Theo. Making archives accessible: increasing pluriformity in pursuing illusions. Arkistoyndistyksen Julkaisuja, Helsing, n. 9, p. 31-68, 2004. Apud Oliveira (2010).
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
28 Fev 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
-
Recebido
19 Jul 2024 -
Aceito
12 Set 2024
