Resumo
Esse ensaio teórico problematiza a escrita científica como uma ferramenta para formação de autoria no cenário da pós-graduação stricto sensu. Discute elementos subjetivos inerentes ao processo de formação de pesquisadores e cientistas e circunscreve a escrita como um campo de elaboração dessas identidades. Entretanto, reconhece que os processos de formação dão maior protagonismo ao Ensino da forma, da gramática acadêmica em detrimento dessa dimensão subjetiva. Consideramos que um certo nível de sofrimento precisa ser tolerado, pois trata-se de uma experiência custosa em termos psíquicos o que não quer dizer que violências sejam toleradas no cotidiano da vida ou do trabalho pedagógico. Nesse ensaio a autoria de artigos científicos está em pauta, um gênero narrativo que demanda inteireza em poucas palavras.
Escrita Científica; Pós-Graduação; Sofrimento; Autoria; Artigo
Abstract
This theoretical essay analyzes writing as an element of authorship formation in the context of stricto sensu postgraduation. It discusses the subjectivity involved in the formation of scientists and researchers and analyzes the exercise of writing as a field context for the elaboration of these identities. However, this study recognizes that the training processes give greater prominence to the teaching of form and academic grammar at the detriment of this subjective dimension. We consider that a certain level of suffering must be tolerated because it is a costly experience in psychological terms, which does not mean that violence is tolerated in daily life or pedagogical work. In this essay, the authorship of scientific articles is at stake, a narrative genre that demands completeness in a few words.
Scientific Writing; Stricto Sensu; Suffering; Authorship; Article
Resumen
Este ensayo teórico discute la escritura académica como herramienta para la formación de la autoría en el contexto de la posgraduación stricto sensu. Discute elementos subjetivos inherentes al proceso de formación de científicos e investigadores y circunscribe el ejercicio de la escritura como campo de elaboración de esas identidades. Sin embargo, reconoce que los procesos de formación dan mayor protagonismo a la enseñanza de la forma y de la gramática académica en detrimento de esta dimensión subjetiva. Consideramos que es necesario tolerar cierto nivel de sufrimiento, porque es una experiencia costosa en términos psicológicos, lo que no significa que se tolere la violencia en la vida cotidiana o en el trabajo pedagógico. En este ensayo se cuestiona la autoría de los artículos científicos, un género narrativo que exige exhaustividad en pocas palabras.
Escritura académica; Stricto Sensu; Sufrimiento; Autoría; Artículo
1 Entre a forma e a criação na elaboração de textos acadêmicos
Só tem eu e esse branco e ele me mostra o que eu não sei (Mariana Aydár).
A produção da escrita acadêmica é frequentemente localizada como experiência de fronteira entre os domínios da linguagem, da metodologia científica e das possibilidades de produção subjetiva de uma pessoa em determinado momento de sua vida e reflexo de uma sociedade. Seu exercício promove intenso movimento de afetação desses domínios com potência de transformação de realidades; trata-se de um ato simultaneamente técnico e criador e sua confecção implica no exercício de autoria (Diniz, 2024).
A tradição científica de natureza positivista, que emergiu a partir da modernidade vem, ao longo da história, modelando a comunicação científica de estrutura “universal”, mesmo com a resistência das ciências humanas, há certa hegemonia nas exigentes regras de publicação em periódicos científicos e nos modelos de teses e dissertações. Com essa perspectiva, pode-se observar que a forma e o método assumem um protagonismo em relação à ideia ou à criatividade. Essa modelação formal construída a partir de bases lógicas e filosóficas de um determinado modelo de ciência e de determinados elementos de comunicação (Volpato, 2015), ambiciona alcançar grandes populações independentemente da língua ou da cultura. Há um modo de falar e comunicar as ciências.
A temática sobre o Ensino da escrita científica como um elemento de base na formação em nível superior dado que representa uma etapa fundamental no processo da formação de pesquisadores quer sobre sua prática em métodos estudos, quer em sua dimensão cognitiva e psicológica (Leal, 2023), ou específica em determinada técnica na formação de educadores (Biff, 2020).
Estudos e pesquisas sobre a escrita científica estão presentes em diferentes contextos e campos científicos, seja com indicações quase tutorias sobre o que e como se escrever onde cada qual dá ênfase a suas particularidades, há relativa diversidade de produções com foco variados, desde indicações de boas práticas de redação (Rodrigues, 2021) Educação continuada na vida profissional, até mesmo a presença de indicadores cognitivas psicológicas (Martin, 2018). Porém produções indicam menor destaque aos aspectos da subjetividade, aos aspectos e dimensões psicológicas inerentes as relações entre autores em seus diferentes vínculos acadêmicos, nos remetendo a necessidade deste foco como contribuição central ao campo das ciências humanas e sociais (Soares, 2022).
Assim, todo sujeito disposto a navegar nas águas da ciência confronta-se com o fato de que a forma importa e faz parte da produção de uma comunicação científica.
Mas qual o efeito dessa forma nas pessoas, autores, que produzem conhecimento acadêmico?
Nesse ensaio lançaremos foco na autoria de artigos científicos. Um gênero narrativo, com número de páginas definidas, que demanda o uso de estratégias retóricas na construção textual, com sessões e objetivos definidos dirigidos a especialistas com o propósito de comunicar e registrar o resultado de uma produção científica. Nesse gênero, o percurso inteiro de uma pesquisa precisa estar descrito simultaneamente com poucas palavras e com muitos detalhes. Espera-se encontrar um problema de pesquisa, uma seleção da literatura e de referências atualizada, já que se trata de um documento que tem audiência certa, dado que se dirige a leitores especialistas na temática abordada (Sá, 2012).
Estas regras, da gramática acadêmica, são objeto da aprendizagem dos programas de Pós-Graduação stricto sensu, mas sabemos que conhecer regras gramaticais não faz um bom autor. A construção desse gênero de escrita se desenha no exercício de apresentação pelo autor, de um ponto de vista sobre determinado fenômeno ou dados encontrados, articulado com a literatura pré-existente, com o contexto em que a pesquisa foi realizada e no assumir as lacunas existentes no próprio trabalho. Trata-se de uma estrutura textual de natureza informativa a ser elaborada numa sequência construída de maneira progressiva, clara e lógica (Sá, 2021). Mas o cientista não é um jornalista que descreve informações, seu trabalho de escrita está configurado no exercício de comunicar uma informação e apresentá-la como uma produção de conhecimento, perspectiva que demanda autoria, estilo e eloquência.
Contudo, aprendemos com Foucault (2002), que a experiência de se fazer autor está filiada ao campo da subjetividade e não da técnica. Não é de estranhar que, além da perversa cultura acadêmica e seu narcisismo competitivo, haja tanto sofrimento psíquico atrelado aos processos de escrita científica em geral e com os artigos científicos em particular, dada sua natureza estratégica para a cultura acadêmica.
É esperado que a experiência de autoria no campo da formação stricto sensu se construa a partir da relação com o orientador, aquele a quem se endereçam os primeiros desenhos textuais. Viana (2008) defendia o exercício da orientação como um trabalho coletivo, de coautoria, construído no diálogo entre os atores envolvidos, o orientador, entretanto, posicionado de forma a oferecer, a partir de sua experiência, um olhar crítico, construtivo e promotor da autonomia intelectual do orientando.
Entretando no cotidiano da vida acadêmica pode-se observar que essa função educacional-pedagógica está profundamente atravessada pelo estilo de trabalho de cada orientador. Esse estilo é tecido a partir das experiências pessoais, institucionais e profissionais do professor-orientador, implica a visão de mundo, os valores e crenças sobre o papel e o sentido de ser educador (Viana, 2008). Modela-se assim o manejo dos direitos e deveres e não é incomum, na experiência de orientação, que aqui e ali podemos escutar um colega, um aluno argumentar sobre como o estilo do orientando pode promover bloqueios e sofrimento, mas também e/ou potência no campo da escrita.
Nesse artigo problematizamos a questão do trabalho de orientação e a responsabilidade do orientador de encontrar nesse território pantanoso – e como tal, cheio de vida - um autor, disposto a dar sentido à escrita acadêmica. E propomos pensar sua missão a partir do compromisso de promover saberes necessários para a sua atuação futura como pesquisador e docente, no campo específico de sua pesquisa, mas implicando aí, uma consequente identidade de profissional, uma missão formadora (Lelis, 2024) constituída no espaço-tempo de apoio ao processo de escrita-autora.
A orientação é uma das tarefas docentes nos programas stricto sensu bem particular, pois tem a formação de autores como um objetivo pedagógico implícito, um trabalho que deve ambicionar ensinar pessoas a se autorizarem na autoria e a compreender que a autoria vai além da gramática, considerando a escrita como algo possível de ser realizado por uma pessoa qualquer.
O registro acadêmico por artigo tem potência de grande transformação social quando comunica bem e, nestes casos, assume uma forma de ação na construção social (Sabadini; Sampaio; Koller; Oliveira, 2009) O seu processo de construção tem também grande potência de transformação porque, quando compreendido como processo de subjetivação, o ato de escrever se torna um ato de valorização do campo estético, ético, político, além de uma objetivação produtora de um sujeito de conhecimento, capaz de criar, de se posicionar, de avaliar maneiras de ser e agir. Portanto, alguém não apenas autorizado, mas que se autoriza a constituir um ato de partilha sensível. Há um trabalho, um investimento necessário no campo da escrita para a formação de autores e de consequentes pesquisadores e cientistas.
A escrita está cultural e imaginariamente reservada aos doutos, aquelas pessoas com inteligência acima da média e padrão sofisticado de Educação. Isso contribui de sobremaneira na criação mitológica sobre os padrões de exigência relacionada à escrita e com frequência atribuída à forma. Como é possível fazer caber uma pesquisa, e toda a complexidade envolvida, numa escrita que tem contornos pré-definidos, envolve número de linhas, palavras, descritores, objetivos, perguntas, respostas? Como eu vou caber nesse texto?
Em um texto autoral, você reconhece o autor, o seu percurso e o lugar de onde fala, assim como o seu tempo histórico e sua versão sobre o fenômeno que se propôs a investigar. Com efeito, a dimensão de autoria, a ser enfrentada pelo pesquisador, vai se delinear a partir da versão apresentada por ele ou ela para a história a ser relatada. Uma versão descritiva, interpretativa, que diz da forma, do autor, do pensar e analisa o conjunto do material produzido e as suas leituras sobre o tema, que deverão estar expressas no texto construído.
A confecção de um artigo acadêmico demanda tempo e implicação subjetiva do autor e, portanto, algum nível de sofrimento psíquico é necessário ser tolerado, pois trata-se de uma produção subjetiva de um sujeito que também é marcada por angústia, receios, desejos e reflexões. Importante frisar que quando falamos de um certo sofrimento, não queremos dizer adoecer, mas existem vivências subjetivas que nem sempre são confortáveis, dado o fato de que somos cultura e devido ao imperativo moral inerente a este processo (Silva; Massola; Freller, 2018).
Vivemos, especialmente depois da Pandemia de Covid-19, uma vida de excessos, de trabalho, de responsabilidades, de demandas digitais e de exigências produtivas e no contexto científico-acadêmico isso não é diferente. Essas demandas têm claramente promovido processos sociais de adoecimento psíquico e com grande sofrimento. Em uma leitura sobre a conjuntura contemporânea, Han (2017) afirma essa experiência de excessos fortemente relacionada a um modo de viver em sociedade refém da positivação da vida, à vida movida como uma máquina de desempenho autista. No ensaio denominado “Não-coisas: reviravoltas do mundo da vida” Han (2022), assevera que esse contexto se acentua com a nossa submissão atual ao universo virtual e afirma que nos deslocamos da posição de trabalhadores para a posição de jogadores, aprisionados digitalmente pela informação multiplicada virulentamente pelas redes sociais. Uma informação sem compromisso ético, de natureza descartável, destituída, muitas vezes, de autoria e cotidianamente distante do exercício artesanal e analógico como aprendemos a configurar a produção do conhecimento. Para Han (2017) esse excesso de informação alcança alta velocidade, reproduzindo o igual e gera falta de verdade, falta de precisão ou de legitimidade.
Esse cenário se expande no âmbito dos discursos sobre a ciência que insistem em localizar evidências, muitas vezes duvidosas, promover estruturas de desempenho capitaneadas por grandes grupos financeiros, gerando um grande volume de produção construída sob frágeis alicerces teóricos e metodológicos que carecem de leitura significativa e se mostram com produtivas repetições, que desimplicam os sujeitos do trabalho escrito e apenas convêm ao imperativo produtivista do publique (Silva; Massola; Freller, 2018).
Romper com o modelo produtivista na escrita implica, além de demandar muitas lutas políticas e éticas, o exercício de criar sentido para o ato de escrever e compreender a importância do texto acadêmico como ato de leitura do mundo. Mais do que um “produto” a ser registrado numa plataforma de currículos. O artigo científico enquanto uma prática social de compartilhamento de conhecimento é um ato público e demanda uma tecitura cidadã, ancorada pela ética, pleiteante de certa capacidade de inovação e disposta a apresentar resultados que promovam uma sociedade mais justa e humanizada (Botomé, 2007).
Com essa perspectiva o presente artigo territorializa a formação para escrita científica na Pós-Graduação no campo da complexidade e implicado em distintas dimensões coletivas e individuais. A dimensão coletiva da escrita acadêmica está atrelada às regras, à gramática acadêmica com suas leis, número de páginas, formas pré-definidas, e leituras sobre as lacunas no conhecimento, mas também, às suas implicações sociais, políticas, estéticas e ao seu compromisso em contribuir para o campo em que está inserido o pesquisador e o orientador (Meira, 2016).
A dimensão individual localiza o sujeito de linguagem em ato, num árduo trabalho psíquico, manuseando as suas possibilidades e impossibilidades na articulação de saberes de sustentação do motor da criação ou, como afirma Meira (2016), analisa a dimensão narcísica constituinte da escrita acadêmica. Demanda uma compreensão da escrita-autoral como um trabalho artesanal, que necessita fundamentalmente de tempo fazer, desfazer e fazer novamente, demanda investimento psíquico, temporal com abertura para ser criticado, ressignificado, na busca do melhor texto possível.
Meira (20016) considera que a dimensão narcísica se coloca como um dos maiores inimigo do processo de escrita, na medida em que pode aprisionar o texto aos medos e anseios do autor. A ideia de texto perfeito não é esperada. A condição de imperfeição é aceitável como elemento constitutivo do processo de criação, entretanto textos medíocres são inaceitáveis. Um bom texto não é perfeito, mas tem inteireza, implica reescritas referenciadas, percurso metodológico eticamente descrito e consideram o autor e suas histórias - escolares, acadêmicas, culturais, relacionais -e revela, em alguma medida, suas renúncias, ou seja, suas escolhas de recorte sobre o que pode ou deseja dizer e também o que foi recusado. Constitui-se pela tarefas de escrita e reescrita e de novo escrita e reescrita em um trabalho continuo de refinamento progressivo.
A escrita é um ato decisório, o mais doloroso testemunho da deflação narcísica, afirma também Souza (2018). Para esse autor, o processo de escrita costuma estar emaranhado em “uma teia de encantamentos e sortilégios do caleidoscópio mental no qual as ilusões de segurança se gestam e se retroalimentam” (Souza, 2018, p. 55), representado na conhecida frase “Eu tenho tudo na cabeça. Só falta sentar... e escrever”. Entretanto, entre ter tudo na cabeça e a execução da escrita existe um infinito labirinto de repetições, informações, ideias, promessas, reescritas e medos.
Todo o fazer-tecer textual, assim como toda busca por algum nível de autoria, inscreve algo que é da ordem da repetição do mesmo (Meira, 2016). Aprendemos que repetir, não é a mesma coisa que fazer de novo, pois na repetição você sempre faz outra coisa. A narrativa científica demanda originalidade, mas também contemplar repetições pela própria necessidade de avaliar o que pode ser dito como novo. Austin Kleon (2012), autor do best-seller “Roube Como um Artista”, numa análise referente ao processo criativo, afirma a impossibilidade de construir uma obra 100% original nos dias atuais. Para ele, a cópia é necessária, a cópia referenciada se desloca do processo de criação para o campo da inspiração e localiza o verdadeiro desafio da autoria em aprender a combinar ideias que já existem, de forma a produzir algo novo ao olhar do coletivo.
Esse trabalho-processo de escrita não se efetiva de maneira súbita ou absoluta. Ninguém se senta e escreve (Meira, 2016), trata-se de um processo que envolve, além da ideia, dos dados e da forma, uma lógica, uma estética; uma ética cuja essência está em sua inteireza, isso porque trata-se de um ato inegociável, na medida em que, depois de publicado, não é possível “desinscrever” a escrita (Souza, 2018).
O ato da escrita na formação acadêmica é uma experiência de risco, além dos avaliadores formais (banca, avaliadores de periódicos, etc.) trata-se de um ato de coragem, na medida em que expõe o autor e testemunha o percurso de seu pensamento, as suas referências epistemológicas, o seu compromisso com a ciência em um determinado momento histórico e ambiciona reconhecimento dado que um autor quer ser lido. E como os orientadores preparam seus estudantes para esse ato?
Um cientista se reconhece e é reconhecido a partir de sua produção científica textual. Há uma dimensão narcísica implicada nesse ato. A cultura contemporânea, atravessada pelos valores capitalistas, tem preparado um terreno propício para a exacerbação do sofrimento através do narcisismo, especialmente no insuflar da ilusão de autossuficiência e de um produtivismo de excessos e desarticulado de sentido. Essa premissa localiza a escrita como fonte de narcisismo para uns e de grande sofrimento para outros. Isso evidencia como a natureza do narcisismo de cada autor qualifica o texto e a relação com a escrita.
A experiência da escrita põe em circulação um conjunto importante de funções intrapsíquicas (medos, insegurança, dúvida, pânico, alegria, orgulho, empatia, raiva, etc.). Refere-se a um processo emocionalmente custoso, embora com intensidades distintas que variam da gratificação narcísica até a elaboração de pesados conteúdos mentais que envolvem sentimentos de angústia e conflitos emocionais (Meira, 2016) e também de satisfação frente esses processos nomeadamente maturacionais e os resultados alcançados. Neste sentindo, a produção científica pode ser afirmada como um campo permeado por mobilizações subjetivas, individuais e coletivas e que deveriam estar pautadas no processo formativo. Paradoxalmente, estas experiências são atribuídas ao indivíduo, costumeiramente taxados como frágeis e marcados por diagnósticos patológicos enquanto a dimensão coletiva desses processos tem sido historicamente silenciada.
A ciência é uma atividade coletiva, conduzida por membros de uma comunidade de pesquisadores e/ou estudiosos e os valores dessa comunidade permeiam e caracterizam a ciência que ela produz (Trzesniak, 2009). Um dos aspectos coletivos a ser aqui destacado é como a perspectiva neoliberal, os seus princípios consumistas, produtivistas e competitivos, nos invadiu e passou a regular os processos de construção da ciência e do conhecimento. Contudo, o processo de construção textual autoral percorre outras trilhas, menos quantificáveis, previsíveis ou mesmo imediatas. Em vez de certezas e garantias, o processo de escrita tende a mostrar ao autor como este tem uma promíscua relação com o que não sabe, com suas dúvidas, incertezas e insuficiências que estão à mostra nesse ato. Contudo, do encontro da pessoa e da sua individualidade com esse cenário de complexidades deve emergir um bom texto, suficiente para responder aos altos padrões de qualidade que essa realidade acadêmica-científica impõe ao autor. Nesse percurso, é comum que produção e autor se embaracem, ao que Meira (2016) nos adverte:
Se do texto esperamos a função de completar nossa débil estruturação narcísica, teremos a expectativa de que ele se firme com perfeição. Não obstante, tal anseio se mostra irrealizável [...] logo descobriremos poucos de nossos trabalhos alcançarão tamanha idealização, forçando-nos a equiparar uma ilusão onipotente de realização à realidade daquilo que somos, de fato, capazes de efetuar com qualidade (p. 38).
Para esta autora, a experiência da escrita no contexto acadêmico é simultaneamente custosa e elaborada em termos psíquicos e recomenda que ao autor seja dada a possibilidade de dar a seu texto o “[...] direito à existência tal como seja: incompleto, imperfeito” (Meira, 2016, p. 38) sem com isso aceitar textos medíocres. E ela segue “devemos perseguir o melhor texto, o que é diferente de querer fazer o texto perfeito” (Meira, 2016, p. 38).
E, talvez seja por isso, que se esteja a verificar uma forte adesão ao atual uso dos aplicativos de inteligência artificial neste campo (como o Chat GPT – Generative Pre-Trained Transformer), demonstrando desafios importantes ao processo produção dado uma vez que tais tecnologias tendem ainda mais a equívocos e questionamentos éticos. Ampliando assim a relevância da dimensão humana, na produção de um texto autoral sempre estará construído com furos, incompletudes, singularidades. Implica um estilo, contradições e suscita perguntas.
Dunker (2023) afiança que a peculiaridade da sua experiência com a escrita de autor está no fato de esta ser uma experiência de luto. O seu ato sempre retira algo de si e inventa um vazio, o qual tem a ver com o que poderia ter sido dito (Dunker, 2023, p. 4). Segundo esse autor da psicanálise, a escrita científica é uma experiência de sublimação1, na perspectiva psicanalítica e, também é um modelo de trabalho com o luto, pois para aprender a escrever é necessário aprender a morrer, a fazer o luto de si mesmo, sendo necessário compreender uma dimensão temporal e elaborada.
Essa perspectiva processual e temporal desorienta e perturba os autores quando inseridos neste mundo que constrói sucessos instantâneos. A proliferação de exigências de produtividade e da oferta de veículos diversos bem como de plataformas para distribuir textos criou um excesso de informação, uma subjetividade de viver sendo informada e uma sociedade da informação, forjada constantemente pelo acesso e difusão de textos. O mercado editorial e educacional passou a alimentar este processo e a estimular a escrita e os/as escritores(as) a fazerem um infinito movimento de publicação e de leitura, tornando mercadoria um saber-fazer com potência de transformação, mas que neste contexto pode muitas vezes limitar-se à reprodução.
Para Foucault (2002), a escrita é o resultado de uma operação complexa que edifica um certo ser de razão que se chama de autor, um momento crucial da individualização na história das ideias, dos conhecimentos, das literaturas, das ciências e também do sujeito. O autor é, ele mesmo, efeito de um conjunto de práticas sociais, políticas, econômicas, culturais e históricas. A autoria é um lugar institucional forjado por uma multiplicidade de práticas discursivas e de poder num plano de controle social do discurso e difusão-apropriação. Um sujeito que se propõe a desaparecer – em uma ausência singular – em nome de certa forma de imortalidade que, no caso do pesquisador-autor, o referenciará como cientista.
Aydar, jovem sambista brasileira, em 2009, com a música intitulada “Palavras Não Falam”, parece concordar com Foucault e com Meira, quando fala do processo de criação como um processo de implicação de sujeito, mas propõe abrir mão da dimensão narcísica, como uma alternativa ao enfrentamento do não saber:
Eu não escrevo pra ninguém e nem pra fazer música nem pra preencher o branco dessa página linda
Eu me entendo escrevendo e vejo tudo sem vaidade
Só tem eu e esse branco e ele me mostra o que eu não sei (Aydar, 2009).
2 Considerações Finais
O ensaio pauta os desafios implicados no processo de aprendizagem sobre a escrita acadêmico-científica no contexto da formação stricto sensu. Localiza esse processo como um trabalho que se realiza no campo relacional – orientador-orientando – de enfrentamento de desafios multidimensionais que caracterizam a trilha da formação de autores e demanda tempo, engajamento, esforço, trabalho técnico e disponibilidade psíquica.
A escrita acadêmica de artigo científico está apresentada como uma experiência que desacomoda o autor de sua zona de conforto pois o coloca frente ao estado de não saber, de indefinição e de renúncia na medida em que no processo emergem certezas quanto a incompletude do saber, a impossibilidade de afirmar verdades ou de ter lido tudo que considerava necessário. Assim, o processo de escrita vai delatando ao autor seus desconhecimentos, suas fragilidades e com isso fazendo feridas narcísicas que desfiguram a visão idealizada que o autor tem sobre si no início do processo (Meira, 2016).
Para Dunker (2023), esse processo demanda, do autor, tempo, elemento crucial para essa experiência de escrita. Um tempo que não está constituído a partir do número de horas, mas um tempo lógico. Um tempo de trilhamento, pois busca-se o tempo de começar, o tempo de encontrar o texto, um estilo, um tempo de concluir, um tempo que não oferece sucesso instantâneo, mas pelo contrário, onde se faz-refaz muitas vezes. Demanda também um tempo contínuo, que possa dar conta do tempo de transformar uma escrita roubada (Kleon, 2012) em uma escrita com sentido, uma escrita repetida em um texto singularizado.
Meira (2016) destaca o exercício de despir-se do narcisismo para que o texto possa não ser pensado como texto pronto no início do trabalho. A escrita é exercício de trilhamento, faz-se necessário tolerar insuficiências, faltas e eventuais perdas de sentido possibilitando assim ao autor deixar-se ir sendo habitado pelo texto e com isso encontrar um tom para o diálogo entre os resultados da pesquisa, a literatura encontrada e o olhar singular, localizando a escrita em uma dimensão de realidade e uma materialidade sustentada pelo ato analítico crítico, potente e autoral.
Com efeito, a dimensão de autoria, a ser enfrentada pelo pesquisador, vai se delinear a partir da versão apresentada por ele ou ela para uma história a ser relatada. Uma versão descritiva, interpretativa, que diz da forma, do autor, de pensar e analisa o conjunto do material produzido, seus referenciais teóricos e epistemológicos, assim como os diálogos construídos com o orientador.
O artifício da textualidade e polissemia discursiva está colocado no campo da formação, tem natureza complexa que não está contemplada no Ensino sobre modos instrumentais de saber fazer artigos. Nesse contexto de sociedade positiva, de ciência positiva, uniformizada, que se esforça por evitar qualquer tipo de negatividade, propomos um desconcerto no processo de formação de estudantes de pós-graduação.
Compreendemos que o cenário subjetivo que envolve a formação do pesquisador ultrapassa racionalidade métrica, supostamente representativa e generalizável, sobre o que há a ser ensinado e toma os processos de escrita como campo de deslocamento formativo dando protagonismo ao autor num conjunto complexo de elementos afetivos que precisam ser legitimados como elementos formativos. Este, contudo, não pode pretender ser um fazer imparcial, o ajustamento mecanicista e linear de dados e de condutas.
A publicação tem o desafio de fazer circular o conhecimento científico e quando aliada a fins narcísicos não nos interessa nem é o que defendemos neste trabalho. Não se objetiva aqui traçar verdades e disputar algum nicho de mercado ou de privilégio-destaque. Considera-se mais profícuo propor uma prática de transformação da vida, das realidades e existências por meio da escrita e publicação que extrapola indicadores acadêmicos e massa de dados abstratos, apresentados em tabelas e ou gráficos (Günther, 2006), prontos a serem descartáveis frente ao próximo estudo.
Com essa perspectiva, esse ensaio problematiza os elementos subjetivos inerentes ao processo de formação de pesquisadores e cientistas, circunscreve a escrita como um campo de elaboração dessas identidades. Destacamos que um certo nível de sofrimento precisa ser tolerado, pois trata-se de uma experiência custosa em termos psíquicos mas reconhece o exercício de invisibilização desses elementos e a necessidade de desenvolvimento de estudos sobre a dimensão coletiva implicada nesses modos de sofrer que frequentemente deixam os estudantes abandonados às suas angustias narcísicas como se fossem elas as únicas responsáveis por isso.
Nesse ensaio, o processo de aprender sobre a autoria no campo do texto acadêmico-científico, pode promover satisfação narcísica, reconhecimento social, mas implica certo nível de sofrimento, renúncia e implicação psíquica desenhando uma ideia de que a experiência de aprendizagem nesse contexto pode promover deslocamento subjetivo (trilhamento) do lugar de estudante/profissional para um lugar de autoria, necessário a um pesquisador.
Nesse cenário sofrimento psíquico é considerado um fenômeno complexo e multifacetado a ser considerado como objeto do processo de emergência de um autor no campo da ciência. Isso porque essa experiência implica processos subjetivos complexos como perdas, luto, dificuldades de relacionamento, além das dimensões cognitivas e educacionais que são amplamente discutidas pela literatura.
O processo de escrita acadêmica-científica, para além da gramática ortográfica e acadêmica está associado a experiência de aprender sobre si, em especial sobre a possibilidade ou impossibilidade de não saber. Perspectivas estas que estão na base da construção do conhecimento científico e princípio comum as diferentes concepções de ciência inerentes no universo acadêmico.
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Disponibilidade de dados:
Todo o conjunto de dados utilizado está inserido dentro do próprio artigo.
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
28 Out 2024 -
Data do Fascículo
Oct-Dec 2024
Histórico
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Recebido
31 Maio 2023 -
Aceito
12 Set 2024