Resumos
Este trabalho foi baseado em uma pesquisa, de caráter investigatório, que buscou compreender as vivências escolares de jovens alunos moradores da Vila da Luz, que se localiza na periferia de Belo Horizonte, cujo cotidiano é marcado pela violência, pela insegurança pública e pela exclusão social. Examinou-se como as vivências fora da escola invadem o cotidiano e reorientam atitudes e comportamentos dos alunos entre si, e destes em relação aos professores e a outros agentes escolares. Buscou-se caracterizar sociologicamente o ambiente escolar como espaço de interações complexas, no qual violência simbólica e agressão física se entrecruzam, propiciando um tipo de vivência escolar baseada no medo e na ansiedade. Focalizou-se a experiência e as representações sociais dos jovens alunos, com o intuito de compreender como eles constroem suas identidades, tendo a violência como pano de fundo em suas relações grupais e interpessoais. Assim, a investigação abriu possibilidades para se pensar a escola como espaço de mediação de conflitos e de convivência da diversidade cultural e social. Centrado em uma metodologia de pesquisa participante com ênfase no modelo interpretativista, este estudo permitiu aprofundar questões referentes à educação e subjetividade, sob a ótica de alguns teóricos importantes, tais como Anthony Giddens, Norbert Elias e Erik Erikson.
Juventude; Violência; Escola; Identidade
This work deals with the school experiences of young pupils living in Vila da Luz - a neighborhood on the outskirts of Belo Horizonte, Brazil - whose daily life is characterized by violence, public insecurity, and social exclusion. The exploratory study examined how experiences outside school, particularly in Vila da Luz, infringe on their daily lives and reorient pupil’s attitudes and behaviors among themselves and towards teachers and other school workers. The school environment was sociologically characterized as a space of complex interactions, in which symbolic violence and physical aggression intersect, giving rise to a school experience based on fear and anxiety. The experiences and social representations of young pupils were emphasized with a view to understand how they build their identities when their group and interpersonal relations take place against a background of violence. Thus, the investigation offered possibilities to think the school as a space for the mediation of conflicts and the coexistence of social and cultural diversity. Centered on a participative research methodology with emphasis on the interpretative model, this study permitted developing issues concerning education and subjectivity under the optics of some important theorists such as Anthony Giddens, Norbert Elias, and Erik Erikson.
Youth; Violence; School; Identity
As marcas da violência na constituição da identidade de jovens da periferia
Carla Araújo
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Correspondência:
Rua Monte Sião, 346/ 202
30.240-050 Belo Horizonte-MG
e-mail: carlaraujo@uol.com.br
Resumo
Este trabalho foi baseado em uma pesquisa, de caráter investigatório, que buscou compreender as vivências escolares de jovens alunos moradores da Vila da Luz, que se localiza na periferia de Belo Horizonte, cujo cotidiano é marcado pela violência, pela insegurança pública e pela exclusão social.
Examinou-se como as vivências fora da escola invadem o cotidiano e reorientam atitudes e comportamentos dos alunos entre si, e destes em relação aos professores e a outros agentes escolares. Buscou-se caracterizar sociologicamente o ambiente escolar como espaço de interações complexas, no qual violência simbólica e agressão física se entrecruzam, propiciando um tipo de vivência escolar baseada no medo e na ansiedade. Focalizou-se a experiência e as representações sociais dos jovens alunos, com o intuito de compreender como eles constroem suas identidades, tendo a violência como pano de fundo em suas relações grupais e interpessoais.
Assim, a investigação abriu possibilidades para se pensar a escola como espaço de mediação de conflitos e de convivência da diversidade cultural e social. Centrado em uma metodologia de pesquisa participante com ênfase no modelo interpretativista, este estudo permitiu aprofundar questões referentes à educação e subjetividade, sob a ótica de alguns teóricos importantes, tais como Anthony Giddens, Norbert Elias e Erik Erikson.
Palavras-chave
Juventude Violência Escola Identidade.
School experiences of Brazilian youngsters: the effects of violence in the construction of their identities
Abstract
This work deals with the school experiences of young pupils living in Vila da Luz a neighborhood on the outskirts of Belo Horizonte, Brazil - whose daily life is characterized by violence, public insecurity, and social exclusion.
The exploratory study examined how experiences outside school, particularly in Vila da Luz, infringe on their daily lives and reorient pupils attitudes and behaviors among themselves and towards teachers and other school workers. The school environment was sociologically characterized as a space of complex interactions, in which symbolic violence and physical aggression intersect, giving rise to a school experience based on fear and anxiety. The experiences and social representations of young pupils were emphasized with a view to understand how they build their identities when their group and interpersonal relations take place against a background of violence.
Thus, the investigation offered possibilities to think the school as a space for the mediation of conflicts and the coexistence of social and cultural diversity. Centered on a participative research methodology with emphasis on the interpretative model, this study permitted developing issues concerning education and subjectivity under the optics of some important theorists such as Anthony Giddens, Norbert Elias, and Erik Erikson.
Keywords
Youth - Violence - School - Identity.
Medo, imobilização e hipótese da escola
Quando esta pesquisa foi iniciada, uma ampla investigação preliminar sobre quais as regiões da cidade estariam vivenciando de forma acentuada a violência nas escolas foi feita, partindo de um pequeno levantamento que já havia sido realizado pela Secretaria Municipal da Educação.1 1 . Esse levantamento foi feito por meio de um questionário enviado para as diretorias das escolas em Belo Horizonte, no qual elas deveriam responder perguntas sobre a violência: se existia ou não violência na escola, qual era o tipo de violência mais comum, etc. De posse desse material, partimos para a Regional (conjunto de bairros) onde a violência estava sendo mais citada. Todas as escolas de ensino noturno que atendiam alunos no ensino regular noturno (5ª a 8ª série) foram, inicialmente, entrevistadas, antes da escolha pela escola "Professora Inês Gonçalves". Ao chegar à escola "Professora Inês Gonçalves" um fato era novo e singular se comparado aos de outras escolas: um aluno havia comparecido, armado, à aula. A direção da escola supôs que esse aluno fosse morador de um bairro pobre, a Vila da Luz, motivo pelo qual ele, por alguma razão, precisaria levar a arma para a escola. Foi nesse momento que a dimensão do contexto da Vila passava a ser o centro de nossa atenção. A escola atendia os alunos dessa Vila, mas também alunos de bairros mais próximos da escola, de maior poder aquisitivo. Somente no decorrer da pesquisa é que pudemos ver as rivalidades entre a Vila da Luz e uma outra Vila, o Conjunto ABC.2 2 . O Conjunto ABC fica localizado nos "fundos" da Vila da Luz. Esse conjunto foi "projetado" pela Prefeitura para transferir moradores de um local onde não havia a menor infra-estrutura, segundo relato dos jovens entrevistados. Para chegar e sair desta vila é preciso passar pela Vila da Luz, o que agrava a situação de confronto entre essas duas comunidades, como observamos pelos relatos dos jovens da Vila da Luz no decorrer da pesquisa. A própria escola se surpreendeu com essa rivalidade e não tinha a dimensão dessa repercussão em seu interior. A hipótese da escola para os atos de violência que ocorriam em suas dependências, em especial para o fato de um aluno comparecer armado, era a violência do local de moradia do jovem, conhecida por toda a comunidade próxima.
Vivenciar a violência no local de moradia (no caso, a Vila da Luz) pode se tornar um elemento constituinte da identidade dos jovens? E mais: quando esses jovens vão para a escola, como se comportam, se organizam, convivem e criam estratégias de convivência com os outros alunos? A imagem que os outros alunos fazem dos jovens da Vila da Luz também participa na constituição da identidade deles? Nesse sentido, as falas dos jovens sobre suas vivências na Vila da Luz foram imprescindíveis para a compreensão das questões acima colocadas.
Atores, identidade e metodologia a construção
As discussões teóricas das categorias utilizadas para a análise das questões propostas partiram, essencialmente, dos referenciais de Anthony Giddens, Norbert Elias e E. Erikson. Foram utilizadas nessa pesquisa a observação, as conversas informais com os alunos dentro das salas de aula, durante o recreio, nas entradas e saídas da escola, etc., além das entrevistas semi-estruturadas, atividades em grupo a partir de exposição de gravuras, da exibição (parcial) de uma fita de vídeo3 3 . Fita: ABCD Jovens Sindicato dos Metalúrgicos do ABC São Paulo e TV dos Trabalhadores. e de associações livres a partir da palavra indutora jovem. As atividades em grupo foram filmadas pelos próprios alunos, com exceção das associações livres, que não foram filmadas. Essa metodologia se justificou pela necessidade de não expor os jovens moradores da Vila da Luz separando-os dos demais e sobretudo pela dificuldade encontrada em reuni-los ao mesmo tempo e também nos mesmos dias (há um alto índice de absenteísmo).
A intencionalidade dos atos, as percepções dos atores e o caráter intersubjetivo dos significados foram altamente privilegiados. Já no que concerne à identidade, buscou-se entendê-la fcomo um conjunto de imagens, representações, conceitos de si, sendo considerado, especialmente, o caráter dialético de sua construção, a saber, a importância da alteridade nesse processo. Assim, foi necessário a inclusão, na metodologia, de procedimentos que pudessem fornecer dados para a compreensão da importância do outro nesse processo.4 4 . Cabe ressaltar que as técnicas em grupo tiveram o objetivo de priorizar a relação entre os jovens, as imagens que faziam de si e dos outros, ou seja, a alteridade como ponto importante a ser explorado. Por ser dialética, além de determinada, a identidade é também determinante, pois o jovem tem um papel ativo, quer na construção desse contexto a partir de sua interação, quer na sua apropriação. A identidade só pode ser construída a partir dessa interação. Interessou-nos, portanto, a percepção que os alunos têm uns dos outros e da violência que testemunham e vivenciam em seus locais de moradia (em especial na Vila da Luz) e na escola.
Sendo, os jovens, sujeitos histórico-sociais, a análise, obviamente, não se mantém estática durante o passar dos anos e os autores absorvem as mudanças em seus trabalhos. De acordo com o momento histórico, há interferências nas produções que vão sendo realizadas pelos diversos autores dessa temática. A juventude tem sido, de acordo com o momento histórico, considerada de modos variados. Na década de 1960, por exemplo, era entendida como um "problema", na medida em que podia ser identificada como geradora de uma crise de valores e de um conflito de gerações. Já na década de 1970, as questões eram aquelas relacionadas ao jovem e o trabalho (emprego).
Se pensarmos na juventude associada ao caráter transitório que caracteriza esse período, podemos defini-la como um conjunto social derivado de uma determinada fase da vida, com enfoque e ênfase nos aspectos geracionais. Nesse sentido, várias podem ser as funções atribuídas à juventude, cujo significado diferencia-se em cada contexto sócio-histórico. Uma delas seria a de agente revitalizador: um recurso latente de energia e força a ser usado pela sociedade como um dinamismo criador que objetiva dar novas orientações à sociedade (Mannheim,1970).
A modernidade associa o jovem a uma idéia de futuro (Sposito,1999). No entanto, cabe lembrar que, por mais que a juventude possa ser entendida como permanente e, portanto, com características próprias, ela também é marcada por "rituais de passagem" que nos apontam para sua transitoriedade. Esses rituais existem e não há como negá-los. Pereira (2000) mostra como as crianças vão deixando de brincar, marcando assim um ritual de passagem da infância para a adolescência. Assim, há mudanças que vão se operar com o jovem e que não voltarão a se repetir da mesma maneira no futuro.
É necessário contextualizar, sempre, de qual juventude estamos nos referindo. Assim, talvez devêssemos ter em mente que, quando falamos de "juventude", na realidade estamos falando de "juventudes", no plural (Sposito, 1998). A definição de juventude é bastante flexível, pois ela é carregada de significados culturais e sociais. Há diversos modos de ser jovem em nossa sociedade e, portanto, não há apenas uma categoria teórica que possa dar conta dessa diversidade de situações (Sposito, 1998).5 5 . Conferência sobre Juventude, em maio de 1998, na Faculdade de Educação da UFMG.
O período de transição da juventude deve levar em consideração essa diversidade social, cultural, étnica, religiosa pois várias são as formas de entrada no mundo adulto e não é possível exigir que haja apenas uma. Do ponto de vista da exigência da modernidade, ou seja, de ver a juventude sempre associada ao futuro, há algo que não podemos negar: o jovem, hoje em dia, antes de ter projetos futuros, precisa ter ações para o presente. E esses projetos de futuro e as ações para o presente estão intimamente ligadas à enorme heterogeneidade dos segmentos juvenis existentes. O modo de se tornar adulto sofre as influências históricas por ter como base a ampla diversidade sociocultural na qual a juventude está inserida.
Neste estudo entende-se a categoria juventude como o momento da vida expresso no intervalo cuja variação temporal é histórica entre a posse de condições de reprodução biológica (sexual) e a de condições de produção social (maturidade física e mental para o trabalho), acompanhadas do reconhecimento social de sua habilitação plena para o desempenho dessas atividades na vida adulta.
Ao discutir a violência, Debarbieux (1998) associa a juventude à incivilidade e destaca a desorganização da ordem, a introdução do caos e a perda de sentido/de compreensão. Ao relacioná-la com essa incivilidade, ele acaba por apontar também a desorganização do mundo da escola, ou seja, a crise de sentidos pelo qual passa essa instituição. Nessa perspectiva, o autor "denuncia" o fracasso das escolas em cumprir as promessas de integração social, uma vez que a inserção dos jovens no mercado de trabalho é problemática: "É bem possível que a incivilidade de certos jovens seja uma incivilidade reativa à expressão de um amor decepcionado com uma escola incapaz de cumprir suas promessas de inserção"6 6 . "No original: "ll est bien possible que lincivilité de certains jeunes soit une incivilité réactive, lexpression dun amour déçu pour une école incapable de tenir ses promesses dinsertion (...)". Trad. da autora. Debarbieux ( 1998, p.13).
Neste estudo foi possível explorar a violência que era vivenciada pelos jovens em seus locais de moradia para se entender como esta vivência poderia estar interferindo na dinâmica escolar. Assim, foi analisada como a violência vivenciada no local de moradia se relacionava com a construção da identidade dos jovens, por meio da interpretação das ações dos alunos, bem como das significações que eles atribuíam aos fenômenos sociais.
O universo da Vila da Luz na voz e na vez de seus jovens moradores
Os jovens (de ambos os sexos) da Vila da Luz, que foram ouvidos nesta pesquisa, tinham entre 14 e 19 anos . Todos eles mostraram ter clareza da situação de violência vivenciada na Vila e tentaram explicar os motivos pelos quais isso se dava: uns diziam que a Vila da Luz vivia em guerra com o Conjunto ABC por questões de drogas, ou seja, pela disputa de pontos de vendas, etc; outros falavam que os moradores do Conjunto ABC eram "pessoas malandras", que não queriam saber de nada e que, tendo chegado depois, não se submetiam às regras anteriormente colocadas por aqueles que "mandam no pedaço''; 7 7 . Essa expressão é dos meninos da Vila da Luz. Parece que é comum existir alguém que mande no pedaço. Eles convivem com isso, com alguém que deve ser respeitado por ser aquele que "manda no pedaço". outros diziam que tudo começou por causa da morte de um rapaz que foi roubado após ter decidido abandonar o vício, deixando, portanto, de adquirir drogas dos malandros do Conjunto ABC. Outros diziam que os moradores do Conjunto ABC são pessoas que pegam as outras "por sacanagem, sem motivos", o que, com razão, os deixava mais apavorados.
Questões importantes começam a ser construídas nesse percurso de compreensão da problemática da vivência da violência e da construção de identidade dos jovens: como esses jovens podem se defender, se nem os inocentes são poupados? Como saber quem sobreviverá, se há mortes sem motivos?
A realidade descrita pelos jovens parece indicar que eles necessitam de estratégias que os protejam, de um certo anonimato como medida de segurança na Vila da Luz. Eles não podem se envolver em confusões, e quanto menos eles forem vistos, melhor. Ao mesmo tempo, há relatos que nos apontam para a necessidade que eles têm de serem reconhecidos pelo grupo de moradores da Vila da Luz e da região, que inclui o Conjunto ABC. Em alguns momentos, eles dizem que precisam ser conhecidos e reconhecidos como moradores do bairro, que isso lhes dá segurança para, por exemplo, entrarem e saírem da Vila da Luz.
Assim a ambigüidade, reconhecimento/anonimato, parece fazer parte importante da problemática vivenciada por esses jovens. Em certas ocasiões, ser reconhecido é o que traz a segurança e, em outras, é o que gera insegurança e medo. Não ser anônimo pode ser bom (podem andar pela Vila da Luz, livremente, seguros e protegidos contra a discriminação). Quando anônimos, podem correr risco de vida, pois ninguém sabe quem eles são ou de onde vieram, o que pode ser ameaçador.
Mas a ambigüidade não termina com essa divisão ou separação, pois veremos oportunamente que, às vezes, ser reconhecido como morador da Vila da Luz traz ganhos para o jovem, propiciando-lhe respeito, pelo menos na escola. Isso lhe dá uma identidade de autoridade, de temido, de valente e de "mais vivido''.8 8 . Expressão utilizada por um dos entrevistados, morador de um outro bairro. Ser "mais vivido" é, de certa forma, ser mais esperto, ter vivenciado mais situações, que lhe permitiram ser mais "vivido", menos ingênuo. Além disso, é bom lembrar que, por ser tratar de ambigüidade, os dois sentimentos estão sempre presentes, ou seja, eles continuam existindo mesmo quando um deles não está explícito.
Além disso, o fato de existirem casos de pessoas inocentes que foram assassinadas, deixa os jovens em situação de alerta. Afinal, se a inocência não garante a vida, o que a garante? Inocente, na Vila da Luz, é morto por engano, ou seja, eles "pegam" a pessoa errada, pessoas que não são do tráfico. A ausência de motivos claros, que expliquem as mortes violentas, deixa os jovens em total insegurança e fragilidade. Não há controle e, obviamente, isso traz conseqüências para a construção da identidade. É como se eles se perguntassem a todo momento: essa pessoa morreu por quê? Ela era culpado, traficante ou foi morta por engano? Como posso me proteger para não ser confundido? É melhor ser anônimo ou ser reconhecido por todos? Se sou anônimo posso morrer por engano (afinal, eles não sabem quem eu sou), mas se sou reconhecido também não tenho a garantia de não ser morto (pois também matam por engano).
Os sentimentos de insegurança e incerteza parecem criar um outro: o medo. Morar na Vila da Luz, sem sombra de dúvida, afeta significativamente a vida daqueles jovens. A vivência da violência no local de moradia desperta sentimentos que, enredados com os elementos integrantes de identidade, se tornam, também, elementos importantes na sua constituição. As identidades são construídas por meio de crises, no sentido eriksoniano, o que, portanto, significa que o jovem viverá momentos de ambivalência de sentimentos: medo e coragem, por exemplo. De acordo com as passagens pelas crises previstas nesse processo, o jovem vai fazendo escolhas, retomando pontos de sua história, significando situações acontecidas anteriormente, etc. Como a juventude é uma fase em que há perdas (inevitáveis), por exemplo, do corpo infantil, o medo pode aparecer de forma imaginária, como uma proteção: até que se tenha certeza, é melhor temer e ficar a distância.
Da mesma maneira que o jovem oscila entre ser reconhecido e ser anônimo, ele também oscila com relação a se expor ou retrair-se. Dizer sobre o que acontece lá na vila pode comprometê-los muito, pois podem ser "cobrados" por isso depois. Assim, omitem as situações e não se expõem com facilidade. Um jovem relata que, quando eles vêem os moradores do Conjunto ABC, precisam correr. Mas, ao mesmo tempo, temem tomar essa atitude, afinal, aquele que corre é porque tem alguma coisa a temer. A situação é extremamente angustiante: pois se ficam parados, podem ser baleados: se correm, podem indicar que devem alguma coisa e, também, ser baleados. O que fazer? Esta é a pergunta que norteia o cotidiano do jovem morador da Vila da Luz.
Ao pensar na modernidade tardia podemos, segundo Giddens (1991), considerar que temos de construir nosso projeto reflexivo do self, 9 9 . "O projeto reflexivo do self consiste na manutenção de narrativas biográficas coerentes ainda que continuamente revistas e ocorre no contexto da escolha múltipla filtrada através dos sistemas abstratos" (Giddens,1991, p. 4). diariamente, ou seja, optar, fazer escolhas. Se assim é, como fica essa característica da modernidade tardia 10 10 . "A modernidade é uma ordem pós-tradicional, na qual a pergunta como hei de viver? tem de ser respondida através de decisões diárias acerca de como comportar-se, o que vestir e o que comer e muitas outras coisas, bem como interpretada no desenrolar temporal da auto-identidade" (Giddens, 1991,p.13). (escolha diária) na vida de um jovem que já tem, nessa fase de sua vida, de lidar com tantas escolhas, dúvidas e inseguranças? Não seria para o jovem da Vila da Luz uma grande tarefa essa, de construir seu projeto reflexivo tendo questões tão sérias, de sobrevivência, para serem escolhidas a cada momento? Não seria isso cruel demais, pelo menos para a juventude aqui pesquisada, inserida na modernidade tardia?
Dando continuidade à vivência das ambigüidades dos jovens, temos a questão da singularidade: ser mais um ou ser um qualquer/ser singular ou ser diferenciado. Faz parte da juventude esse movimento de buscar, nos grupos, o reconhecimento de uma identidade que faça com que o jovem se sinta pertencente a eles. No entanto, tal movimento também é ambíguo, pois, ao mesmo tempo, o jovem quer ser reconhecido também como um sujeito singular, diferente dos demais e busca esta auto-afirmação. O fato de estar em grupo, pode, às vezes, ser ameaçador. Afinal, no grupo todos parecem ser quase "iguais" (até pelo próprio jeito de se vestir, andar, falar, etc.) e, portanto, podem ser confundidos uns com os outros, inocentes ou não. Mais uma vez vemos a necessidade de contextualizar de qual juventude estamos falando, pois, talvez com jovens que possuam outras vivências, o "andar em grupo" seja mais seguro se comparado com o "andar em grupo" para os jovens dessa pesquisa.
Os jovens procuram referenciais para minimizar os sentimentos de desamparo que sentem, mas, no entanto, nem sempre os encontram. Vemos que uma das maneiras pode ser exatamente o comportamento que eles têm apresentado nas escolas: agressivos e ou "fechados" para o diálogo. As dúvidas com as quais eles se deparam, diariamente, são substituídas por atos impulsivos, atitudes grupais irracionais ou negações.
É espantoso ouvir os jovens contarem como essa vivência da violência na Vila da Luz modificou suas vidas, seus cotidianos, seus pensamentos e até suas estratégias para se protegerem. Algumas atitudes podem nos parecer exóticas ou impossíveis, mas naquela realidade é questão de sobrevivência.
O direito de ir e vir, sem dúvida, alimenta a autonomia tão necessária para o desenvolvimento do jovem. Mas o jovem da Vila da Luz não o possui. A falta de opção imposta para se obter um mínimo de segurança, certamente esbarra na sua formação, uma vez que, por excelência, o jovem está em uma fase na qual "fazer escolhas" é criar e fortalecer identidades.
Existe uma ânsia de locomoção que é expressada por um "ir em frente" e que também aparece na participação dos jovens em passeatas, movimentos de grupos de jovens, etc. Além disso, a sociedade oferece ao jovem possibilidades para que ele possa exercer essa ânsia de locomoção: esportes, danças, etc. Essa característica da juventude faz parte da construção da identidade e é essencial para que o jovem consiga estabelecer a sua identidade e seu estilo.
A sociabilidade desses jovens parece não ter conseguido, ainda, driblar as dificuldades impostas pelo seu local de moradia. Se há uma socialização, como aponta Sposito (1994), que vem nascendo no mundo da rua, nas esquinas e pontos de encontro, onde os jovens desenvolvem suas relações de amizade e lazer, exatamente por enfrentarem os mecanismos da violência urbana, essa socialização não pôde ser observada nos jovens pesquisados. Segundo ela, nesses espaços da rua os jovens buscariam construir suas identidades coletivas e as modalidades de sociabilidade. Percebe-se que os jovens pesquisados ainda não se envolveram em ações coletivas, não tornaram-se atores sociais atuantes. O espaço urbano da Vila da Luz não é visto como um espaço que foi reapropriado por aqueles jovens com possibilidade de se tornar um novo espaço para novas redes de sociabilidades. Nesse sentido, o fato de não poderem sair de casa só dificulta a articulação desses jovens, que poderiam buscar nova sociabilidade, apesar do local onde moram.
Erikson (1971) fala de etapas de evolução, cada uma delas correspondendo a uma aquisição que o indivíduo deve realizar em sua interação com o mundo. A organização da identidade é a etapa central proposta por ele na evolução do ciclo humano. É um momento de síntese, de transformação de identificações em identidade e de interação original com o mundo (Fiori,1981).
Assim, chegar na juventude e não poder fazer escolhas poderá comprometer a afirmação de sua identidade, crise psicossocial desse momento, segundo Erikson. É como se houvesse uma regressão do ponto de vista emocional pois esse é o momento, por excelência, em que o jovem precisa acreditar que é capaz de ser alguém no mundo.
É impossível falar de identidade sem falar de sociabilidades. A identidade pode ser entendida como um conjunto de representações que a sociedade e os indivíduos constroem sobre algo que dá unidade a uma experiência humana, múltipla, facetada, tanto no plano psíquico como no plano social (Marques,1997). Tanto as juventudes quanto as identidades são construídas de formas diversas, segundo as diferentes sociedades, o lugar social que o sujeito ocupa, os conjuntos de valores, idéias e normas, etc., que vão formar seu instrumento de leitura para a interpretação do mundo. Assim, cada sujeito, de acordo com seu contexto sócio-histórico e a partir desses referenciais, vai organizando a sua percepção da realidade. "Toda identidade é socialmente construída no plano simbólico da cultura" (Marques,1997, p.67).
Sabemos também que possuímos, todos, várias identidades: a identidade pessoal, a identidade familiar, a identidade social, etc. Assim também é com o jovem: ele possui uma identidade na família, na escola, na galera, no futebol, no trabalho, no local de moradia, etc. Como há muitas identidades, precisamos pensar como o jovem se relaciona com a família, na escola, no local de moradia, etc., para pensar a sua identidade. Pela pesquisa, em todas essas áreas, o jovem da Vila da Luz ainda não tem como recompensar a sociabilidade comprometida na Vila.
A vila desce11 11 . Termo utilizado pelos jovens da Vila da Luz para referirem-se ao fato de irem para a escola. para a escola Professora Inês Gonçalves a dinâmica dos encontros e as estratégias de convivências
Pensando nos alunos da Vila da Luz, somos levados a considerar que eles lidam com algo que lhes desagrada (morar na Vila da Luz), mas que, ao mesmo tempo, é algo que os protege (morar na Vila da Luz). Essa ambigüidade nos foi assinalada por alunos que moram em outros bairros. Ao descreverem os colegas da Vila da Luz, eles sinalizam traços de violência nos comportamentos de seus colegas da vila; entretanto, entendem que esses traços, embora marginalizem os alunos de Vila da Luz, são usados por estes, convenientemente, para garantir sua própria sobrevivência ou autoproteção na escola.
A sociabilidade dos jovens da Vila da Luz, marcada pela violência, se reproduz, portanto, também no interior da escola. Na medida em que a escola não representa mais uma fortaleza de "sossego e tranqüilidade", ela pode, como vem sendo, ser freqüentada por pessoas que não fazem parte de sua dinâmica interna. Nessa perspectiva, ela deixa de ser um fator de proteção, para se constituir em fator de risco.
As representações que os outros alunos constroem de seus colegas da Vila da Luz oferecem-nos um quadro de perplexidades, pois nele vislumbra-se um tipo de solidariedade grupal que se constitui por e na violência.
Movidos pelo medo e pelas ameaças, alguns alunos receiam que seus colegas da Vila sejam eles mesmos os "malandros" da Vila, "os que matam"; outros, entretanto, receiam que eles sejam amigos dos "malandros" da Vila, estes, por sua vez, podendo ser convocados a qualquer momento, para dar uma "mãozinha" nas brigas domésticas, na escola: está formada, assim, numa espécie de corporação a serviço da violência; corporação esta que, segundo os alunos de outros bairros, tem sido utilizada para ameaçar os outros.
Chama-nos a atenção, nos relatos, o fato de que os jovens de outros bairros interpretam a violência praticada pelos alunos da Vila da Luz como uma "violência gratuita", sem motivo real, pautada em motivos inventados: "é uma desculpa" ou "uma oportunidade para cair numa briga", dizem eles.
É interessante observar que os jovens relatores identificam a "briga" quase como uma necessidade do "outro", um impulso que tem de cumprir sua trajetória natural, com ou sem motivo consciente. Nesse sentido, tal visão coincide, em parte, com alguns pressupostos psicanalíticos, dentre os quais aquele que entende os impulsos como algo que existe na estrutura psíquica humana, não necessitando de nenhuma razão externa para manifestar-se.
Parece-nos que a distinção entre motivos e razão nos ajuda a compreender melhor a observação feita pelos alunos de outros bairros. Basta lembrar que, para Giddens (1997), as razões se diferenciam dos motivos, porque elas formam uma característica constante de ações, ou seja, se quisermos compreender como os sujeitos monitoram a própria ação reflexivamente, devemos entender as razões que os fazem agir desta ou daquela maneira. Já os motivos, como nos diz o autor, "devem ser entendidos como um estado sentimental subjacente do indivíduo, envolvendo formas inconscientes bem como aflições e incitamentos experimentados de forma mais consciente" ( Giddens, 1997, p.59).
A resposta a essa questão tem de ser buscada, também, no plano da cultura. Ela tem nos oferecido categorias cooperantes ou alternativas que nos ajudam a entender o fenômeno em consideração.
Vejamos: o jovem pode criar, por exemplo, um motivo que justifique seu ato de violência em relação a seus colegas porque sabe que será julgado por suas ações. Uma violência sem motivos plausíveis é "muito pior" do que uma outra justificada, embora ambas produzam o mesmo efeito para a sua vítima. Mas ele pode, também, justificar seu ato inventando um motivo banalíssimo, conforme os que foram relatados, porque ele não consegue expressar, no nível da linguagem discursiva, os motivos internos que o levam a agir daquela maneira.
Enriquez (1990), ao estudar a natureza dos vínculos sociais, demonstra o quanto a violência pode significar uma forma de o indivíduo proteger-se contra uma possível desintegração do próprio ego. Ele reage violentamente todas as vezes em que se sente impotente e muito frágil ante as ameaças externas de perda de sua integridade.
No caso do jovem citado acima, seria dizer que, para proteger seu ego de ameaças constantes de desintegração psíquica, ele, morador da Vila da Luz, inventa um motivo para exprimir sua "agressão" autoprotetora. Dito de outra forma, age com violência, não porque seja destemido, e sim porque é frágil e desprotegido. Sua segurança ontológica 12 12 . Erikson (1971) nomeou uma série de estágios de desenvolvimento da personalidade que vai da infância até a idade adulta. Em cada um desses estágios a criança vai superando um obstáculo para que se sinta capaz de enfrentar o próximo. Ele comenta: que a primeira realização social da criança é, portanto, sua disposição de perder a mãe de vista sem que isso lhe cause angústia ou raivas desmedidas, pelo fato de a mãe ter se tornado tanto uma certeza interna quanto uma previsibilidade externa. Dito de outra forma: é desde muito cedo que a criança vai adquirindo "confiança" que significa para ela também segurança. Inspirando-se nessas reflexões, Giddens procura trilhar um caminho em busca do que ele denomina de "segurança ontológica". Para ele, a consciência prática, as rotinas e a confiança são possibilitadoras dessa segurança (1997). está profundamente ameaçada; entretanto esse é um dado que permanece oculto ou, pelo menos, não consegue ser traduzido em linguagem oral. Isso talvez explique porque sua violência em relação a outros alunos seja vista, por esses outros alunos, não como resultado de uma "insegurança psíquica", mas, sim, como afirmação de sua identidade.
Uma outra hipótese plausível ao uso da "violência gratuita" aponta para o fato de que nosso jovem pode agir dessa forma porque teme o diálogo. Nesse caso, estamos lidando com outra forma de se pensar os atos de violência. Está implícita, na hipótese acima, a idéia de que tais atos poderiam ser controlados e/ou eliminados, se pudéssemos fazer com que os motivos que os tornam violentos fossem convertidos, ou seja, traduzidos em linguagem racional, com perguntas e respostas, com réplicas, com concordâncias, dissensos, enfim, com diálogos.
Como o conflito só se manifesta quando há diversidade de idéias, de opiniões e de práticas, pode-se dizer que ele funciona como espécie de "animador cultural", estimulando o debate e o diálogo entre os indivíduos que compartilham, entre si, um mesmo espaço para realizar algum tipo de atividade. É assim que a solução de conflitos poderia se realizar naturalmente na "mesa de negociações" (Velho, 1986).
A escola poderia vir a ser o local do aprendizado dessa negociação. Como não tem, em sua maioria, cumprido essa função, os conflitos têm se exacerbado a ponto de ficarem inegociáveis, dando-se, assim, espaço à violência explícita. Já que nesse jogo de construção identitária corremos o risco de encontrar identidades estigmatizadas, como, por exemplo, entre os meninos da Vila, não deveríamos estar pensando se existe alguma forma de neutralizá-las no ambiente escolar? Poderia a escola interferir em representações tão negativas ?
Vários aspectos precisam ser analisados. Como exemplo, poderíamos entender o gesto de hostilidade em relação ao "olhar-na-cara- do-outro", como um ato de incivilidade, de descortesia. Goffman (1992) mostra que a interação em lugares públicos cria regras para os olhares: em geral o que se observa é uma espécie de "indiferença civil" quando se está entre estranhos. Ora, sabemos que não é aceitável o fato de "olhar no olho do outro" e muito menos "encarar com insistência" alguém com quem não se tem muita intimidade.
Entretanto, o caso em questão pode indicar algo para além da descortesia. O olhar para o outro pode despertar estigmas, sobretudo se esse outro for considerado superior, esnobe ou "boy", tal como os meninos da Vila da Luz consideram os alunos de outros bairros.
Do ponto de vista psicanalítico, podemos refletir que olhar pode indicar uma encruzilhada para onde convergem diferentes fantasias inconscientes, de natureza sexual e agressiva. Há uma dimensão angustiante do olhar/ser olhado. O ato de ver está a serviço de um controle e de uma discriminação (Mezan, 1989). O imaginário pode, mais uma vez, fazer aqui sua aparição, uma vez que qualquer olhar dirigido já vem carregado de significados pejorativos e de exclusão. Para os meninos da Vila da Luz, esses olhares podem significar um ato que deflagra suas diversidades, além de se sentirem julgados e talvez condenados à exclusão ou à marginalidade. É um olhar que ameaça e confirma uma identidade que eles não suportam, mas que, também, lhes serve como proteção.
No relato de um dos jovens, pode-se observar que a questão do "olhar-na-cara-do-outro" aparece como motivo suficiente para uma briga. Ele mesmo, embora morador da Vila, reconhece que as brigas têm motivos fúteis. Chama-nos a atenção o fato de ele indicar que alguns tipos de problemas poderiam ser conversados, ou seja, resolvidos por meio do diálogo, mas no entanto, viram briga. Como o próprio jovem nos remete à dimensão comunicativa como uma forma de resolução de conflitos pessoais, imaginamos que essa dimensão poderia ser mais explorada pela escola.
As estratégias de convivência, na escola, dos jovens que moram na Vila da Luz
Como a sociabilidade pressupõe um jogo com regras, mais ou menos definidas, é comum, na investigação dos processos que a compõem, ouvir os sujeitos falarem da forma que usam essas regras para conseguir algum nível de aceitação social.
Enganam-se aqueles que acreditam serem os sujeitos completamente desprovidos de estratégias de sociabilidade capazes de produzir um mínimo de inserções, apesar das hostilidades e estigmas que pesam em todo processo de exclusão social. Nesse caso, não discordar significa agir preventivamente, embora a discussão e a discordância sejam fundamentais para a construção da identidade juvenil. Muitas formas, sutis, de defesa do self contra os estigmas e discriminações foram reveladas nas entrevistas. Dentre elas, destaca-se a omissão do local de moradia.
Áreas carentes são associadas à violência e, por isso, existe um medo generalizado. No caso da Vila da Luz, parece que a violência atingiu índices muito elevados, sendo esta Vila alvo de ações de diversos órgãos da prefeitura de Belo Horizonte. As pessoas da região temem a Vila da Luz, especialmente. Há um certo estigma que marca a referida Vila, pois além do alto índice de assassinatos que ocorrem no local, a brutalidade dos crimes, às vezes, assusta moradores e não-moradores.13 13. Não é incomum o relato de alguém que morreu com um número elevado de facadas ou tiros e até mesmo com atos de crueldades do tipo: arrancar os olhos, a língua, as unhas, pedaço da orelha, etc. Os jovens, ao falarem dos crimes que acontecem lá, sempre os relatam com essas características de barbárie.
Esconder onde mora pode ser estratégico para se conseguir um(a) namorada(o), um emprego e, sobretudo, para não ser estigmatizado. Decidir pela "ocultação" ou "mentir para não ser discriminado" tem profundas implicações éticas. Nesses casos, fica claro o quanto o debate sobre a moral, enquanto constructo fundamental da formação da identidade, não pode se afastar da realidade sociocultural sobre a qual os sujeitos julgam os comportamentos alheios. Por exemplo, diante do relato de um jovem de 18 anos que se vê compelido a mentir sobre o local onde mora para evitar discriminação, como deveria se portar um professor? Como será que ele deveria orientar moralmente esse aluno?
A violência identificada ao local de moradia impede o trânsito de amigos e colegas. Os encontros são restritos a áreas fora da Vila. A situação começa a ser compreendida, pois, quanto maior a violência, maior será o medo e menor será a satisfação com o bairro, a ligação com o lugar, o espírito de comunidade, a identificação com os outros, a disponibilidade para ações coletivas e para a cooperação.
Os jovens da Vila, conscientes do medo que despertam em seus colegas, parecem ter aprendido a lidar com este estigma. Entretanto, necessitam de um esforço suplementar para conquistar a confiança dos outros. Os sentimentos de injustiça e de estigmatização ficam muito claros: mesmo quando não têm culpa, eles são considerados os culpados: "tudo de ruim que acontece na escola, a culpa é nossa".
Vale ressaltar o peso da vergonha e da humilhação na formação da identidade dos jovens. Elias (1990; 1994), em seu célebre estudo sobre o processo civilizador, mostra-nos de que maneira muitos de nossos hábitos civilizados foram incutidos por meio do sentimento de vergonha (gestos ou comportamentos) que sentíamos.
Giddens remete a vergonha diretamente para a auto-identidade: "a vergonha manifestada refere-se a sentimentos experimentados por uma criança quando é de algum modo humilhada por outra pessoa" (1997, p.61). O inverso da vergonha seria, segundo ele, o orgulho, a auto-estima: "a confiança na integridade e valor da narrativa de auto-integridade" (1997, p.42). Sendo assim, provocar a humilhação pública de uma criança, ou aqui, de um adolescente, é o mesmo que diminuir sua auto-estima, fazê-lo perder a confiança na integridade de sua auto-integridade. Em outros termos, é expô-lo e incitá-lo a agir com violência extrema para salvar seu "ego da desintegração psicológica".
A alteridade na construção da identidade é fundamental a imagem que o outro faz do jovem pode interferir na construção da imagem que ele faz de si próprio. Mais uma vez a violência torna-se, mesmo indiretamente, elemento que participa na construção de identidades dos jovens, uma vez que essa violência interfere em elementos fundamentais para essa construção.
O medo sentido pelos jovens moradores de outros bairros acaba interferindo na convivência dos alunos na escola. O sentimento de rejeição nem sempre é resolvido de maneira pacífica. A atitude mais usual é reagir com certa agressividade, que acaba criando um ciclo vicioso: a violência que acontece na Vila da Luz ameaça e amedronta os outros jovens na escola.
A violência que ocorre na escola tem várias interpretações: para os moradores de outros bairros, ela começa pelos meninos da Vila da Luz; estes afirmam que os outros meninos os provocam e os tratam mal. Assim, cada um tem suas explicações. Cabe entender como essa convivência está acontecendo e quais as estratégias eles têm usado para, bem ou mal, estarem no mesmo local, todas as noites.
Confiança e segurança no cotidiano dos jovens da Vila da Luz
Os relatos dos jovens da Vila da Luz apontam para aquilo que consideramos central na formação de suas identidades: o sentimento de segurança capaz de ajudá-los a enfrentar as ansiedades existenciais no cotidiano. Como o referido sentimento é apresentado de forma muito restritiva, vale examinar, a seguir, o que leva aqueles jovens a nutrir tanta insegurança no seu dia-a-dia.
Comecemos, por exemplo, pela própria origem desse sentimento. Segundo Giddens (1997), os indivíduos desenvolvem estados de confiabilidade, na primeira infância, a partir das experiências com seus "educadores" (pais, tutores, etc.). Essa maneira de conceber a origem do sentimento de segurança está apoiada nas teorias dos psicanalistas D. Winnicott e E. Erikson, para os quais as crianças estabelecem elos com seus educadores iniciais e aprendem a lidar com a ausência do outro sem ansiedade. Seguindo essa linha de raciocínio, "a confiança básica, desenvolvida através das atenções carinhosas dos encarregados de educação nos primeiros anos de vida, liga fatalmente a auto-identidade com os educadores iniciais". E ainda, "a mutualidade com os educadores iniciais (...) pressupõe uma sociabilidade base, prévia para qualquer diferenciação entre os dois" (Giddens, 1997, p.36).
Em termos teóricos, para o estudo da reação dos nossos jovens perante situações ameaçadoras, o que nos interessa analisar é a eficácia desse sentimento para eles. Teríamos condições de comentar alguma coisa a esse respeito?
Certamente nada podemos falar acerca da relação entre os jovens e os encarregados de sua educação na primeira infância. Mas há muito o que dizer sobre o sentimento de insegurança ou de pouca proteção em face de situações debilitantes com as quais eles têm se confrontado.
Comecemos pelo relato de uma entrevistada:
Há dois anos atrás eu gostava muito de sair com minhas amigas, gostava de namorar, adorava o pai da minha neném, gostava muito de ficar do lado dele, eu sentia que do lado dele eu tava protegida e tudo (...)
Eis aí um belo retrato de autoconfiança. Uma jovem de 16 anos, rodeada de amigas e apaixonada. Um amor protetor. Entre as amigas, ela destaca a irmã e uma outra jovem.14 14 . Esta amiga morreu em 1997, de meningite. Ambas são admiradas pela franqueza. Mas tudo isso, esta auto-segurança, acabou. Hoje, diz ela, eu não sei te falar do meu jeito de ser... se você me perguntasse isso há...dois anos atrás eu sabia te responder, mas hoje eu não sei .
Há dois anos atrás ela engravidou; hoje, é mãe de uma menina. Em seu relato, fica claro que o pai de sua filha, aquele que a fazia se sentir protegida, não quis ficar com ela: quando eu precisei dele prá ficar comigo ele não quis (...) eu gostava muito dele. Agora eu gosto dele como pai dela (...) não acontece sexo, não acontece nada.
Ao perder seu amor protetor, ela reduz seu círculo de relações. Assim nos diz: mas hoje...o que tenho prá falar mesmo é da minha nenenzinha, da minha mãe e da minha irmã (...). Freqüento a Igreja Universal, minha mãe freqüenta, aí vou junto com ela.
A vida da jovem parecer ter mudado de rumo com a ruptura afetiva; entretanto, o núcleo básico de sua "confiança" foi reativado: a mãe e a irmã. Parece que esse núcleo a tem auxiliado a suportar as angústias do dia-a-dia. Esse casulo protetor permite a ela distanciar-se de atitudes que ferem a sua auto-identidade. Afirma com veemência:
Tudo que eu não gosto é traição, é a pessoa vim e eu pegar ela falando de mim, odeio isso. Eu fico autoritária, sabe, eu não me mudo,15 15 . Pelo sentido da frase, no contexto, "não me mudo" é "não me calo". eu começo a brigar, começo a falar alto...discutir...eu fico fora de mim.
A traição é uma atitude imperdoável, na sua fala. Para ela, isso deve ter um significado muito forte. Sentir-se traído é perder a confiança em alguém no qual foi depositada uma parcela importante da vida íntima. No caso dela, houve uma mudança de sua auto-identidade:
As pessoas me acham um pouco esquisita, ah, porque eu não sou...aquela pessoa de chegar, conversar, de ficar brincando, eu gosto de ficar mais quieta no meu canto, eu e minha irmã, se a pessoa chega perto de mim prá conversar eu converso, agora se for prá mim sair prá conversar eu não consigo conversar não. Aí eles me vê, ah, esquisita prá caramba, não vê eu como uma pessoa normal. Mas acho que não tem nada a ver não, prá mim não.
Tudo indica, em seu relato, que a possibilidade de contato com o outro está bloqueado por um forte sentimento de traição. Ainda que o núcleo básico de sua confiança tenha sido restituído, ele tem funcionado mais como um casulo protetor do que um estímulo para novas relações.
Nos outros relatos, o núcleo familiar desaparece praticamente da referência da "confiança básica". Os amigos aparecem formando o grupo no qual os jovens se sentem parcialmente seguros.
Um outro jovem diz que gosta de sair no fim de semana com "os meninos da sala". Quase tudo que eu gosto , diz ele, meus amigos gostam. Isso eu acho legal. Eles gosta, tipo assim, de músicas que eu gosto, sair nos lugares que eu gosto, é..., a minha idéia é a deles.
Nesse exemplo o "núcleo de confiança" está na escola: são seus colegas de sala. Mesmo tendo alguns moradores da vila como ele, a escola é focalizada como o cenário dos encontros. Há também o valor dado ao trabalho: trabalhar prá mim é bão, não fico à toa. Salvo quando está com os amigos, ele prefere o sossego: Eu não sou muito de brincar, assim, de ficar zoando pela rua afora, ando mais é calado... calado no meu canto.
O "núcleo familiar" está ausente em seu relato, mas suas relações íntimas e de confiança são construídas no cotidiano escolar; ou seja, radicalizando-se a idéia de que alunos são, antes de mais nada, sujeitos socioculturais, capazes de dar sentido e significado às suas ações, podemos verificar qual o significado que esse jovem morador da Vila da Luz tem dado à escola. Esta pode se constituir em um espaço de desenvolvimento de afetividades, ajudando a construir relações de empatia, a reconhecer no outro virtudes a serem cultivadas. Nos outros, diz ele, admiro a beleza, sabe, o jeito de tratar, a educação, o respeito, admiro muito isso. Não nega seu cotidiano violento. Afirma: já vi muita violência. Para se defender, pensou em comprar um revólver. Diz ele: andei armado muito tempo, tinha um pouco de bosta na cabeça, mas eu nunca pensei de fazer covardia com os outros, assim não, eu sempre fui mais calmo. Curiosa relação entre "andar armado" e "ser calmo". Aliás, foi o "andar armado" que nos motivou a realizar a presente enquete.16 16 . Quando a diretora da escola foi entrevistada ela relatou que alunos da vila estavam indo armados e era exatamente isso que preocupava a escola naquele momento. O desconhecimento sobre o que fazer nesse caso e também a explicitação desse fato é que determinou a escolha dessa escola para a realização da pesquisa, como dito anteriormente. A Vila da Luz, nesse momento, passou a ser uma fonte importante para a coleta de dados, especialmente por meio da fala dos jovens moradores de lá. Ou seja, era preciso investigar por qual motivo os alunos moradores da Vila da Luz "precisavam" ir armados para a escola e seus desdobramentos no interior e na dinâmica da mesma. Como se pode ver no relato desse jovem, a arma aparece para protegê-lo da violência. É uma resposta absolutamente individual a um fenômeno social mais amplo. Os amigos e a relação afetiva tiveram um papel importante na reavaliação que ele faz do próprio cotidiano. Entretanto, não descarta o esforço pessoal: Prá uma pessoa ser feliz assim, só basta ela ter.. tipo assim, cabeça, não se envolver muito.
A relação de confiança, no atual contexto cultural, exige uma certa mutualidade, como nos lembra Giddens (1997), ou seja, a confiança não pode mais, por definição, assentar-se em critérios exteriores à relação em si tais como critérios de parentesco, dever social ou obrigação tradicional. Para consolidar-se, a confiança só pode ser mobilizada mediante um processo de revelação mútua entre as pessoas. Embora ainda haja muitos critérios baseados em relações familiares ou em critérios tradicionais do tipo religioso, há critérios intrínsecos relacionados ao prazer mútuo.
Esboçadas as idéias que nos ajudam a compreender a origem do sentimento de confiança quanto suas características básicas, vale examinar as razões que os levam a sentir falta de segurança.
Diferentemente do que se pode imaginar, a insegurança não é originária da ansiedade ou de sentimentos difusos e imprecisos. Ao contrário, ela tem uma causa muito concreta: a violência, que gera medo. É daí que vem a perda de referência; a insegurança é alimentada por diversos fatores. A ausência de motivos para os assassinatos ou os assassinatos por engano geram uma insegurança que se torna totalmente persecutória: quem será poupado? Quem será o "escolhido"? O que preciso fazer para que eu não seja a próxima vítima?
Achar os motivos para as mortes e explicar tamanha violência parece trazer aos jovens pesquisados um grau mínimo de segurança para viverem. A relação entre merecimento/morte/violência parece servir ao mesmo propósito, ou seja, quem faz algo de errado merece morrer isso parece tranqüilizá-los.
A experiência da violência os faz questionar suas vidas, suas amizades, seus sentimentos, suas estratégias de segurança: para os jovens da Vila da Luz a construção reflexiva do self é feita com muito empenho e a todo momento.
Em clima de tanta insegurança, a confiança surge como categoria a ser investigada bem com sua relação com o local de moradia. Parece que não morar na Vila faz com que a confiança tenha outras configurações. O local perigoso da moradia interfere na aquisição ou não da confiança nos outros e pelos outros, o que traz consequências nas aquisições e manutenções das amizades. Assim, a "mãe" e "Deus" aparecerem como os únicos dignos de confiança, com raras exceções.
Um jovem toca no cerne do problema da confiança, a saber: o seu potencial de perseverança, mesmo quando o outro está ausente. No conceito de segurança básica, a confiança só se estabelece quando, na ausência dos educadores iniciais, a criança consegue controlar a ansiedade, ou seja, quando a confiança se articula com a fidelidade: como confiar em alguém que, na sua frente parece amigo, mas longe torna-se seu "inimigo" e coloca sua vida em risco?
Para outros, a confiança está relacionada à vivência estritamente pessoal: "eu" e " ele" e mais ninguém: Ah, tem um só colega meu que eu confio nele né, porque nós anda, só nós que anda junto. Nele eu confio.
Além desse exemplo, o mesmo jovem fala da dificuldade em confiar em alguém por causa de suas experiências anteriores. Ele trabalhou para uma pessoa e não recebeu o salário. Mas o medo que faz parte de sua vida, que o acompanha no seu dia-a-dia, o impediu de exercer sua cidadania e cobrar do patrão.
Segundo Giddens (1997), o self não é passivo e determinado por influências externas; ao contrário, ao forjarem suas identidades, independente do caráter reduzido dos seus contextos de ação, os indivíduos contribuem para e promovem diretamente influências sociais com conseqüências e implicações globais. Em outros termos, o self tem de ser construído reflexivamente e no meio de uma confusa diversidade de opções e possibilidades. No mundo da modernidade tardia, nos diz ainda Giddens, a identidade não está dada, pronta, acabada. Os sujeitos influenciam e são influenciados pelos contextos sociais, locais e globais. Há uma diversidade de opções e possibilidades nas quais o sujeito precisa construir seu self, reflexivamente.
Estratégias singulares na busca da segurança e suas possíveis contribuições no entendimento da violência como elemento constituinte da identidade
Parece não haver muitas regras comuns para se evitar a violência e se proteger dela na Vila.17 17 . Parece que a "lei do silêncio" também impera na Vila da Luz como em tantas outras. Não ver nada, não saber de nada ainda parece trazer certa segurança ou, no mínimo, não procurar confusão, como eles dizem. Cada um, de acordo com suas vivências, busca suas próprias estratégias: a da "boa vizinhança", citada por alguns jovens, pode parecer boa, mas cabe-nos perguntar qual seu efeito para a construção de identidade do jovem. Não dizer o que pensa, não poder posicionar-se de acordo com os princípios que julga corretos, éticos, sem dúvida, interfere na construção da identidade juvenil. E, se quisermos saber qual é o motivo pelo qual ele não pode ser autêntico, questionador, etc., vemos que a violência parece estar por trás dos comportamentos assim descritos por eles: é preciso ter "jogo de cintura", não pode ser desconhecido de todos, mas também não pode ser íntimo de ninguém, não é seguro "embolar no meio deles", mas também é preciso cumprimentar, etc.
O ambiente seguro, calmo e tranqüilo que nós tanto prezamos e sabemos importante para o crescimento do jovem e para a construção de sua identidade, também é alterado na Vila da Luz.
A casa, lugar de aconchego, de proteção cede ao clima da violência. Seus moradores começam a questionar sua eficácia: mudam-se camas de lugares, balas entram pela janela... Qual é, então, o lugar da segurança?
As ambigüidades vivenciadas pelos jovens da Vila da Luz apareceram em vários momentos, na fala de muitos deles. A sociabilidade parece ser ameaçada a todo instante por uma frase, imaginária, vinda de seus colegas e, de modo geral, pela comunidade, assim resumida: diga-me de onde vens que te direi quem és.
Infelizmente, esses jovens ainda precisam provar que, apesar de serem moradores da referida vila, são jovens e merecem respeito, apesar das diferenças. E, para isso, pagam um preço às vezes alto demais para pessoas jovens demais. Temos a expectativa de que a escola possa participar cada vez mais unindo "diversidade" e "respeito" e incentivando o diálogo entre os alunos como uma das formas de romper com a violência. A escola é um local onde os jovens brigam, criticam, depredam, mas, apesar disso, desejam, e sobretudo vão até lá, no mínimo, para se encontrarem. E, nós, não podemos nos esquecer disso.
Considerações finais
Embora muitas questões tenham sido levantadas e nem todas tenham sido respondidas, ainda cabem algumas considerações.
A hipótese (inicial) de os alunos da Vila da Luz serem os autores da violência na escola precisou ser verificada ao longo de toda a pesquisa, partindo da fala desses alunos e também de seus colegas de outros bairros.
A realidade do seu local de moradia, a Vila da Luz, revelou-nos um alto índice de violência relatado pelos alunos, com destaque para assassinatos com requintes de crueldade. Os jovens mostraram como é possível e o que precisavam fazer para sobreviverem. As estratégias, as mais variadas possíveis, eram o que os permitiam manter-se vivos e não perderem a esperança de que tudo podia mudar. Quanto maior a violência, maior parecia ser a sua banalização para seus moradores.
Vimos, neste trabalho, que os jovens que se sentem vítimas na Vila da Luz chegam à escola e vivem o estigma do "malandro", embora não seja exatamente isso que eles desejem.
Ser da vila parece trazer vantagens e desvantagens. Essa ambigüidade é vivida intensamente no espaço escolar, desembocando, às vezes, em situações de violência entre os alunos (brigas de correntes, espancamentos, etc.) ou em atos de violência contra o patrimônio (bombas no banheiro, fogo nas latas de lixo, etc.). Essas brigas acontecem muito mais para mostrar o que eles são capazes de fazer para amedrontar colegas e professores. Não se trata de uma violência escolar no sentido de uma reação à instituição escolar. Os atos de violência servem para demarcar espaços de poder.
A presente pesquisa mostrou também que a violência que ocorre em casa ou no bairro pode afetar a construção da identidade. Nas entrevistas com os jovens, foi possível observar uma certa dificuldade, sobretudo dos que vinham da Vila da Luz, de se orgulhar do local onde moram e de ter uma identificação com os moradores de lá.
A alta rotatividade dos moradores da Vila da Luz, na fala dos jovens, pode, de certa forma, aumentar a desconfiança nas pessoas, prejudicando, assim, o contato entre elas e, consequentemente, a construção das identidades entre eles.
A banalização da violência é preocupante, pois não podemos ver com naturalidade que um jovem acredite que um ato de violência seja somente aquele que envolva revólver e morte.
Nesse clima de tensão e de terror, com traficantes e pessoas morrendo sem saber os reais motivos, é esperado que haja uma diminuição ou um empobrecimento de modelos, sejam esses familiares, sociais, profissionais e de ascensão social.
Mas há algo que não podemos negar: os jovens da Vila da Luz, "descem" para a escola. Isto nos mostra que esta última ainda é um local público que favorece encontros entre eles.
Sem a participação desses jovens, nós jamais sairíamos do senso comum. Os jovens da Vila da Luz ajudaram-nos a compreender uma dinâmica de estigmatização na escola e os significados de seus conflitos. Graças a eles pudemos construir novas referências, neste trabalho, sobre a construção de identidade entre eles e também sobre as relações de confiança, fundamentais nessa construção.
Cabe ressaltar que embora tenham sido citados vários teóricos que enxergam a juventude como um período em que há conflitos em casa e no qual os jovens preferem andar em grupos, os dados empíricos dessa pesquisa não apontaram para isso. Os jovens pesquisados da Vila da Luz ainda têm a casa e os pais como referências relativamente seguras e preferenciais, talvez por já viverem tantos outros conflitos e inseguranças fora de casa. Com relação ao fato de os jovens da Vila da Luz, às vezes, preferirem estar sozinhos a estar em grupos, talvez se deva fato de que, esses jovens vivam, como já citado anteriormente, uma ambigüidade com relação à vivência grupal: ora sentem-se seguros, ora correm risco de vida, o que pode não ocorrer com um outro jovem que vive em um outro contexto sociocultural, no qual viver em grupo é seguro e satisfatório.
Isso nos leva a pensar que não podemos tomar as teorias como válidas em qualquer contexto. Cabe a nós, pesquisadores, buscar discernir dentre as teorias em vigor aquelas que nos ajudam a entender a realidade que estudamos.
Sobre os jovens da Vila da Luz, o que temos a dizer é que não há vítimas nem vilões. Não há malandros que, aqui, viram heróis. O que cabe fazer talvez seja abrir possibilidades para que eles possam atuar como sujeitos de sua história, para que possam participar de projetos que valorizem e respeitem sua diversidade e incentivem a postura de diálogo acima de qualquer coisa.
Recebido em 16.07.01
Aprovado em 16.08.01
Carla Araújo é psicóloga, com especialização em Psicopedagogia, e mestra em Educação pela UFMG. É professora-assistente III pela PUC-MG/campus de BETIM e ministra aulas de Psicologia da Educação nos cursos de Letras e Matemática dessa Instituição bem como da PUC-MG/BH.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
13 Nov 2001 -
Data do Fascículo
Jun 2001
Histórico
-
Aceito
16 Ago 2001 -
Recebido
16 Jul 2001