Resumos
Resumo: A questão do nome de pessoas e os atributos e as responsabilidades a ele atribuídas vem sendo posta sob crítica pelo movimento LGBTQIAPN+. Em 2016, o governo federal promulgou o Decreto n. 8.727/2016, que dispõe sobre o uso de designação pela qual a pessoa transgênero se identifica e é socialmente reconhecida (nome social) nos registros dos sistemas de informação, cadastros, prontuários e congêneres dos órgãos e das entidades da administração pública federal direta, autárquica e fundacional. Este trabalho se baseia na discussão sobre como esse reconhecimento é um recurso expressivo e político para um sujeito social. A pesquisa tem como objetivo refletir sobre os elementos e os efeitos sociais, culturais, jurídicos e políticos do uso do nome social em sistemas de informação na consolidação dos direitos fundamentais de dignidade humana e de saúde, como o Sistema Único de Saúde e o Sistema Único de Assistência Social. Trata-se de estudo exploratório-descritivo, de abordagem qualitativa, com análise documental e bibliográfica. A partir da análise de dispositivos normativos, foi realizada reflexão acerca dos procedimentos e da repercussão do uso do nome social nas discussões na área da Ciência da Informação, especificamente à luz da teoria de Regime da Informação. Foram identificados atores sociais inseridos no regime e os dispositivos que o regem, além dos artefatos de informação (cartão nacional de saúde e prontuário eletrônico) e das ações de informação com vista à promoção do combate ao preconceito contra a população LGBTQIAPN+ no acesso a processos de retificação do nome e a benefícios sociais e programas de saúde.
Palavras-chave:
nome; nome social; população LGBTQIAPN+; regime de informação; sistemas de informação em saúde e assistência social (Brasil)
Abstract: The issue of people’s names and the attributes and responsibilities attributed to them has been criticized by the LGBTQIAPN+ movement. In 2016, the federal government enacted Decree n. 8.727/2016, which provides for the use of the designation by which transgender people identify themselves and are socially recognized (social name) in the records of information systems, registries, medical records and similar of the bodies and entities of the direct, autarchic and foundational federal public administration. This work is based on the discussion of how this recognition is an expressive and political resource for a social subject. The research aims to reflect on the social, cultural, legal and political elements and effects of the use of the social name in information systems in the consolidation of fundamental rights to human dignity and health, such as the Unified Health System and the Unified Social Assistance System. This is an exploratory-descriptive study, with a qualitative approach, with documentary and bibliographic analysis. Based on the analysis of normative devices, reflections were made on the procedures and the impact of the use of the social name in discussions in Information Science, specifically in light of the Information Regime theory. Social actors inserted in the regime and the devices that govern it were identified, in addition to information artifacts (national health card and electronic medical record) and information actions aimed at promoting the fight against prejudice against the LGBTQIAPN+ population in access to name rectification processes and social benefits and health programs.
Keywords:
name; social name; LGBTQIAPN+ population; information regime; health and social assistance information systems (Brazil)
1 Introdução
Nos últimos 20 anos, as lutas e reivindicações da comunidade LGBTQIAPN+ têm ganhado visibilidade, principalmente devido à ação de seus movimentos associativos, cujas pautas destacam a garantia de direitos sociais e de cidadania. Demandas estruturadas em proposições legislativas ainda tramitam no Congresso ou foram arquivadas, como, por exemplo, em âmbito penal, o Projeto de Lei (PL) n. 5.003/2001 (Brasil, 2001), que tinha o objetivo de alterar a Lei n. 7.716, de 1989 (Brasil, 1989), que define crimes resultantes de preconceito, como os de raça, mas não dá destaque aos referentes à orientação sexual. Esta proposição foi arquivada pelo Senado Federal em 2011, ao final da 53ª Legislatura. Além deste projeto, há o PL n. 7.582/2014 (Brasil, 2014), que define os crimes de ódio e intolerância e cria mecanismos para coibi-los, criminalizando a LGBTfobia de modo expresso. Este PL ainda se encontra em tramitação no Congresso. Uma pesquisa realizada no Portal da Câmara dos Deputados indica que a proposição se encontra, desde 27 de abril de 2023, sob avaliação da Comissão de Constituição e Justiça.
Até o presente momento, a sociedade brasileira ainda não conta com um dispositivo que criminalize a discriminação por orientação sexual e identidade de gênero. A complexidade para aprovar a questão da criminalização da LGBTfobia, nos mostra o quanto o Poder Legislativo brasileiro, historicamente, possui dificuldade em deliberar sobre normas que assegurem a dignidade desta parcela da população.
Neste sentido, em 2019, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a demora do Congresso em aprovar uma lei que proteja a população LGBTQIAPN+ transformando em crime hediondo o homicídio cometido contra lésbica, gay, bissexual, travesti, transexual, intersexo e demais pessoas trans, conforme prevê o Projeto de Lei n. 7.582/2014 (Brasil, 2014). Assim, a Corte máxima do Judiciário entende que a discriminação por orientação sexual e/ou identidade de gênero deve ser considerada crime.
Mesmo com as cobranças do STF, a questão ainda não foi adequadamente resolvida. Dada a morosidade na tramitação da proposição, atualmente, a criminalização da LGBTfobia encontra-se abarcada na Lei n. 7.716/1989 (Brasil, 1989), Lei do Racismo, até que o Congresso Nacional debata e aprove uma legislação específica sobre a matéria. Este quadro evidencia a dificuldade do Estado em garantir a dignidade humana e outros direitos individuais e coletivos dessa parcela da população.
Mesmo diante das dificuldades em legislar em prol desta população, no âmbito penal há funções do Estado que colaboram para a garantia da dignidade da pessoa trans. Uma delas é o registro civil de pessoas naturais: dar nome e outras atribuições aos indivíduos. Os registros públicos são regulamentados para garantir autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos. Entretanto, o nome de uma pessoa representa muito mais do que legalidade e atos jurídicos.
Em 2016, o governo federal promulgou o Decreto n. 8.727/2016 (Brasil, 2016a), que dispõe sobre o uso de designação pela qual a pessoa transgênero se identifica e é socialmente reconhecida (nome social) nos registros dos sistemas de informação, cadastros, prontuários e congêneres dos órgãos e das entidades da administração pública federal direta, autárquica e fundacional.
O nome de pessoa é uma entidade central nos sistemas infodocumentários, com vista à identificação da pessoa natural. A distinção de gênero tem como marca social o sexo, um dado biológico predominante nos sistemas de informação públicos, como os cartórios de registro civil, e que, nos últimos 20 anos, vem sendo colocado sob crítica pelo movimento LGBTQIAPN+, no sentido de retornar a dimensão social e política que envolve a relação entre o nome atribuído a uma pessoa e sua identidade de gênero. A questão toma uma proporção maior pois envolve os direitos fundamentais, como o direito à saúde e à assistência social.
Segundo a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (Brasil, 2013), alguns problemas nos atendimentos em saúde a transexuais são relacionados a pouca experiência dos profissionais de saúde em lidar com esse público, aumentando o sofrimento no não reconhecimento de seu corpo biológico. A falta de respeito ao nome escolhido pelas pessoas transexuais configura-se como uma violência que acontece diariamente em suas vidas.
Compreender os elementos e efeitos deste e outro dispositivos e as relações e agências (González de Gómez, 1999) que condicionam estes atos, cujas ações envolvem fatores culturais, políticos e econômicos, implica um processo de reflexão sobre o valor dos dados pessoais (aqui, nome e gênero) na formação identitária de um sujeito e no quadro social como um todo.
No atual regime de informação (RI), os nomes de pessoas naturais expressam formas de vida, inseridas em um contexto social, e o pertencimento a um grupo social. No constructo analítico de RI, os atores sociais são “[...] reconhecidos por suas formas de vidas e constroem suas identidades através de ações formativas existindo algum grau de institucionalização e estruturação das ações de informação” (González de Gómez, 2003, p. 35). Assim, os atores estão intrinsecamente relacionados às ações de informação, que são propostas e desenvolvidas no âmbito de um regime de informação.
Este trabalho se baseia na discussão sobre o reconhecimento da identidade de gênero através da possibilidade de uso do nome social enquanto um recurso significativo para as pessoas transgênero, geralmente colocadas às margens da sociedade. Além de reflexos jurídicos e culturais, o uso do nome social expressa uma ação social e política de autodeclaração desses sujeitos.
Assim, o objetivo deste artigo é refletir sobre os elementos e os efeitos sociais, culturais, jurídicos e políticos do uso do nome social em sistemas centrais para a consolidação dos direitos fundamentais de dignidade humana e de saúde, como o Sistema Único de Saúde (SUS) e o Sistema Único de Assistência Social (SUAS).
2 Metodologia
Trata-se de estudo exploratório-descritivo, com análise documental e bibliográfica, pautado em revisão analítica de literatura. Quanto à abordagem, caracteriza-se como pesquisa qualitativa, uma vez que procuramos analisar o uso do nome social como um recurso político e de autoafirmação das pessoas transgênero.
Para discutir a questão do nome nos sistemas de informação em saúde e assistência, utilizou-se o arcabouço teórico de Regime de Informação para auxiliar na compreensão dos efeitos sociais, políticos, jurídicos e culturais desta informação para o cotidiano das pessoas transgênero.
Na análise documental, foram utilizadas as seguintes fontes: Decreto n. 8.727/2016 (Brasil, 2016a), Provimento n. 73/2018, Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (Brasil, 2013) e a cartilha Garantia da Utilização do Nome Social para as Pessoas Travestis e Transsexuais (Brasil, 2016b). A partir dessa análise, foi possível discutir a repercussão dessa política pública no âmbito da Ciência da Informação, especificamente a partir da identificação dos elementos atores sociais, dispositivos de informação, artefatos de informação e ações de informação, percebidos nos estudos de González de Gómez como categorias analíticas do modelo teórico-epistemológico de Regime de Informação desenvolvido pela autora a partir de suas análises sobre a dinâmica das entidades (humanas e não humanas) presentes nos sistemas de informação.
3 Nome, identidade e gênero
Estudos da antropologia cultural, como os desenvolvidos por Pina Cabral (2005), nos mostram que nomear tem implicação na constituição social da pessoa, sendo este um dos “[...] principais meios de integração entre a reprodução social e a reprodução humana”. Segundo o autor, a reprodução social é “[...] o processo pelo qual novas pessoas (agentes e sujeitos sociais - egos e selves) são constituídas ou removidas” enquanto a reprodução humana se refere ao “[...] processo pelo qual as pessoas físicas nascem ou morrem” (Pina Cabral, 2005, p. 2).
O ato de nomear ou possibilitar a existência de um ser, ou mesmo uma coisa (Foucault, 2008), é uma ação que nos faz presente, na medida em que podemos identificar, pela coisa ou pela pessoa, um ser existente. Em outras palavras, o fato de podermos dizer que algo existe se faz pelo nomeio deste algo, através da construção de um discurso1 que o possibilite existir (Foucault, 1996). Nesse sentido, nomear alguém, por exemplo, é um gesto que nos possibilita dizer que este alguém existe, tal como um homem ou uma mulher, o qual está inserido em uma sociedade por meio de um discurso que a permeia. Muitas vezes podemos perceber esse tipo de discurso se construir nas ações sociais que ali se aplicam.
O nome, segundo o antropólogo Pina Cabral (2005 2apudPontes, 2008, p. 182), “[...] identifica e distingue a pessoa ao mesmo tempo que a situa num tecido de relações familiares, demarcando o acesso a direitos e o assumir de obrigações”.
A ideia de construção de um nome vem do ato de nomear alguém ou alguma coisa. A essa ação de nomear uma coisa damos o nome de nomeação. Segundo Moreira (2010):
A nomeação é uma das questões centrais quando o assunto é a relação entre linguagem e realidade. Em geral, a relação linguagem/realidade é bastante complexa por si só. A nomeação é apenas uma das funções da linguagem que tem um papel muito importante, pois os significados dos nomes organizam e classificam as formas de perceber a realidade, além de estarem ligados diretamente com uma cultura ou comunidade (Moreira, 2010, p. 2914).
Essa ligação com uma cultura ou uma comunidade, como menciona Moreira (2010), é peça-chave para a compreensão do ato de nomear como uma ação significativa na construção de uma identidade. Esse tipo de movimento, de nomear alguém, algo ou uma rede de significados, tece não somente a presença ou existência do ser no mundo, mas possibilita que ele se veja perante os outros.
Esses atos de nomeação podem passar à margem de várias possibilidades, sendo as mais comuns a de nomear pessoas, coisas, locais, métodos, características de algo ou alguém etc. Podem ir para um lado mais abstrato da compreensão do ser, como uma teoria ou uma técnica, até mesmo para seres sem existência física, mas que podem ser documentados, como os heterônimos, recursos utilizados por autores com o objetivo de criar um novo ser, diferente de si mesmo. São estratégias de ação que resguardam a identidade do autor/pessoa. Podemos pressupor que o ato de nomear algo ou alguém pode ser compreendido como uma ação política e social, principalmente para grupos sociais historicamente marginalizados por se desviar dos padrões impostos como normais no âmbito da identidade de gênero, como pessoas trans (Silva et al., 2017).
Esse tipo de estratégia política também ocorre em outros âmbitos, como, por exemplo, no campo literário, onde o pseudônimo (como um recurso de criação de uma nova identidade ou, ainda, como um meio de afastamento de uma identidade já reconhecida) já foi exaustivamente utilizado por escritores para inúmeros fins: jornalísticos, memorialísticos, artísticos etc. Como exemplo, nomes artísticos já foram bastante utilizados por mulheres como meio de penetrar em um campo predominante masculino.
Passando da esfera artística para uma esfera social, temos como perceber isso no uso dos nomes, como um registro civil, artístico, social, etc. São recursos, cada um ao seu modo, de como se fazer presente socialmente através da sua nomeação, ou seja, de como gosta ou gostaria de ser percebido pela sociedade.
Dentre essas possibilidades, o nome civil ou de registro é o que equivale ao nome dado ao indivíduo pelos progenitores, ou seja, é o que consta em seu registro de nascimento. Já o nome social, pode ser compreendido como a “[...] designação pela qual a pessoa travesti ou transexual se identifica e é socialmente reconhecida” (Brasil, 2016a). É equivalente à nomeação utilizada pelo indivíduo para se compreender e ser compreendido perante a sua imagem social. Esse nome retificado adquire peso diferente em relação ao seu uso na sociedade, uma vez que que se torna, oficialmente, o nome do indivíduo nos registros civis. Manifestações ligadas a esse tipo de ação podem ser identificadas no movimento LGBTQIAPN+, cuja atuação surge como enfrentamento a discriminações e constrangimentos, sendo o nome social uma das pautas desta luta política.
Nesse sentido, nomes adotados pela comunidade LGBTQIAPN+ podem ser compreendidos como manifestações (políticas, por assim dizer), capazes de classificar ou tornar visíveis pessoas de determinada identidade física e sexual, a qual a pessoa compreende como a que lhe parece mais adequada a si.
O termo transexual se refere ao indivíduo cuja identidade de gênero difere daquela designada pelo sexo físico biológico atribuído no ato do nascimento. Pessoas transsexuais, de modo geral, procuram transicionar para o gênero oposto através de intervenções como a administração de hormônios e a cirurgia de readequação de gênero (Silva et al., 2017). Trata-se de um grupo social que é, ainda, historicamente estigmatizado por desviar de padrões de identidade de gênero impostos como “normais”. As violências são constantes e, de modo velado, as pessoas transgênero acabam excluídas de um convívio social saudável devido às dificuldades de reconhecimento de sua identidade, dificultando seu acesso a serviços de saúde e de assistência social, por exemplo.
No campo da saúde, o uso do nome social surge como um recurso para promover, sem constrangimentos, o acesso das pessoas transexuais aos serviços de saúde permitindo “[...] o acolhimento por parte dos profissionais de saúde e o estabelecimento do vínculo profissional-paciente” (Silva et al., 2017, p. 839), ação importante no que se refere à aproximação e permanência desse usuário junto aos sistemas de saúde e assistência social.
O nome social é dado pessoal, mas possui interesse coletivo, já que a identificação da pessoa, a partir do nome pelo qual é reconhecida perante a sociedade, é informação essencial para o exercício de direitos e o cumprimento de obrigações. Nesta seção, não tivemos a intenção de discutir a questão da identidade de gênero, mas os efeitos do uso do nome como instrumento de reconhecimento da identidade autopercebida.
Mello et al. (2011) ressaltam que estas pessoas não buscam os serviços de saúde apenas para a readequação sexual, mas também quando precisam de atendimento à saúde. Oferecer o uso do nome social a estes usuários oportuniza o acolhimento e cabe ao Sistema de Informação em Saúde (SIS) realizar a coleta de dados, transformando-os em informações relevantes para profissionais de hospitais e clínicas. O acesso ao SIS é compartilhado, permitindo à equipe médica conhecer o prontuário dos pacientes e tomar decisões mais assertivas em diferentes casos. No caso de pessoas trans, a primeira questão é evitar o constrangimento, a discriminação e o preconceito (LGBTfobia). Desta forma, o uso do nome social, tanto de forma oral quanto nos documentos e prontuários, viabiliza o acesso e as protege da segregação do público.
Entende-se como dever do Estado garantir esse direito, cabendo aos órgãos públicos incluir essa informação em seus bancos de dados. Como destacam Silva et al. (2017, p. 838), o nome que uma pessoa transgênero carrega junto ao corpo “[...] opera como constituintes do gênero, faz parte de parte do seu processo de readequação de gênero”. A falha na aplicação desse direito configura uma violência, já que constrange e causa sofrimento à população LGBTQIAPN+ e, principalmente, a afasta do atendimento à saúde e assistência social.
Na seção que segue, atemo-nos a discutir o nome social no quadro das políticas de saúde e assistência social, que são respaldadas nos princípios de universalidade, integralidade e equidade no acesso a esses serviços, o que exige o conhecimento de quem são os atores envolvidos e quais são os artefatos e dispositivos que condicionam esses direitos.
4 O nome social à luz do aporte teórico-analítico de Regime de Informação: o caso dos sistemas de informação em saúde e assistência social
É consenso entre os autores que estudam ou que influenciam os estudos de regime de informação (RI), como Sandra Braman, Bernd Frohmann e Maria Nélida González de Gómez, que identificar as especificidades de fluxos locais de informação e seus nós (elementos, atores) é uma direção para formular e avaliar políticas da informação, já que RI é um aporte teórico-metodológico que viabiliza a compreensão das dimensões políticas, econômicas, sociais e culturais da informação em grupos sociais e organizações.
González de Gómez (2012, p. 43) define regime de informação como o “[...] modo informacional dominante em uma formação social, o qual define quem são os sujeitos, as organizações, as regras e as autoridades informacionais e quais os meios e os recursos preferenciais de informação”. Acrescenta, ainda, que o entendimento de RI envolve um conjunto de redes formais e informais de “[...] relações e agências, estando exposto às condições culturais, políticas e econômicas, que nele [no regime de informação] se expressam e nele se constituem”.
Como destaca Braman (2009), a forma como a informação é produzida, disponibilizada e utilizada atualmente impulsiona e é impulsionada pelos processos sociais. Esses fluxos de informação moldam os sistemas e, então, participam da construção da realidade. O nome de pessoa, enquanto designação socialmente reconhecida que engloba os tipos já mencionados (nome civil, nome social, nome artístico, nome retificado, entre outros), também acarreta efeitos políticos nos sistemas de informação:
A definição de informação como um agente pode ser operacionalizada para instâncias únicas de ação, enquanto a definição da informação como força social constitutiva se aplica ao efeito cumulativo de numerosos fluxos e ações. A informação é não apenas afetada por seu ambiente, mas também afeta seu ambiente (Braman, 2009, p. 19, tradução nossa).
Algumas normativas publicadas a partir de 2009 já regulamentavam o uso do nome social em contextos específicos, como, no âmbito da saúde pública, a Portaria n. 1.820/2009 (Brasil, 2009) que reconhece o uso do nome social nos cadastros do SUS. Como já explicitado, é a partir do Decreto n. 8.727/2016 que o uso da designação pela qual a pessoa transgênero se autopercebe e é socialmente reconhecida nos registros dos sistemas de informação, cadastros, prontuários e congêneres se torna um dever para todos os órgãos da administração pública federal direta, autárquica e fundacional (Brasil, 2016a).
Outro passo importante e com força de lei em direção ao pleno reconhecimento da identidade de gênero é a conquista do direito de alteração facilitada do prenome e do gênero em certidões de nascimento e casamento e, por consequência, outros documentos oficiais do cidadão. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ), dois anos após a publicação do Decreto Presidencial n. 8.727/2016 (Brasil, 2016a), publicou o Provimento n. 73/2018 (CNJ, 2018), que dispõe sobre a averbação da alteração do prenome e do gênero nos assentos de nascimento e casamento de pessoa transgênero, desde que seja maior de idade, diretamente no Registro Civil das Pessoas Naturais (RCPN).
A retificação do nome civil da pessoa transgênero, a partir desta normativa, tornou-se um pouco mais simples, sendo realizada estritamente nos cartórios de registro civil, sem a extenuação dos processos judiciais. Cabe ressaltar que a averbação não é obrigatória às pessoas que fazem uso do nome social e que o direito à substituição de prenome e sexo diretamente no registro civil independe da cirurgia de transgenitalização ou da realização de tratamentos hormonais (CNJ, 2018).
Isto posto, a análise empreendida nas subseções a seguir busca, a partir do aporte teórico de RI, compreendido principalmente em González de Gómez (1999; 2002; 2003), identificar os elementos que compõem o regime e refletir sobre os efeitos sociais, culturais, jurídicos e políticos do nome social, considerando os processos do Sistema Único de Saúde (SUS) e do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), sistemas centrais para a consolidação dos direitos fundamentais de dignidade humana e de saúde.
4.1 Atores sociais
Atores sociais são os indivíduos e organizações que “[...] podem ser reconhecidos por suas formas de vidas e constroem suas identidades através de ações [de informação] formativas, existindo algum grau de institucionalização e estruturação das ações de informação”, que operacionalizam o fluxo de informação, agenciando as ações sociais (González de Gómez, 2003, p. 35). A partir da leitura e da análise dos documentos legais aqui levantados, alguns atores foram identificados, assim como o tipo de ação que mobilizaram, as quais destacamos nesta subseção.
No âmbito da administração pública, podemos reconhecer a ação dos Ministérios da Saúde (MS) e do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS), responsáveis pela formulação e gestão nacional dos sistemas SUS e SUAS, respectivamente.
As competências estaduais e municipais, isto é, secretarias de saúde e de assistência social, centros de referência, clínicas de família e hospitais, por meio de seus servidores (médicos, enfermeiros, assistentes sociais, técnicos, dentre muitos outros), são as que executam in loco as políticas de saúde e assistência social (o que inclui as ações de informação), com serviços de acolhimento, disseminação de informação e acompanhamento dos serviços de saúde e assistenciais prestados a pessoas LGBTQIAPN+, respeitando suas existências e identidades (nome e gênero), como disposto no Decreto n. 8.727/2016:
Art. 2º. Os órgãos e as entidades da administração pública federal direta, autárquica e fundacional, em seus atos e procedimentos, deverão adotar o nome social da pessoa travesti ou transexual, de acordo com seu requerimento e com o disposto neste Decreto. Parágrafo único. É vedado o uso de expressões pejorativas e discriminatórias para referir-se a pessoas travestis ou transexuais (Brasil, 2016a, grifo nosso).
Não podemos esquecer, também, da própria comunidade trans (e seu movimento associativo) que fez e faz parte dos processos que geraram os dispositivos legais aqui mencionados. As ações heurísticas sobre seus modos de vida e identidades devem ser consideradas quando analisamos o regime e as políticas de informação para esse grupo social.
4.2 Dispositivos de informação
Os dispositivos de informação compreendem um conjunto heterogêneo de discursos, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos e proposições filosóficas e morais que limitam as ações de informação. Assim, podem ser considerados mecanismos normativos ou discursivos que condicionam o regime de informação enquanto “[...] matéria informada, mediação maquínica ou como passado instituído do mundo social” (González de Gómez, 1999, p. 5).
Refletindo sobre dispositivos de informação que se relacionam à identidade de gênero a partir do uso do nome social no Sistema Único de Saúde (SUS) e no Sistema Único de Assistência Social (SUAS), é possível elencar algumas normativas que atravessam esse regime (Quadro 1).
Como primeiro dispositivo a condicionar o regime, identifica-se a Constituição da República Federativa do Brasil (Brasil, 1988), também conhecida como Constituição Cidadã, enquanto macropolítica nacional que abarca o direito à Seguridade Social (integrada por Saúde, Previdência e Assistência Social), já que rege todo o ordenamento jurídico brasileiro. Em seu primeiro artigo, a Constituição já estabelece a dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado brasileiro.
Também, cabe destacar o Decreto Presidencial n. 8.727/2016 (Brasil, 2016a) e o Provimento n. 73/2018 (CNJ, 2018) como dispositivos do RI, já que regulamentam o uso do nome social e a retificação do nome civil em cartório.
No campo específico das práticas de saúde, a Carta dos Direitos dos Usuários do SUS, elaborada pelo Conselho Nacional de Saúde (Brasil, 2011, p. 12), determina que nos formulários de haver um campo para o registro do nome social, “[...] sendo assegurado o uso do nome de preferência, não podendo ser identificado por número, nome ou código da doença, ou outras formas desrespeitosas, ou preconceituosas”.
A Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (Brasil, 2013) reafirma os compromissos do SUS de universalidade, integralidade e efetiva participação da comunidade, visando um serviço mais humanizado e adequado ao cuidado com a população LGBTQIAPN+. Ressalta-se que neste documento já se falava em uso de nome social devido à mencionada Portaria n. 1.820/2009 (Brasil, 2009). O decreto de 2016 (Brasil, 2016a) vem ampliar o universo de instituições públicas obrigadas por lei a utilizar o nome social, alargando o reconhecimento da identidade de gênero da pessoa trans em instâncias públicas.
É importante ressaltar que, além de normativas nacionais, pactos internacionais também condicionam o modo informacional dominante. São macropolíticas que funcionam como mecanismos discursivos e afetam a política interna dos países signatários, no sentido de provocar a reflexão ética, moral e cultural dos atores inseridos no regime. González de Gómez (1999, p. 63) explica que são um “[...] conjunto de ações e decisões orientadas a preservar e a reproduzir, ou a mudar e substituir um regime de informação, e podem ser tanto políticas tácitas ou explícitas, micro ou macropolíticas”. Os pactos internacionais estão inseridos na última categoria.
Um importante pacto internacional relacionado a direitos humanos é o Pacto de São José da Costa Rica, ou Convenção Americana de Direitos Humanos, celebrado em 1969. Trata-se de um marco político e normativo de proteção e promoção dos Direitos Humanos nas Américas ao qual o Estado brasileiro aderiu em 1992.
Tanto o uso do nome social quanto a retificação do nome civil são formas de cumprimento da legislação internacional de direitos humanos, em especial, do Pacto de São José da Costa Rica, que impõe o respeito ao direito ao nome (art. 18), ao reconhecimento da personalidade jurídica (art. 3º), à liberdade pessoal (art. 7º) e à honra e à dignidade (art. 11.2) (Brasil, 1992).
4.3 Artefatos de informação
Segundo González de Gómez (1999, p. 5), artefatos também são condicionantes das ações de informação, mas “[...] quando enfatizamos o lado de ‘cultura material’ [...]”. Portanto, como artefatos de informação, são considerados os meios tecnológicos e aqueles “[...] materiais de armazenagem, processamento e de transmissão de dados, mensagem, informação” (Delaia, 2008, p. 40). Isto posto, destacamos dois artefatos percebidos nesta análise: o Prontuário Eletrônico do Cidadão e o Cartão Nacional de Saúde.
O Decreto n. 8.727/2016, que institui o uso do nome social, dispõe que o nome civil do cidadão deve constar nos registros internos dos órgãos públicos para fins administrativos:
Art. 3º. Os registros dos sistemas de informação, de cadastros, de programas, de serviços, de fichas, de formulários, de prontuários e congêneres dos órgãos e das entidades da administração pública federal direta, autárquica e fundacional deverão conter o campo “nome social” em destaque, acompanhado do nome civil, que será utilizado apenas para fins administrativos internos (Brasil, 2016a, grifo nosso).
Respeitando o referido artigo, os dois campos de identificação do cidadão (nome civil e nome social) constam apenas no prontuário eletrônico do cidadão (PEC), plataforma digital que reúne informações sobre o paciente, incluindo seu histórico clínico, que é de acesso exclusivo dos profissionais de saúde.
O Cartão Nacional de Saúde (CNS) é o documento de identificação do usuário do SUS. Tal documento carrega os seguintes dados do usuário: número do registro, nome do beneficiário (sem distinção se o nome é civil ou social) e data de nascimento. O registro interno do cadastro carrega mais informações; mas, no documento físico, não há distinção entre nome civil e nome social; consta apenas o nome do cidadão. A Figura 1, a seguir, ilustra os campos de cadastro no sistema de PEC.
Ressalta-se que a cartilha do SUAS (Brasil, 2016b, p. 7) orienta que “[...] incluir em todos os instrumentos de registro, acompanhamento e monitoramento dos equipamentos da rede de assistência social os campos Nome social, Orientação sexual e Identidade de gênero” qualifica o acolhimento à pessoa LGBT+.
Percebe-se, na Figura 1, que o registro PEC apresenta campos para nome completo e nome social e que não há campo para gênero. Além disso, apesar das recomendações legais e orientações aos funcionários, no sistema de PEC utilizado como exemplo, o gênero, atributo definidor da forma como o sujeito se reconhece socialmente, é uma informação ignorada pelos gestores em saúde, constando apenas o campo sexo.
4.4 Ações de informação
A noção de ação de informação é fundamental nas análises sobre políticas que envolvem informação. “Ação” e “comportamento” são conceitos notadamente relacionados; mas, enquanto comportamento se concentra no que é observável, a ação vai envolver o significado e a intenção daquilo que se pretende alcançar, logo, também abrange o sentido da transferência de informação (González de Gómez, 1999).
As ações de informação, portanto, são as práticas informacionais dos atores inseridos no regime de informação. Segundo González de Gómez (2003), as ações de informação se articulam e se manifestam através de três modalidades: formativas, de mediação ou relacionais.
As ações formativas envolvem a transferência de informação voltada para os grupos de interesse. São ações heurísticas, que têm a finalidade de dirimir as incertezas da vida, para “[...] transforma[r] o conhecimento para transformar o mundo” (González de Gómez, 2003, p. 37). É a ação que se encerra na formação, mas que impacta nas condições institucionais e nas relações socioculturais entre os sujeitos. As ações de mediação são aquelas vinculadas aos fins de outra ação social, isto é, são atividades contextuais, com ação direta no mundo social; seu domínio, portanto, será a práxis. Por último, as ações relacionais são ações com a pretensão de intervenção em outra ação de informação, como na produção de informações sobre ações de informação, ampliando a interação entre os sujeitos (González de Gómez, 2003).
Nos dispositivos analisados (Quadro 1), foram identificadas duas ações formativas:
-
promover oficinas, seminários, debates e congêneres sobre preconceito contra a população LGBTQIAPN+, abordando temas como identidade de gênero e orientação sexual (Brasil, 2016b);
-
promover ações e práticas educativas em saúde nos serviços do SUS, com ênfase na promoção da saúde mental, orientação sexual e identidade de gênero, incluindo recortes étnico-racial e territorial (Brasil, 2013, art. 4º, XIII).
Segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), ao menos 63,6% das pessoas que buscam retificar seu nome civil enfrentam dificuldades de acesso às informações necessárias para organizar o processo, mesmo sendo algo facilitado pelas vias extrajudiciais normatizadas pelo Provimento n. 73/2018 do Conselho Nacional de Justiça, além da barreira do alto custo financeiro do ato (Brasil, 2023). Para retificar o nome civil (uma ação direta no mundo social), a pessoa requerente deve apresentar ao ofício do RCPN uma série de documentos pessoais, certidões cíveis, criminais, eleitorais e trabalhistas, além de pareceres médicos e psicológicos que atestem a transexualidade/travestilidade. Subsequente à averbação da alteração do prenome e gênero, cabe ao requerente a atualização dos documentos pessoais, como RG, CPF, passaporte, dentre outros (CNJ, 2018).
Desta forma, ações de mediação são cruciais. Foi possível perceber algumas ações de informação contextuais e na práxis:
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recepcionar e acolher com escuta qualificada nos equipamentos públicos, oferecendo informações adequadas com base nas demandas dos usuários (Brasil, 2016b);
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informar sobre os processos de retificação do nome civil e sobre o acesso a benefícios, serviços e programas de seguridade social, diminuindo as dificuldades de acesso a direitos (Brasil, 2013; 2016b);
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utilizar adequadamente os campos Nome Social, Identidade de Gênero e Orientação Sexual nos sistemas de informação (Brasil, 2016b);
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participar (a população LGBTQIAPN+) dos Conselhos Estadual e Municipal de Saúde e das Conferências de Saúde (Brasil, 2013; 2016b).
As ações relacionais extraídas da Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (2013) intervêm em outras ações de informação, especialmente na produção de informações. São elas:
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fomentar estudos e pesquisas voltados para a população LGBTQIAPN+, incluindo recortes étnico-racial e territorial (Brasil, 2013, art.º. 4, XII);
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incluir, nos materiais de educação permanente de trabalhadores de saúde, conteúdos relacionados à saúde da população LGBTQIAPN+, com recortes étnico-racial e territorial (Brasil, 2013, artº. 4, XII).
As ações relacionais associam-se, principalmente, às ações formativas por meio de trocas de experiências, discussão e estabelecimento de boas práticas, transformando o agir coletivo.
5 Considerações finais
O uso do nome social é uma alternativa de ação política que se difere das formas de identificação de pessoas que comumente usamos nos sistemas de informação bibliográfica, como os pseudônimos e heterônimos dos responsáveis pela criação artística e intelectual de uma obra. Entretanto, como vimos, os efeitos sociais dessas práticas se aproximam em alguns momentos históricos, como no uso de heterônimos pelas atrizes entre as décadas de 1940-1960 para evitar o constrangimento familiar devido ao forte preconceito contra a classe artística. Buscou-se, assim, contextualizar os efeitos sociais e culturais que cercam a atribuição de um nome, a subjetividade que envolve essa questão e como isso afeta as pessoas transgêneros, já que implica uma nova forma de representação social que demanda direitos garantidos por leis. No campo da saúde e assistência, o nome social evita a segregação e o constrangimento, sendo uma garantia para que pessoas trans procurem e permaneçam utilizando esses serviços.
Procuramos, ao inserir esse tema no campo de investigação da Ciência da Informação, encontrar algumas reflexões e resultados sobre a possibilidade de uso do nome social por pessoas transgênero, algo viabilizado por um conjunto de normas que configuram um interessante instrumento social, fruto de resistência e da ampliação do debate social em vigência.
Encaramos como uma limitação da pesquisa o fato de a análise realizada ser estritamente documental, um aspecto que coloca em xeque se o que é posto em documentos oficiais necessariamente se aplica à realidade. Ainda assim, ressalta-se que a elaboração desses dispositivos normativos (orientações aos servidores e usuários de serviços públicos e leis que garantem o respeito ao nome e dignidade da pessoa humana) é, por si só, uma evidência de mudanças nas condições materiais de existência da população trans, o que fomenta discussões sobre as contradições da sociedade brasileira, que ainda lida com altos índices de LGBTfobia. São violências de toda ordem que levaram à morte 230 pessoas LGBT no Brasil em 2023. Dessas mortes, 184 foram assassinatos, 18 suicídios e 28 outras causas (Observatório [...], 2023).
Neste estudo, foram identificados atores sociais, dispositivos, artefatos e ações de informação que afetam os direitos de um grupo ou formação social específica: a comunidade LGBTQIAPN+, especificamente a pessoa transgênero e seu direito de ter um nome social que expresse sua identidade de gênero. Dentre os dispositivos estudados, destacam-se os normativos, como a Resolução n. 73/2018 do CNJ, que possibilitou a alteração de gênero e de prenome administrativamente em cartórios de registro civil. Sobre os artefatos de informação (cartão nacional de saúde e prontuário eletrônico), a normativa preconiza o uso preferencial do nome social, utilizando-se o registro civil apenas para registros internos. Por fim, destacam-se as ações de informação formativas, voltadas para a promoção de serviços de saúde humanizados, e as de mediação, promovidas por agentes públicos, de modo a garantir a retificação do nome de pessoa transgênero e o acesso a benefícios sociais, como a inclusão nos programas de saúde e assistência social.
Dentre as agências da sociedade civil, temos os Conselhos de Saúde, que contam com a participação de pessoas LGBTQIAPN+. Os conselhos são instituições cruciais no fomento de estudos e no desenvolvimento de materiais para educação continuada dos trabalhadores do SUS e do SUAS e de outros segmentos sociais.
Todos esses elementos fazem parte de um regime de informação, que, no contexto aqui estudado, voltou-se para o nome social, informação relevante para a pessoa transgênero, no sentido de ser o nome um dos elementos constitutivos de sua identidade e dos direitos que lhes cercam, como o direito à saúde e à assistência social, questão que norteou esse artigo.
Como vimos, o uso do nome social tem se materializado em documentos oficiais, como os prontuários médicos e os registros em sistema de assistência social, o que demonstra avanços no campo dos direitos individuais, garantindo o respeito à identidade e privacidade dos usuários.
Reconhece-se no uso do nome social uma alternativa de ação política, que se difere de outras estratégias tanto de produção do conhecimento, como de identidade pessoal, como o uso de pseudônimo, alter ego e heterônimos. Como vimos, recursos de nomeação não são resultado de ações exclusivamente artísticas e literárias, mas é também um meio de representação política e social, através do qual pessoas trans expressam sua identidade de gênero.
Como ressaltado por Braman (2009), a informação é uma força constitutiva na sociedade. O que gostaríamos de salientar é que, independentemente dos fins de uso do nome como uma estratégia de identificação e reconhecimento social e em quaisquer sejam os meios classificatórios requeridos, a sociedade tem como característica a transformação e o movimento dos corpos que nela transitam. Ter instrumentos políticos como os que foram analisados é um meio democrático de provocar o debate e reconhecer que, assim como se estabelecem novos pareceres e patamares sociais em relação a construção dos cidadãos, o que temos é um organismo vivo que se manifesta por meio da cultura e do comportamento, seja pela língua ou pelos costumes.
Referências
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Aqui adotamos o conceito de Foucault sobre o discurso como uma “[...] reverberação de uma verdade que nasce diante dos olhos do próprio sujeito [...] nessa perspectiva, as práticas discursivas caracterizam-se de algum modo como elo entre discurso (enunciações) e prática (práticas sociais dos sujeitos)” (Silva; Machado Júnior, 2014, p. 3).
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2
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Disponibilidade de dados
Não se aplica.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
25 Jul 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
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Recebido
20 Out 2024 -
Aceito
10 Abr 2025


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