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Por que não fazemos como a Coreia?

Why can't we do as Korea did?

¿Por qué no hacemos como Corea?

Resumos

A Coreia virou o farol que iluminaria a trajetória de todas as nações que querem avançar a sua educação. É um caso rematado de transformação radical. De país devastado pela guerra e educacionalmente estagnado, passa a liderar o globo na cobertura e qualidade da sua educação. E junto vem o desenvolvimento econômico. Isso tudo é verdade. Mas é copiável? Como a China e o Japão, trata-se de uma civilização milenarmente avançada, com realizações expressivas na administração pública, Educação Superior e inovações tecnológicas. Só a lista dessas proezas já sugere que podemos aprender algo, mas nossa cultura (ou incultura) é profundamente distinta. Portanto, não saberíamos adotar muito do que fizeram.

Modelo coreano; Acesso; Qualidade


Korea has become the source of inspiration to all countries which want to improve their education. In fact, its radical transformation is a well-known success story. From a country devastated by wars and stuck in its education, it is now in the leading edge in coverage and quality of its education. And economic development followed these advances. All this is correct. But can other nations reproduce it? As China and Japan, Korea is a country with several millennia of civilization. Its achievements range from public administration, higher education and technological innovations. Perusing the list of its advances, it seems that we can learn something. But our culture (or lack of it) is particularly different. Countries such as Brazil would not be able to successfully copy much of what Koreans did.

Korean model; Access; Quality


Corea se transformó en un farol que iluminaría la trayectoria de los países que tratan de desarrollar su educación. Es un caso clásico de transformación radical. De un país devastado por guerras y mediocre en su educación, se convierte en líder mundial en la cobertura y la calidad de su enseñanza. Y junto con ello se origina el desarrollo económico. Todo esto es verdad. Pero, ¿se trata de un modelo copiable? Así como China y Japón, Corea es una civilización avanzada desde mucho tiempo atrás, con éxitos impresionantes en administración pública, educación superior e innovaciones tecnológicas. Sólo recordar esas hazañas ya nos sugiere que podemos aprender algo, pero hay que tener en cuenta que nuestra cultura (o incultura) es muy diferente. No es el mejor modelo para nosotros.

Modelo coreano; Acceso; Calidad


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Por que não fazemos como a Coreia?

Why can't we do as Korea did?

¿Por qué no hacemos como Corea?

Claudio de Moura Castro

O autor é Assessor Especial da Presidência do grupo Positivo. Mas, obviamente, o presente ensaio reflete apenas a sua própria opinião

RESUMO

A Coreia virou o farol que iluminaria a trajetória de todas as nações que querem avançar a sua educação. É um caso rematado de transformação radical. De país devastado pela guerra e educacionalmente estagnado, passa a liderar o globo na cobertura e qualidade da sua educação. E junto vem o desenvolvimento econômico. Isso tudo é verdade. Mas é copiável? Como a China e o Japão, trata-se de uma civilização milenarmente avançada, com realizações expressivas na administração pública, Educação Superior e inovações tecnológicas. Só a lista dessas proezas já sugere que podemos aprender algo, mas nossa cultura (ou incultura) é profundamente distinta. Portanto, não saberíamos adotar muito do que fizeram.

Palavras-chave: Modelo coreano. Acesso. Qualidade

ABSTRACT

Korea has become the source of inspiration to all countries which want to improve their education. In fact, its radical transformation is a well-known success story. From a country devastated by wars and stuck in its education, it is now in the leading edge in coverage and quality of its education. And economic development followed these advances. All this is correct. But can other nations reproduce it? As China and Japan, Korea is a country with several millennia of civilization. Its achievements range from public administration, higher education and technological innovations. Perusing the list of its advances, it seems that we can learn something. But our culture (or lack of it) is particularly different. Countries such as Brazil would not be able to successfully copy much of what Koreans did.

Keywords: Korean model. Access. Quality

RESUMEN

Corea se transformó en un farol que iluminaría la trayectoria de los países que tratan de desarrollar su educación. Es un caso clásico de transformación radical. De un país devastado por guerras y mediocre en su educación, se convierte en líder mundial en la cobertura y la calidad de su enseñanza. Y junto con ello se origina el desarrollo económico. Todo esto es verdad. Pero, ¿se trata de un modelo copiable? Así como China y Japón, Corea es una civilización avanzada desde mucho tiempo atrás, con éxitos impresionantes en administración pública, educación superior e innovaciones tecnológicas. Sólo recordar esas hazañas ya nos sugiere que podemos aprender algo, pero hay que tener en cuenta que nuestra cultura (o incultura) es muy diferente. No es el mejor modelo para nosotros.

Palabras claves: Modelo coreano. Acceso. Calidad

1 Introdução

Subitamente, a Coreia virou o farol que iluminaria a trajetória de todas as nações que querem avançar a sua educação. Escritos do Banco Mundial mostraram as maravilhas da Revolução Educativa coreana e o esplendoroso desenvolvimento econômico que dela resultou. A imprensa mundial gostou do novo paradigma e vem repetindo a cantilena já faz tempo.

Não há como negar o espantoso avanço coreano, inicialmente na matrícula, mas seguido de crescimento na qualidade do ensino. À primeira vista, melhor não poderia ser. É claro, no mundo real, nem tudo vai às mil maravilhas. Há os problemas clássicos do exagero. Os alunos e pais que se suicidam, pelo excesso de pressão para o sucesso acadêmico. A ênfase exagerada nas provas tampouco pode ser uma obsessão livre de efeitos colaterais.

Seja como for, é um caso rematado de transformação radical. De país devastado pela guerra e educacionalmente medíocre, passa a liderar o globo na cobertura e qualidade da sua educação. E junto ao ensino superlativo, vem o desenvolvimento econômico.

Portanto, há óbvio interesse em estudar em profundidade o caso coreano. Podemos aprender muito com ele. O presente ensaio não se pretende um estudo acadêmico clássico. De fato, não passa de uma observação sistemática do desempenho da Coreia, usando a bibliografia usual, com o contraponto de observações pessoais.

2 Coreia: a fênix que renasce das cinzas?

É admirável o que aconteceu na Coreia, a partir de 1960, após a guerra civil que dilacerou o país e consolidou a separação entre Norte e Sul. Obviamente, todo o foco será na Coreia do Sul, pois a do Norte não parece oferecer exemplos atraentes.

Quem se senta à mesa em um restaurante em Seoul, receberá "pauzinhos" de metal, em vez dos usuais em madeira, da tradição chinesa. Isso porque a devastação dos bosques durante a guerra foi tão severa que não havia madeira disponível para uns míseros chopsticks. Embora não falte mais madeira hoje, o hábito ficou como testemunha da vastidão da calamidade.

É fato bem documentado que, após a guerra civil, a Coreia tinha uma renda per capitamenor que Gana e, apenas marginalmente, superior a da Índia, então, um dos países mais pobres do mundo. Hoje, a Coreia ombreia-se com as nações mais ricas, e algumas de suas empresas estão liderando o mundo com seus produtos inovadores. Em 2012, a renda per capita atinge US$32.000, o equivalente à média da Comunidade Europeia.

Mas desde já, modus in rebus, lembremo-nos do milagre alemão. Ao terminar a Segunda Guerra Mundial, o parque produtivo alemão estava destroçado. Era um país mais pobre do que a Argentina. Mas em dez anos, recupera sua liderança histórica. O mesmo com o Japão. Não levou muito tempo para mostrar de novo a pujança industrial que, no início do século XX, havia permitido ocupar boa parte da China e derrotar o Império Russo.

De certa maneira, a situação da Coreia do Sul é similar. Ao fim da guerra civil com o Norte, estava devastada. Portanto, algum tipo de recuperação era esperado.

Sendo assim, estas três comparações clássicas tomam como ponto inicial períodos atípicos, estando os países tão tragicamente destroçados quanto jamais estiveram. Isso relativiza o valor das proezas subsequentes – embora continuem admiráveis. Na próxima seção, mostraremos a trajetória histórica da Coreia. Para comparar com o Brasil, vale antecipar que exibe cinco mil anos de História. É um país com mais de mil anos de integridade territorial e com uma longa tradição na educação, na cultura, na ciência, nas artes e na manufatura. E mais ainda, que teve governos fortes, tecnicamente competentes e capazes de liderar o país por longos períodos.

Não se trata de glorificar a Coreia, mas de entender a natureza das diferenças. Ela tem muitos telhados de vidro, e que não serão aqui tratados, pois o objetivo do ensaio é mostrar o percurso histórico que explica o seu sucesso recente.

3 Cinco mil anos de história

Como a China, a Coreia tem cinco mil anos. De certa maneira, pode ser considerada uma extensão da China. É até possível ir a pé, pois são vizinhos. O fato de ter uma língua diferente não significa muito, pois há 292 línguas na China, sendo o coreano uma delas, pois é falado em algumas de suas províncias. Ou seja, a difusão da cultura e tradições chinesas não dependeu da existência de uma língua falada comum.

De fato, no passado, a Coreia foi um protetorado chinês. Portanto, permeável a tudo o que acontecia na China. Talvez exagerando, nos seus períodos formativos, a Coreia não era menos China do que algumas de suas províncias mais distantes.

Sendo a China o país mais avançado do mundo, durante milênios, a Coreia se beneficiou da vizinhança. Por muito tempo, importou a cultura, as artes e as tecnologias de manufatura. A língua escrita chinesa foi, até recentemente, uma referência intelectual na Coreia. Nada de bizarro, pois o mesmo aconteceu com o latim na Europa, muitos séculos depois das invasões romanas. Apenas para ilustrar, a mecânica clássica de Newton foi escrita em latim, um milênio após a dissolução do Império Romano.

Como fizeram os povos europeus que adotaram o alfabeto latino, os caracteres chineses foram usados para grafar a língua local, permitindo a criação de escolas e a ampliação das linhas de comunicação. Linguistas afirmam que quase a metade das palavras coreanas tem algum parentesco histórico com suas correspondentes chinesas.

Nota-se que o chinês escrito sempre foi o mesmo para todas as províncias, mesmo aquelas onde se falam dialetos aparentados ao turco – como o Cazaquistão, o Uzbequistão e o Quirguistão. Sendo predominantemente ideográfico, o chinês pode ser lido por quem não fala Mandarim. Da mesma forma que, para os chineses com outras línguas e dialetos, o chinês escrito deu aos coreanos fácil acesso à cultura e à sociedade chinesas.

A partir do século II a.C., o território que corresponde à Coreia de hoje, adotou da China o Budismo, o confucionismo, e estilos avançados de governo. Na verdade, muito do que o Japão aprendeu com a China – e não foi pouco – veio através da Coreia. Em outras palavras, entre a China, o Japão e a Coreia houve um compartilhamento cultural enorme. Mas sempre originando-se da China. Os outros eram os primos pobres.

Como a China, trata-se de uma das nações mais antigas do mundo, com mais de mil anos de integridade territorial. Com efeito, por volta do ano 1000, a nação integra os três reinos existentes e toma a forma que permaneceu até a retirada japonesa.

Obviamente, conviver com os vizinhos chineses, japoneses e russos nem sempre foi tranquilo. Exércitos desses países rondaram a Coreia e abundaram as escaramuças e tentativas de invasão. Exceto, contudo, pela ocupação japonesa, mencionada adiante, quando o país manteve sua independência; e, sobretudo, o seu isolamento em relação ao Ocidente.

A partir do ano 100 d.C., a Coreia se consolida como um território com vida própria e dinastias reinantes relativamente sólidas. Lá pelo quarto século da era cristã, começa um processo de amadurecimento institucional. Esse é o período conhecido como o Período dos Três Reinados, que durou do século IV ao VII d.C. Durante este período, os reinos de Goguryeo, Baekje e Silla disputaram o controle da Península.

Lá pelo fim do século IX, há a unificação, sob o controle da Dinastia Goryeo. Corresponde a essa unificação, um avanço considerável em todos os setores.

Há um substancial esforço de codificação das leis, a introdução de um serviço público organizado e a forte presença do budismo. Vale mencionar que Koryeõ dá origem à palavra Coreia, denominação do país no mundo ocidental.

Em 1392, Yi Seong-gye funda a Dinastia Joseon. Sua longevidade é impressionante, pois só desaparece com a anexação da Coreia pelo Japão, em 1910. Contudo, no século XIX, a casa reinante dá mostras de exaustão e decrepitude. Aumenta a corrupção, os privilégios se descolam do mérito e há inúmeras tentativas de desestabilização, incluindo o assassinato da princesa Myeongseong, em 1895.

É curioso notar o paralelismo desta decadência com o que ocorria na China, pilhada sistematicamente pelos países imperialistas da Europa e pelos Estados Unidos.

Na Coreia e na China esboroam-se as instituições e cai a capacidade de resistência aos assédios de fora, incluindo as pressões crescentes do Japão. Mas, não obstante, a fragilidade institucional do governo coreano é um período de fortes avanços econômicos e educacionais.

O Japão é um caso diferente. Com a restauração da dinastia Meiji, o país se moderniza e se consolida institucionalmente. Com sua temível esquadra, as visitas do Comodoro Perry, em 1852 e 1854, ameaçam a tradição de isolamento do país. Finalmente, aos novos governantes se convencem de que o isolacionismo traria consequências trágicas, pela vulnerabilidade do país, diante de nações ocidentais no apogeu de sua Revolução Industrial e poderio militar. Como estratégia de sobrevivência, o Japão moderniza-se e industrializa-se.

Como sugere Toynbee, um país que havia resistido por longo tempo aos assédios culturais do Ocidente, viu as vantagens de aprender sobre tecnologia com a sua nêmesis. Era mais prudente importar a tecnologia e tornar-se econômica e militarmente forte. Optou-se pela síntese: cultura japonesa e tecnologia ocidental. O Japão abre então seletivamente suas fronteiras, além de enviar milhares de estudantes, engenheiros e diplomatas para a Europa. Importa também muitos professores de inglês. Como resultado, rapidamente se industrializa, tornando-se um rematado aprendiz de nação imperialista.

Os primeiros alvos são a Manchúria, a China e o extremo oriental do Império Russo. Suas vitórias lá são acachapantes.

Em estilo mais suave, acontece na Coreia uma abertura forçada para o Japão. Não foi muito diferente do que ocorreu na China, arruinada pelas guerras do ópio e que não pode resistir ao imperialismo Ocidental. Como a China, a Coreia não era um adversário preparado para resistir. Desde a segunda metade do século XIX, a cobiça japonesa rondava o país, mesclando diplomacia com ameaças bélicas. Sua presença torna-se cada vez mais poderosa.

Em 1905, unilateralmente, o Japão declara à Coreia um protetorado. Em 1910, passa a controlar o país através de um governador enviado por Tóquio. Essa ocupação militar permanece até 1945, e é somente desfeita com a rendição japonesa.

De todos os períodos históricos da Coreia, a ocupação japonesa é a que recebe interpretações mais controvertidas, sejam dos historiadores ocidentais, sejam dos próprios coreanos, cujas versões não são sempre tão pessimistas com relação ao mal que fizeram os japoneses.

É fato que houve uma presença nipônica ditatorial. É fato que o país foi usado como celeiro de grãos e de mão de obra. E também, como base industrial, para abastecer o esforço de guerra. Sua geografia serviu de proteção contra as incursões americanas.

É também indisputável que o país foi obrigado a adotar o japonês como língua oficial e que os coreanos passaram a ter nomes nipônicos. Há disputas sobre o número de coreanos levados ao Japão para colaborarem no esforço de guerra ou, mesmo, de conscritos no Exército e mandados para o front. Dados oficiais mencionam 670,000 coreanos enviados para o Japão. Foram registrados 270 mil coreanos mortos na guerra. Muitos foram também para as tropas de ocupação no Norte da China. É também aceito sem contestação que até a metade das terras passou às mãos de agricultores japoneses.

Porém, a regência japonesa trouxe também benefícios econômicos substanciais. A agricultura avançou. De fato, a presença japonesa na agricultura permitiu a eliminação de uma classe de proprietários ausentes, uma situação clássica em muitos países, e sempre prejudicial. Instalou-se um parque de indústrias pesadas, com a correspondente expansão de uma rede ferroviária admirável. Novas instituições públicas foram implantadas, seguindo modelos japoneses, ao que parece, com efeitos positivos.

Continuaram-se os esforços de alfabetização, iniciados na segunda metade do século XIX. O ensino técnico para ocupações simples deu um grande salto. Nada disso pode ser ignorado. Mas, é também fato que permaneceram atrofiadas a educação de nível mais elevado e a real universalização da escola.

O protetorado japonês foi sensível às pressões políticas e às diversas tentativas de rebelião. Não ignorou o nacionalismo coreano. Negociou, fez concessões e voltou atrás em medidas impopulares. A própria adoção da língua japonesa não foi linear e universal. Muitos coreanos que migraram para o Japão não retornaram após a guerra, como poderiam haver feito.

O presente ensaio não tem como meta passar julgamento nos prós e contras desse período tão controvertido. Entre outras coisas, falta autoridade ao autor. Fica apenas a conclusão de que os avanços ficaram aquém do que prenunciava a trajetória do século XIX. Mas, tampouco, foi uma completa estagnação ou retrocesso.

Com o fim da guerra, em 1948, entraram no país as tropas de ocupação americanas. Como no Japão, elas impõem uma reforma educativa bastante arrojada, obviamente, inspirada no seu próprio modelo de educação universal.

Ao contrário da China e do Japão, amedrontados por avanços militares formidáveis por parte do Ocidente, para a Coreia, os Estados Unidos foram seus libertadores. Não apenas isso, mas a penetração dos Metodistas e Presbiterianos, já no século XIX, abre as portas para uma aproximação menos hostil.

Eclode, então, a Guerra da Coreia, em 1950, com a invasão sino-soviética do Paralelo 38. Aumenta, então, a presença americana no Sul, seja com o esforço bélico, seja com o auxílio econômico. Com a Guerra Fria, em termos per capita, o auxílio americano atinge níveis que não foram igualados em outras nações, antes ou depois. Expande, também, o investimento estrangeiro no seu parque industrial.

Foi um período de muita confusão no país. Os níveis de moralidade pública e privada afundaram. Um conhecido que serviu nas tropas de ocupação americanas rememorava o desaparecimento de um tanque de guerra, furtado dentro do quartel.

Mas havia muita energia represada. Era grande a vontade de superar os anos de ocupação e mediocridade.

É sob esse cenário que começam a acontecer os processos de avanço econômico e educacional que deram à Coreia a visibilidade que tem hoje.

4 Instituições e sociedade

Vale a pena chamar a atenção para um traço muito marcante das duas Coreias: a sua homogeneidade étnica. De fato, estudos confirmam ser uma das nações com DNAs menos misturados. Supõe-se que foram populações originárias da Manchúria que povoaram a Península. Não são propriamente chineses, mas bem próximos.

Não vai da parte deste autor qualquer inferência quanto às vantagens ou desvantagens intrínsecas de uma nação ser formada por gentes com um DNA muito homogêneo. Mas quando isso se torna um tema nacional e um argumento político para a agregação da sociedade, a pureza racial precisa ser levada em consideração.

Relevante no caso é a homogeneidade da cultura, como argumento para a construção de uma identidade nacional, por parte dos seus governantes. Desse ponto de vista, a semelhança com os valores instilados na população chinesa é muito grande. E não é por acaso, pois a superioridade chinesa e a proximidade física plasmaram a nação coreana com suas tradições e valores.

O Budismo preenche o espaço da fé e da religião. O confucionismo molda o caráter nacional com seus valores tradicionais. O respeito aos mais velhos e a autoridade foram e são traços muito fortes. Ganha legitimidade a disciplina individual, mas também se abre o espaço para a aceitação de regimes autoritários, sejam eles justos ou não.

Nas chamadas versões neoconfucionistas, trazidas para o país por volta do ano 1000, a noção de bem comum é reforçada. Conta a sociedade e não apenas a família. São ideias muito próximas àquelas hoje colecionadas sob o termo cidadania.

Visitei uma escola técnica em Seoul, justamente em um dia em que houve problemas com os encanamentos, resultando na interrupção no fornecimento de água. Como a escola tinha uma residência para alunos estrangeiros, em solidariedade aos alunos privados de água corrente, o diretor passou a dormir no seu gabinete, pela duração do conserto.

Sendo um país de poucos recursos naturais e densidade demográfica gigantesca, o asceticismo da sociedade sempre foi um traço inevitável. A chegada dos missionários presbiterianos e metodistas abre a sociedade para ideias alienígenas, mas reforça a mesma ideologia de desprendimento, disciplina, valorização do trabalho e glorificação do sucesso material.

Por volta de 1960, um economista como Kenneth Boulding notou as semelhanças entre os princípios do protestantismo e as normas de vida japonesas – de resto, muito parecidas às chinesas e coreanas.

Em contraste, as liberdades individuais, cíclicas na civilização ocidental, sempre estiveram conspicuamente ausentes em sociedades como China, Japão e Coreia. Só na segunda metade do século XX, esse quadro começa a mudar, apenas no Japão e Coreia, com a influência da Europa e dos Estados Unidos.

Um tema que vem à mente é a contribuição das liberdades pessoais para o desenvolvimento econômico. Outro igualmente delicado é se a liberdade merece sacrifícios na prosperidade material. Difícil encontrar dilemas mais explosivos e controversos. Portanto, não cabe aqui mais do que registrar a tradição milenar de uma sociedade que aceita a submissão dos seus cidadãos aos desígnios de algumas ideias de bem comum ou, mesmo, os abusos de governos despóticos. Na Coreia, as liberdades individuais só entram em cena depois de consolidada a Revolução Industrial.

Um aspecto central do que foi herdado da China está nas tradições de governo. Faz parte da cultura a responsabilidade e o zelo pelo bem estar dos seus cidadãos, ideologicamente esperados dos governantes. De fato, faz dois mil anos; prevalecia na China oficialmente a doutrina de que os governantes tinham como primeira obrigação cuidar bem do povo. Se isso não acontecesse, era justo e esperado que fossem depostos. Ideia tão radical não chega à civilização ocidental senão milênios mais tarde – a desobediência civil proposta por Thoureau (1817 – 1862) talvez seja a manifestação mais explícita desse princípio.

A administração pública coreana tomou seriamente emprestada as tradições chinesas, sobretudo, a partir do período que corresponde ao início da era cristã. Como a China, a Coreia sempre teve um governo forte e presente. Estabeleceu-se a tradição de um Estado com muito poder de regulação.

Comentando sobre o que viu na década de 1970, o economista britânico Tony Michell encontra que, embora o governo esteja sempre se imiscuindo na vida da sociedade, a aplicação das regras era feita com mais flexibilidade do que no Reino Unido.

Mas isso tudo vem de longe. Não é fruto do militarismo que se engendra na guerra com o Norte. Contudo, foi muito marcante a presença militar na liderança política nos 17 anos pós-armistício. Suas pegadas ainda são visíveis nos governos subsequentes e nos estilos da sociedade.

Em um hotel de Seoul, quando um hóspede sinaliza seu desejo de perguntar alguma coisa a um bellboy, este ou esta vem literalmente correndo, e não andando. Pode ser um resquício militarista, pois mesmo no Exército Brasileiro, soldados devem vir correndo atender a chamados de oficiais.

Muito cedo na sua história, a China adota um estilo de governo que hoje chamaríamos de tecnocrático: tem amplos poderes, quem sabe, e se preparou para mandar. Um elemento central da burocracia chinesa é o intelectualismo dos seus dirigentes. Ou seja, são cultos, versados nas leis, na História e no confucionismo. Em muitos casos, versados nos clássicos chineses.

De uma forma ou de outra, a Coreia é permeável a esses estilos de governança. Para conseguir quadros tecnicamente competentes, no ano de 958, o Imperador coreano Kwangjong traz da China os exames para entrar no serviço público. É o seu assessor chinês Shuang Chi o responsável pela importação do sistema que ficou conhecido como Kwagõ.

No caso chinês, tratava-se de uma prova, para a qual os candidatos se preparavam por décadas. Nela, havia que escrever um ensaio, examinando o problema proposto de três maneiras diferentes. Os aprovados se tornavam governantes de províncias remotas e, se competentes, progressivamente eram transladados para locais mais desejáveis.

Um aspecto admirável do sistema é que, por lei, elimina os privilégios de nascimento. Quem passar na prova entra para o serviço. A partir de certo momento, não houve mais restrições a quem poderia fazer a prova.

Mas o sistema não era tão perfeito, pois sendo muito difíceis e muito competitivas as provas, as famílias ricas e educadas tinham os meios para preparar melhor os seus filhos. Nada diferente do que temos hoje, no mundo todo. Abre-se a porta da mobilidade social, mas não se escancara.

Essa tradição migrou para a Coreia, tanto na presença de quadros intelectualizados, como no mesmo estilo de prova. No século VII, o Kwagô aparece, ainda embrionário. Sua implementação definitiva só se dá a partir do século X, com a Dinastia Kôryo. Seus contornos permaneceram vigentes até a ocupação japonesa. Em outras palavras, o princípio meritocrático para a entrada no serviço público toma pé no país, muito cedo na sua história. Mesmo na Europa, isso não acontece, senão muito mais tarde.

Havia várias provas com níveis diferentes e conteúdos também distintos. Algumas, para acesso às posições mais elevadas do serviço público, incluíam os clássicos chineses.

Obviamente, os militares também eram selecionados com base em provas teóricas e práticas. Na parte prática, deveriam ser capazes, por exemplo, de cavalgar e, ao mesmo tempo, manejar competentemente o arco e flecha. Os aprovados passavam para a prova teórica, sendo exigido que conhecessem os ensinamentos de Confúcio, bem como os autores militares clássicos.

Os testes mais difíceis duravam três dias, permanecendo os candidatos em cabanas individuais, sob o controle de guardas armados, para evitar fraude. Em outras palavras, ao contrário da Europa, muito cedo na sua história, China e Coreia eliminam o compadrismo no acesso ao serviço público.

Como grande generalização, pode-se dizer que dos governantes se espera um alto nível de responsabilidade, diante do cargo. São burocracias muito dedicadas, sofisticadas e cientes de sua missão de zelar pelo bem comum.

Em períodos recentes, observa-se a tendência de buscar ministros nos quadros técnicos e estáveis dos respectivos ministérios. Lembra as tradições europeias e algumas burocracias brasileiras, como o Itamaraty.

Hoje, somos bombardeados com os estereótipos sobre as virtudes cívicas da sociedade coreana. Que me perdoem uma ponta de cinismo, mas virtude não é planta que vinga em momentos caóticos.

É mais realista pensar que, em períodos de decadência, os princípios fraquejam. O século XIX encontra na Coreia uma família real enfraquecida e uma sociedade desorganizada. Pior, na grande turbulência, após a capitulação japonesa e a guerra com o Norte, novamente, a sociedade e o governo perdem parte de seu idealismo e foco.

É ilustrativo ouvir Paul Crane, um médico americano que passou anos servindo em hospitais coreanos, na primeira metade dos anos 60. Segundo ele, os coreanos precisavam se modernizar, nos campos econômicos, educativos, administrativos, científicos e filosóficos. Notava, também, que a velha geração se pautava por condutas e valores improdutivos. Segundo ele, quando vale tudo o nepotismo faz todo sentido. É o Confúcio pregando o bem comum versus o Confúcio pregando a preeminência da família.

Crane reflete, justamente, as ambiguidades e contradições do momento de turbulência. Na direção oposta, ele menciona a crença generalizada de que as lideranças devem ser virtuosas. A corrupção no governo é condenada por refletir uma falha na virtude.

É notável o comprometimento da sociedade com o interesse coletivo. Por exemplo, as doações de joias e ouro, por parte das famílias, durante a crise associada ao aumento do preço do petróleo (1973).

Houve, também, as ondas de moralidade com sérios confiscos de bens considerados ilegalmente adquiridos.

A despeito dos escorregões no curso da história, as virtudes cívicas parecem mais presentes do que nos nossos lados. Vemos lá, uma sociedade muito estruturada, com governos fortes e competentes desde muito cedo. Os princípios de respeito à autoridade, disciplina e dedicação ao trabalho são levados a sério. Mas houve períodos em que perigaram os valores e tradições. Mas esses são julgamentos insuficientemente fundamentados em conhecimento sólido do assunto.

5 Indústria, ciência e tecnologia em clima de escassez

Para entender a Coreia, é preciso dar-se conta de que é um país diminuto, com uma população enorme para o seu território. Compara-se em tamanho a Pernambuco ou Santa Catarina. Por essa razão, sua história mostra não um país de ricos ou miseráveis, mas uma sociedade fazendo o possível e o impossível para sobreviver, diante de condições ásperas.

Hoje, a densidade populacional é de 400 habitantes por quilômetro quadrado, uma das maiores do mundo. São 50 milhões de coreanos espremidos em uma nesga de terra. Mais grave, apenas 20% da terra é agriculturável. Mas passaram a viver bem, graças ao desenvolvimento industrial e aos avanços na tecnologia agrícola.

No passado, foi um caso rematado de equilíbrio malthusiano. Ou seja, o crescimento da população era bloqueado pelos limites de sua agricultura. A falta de alimentos gerava aumentos de mortalidade ou, como propôs Malthus, levava a uma redução forçada na natalidade e ao infanticídio. Nos séculos XVII a XIX – período em que há dados - a população oscilou entre estagnada e um ligeiro encolhimento. Ficou na redondeza dos 17 milhões de habitantes.

Pesquisas equivalentes no Japão mostraram que a população deu pequenos saltos de crescimento, cada vez que melhorou a produtividade no plantio do arroz. Ou seja, o quadro malthusiano é confirmado pela presença de um imperativo de produtividade sobre o tamanho da população.

Esse fato deve haver sido muito central na psique de uma sociedade. Por séculos, os que nasciam a mais do que a terra sustentava morriam de fome e das doenças provocadas pela subnutrição. Não era a terra generosa, provendo o sustento de todos. Na Coreia, as propriedades tinham menos do que um hectare – um tamanho insuficiente para garantir boa produtividade. Sendo assim, o sentido de economia, esforço e disciplina sempre foi fundamental para a sobrevivência e para a coesão social. Portanto, é uma sociedade sofrida e traumatizada pelo pesadelo constante da fome. Ao longo do tempo, habitua-se a fazer muito esforço para não mais do que sobreviver.

Descrevendo um cavalheiro coreano tradicional, Crane menciona que, de todos os povos da terra, nenhum se compara em sua capacidade de sofrer e de sobreviver em meio a condições tão adversas.

Estamos aqui perfilhando as teses de Toynbee? Quem sabe? São sugestivas. Os grandes desafios geram grandes respostas. Como disse o historiador, "sugere-se a possibilidade de que os homens atingem a civilização, não como resultado de uma superioridade biológica ou ambiente geográfico, mas como uma resposta a desafios em momentos de especiais dificuldades, que os levam a exercer um esforço sem precedentes até então".

Na luta para sobreviver em uma situação de pobreza de recursos naturais e excesso de população, a sociedade se mobiliza e se organiza. Aparecendo condições mais favoráveis, essa energia é usada para dar o seu grande salto. Foi o que aconteceu, logo após liberado o país do jugo japonês.

A extrema escassez de recursos naturais desafia a criatividade do país. São notáveis as inovações criadas ao longo dos séculos. A geração de tecnologia e invenções é menos volumosa do que na China e, ainda assim, chama atenção.

No ano de 718, inventa-se o primeiro pluviômetro, que oferecia uma informação crítica para a agricultura. Pela mesma época, há grandes avanços na astronomia, sempre motivados pela extrema escassez. A rotação de colheitas também se inicia nesse período. Ou seja, a penúria gera um esforço sistemático para melhorar a produtividade agrícola.

Lá pelo ano 1000, o governo cria um serviço de apoio à metalurgia. Os melhores artesãos são contratados para supervisionar a indústria e a preparação de mão de obra especializada. Tudo no espírito de um Estado paternalista e intervencionista.

Mais adiante, aparecem escolas do governo para desenvolver a Mecânica, Ciências Naturais, Letras, Jurisprudência Criminal, Aritmética E Música. Na Europa, o pouco ensino mais sistematizado acontecia nos mosteiros, dedicado a burilar as irrelevâncias da escolástica. De assuntos práticos, nem pensar.

Talvez, um dos marcos mais ilustrativos dos avanços da educação e do uso da palavra escrita deu-se no século X. Diante do recorrente desafio de melhorar a produtividade agrícola, o governo produz um manual de boas práticas, chamado Nong Sang Jip Yo. Já nessa época, se disseminava o uso de placas de madeira talhadas para imprimir livros, como esse e outros que se seguiram, com o mesmo objetivo.

O mais impressionante é que, realmente, conseguiu-se um substancial avanço na agricultura, através da distribuição de livros. Mais de mil anos depois, isso ainda não é viável no Brasil. Nossa Revolução Verde exigiu exércitos de extensionistas para levar ao campo as inovações da Embrapa e das universidades.

Por volta de 1200, foi inventada uma impressora com tipos metálicos móveis. Em linhas gerais, é o mesmo que fez Gutenberg, três séculos mais tarde.

Um dos mais notáveis avanços coreanos foi a fonetização da sua língua. Sob o comando do Imperador Sejong, em 1446, foi criado um alfabeto, por assim dizer, na prancheta. Cria-se uma alternativa para hanja, a pesada e complexa coleção de ideogramas chineses, antes utilizados para a escrita coreana. Não há casos similares na história da humanidade.

O hangul, como se chamou esse alfabeto, não foi universalmente adotado até o século XX, por tradicionalismo das elites apegadas aos clássicos e aos estilos chineses. Mas o avanço foi definitivo. Apesar da dificuldade intrínseca da língua, a sua fonetização foi um grande passo. Do ponto de vista do presente ensaio, são menos importantes os méritos do hangul do que o fato de a sociedade ter investido nessa aventura.

Mas cabe repetir o que dizia Sejong: "Um homem sábio pode se familiarizar com o alfabeto antes que termine a manhã. Um homem estúpido pode aprendê-lo no espaço de dez dias". Ao que tudo indica, esse alfabeto contribuiu para o rápido e universal avanço da escolaridade. Torna igualmente fácil o uso da língua nos computadores, proeza impossível para japoneses e chineses.

A China pensou em fonetizar a língua. Mas, Mao Tse Tung voltou atrás, apesar da sua intenção inicial. Continua o país com 80 mil caracteres, sendo a memorização de dez mil, o mínimo para uma educação pouco ambiciosa.

Nosso alfabeto, e mais o grego e o árabe, são arqueologias vivas, sendo descendentes diretos e indiretos dos caracteres inventados no sistema cuneiforme. O coreano é cartesianamente desenhado, com lógica e simplicidade.

Na segunda metade do século XIX, apesar das fragilidades institucionais, começam a aparecer na Coreia múltiplas iniciativas de modernização. Em 1884, é criada uma estação experimental para avançar a agricultura e a pecuária.

Em 1900, há um esforço de dar um conteúdo mais prático à educação. O objetivo é permitir à sociedade entender melhor o que acontecia alhures, e usar a ciência para aumentar a produtividade. As escolas eram vistas como formas de trazer e desenvolver tecnologia.

Armamentos passam a ser fabricados. E, também, bondes para o transporte urbano. Claramente, a Coreia estava à frente do Brasil nesse início de industrialização em moldes modernos.

A ocupação japonesa traz uma solução de continuidade nesses esforços de desenvolver e industrializar, em todos os azimutes. Os japoneses queriam alimentos. E tiveram-nos sacrificando, ainda mais, as dietas locais. E queriam indústria pesada, mineração, munições, indústria química e outras linhas de infraestrutura. Como dito, foi um período cuja interpretação permanece litigiosa. Mas o país não parou.

Ao fim da guerra, impulsionado pela Guerra Fria, os Estados Unidos promovem o desenvolvimento industrial do país, em bases modernas e com capitais e iniciativas também americanas. Havia que criar modelos que demonstrassem a superioridade do sistema de mercado. E, como mostra a trajetória subsequente, o sucesso foi espantoso.

É interessante notar que após o término do Protetorado japonês, o primeiro parceiro comercial foi o próprio Japão. Ou seja, prevaleceu o pragmatismo. Rancores e vinganças deram lugar a um comércio promissor.

Em um período em que a América Latina estava contente com suas políticas de substituição de importações, a Coreia iniciava um longo ciclo de exportação de manufaturados. Beneficiou-se de um momento em que as barreiras alfandegárias estavam bem mais baixas.

Há um denominador comum de todo esse esforço, mais difuso no passado e mais focalizado no presente: a prioridade é o desenvolvimento econômico. Tudo mais é subalterno. E diante de uma sociedade obstinada e acostumada ao trabalho, toda a energia é canalizada com esse objetivo.

Esse foco obsessivo teve a vantagem óbvia de transformar o país em uma grande potência industrial. Mas é inevitável que tenha tido um custo, do ponto de vista de qualidade de vida, sofrimento e outras dimensões da existência humana. Por exemplo, a Democracia é um luxo tardio, produto de uma prosperidade desconhecida no passado.

6 Primeira universidade, mil anos antes da Europa

Quando examinamos as pontuações no PISA ou no TIMMS1 1 O PISA é o teste de criado pela OECD, para avaliar a capacidade dos alunos de obter um bom desempenho nos trabalhos típicos de uma sociedade moderna. O TIMMS é também uma prova internacional, só que voltada para a Matemática. , é espantoso reconhecer o lugar destacado de todos os países da órbita cultural chinesa. Inicialmente, o Japão, depois Coreia, Cingapura e Taiwan mostram resultados muito expressivos. Nos últimos anos, a China entra em cena, já participando no mesmo pelotão de elite.

Quando a Coreia entrou no TIMMS, saiu em primeiro lugar. Seria um erro de amostragem ou processamento? Neville Posthlethwaite, da UNESCO, foi de viagem, para verificar o que estava acontecendo. Não encontra nada irregular, mas narra aos amigos que via senhoras de idade postadas nas janelas das escolas e olhando para dentro. O que seria isso? Eram avós aposentadas. Tinham como missão observar os netos para garantir que estavam prestando atenção às aulas.

Um amigo brasileiro viveu em Seul, na década de 60, pois seu pai era funcionário internacional. Vejam suas observações de estudante: "os poucos coreanos que entrava no Seoul American Elementary School eram melhores em Matemática que os outros alunos e logo, logo se tornavam os primeiros da classe. Tinha uma namoradinha coreana muito inteligente que me falou que ela perdia de propósito na Matemática, e outras matérias, para não ser discriminada pelos americanos...".

Essa obsessão com a escola é descendente direta do confucionismo. Como dito antes, está presente nos países em que esta filosofia de vida lançou raízes.

Já mencionamos os méritos acadêmicos do serviço público chinês e coreano. É tudo parte do mesmo apreço pelos estudos e pela vida intelectual.

Em 372, é criada a escola superior Taehak. Pelas contas, mil anos antes das universidades de Paris, Bolonha e Fez.

A primeira universidade para Medicina e Astronomia foi fundada em 552.

Não sabemos bem se são instituições comparáveis as que os Europeus chamam de universidade. Mas são apresentadas como de Ensino Superior. Aliás, as nossas primeiras faculdades são criadas por D. João VI, mil e quinhentos anos depois.

O Instituto de Altos Estudos de Gukjagam tem sua criação no ano de 992. Já em 1420, é criado o Instituto Nacional de Pesquisa Acadêmica Jiphyeonjeon.

No século XIX, há uma virada significativa com a criação de escolas práticas, visando a escapar dos clássicos e de um confucionismo acadêmico. É nesse momento em que aparecem os missionários americanos, Presbiterianos e Metodistas. Por sua iniciativa, são criadas muitas escolas, sucedidas por outras iniciativas locais, em resposta à internacionalização crescente do ensino.

A primeira escola vocacional é criada em 1899. Seu objetivo era o desenvolvimento de competências práticas.

No todo, trata-se de um cenário bem impressionante. Em alguns campos, a Coreia esteve à frente até mesmo dos países mais avançados da Europa.

O empenho do governo para impulsionar a educação é notável. Nota-se que, em 1985, o Presidente da República tem o seu corpo consultivo para orientá-lo nos rumos do ensino. No Brasil, Presidentes jamais chegaram muito perto da educação e de suas reformas. Retórica à parte, educação não faz parte da sua real agenda.

Para que serviu isso tudo, se a população permanecia paupérrima durante todos esses séculos? Talvez, a situação estivesse infinitamente pior, não fossem os esforços sistemáticos e inteligentes de melhorar a produtividade e industrializar o país.

Outro assunto mal resolvido é o nível educativo da população, na metade do século XX. Com tudo que foi narrado acima, como se explica, em 1922, uma taxa de matrícula tão baixa quanto 22% da coorte? Na verdade, não era muito diferente da que o Brasil tinha nessa época.

Boa parte da explicação está na ocupação japonesa que teve uma política deliberada de frear o desenvolvimento do ensino na Coreia. Apenas um mínimo de educação elementar era promovido.

Para os coreanos, as peias impostas pelos japoneses à expansão das suas escolas criaram um país frustrado e ansiando pelo momento em que poderia reverter tal situação. Há quem acredite haver sido este um dos grandes motores da explosão educativa que se seguiu. De fato, logo após a saída dos japoneses, a matrícula cresceu vertiginosamente, bem antes de os americanos tomarem pé no país e trazerem suas ideias reformistas.

Mas há outro fator, mais cultural. A ideia de que todos devem ir à escola é uma criação europeia e americana. De resto, uma criação protestante e recente, do século XIX. Para ilustrar, em meados desse mesmo século, havia um Primeiro Ministro francês que disputava a ideia de educação para todos. Para ele, não tinha sentido.

Sendo assim, os atrasos na universalização da escola, em um país longe de tudo, não podem ser tomados cegamente como um sinal de subdesenvolvimento. A Coreia fazia bem o que faziam todos. Ou seja, desenvolver uma elite bem educada e prover instrução nos ofícios práticos.

Quando toma corpo a ideia de universalizar a escola, o país estava preparado para isso. Tinha uma bagagem milenar de criar e operar instituições de ensino. Em 1945, tinha a taxa de abandono escolar mais baixa dentre os países pobres. De fato, a tese principal do presente ensaio é que o avanço prodigioso observado é uma consequência mais do que natural do muito que veio antes.

7 Brasil não é Coreia

Em uníssono, somos castigados por comparações: se a Coreia pode, o Brasil também. O presente ensaio pergunta se é realista esperar tal paralelismo entre os dois países.

Se um país consegue uma proeza, isso significa que outro conseguirá o mesmo? O tema é controvertido, mas é dele que estamos falando.

Os países copiam ideias dos outros e emulam as realizações dos vizinhos. Hoje, a maioria dos países é permeável ao que acontece ao lado, e mesmo bem longe.

Ainda há casos clássicos de isolamento. A Cortina de Ferro foi o caso mais flagrante de uma politica deliberada de se fechar. Há nações pequenas e isoladas, como o Butão e a Islândia, bem como tribos que permaneceram geograficamente isoladas por séculos. Muitas estão na Amazônia e na África. No Leste Asiático, o isolamento do Japão até o fim do século XIX é o exemplo sempre citado, mas a China construiu as suas famosas muralhas para permanecer longe do resto do mundo, acerca do qual não tinha qualquer interesse ou curiosidade. A própria Coreia teve uma trajetória de isolamento tão longa quanto à de seus vizinhos.

Mas mesmo nesses países, isso é coisa do passado. Jornais e livros, faz tempo, noticiam o que acontece alhures. O Correio Brasiliense, editado de Londres por Hipólito da Costa, abria para o Brasil uma porta para o resto do mundo, nos tempos de fechamento da colônia e da mudança da corte portuguesa para o Brasil. A televisão passou a dar cores e imediatismo a esse ubíquo bisbilhotar. Agora, com computadores e celulares, tudo é visível em tempo real.

Portanto, tudo pode ser conhecido e imitado. No campo educacional, não há sistema que não seja um empréstimo de ideias e soluções de outros, talvez com uma pitada de inventividade própria.

Mas seja na educação, na economia ou em outras áreas, há, pelo menos, tantos fracassos quanto sucessos. E é difícil entender o que determina as condições de sucesso. O que faz com que um modelo seja copiável e o outro não? O que faz com que um país consiga copiar e outro não?

A tese aqui defendida é que Brasil e Coreia têm trajetórias históricas tão diferentes que não é de se esperar que as soluções coreanas possam ser reproduzidas em terras tupiniquins. Ou que sejam causa de vergonha nacional as dificuldades de fazê-lo.

Não se trata de oferecer um salvo conduto ao Brasil diante do seu péssimo desempenho na educação, mas de entender que estamos falando de mundos diferentes. As distâncias entre a Coreia e o Brasil não poderiam ser mais marcantes.

Comecemos com a matriz étnica e cultural. Os portugueses trouxeram os africanos, pois os índios eram insubmissos. O regime escravocrata abusou da submissão dos africanos, criando reações opostas. Nossa sociedade mescla as três raças. Há forças e virtudes nessa mistura, mas do ponto de vista de disciplina de estudo ou de trabalho, a situação não é das mais alvissareiras. Quando os coreaninhos estudam quinze horas por dia, forçados pelos hábitos seculares e pelos pais, nada mais está acontecendo, senão o aflorar desses traços culturais.

O Brasil foi colonizado pelo país mais atrasado da Europa Ocidental. Em sua composição étnica, entraram povos, ainda na Idade do Bronze, e outros na Idade da Pedra Polida.

Faz um século, tinha uma renda per capitainferior à de quase todos os países da América Latina. Não apenas isso, mas essa renda correspondia a um quinto da Argentina – que não parou de subir em anos subsequentes.

No que tange aos recursos naturais, o contraste com o Brasil é também flagrante. Na Coreia, a mesma terra vem sendo cultivada por cinco mil anos e está tão produtiva quanto antes. Em contraste, nascemos sob o signo de uma carta informando que, "em se plantando dá". Somos produtos de um continente virgem e abusamos da nossa imprevidência no mau uso dos recursos naturais. Convivemos, por séculos, com uma fronteira móvel e percebida como infinita. A "terra cansada", a quase ninguém, preocupava. Se havia mais gente com vontade de plantar, mais terra havia, para ser desbravada ou arruinada. Impossível não pensar que isso também plasmou a sociedade brasileira, mas de forma diferente e pouca lisonjeira para nós.

Ao fim do século XIX, Seoul tinha eletricidade, água encanada, bondes, telefone e telégrafo, ao mesmo tempo. Nenhuma cidade da Ásia atingira tal nível. Em contraste, ao início do século XX, a capital do Brasil era proscrita para navios estrangeiros, pela sua insalubridade.

No campo da educação, faz um par de décadas que Bolívia e Paraguai tinham melhores estatísticas educativas que o Brasil. As grandes reformas educativas de Sarmiento e Varella, na Argentina e Uruguai, só foram reproduzidas no Brasil um século depois. Começamos o século XX com cerca de 90% de analfabetismo.

O despertar do Brasil é muito recente, diante dos países hoje desenvolvidos – e mesmo dos vizinhos. Ainda assim, não pode ser subestimado. O PIB brasileiro cresceu mais que o de qualquer outro país, no mundo inteiro, entre 1880 e 1980.

A partir dos anos 1950, começamos a levar a educação um pouco mais a sério e as taxas de expansão, foram bem respeitáveis, sobretudo, a partir dos anos noventa. Mas, como iniciamos esse salto a partir de um nível muito baixo, ainda estamos em patamar muito modesto. Grosso modo, dois terços dos países estão em situação educacional pior do que a nossa.

Nesse empuxo do século XX, abandonamos a vala comum do subdesenvolvimento e conseguimos chegar a níveis intermediários. O mesmo aconteceu com a nossa educação. Dos quase trinta países da América Latina, o PISA mostrou que estamos dentre os três, ou quatro, mais avançados. Isso não era assim faz meio século. Ainda mais impressionante, o mesmo PISA mostra que estamos tecnicamente empatados com a Argentina.

Nossa história é muito distante da coreana. Do ponto de vista institucional, somos uma sociedade jovem, heterogênea, indisciplinada e cheia de arestas. As instituições são imaturas e a legitimidade do Estado é bem mais baixa.

Tony Michel viu em operação na Coreia o que Myrdal chamava de hard state, ou seja, um governo que manda, e cujas ordens são para serem obedecidas. Obviamente, este estilo contrasta com o soft state, ou seja, um governo que precisa negociar o cumprimento e que convive com o descumprimento. Se a Coreia parecia a Michell estar na primeira categoria, o governo brasileiro, claramente, está na segunda.

Se existisse um "sofrimentômetro", os ponteiros do nosso marcariam um índice muito modesto, comparado com os píncaros da Coreia. Temerário dizer se é bom ou ruim na ordem geral das coisas. Mas para obter bons resultados na educação, estamos em desvantagem.

Uma diferença fundamental é que começamos muito tarde no desenvolvimento econômico e na educação. O que aconteceu na Coreia, faz séculos ou milênios, só começa a chegar a nossas praias em um passado recente. Podemos praguejar contra nossos antepassados, mas não podemos mudar a história.

Por tudo que foi dito nas paginas acima, o caminho da Coreia é o caminho da Coreia. Não é o nosso. Temos que encontrar os nossos caminhos, insistindo no que parece mais viável dentro da nossa história.

Devemos fazer mais. Não há razões para aceitar a mediocridade e a passividade que se instalaram em certos setores do ensino. Nada vai acontecer se aqueles conscientes das nossas fraquezas não brigarmos seriamente por uma educação de qualidade.

Mas fica tudo dependendo da sorte de encontrar administradores motivados e dispostos a mudar a educação. Tem acontecido, mas isso não deveria depender de uma loteria política.

Em uma democracia, ainda que imperfeita, os políticos respondem às demandas dos eleitores. Se a maioria (70%) acha que a educação é boa, os políticos entendem que não é boa ideia quebrar lanças para melhorar as escolas, pois o custo político é elevado. Sendo assim, uma meta mais premente é mudar a cabeça do nosso povo. Há que convencê-los que a educação é péssima e, que se não brigarem seriamente pela sua melhora, pouco vai acontecer.

Não podemos esperar a mesma intensidade de mobilização social pelo ensino que borbulhou na Coreia após a ocupação japonesa. Mas podemos almejar um nível bem maior do que temos hoje. Devemos levar mais a sério o desafio de melhorar nosso ensino. Isso é realista.

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    O PISA é o teste de criado pela OECD, para avaliar a capacidade dos alunos de obter um bom desempenho nos trabalhos típicos de uma sociedade moderna. O TIMMS é também uma prova internacional, só que voltada para a Matemática.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      05 Set 2014
    • Data do Fascículo
      Set 2014
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