Open-access As vivências espaciais dos bebês a partir do movimento livre e da autonomia na creche

Resumo

O artigo é decorrente de uma investigação etnográfica com bebês que, baseada nas contribuições do campo dos Estudos da Geografia da Infância e das discussões decorrentes da abordagem Pikler, teve como objetivo central discutir as vivências espaciais dos bebês a partir do movimento livre e da autonomia na creche. Metodologicamente, a pesquisa foi desenvolvida com oito bebês com idades entre 4 meses e 1 ano e 5 meses, durante um período de dez meses, em uma creche que fundamenta seu projeto educativo nos pressupostos teóricos da abordagem Pikler. Para a geração dos dados da pesquisa, foram utilizadas as seguintes estratégias metodológicas: observação, registro em diário de campo, registros fotográficos e fílmicos. Com base na leitura do diário de campo, assim como na decupagem das filmagens e na análise das fotografias, foram escritos episódios a respeito das vivências espaciais dos bebês ocorridas na investigação. A leitura do material gerado em campo possibilitou a identificação de recorrências presentes nas vivências espaciais dos bebês e a definição de três unidades analíticas: 1) os deslocamentos dos bebês pelos espaços da creche; 2) os bebês e as explorações das materialidades que constituem os espaços da creche; 3) as interações entre os bebês na ocupação dos espaços da creche. Com as análises, infere-se a importância de uma docência relacional pautada na promoção de espaços, tempos e materialidades, a qual possibilite que os bebês desfrutem do movimento livre e tenham a oportunidade de exercer a atividade autônoma por meio de suas vivências espaciais.

Palavras-chave  Creche; Bebês; Vivências espaciais; Movimento livre; Autonomia

Abstract

The article is the result of an ethnographic investigation with babies that, based on contributions from the field of Childhood Geography Studies and discussions from the Pikler approach, had as its central objective to discuss the spatial experiences of babies based on free movement and autonomy in daycare. Methodologically, the research was developed with eight babies aged between 4 months and 1 year and 5 months, over ten months, in a daycare center that bases its educational project on the theoretical assumptions of the Pikler approach. The following methodological strategies were used to generate the research data: observation, recording in a field diary, and photographic and film records. Based on reading the field diary, the footage breakdown, and analysis of the photographs, episodes were written about the spatial experiences of the babies that occurred during the investigation. Reading the material generated in the field made it possible to identify recurrences present in the spatial experiences of the babies and to define three analytical units: 1) the movements of the babies through the spaces of the daycare, 2) the babies and the explorations of the materialities that constitute the spaces of the daycare, 3) the interactions between the babies in the occupation of the spaces of the daycare. The analyses show the importance of relational teaching based on the promotion of spaces, times, and materialities, which allows babies to enjoy free movement and have the opportunity to exercise autonomous activity through their spatial experiences.

Keywords  Daycare; Babies; Spatial experiences; Free movement; Autonomy

Considerações iniciais

O reconhecimento da creche como direito público de garantia do cuidado dos bebês (Guimarães, 2023 ) foi consolidado na Constituição Federal de 1988 (Brasil, 1988 ) e reafirmado na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), Lei nº 9.394 , de 20 de dezembro de 1996 (Brasil, 1996 ), a partir do estabelecimento da Educação Infantil como primeira etapa da Educação Básica. Todavia, em relação ao atendimento das crianças de 0 a 3 anos de idade no território nacional, Henrique Silva e Bernadete Strang ( 2020 , p. 16) argumentam que ainda “faltam creches; o número de professores é insuficiente, [...] muitos deles são mal formados; [e] em geral os espaços são inadequados [...]” para o atendimento qualificado dos bebês.

De modo recorrente, no atendimento em creche, o exercício da docência encontra-se equivocadamente pautado em um imperativo do estímulo (Carvalho; Radomski, 2017 ). Esse imperativo, de cunho propedêutico, está associado a uma perspectiva organicista de desenvolvimento humano, que não reconhece o bebê enquanto sujeito de ação (Szanto-Feder, 2014 ) e o projeta enquanto capital humano a ser investido. Contrariando tal perspectiva, defendemos o cuidado e a educação qualificada dos bebês nas creches enquanto “[...] direito à convivência no espaço coletivo e público com uma presença adulta profissional atenta, numa intencionalidade pedagógica mergulhada na atenção conjunta” (Guimarães, 2023 , p. 9) e no respeito às crianças.

Nesse sentido, concordamos com Chokler ( 2017 , p. 40, tradução nossa) quando declara que “a atividade da criança no mundo é uma ação compartilhada em uma relação social complexa, na qual os laços recíprocos entre os participantes não se configuram apenas pela ação e reação, mas por relações sociais impregnadas de conteúdo afetivo”. Assim, “a intencionalidade [docente] se coloca nas ações diretas do professor, na capacidade de organizar espaços, observar ativamente, agir e dispor contextos a partir da atenção aos movimentos [...]” (Guimarães, 2023 , p. 12) e descobertas que configuram as vivências espaciais (Lopes; Paula, 2020 ) dos bebês.

Compreendendo que “[...] não existe vivência espacial fora do verbo humano” (Lopes; Paula, 2020 , p. 6), destacamos que este artigo é decorrente de uma pesquisa com bebês (Kelleter, 2020 ) que, baseada nas contribuições do campo dos Estudos da Geografia da Infância (Amadini, 2016 ; Lopes, 2021 ) e nas discussões derivadas da abordagem Pikler (Pikler, 2010 ; Falk, 2011 ; David; Appell, 2013 ; Chokler, 2017 ), teve como objetivo central discutir as vivências espaciais dos bebês (Lopes; Paula, 2020 ) a partir do movimento livre (Szanto-Feder, 2014 ) e da autonomia (Falk, 2011 ) na creche. Esse propósito investigativo implicou a defesa de que “o movimento do bebê, com seus gestos e variadas linguagens tônicas, não só dá contorno ao vivido, [mas pode] ser entendido como um modo de comunicação [...]” (Cervo, 2022 , p. 6) que se materializa por meio de suas vivências.

Esclarecemos que, na acepção de Vigotski ( 2018 , p. 78), “[...] vivência é uma unidade na qual se representa, de modo indivisível, por um lado, o meio, o que se vivencia [...] e, por outro lado, como [...]” isso é vivenciado. Por essa razão, tal como Silva, Goulart e Neves ( 2023 , p. 6), “consideramos que [...] conhecer as vivências (perejivânia) constituídas pelo grupo de bebês no espaço do berçário, requer uma especial atenção as formas utilizadas pelas crianças ao instituírem suas aproximações com outros/as bebês, adultos/as e artefatos culturais”. Assim, as vivências espaciais (Lopes, 2021 ) dos bebês na creche dizem respeito aos modos como eles, através do movimento livre (Szanto-Feder, 2014 ), se apropriam dos espaços pelos seus deslocamentos, descobertas e interações com seus pares, adultos e materialidades, atribuindo sentidos ao vivido. Portanto, para realizar “o exercício de leitura da unidade [pessoa/meio sociocultural]” no contexto da creche (Silva; Goulart; Neves, 2023 , p. 6), entendemos que o espaço, além de físico, é social e se constitui mediante as relações que são estabelecidas pelos sujeitos que o habitam.

Metodologicamente, desenvolvemos, durante um período de dez meses, uma pesquisa etnográfica (Graue; Walsh, 2003 ) com oito bebês com idades entre 4 meses e 1 ano e 5 meses, em uma creche que pauta seu projeto educativo nos pressupostos teóricos da abordagem Pikler (Pikler, 2010 ; Falk, 2011 ; David; Appell, 2013 ). Essa abordagem foi desenvolvida pela pediatra húngara Emmi Pikler em 1946 no âmbito do Instituto Lóczy, em Budapeste, na Hungria, e defende a promoção do movimento livre e da autonomia dos bebês através do vínculo de apego seguro e da qualidade dos cuidados de atenção pessoal. A abordagem Pikler tem como foco um sistema de atenção pessoal aos bebês concebido a partir dos seguintes princípios:

[...] a valoração da atividade autônoma da criança baseada em suas próprias iniciativas; o valor da relação afetiva privilegiada e a importância da forma particular que convém lhes dar em uma instituição; a necessidade de favorecer na criança a tomada de consciência de si mesmo e de seu entorno; a importância de um bom estado de saúde física, que serve de base para a boa aplicação dos princípios precedentes, mas que também é resultado deles.

(David; Appell, 2013 , p. 23, tradução nossa).

Dentre os princípios elencados, destacamos a centralidade dos bebês na ação educativa desenvolvida na creche. Essa centralidade ratifica a importância da relação afetiva, da atividade autônoma e da “[...] atitude atenta e não preditiva [...]” (Guimarães, 2019 , p. 53) do adulto para que o bebê possa exercer escolhas. Trata-se de uma atitude ética em relação ao cuidado e à educação dos bebês no espaço institucional, que também se faz presente no processo investigativo.

Desse ponto de vista, compreendendo que a ética na pesquisa com bebês (Alderson; Morrow, 2011 ) precede as escolhas metodológicas, realizamos as seguintes ações: a) obtivemos a anuência da equipe gestora da creche; b) obtivemos a autorização das famílias das crianças e das professoras para a realização da pesquisa mediante a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido; c) obtivemos o assentimento dos bebês, por meio de uma entrada reativa em campo e do estabelecimento de vínculo com o grupo investigado; d) utilizamos nomes fictícios para nomear os bebês e suas professoras; e) ao término da investigação, realizamos a devolutiva da pesquisa a todos os envolvidos.

Para a geração dos dados da pesquisa, utilizamos como estratégias metodológicas: observação, registro em diário de campo, registros fotográficos e fílmicos. A partir da leitura do diário de campo, assim como da decupagem das filmagens e da análise das fotografias, escrevemos episódios a respeito das vivências espaciais dos bebês observadas na investigação. A leitura do material gerado em campo possibilitou a identificação e a definição de três unidades analíticas: 1) os deslocamentos dos bebês pelos espaços da creche; 2) os bebês e as explorações das materialidades que constituem os espaços da creche; e 3) as interações entre os bebês na ocupação dos espaços da creche.

O artigo está organizado em seis seções. Após esta seção introdutória, na segunda seção compartilharemos a discussão conceitual. Respectivamente, na terceira, quarta e quinta seções, compartilharemos as análises de cada uma das unidades analíticas. Por fim, na sexta seção, apresentaremos as considerações finais do artigo.

Movimento livre, autonomia e vivências espaciais dos bebês: notas conceituais

Episódio 1 – Os bebês habitam os espaços

Os bebês se deslocam engatinhando com desenvoltura pela sala-referência. Encontros, interações, sorrisos e troca de olhares marcam as explorações dos bebês nos espaços da sala. A sala-referência é ampla e organizada por espaços circunscritos – alimentação, descanso e brincar livre. A área com materiais e mobiliários – rampa, túnel etc. – para o brincar livre é a mais procurada pelos bebês. Eles se movimentam livremente pelo espaço da sala, escolhem materiais para brincar, assim como mobiliários para explorar, sem a intervenção direta da professora ou da educadora auxiliar. Observo que um bebê engatinha até o espaço de descanso, acessa uma das camas montessorianas acolchoadas – que fica na altura do chão – e se deita. Em instantes, o bebê começa a dormir, enquanto os demais membros do grupo seguem interagindo entre si e com os materiais. A minha inferência da manhã de observação é que o movimento livre e a autonomia dos bebês na creche possibilitam significativas vivências espaciais.

(Diário de Campo do Pesquisador 3 ).

Como se faz notar no episódio, observamos, durante a pesquisa, que as professoras possibilitavam que os bebês tivessem tempo e oportunidade para vivenciar o espaço a partir do movimento livre (Szanto-Feder, 2014 ). O movimento livre, na acepção de Szanto-Feder ( 2014 , p. 36, tradução nossa), “significa permitir a criança – qualquer que seja a sua idade – que descubra, prove, experimente, exercite e logo mantenha ou abandone, no decorrer do tempo todas as formas de movimento que possam ocorrer durante a sua atividade autônoma”.

Intencionalmente, na organização da rotina, as docentes da creche permitiam que os bebês tivessem a chance de exercer o movimento livre e a atividade autônoma na ocupação dos espaços. Isso porque, como advoga Gabriel ( 2016 ), é importante oportunizar ao bebê a tomada de consciência de si mesmo e de seu entorno, a partir da regularidade e da estabilidade dos acontecimentos cotidianos.

Nesse sentido, convém que a rotina seja organizada “[...] em pelo menos dois momentos: momentos de atividade de atenção pessoal e atividade livre” (Gabriel, 2016 , p. 14). Os momentos de atenção pessoal , conforme David e Appell ( 2013 ), operam como um meio privilegiado de construção de vínculo entre o adulto e a criança. Nos momentos em que a professora realiza a higiene, a troca de fraldas, a alimentação, a troca de roupas etc., ela estabelece um contato mais íntimo com o bebê. Essa rotina é tanto para os momentos de alimentação e banho como para a ordem em que cada uma dessas ações será realizada pela professora.

De acordo com Gabriel ( 2016 ), é a partir de ações de cuidado regulares e estáveis que o bebê passa a se reconhecer, tomar consciência de si, identificar sensações, além de perceber o modo de organização da rotina. Assim, a construção do vínculo com a professora, pautada na estabilidade das relações, tem como efeito a conquista da confiança e da autonomia dos bebês nos momentos de brincar livre (Kálló; Balog, 2013 ).

A tomada de consciência de si pelo bebê também é favorecida pelo brincar livre, já que tal ação ocupa um tempo significativo na creche. Conforme Kálló e Balog ( 2013 ), enquanto brinca, o bebê descobre as propriedades das materialidades que o rodeiam e aprende, através da ação sobre os objetos, o que pode fazer com eles. Dessa maneira, o brincar cumpre diferentes funções na vida do bebê, inclusive que é durante o brincar que ele satisfaz seu desejo de movimento e ação.

Desde muito cedo, como defende Tardos ( 2011 ), o brincar enriquece os conhecimentos dos bebês, suas experiências e se constitui como um dos instrumentos que lhes permitem conhecer o mundo. A função docente nos momentos de brincar livre é organizar o espaço e os materiais para que os bebês possam se deslocar e brincar com autonomia. Sob esse prisma, a autonomia, no âmbito da abordagem Pikler, é entendida como a capacidade de o bebê, desde o seu nascimento, “[...] exercer sua vontade, experimentar as suas capacidades, sua eficiência e seus limites [...]” (Szanto-Feder, 2014 , p. 335, tradução nossa) a partir de sua livre iniciativa.

Por exemplo, no episódio compartilhado na abertura da seção, é possível perceber que os bebês têm oportunidade e tempo para decidir com quais materiais e em quais espaços circunscritos da sala-referência irão brincar. É por livre iniciativa que um dos bebês decide se deslocar para a área de descanso para dormir. Portanto, as professoras da creche investigada compreendem que a atividade autônoma é um dos pilares do desenvolvimento motor dos bebês (Golse, 2011 ) e que “a autonomia possibilita à criança o prazer de sentir-se eficaz” (Szanto-Feder, 2014 , p. 335, tradução nossa).

Em razão disso, a promoção do desejo dos bebês pela atividade autônoma é imprescindível na docência na creche. Conforme David e Appell ( 2013 , p. 24, tradução nossa), “para a atividade do bebê adquirir significado, é preciso que esta nasça da própria iniciativa” dele. Já Falk ( 2017 , p. 114, tradução nossa) “aborda a autonomia não como uma obrigação, mas como um direito do bebê desde que se assegurem suas condições de emergência”. Desse modo, para promover a autonomia dos bebês através do movimento livre, o docente não deve interferir diretamente, impor sua vontade ou, ainda, ensinar movimentos. Ao invés disso, o adulto deve oportunizar um ambiente que possibilite que os bebês possam vivenciar o movimento livre através da experimentação do espaço, do tempo, das materialidades e das relações.

Diante dessa lógica, no decorrer da pesquisa percebemos que “[...] o laço [dos bebês] com os espaços se tornou rigoroso, profundo, contínuo e nada ocasional” (Amadini, 2016 , p. 102). Sob o olhar atento das professoras, os bebês buscavam seus objetos preferidos, se locomoviam para onde queriam e da forma como conseguiam, de acordo com suas intenções. O respeito ao ritmo dos bebês permitia que eles realizassem suas ações conforme suas possibilidades. A partir de uma relação afetiva privilegiada (Pikler, 2010 ) com os bebês, as professoras entendiam que “a liberdade de movimentos para a criança supõe a possibilidade de descobrir, de experimentar, de aperfeiçoar e de viver em cada fase de seu desenvolvimento, suas próprias posturas e movimentos” (Szanto-Feder, 2014 , p. 83, tradução nossa).

Compreendemos que o movimento livre (Szanto-Feder, 2014 ) dos bebês e o exercício da autonomia em suas escolhas no cotidiano da creche opera de modo profícuo na promoção de vivências espaciais. Concordamos com Lopes ( 2021 , p. 87) que “[...] toda vivência espacial é marcada pela produção do inexistido, mesmo que nele, aparentemente, esteja o que está comumente espalhado pelo chão da vida [...]”.

No caso de nossa investigação, a oportunidade que os bebês tinham de se movimentar livremente, de explorar as materialidades e de interagir com os seus pares produzia o novo por meio das aprendizagens que emergiam com (e através) das descobertas e interações sociais estabelecidas por eles. Durante a pesquisa, ratificamos o argumento de Jerebtsov e Prestes ( 2019 , p. 681) de que “a pessoa existe verdadeiramente nos momentos de vivência da incerteza, na tentativa de tomada de consciência e de realização de uma ação a qual atribui significado”. Ou seja, com a observação dos bebês, entendemos que a vivência espacial “[...] tem na singularidade do existir, suas peculiaridades [em cada sujeito], que vai se forjando a partir do plano social (o meio) e o plano individual (a pessoa)” (Lopes, 2021 , p. 103).

Na próxima seção, apresentaremos análises que focalizam as vivências espaciais dos bebês por meio dos seus deslocamentos nos espaços da creche.

Os deslocamentos dos bebês pelos espaços da creche

Na creche investigada, os bebês tinham liberdade para se deslocar pelos espaços internos e externos da instituição, sem a interferência direta das professoras. A presença das docentes acompanhando os bebês através da observação foi constante durante a pesquisa. De fato, percebemos um respeito das professoras em relação ao movimento de vagar e divagar (Rodrigues, 2020 ) dos bebês pelos espaços da creche, como apresentaremos no episódio a seguir:

Episódio 2 – Os bebês e seus deslocamentos da sala-referência para o pátio

Tarde ensolarada. A professora-referência convida os bebês para ir ao pátio. Como a ocupação dos espaços externos é recorrente na creche, os bebês demonstram entusiasmo ao ouvir o convite. Os bebês o aceitam e logo em seguida se dirigem para a porta. Pablo 4 (6 meses) sorri para a professora e estende os braços. Imediatamente a professora pega Pablo no colo, abre a porta da sala e anuncia para os demais bebês que levará o cesto com objetos de madeira para que eles possam brincar na área externa. Os bebês que já caminham acessam o corredor da sala e se deslocam autonomamente para o pátio. Observo que, nesse percurso, alguns bebês caminham ininterruptamente, outros param, tocam nas paredes, interagem com seus pares e com as crianças maiores que estão transitando pelo corredor. A professora acompanha atentamente todos os bebês e conversa com eles durante o trajeto. Enquanto isso, Carlos (10 meses), sob o acompanhamento da professora auxiliar, engatinha no seu próprio ritmo em direção ao pátio. Os bebês chegam aos poucos ao pátio e se dirigem para um espaço circunscrito no qual estão dispostos, em um tatame, objetos de madeira e, no centro, o cesto com os materiais trazidos da sala pela professora. Por sua vez, Fernando (4 meses) permanece na sala dormindo, sob os cuidados da estagiária.

(Diário de Campo do Pesquisador).

A partir do episódio, destacamos os seguintes aspectos: 1) o convite da professora aos bebês para ir ao pátio, e não a imposição do seu desejo; 2) a modulação da presença da professora (Guimarães, 2019 ) ao dar suporte às ações dos bebês; 3) o movimento livre e a autonomia dos bebês; 4) a vivência espacial (Lopes, 2021 ) dos bebês por meio dos deslocamentos, das interações com os pares e da ocupação dos espaços da creche; 5) a seleção de materiais pelas professoras e a organização de um contexto para brincar no pátio; 6) o suporte, a presença e o respeito das professoras ao tempo dos bebês em seus deslocamentos e escolhas durante o trajeto percorrido.

No episódio, é perceptível o fato de que a “atividade autônoma iniciada pela própria criança é para ela fonte de múltiplas aprendizagens [...]” (Falk, 2017 , p. 92, tradução nossa). Como se pode observar, os bebês, durante o deslocamento da sala para o pátio, tiveram a oportunidade de parar, de interagir com as crianças de outros grupos e de explorar o caminho, sem a intervenção direta da professora. De fato, a professora atua de modo relacional, porém indireto, a partir da observação e do acompanhamento dos bebês nos seus deslocamentos.

Da mesma forma, percebe-se a docência compartilhada entre a professora, a auxiliar e a estagiária no atendimento aos bebês. O compartilhamento da docência entre as profissionais possibilita que a professora auxiliar acompanhe o engatinhar de Carlos (10 meses) até o pátio. Além disso, garante que Fernando (4 meses), pelo fato de estar acompanhado da estagiária, não tenha o seu momento de descanso interrompido.

Conforme Piva e Carvalho ( 2020 , p. 9), os bebês na creche “[...] precisam ter a possibilidade de se moverem de maneira expansiva, livre e segura por todos os espaços, não tendo seu campo de ação circunscrito apenas à sala referência”. Assim como os referidos autores, entendemos que é a possibilidade de deslocamento que oportuniza que os bebês habitem os espaços (Amadini, 2016 ) da creche. Durante as observações, notamos que os bebês tinham uma intimidade com o pátio, devido ao reconhecimento do espaço e da relação afetiva que constituíram com esse lugar. Ou seja, percebemos que “o sentido do lugar se fixa por meio das percepções que a criança [o bebê] extrai” (Amadini, 2016 , p. 102, tradução nossa) através de suas vivências espaciais (Lopes, 2021 ).

Mediante o exposto, concordamos com Rodrigues ( 2020 , p. 284) quando afirma que o espaço externo na creche “[...] garante o acesso a um panorama tátil, visual, odorífico, sonoro e gustativo sempre que os elementos naturais forem valorizados e garantidos”. Ora, conforme advoga a referida autora, “[...] a creche pode transformar-se em um lugar dos bebês por meio do movimento e das interações com as materialidades” (Rodrigues, 2020 , p. 174) e pessoas. Partindo desse indicativo, a seguir compartilharemos um episódio no qual Paulo (9 meses) se desloca de modo autônomo da sala-referência para o solário:

Episódio 3 – O deslocamento de Paulo da sala-referência ao solário

Paulo (9 meses) está na sala-referência na companhia dos demais bebês e decide se deslocar até o solário engatinhando. Durante o deslocamento, o menino para, senta-se e, por alguns segundos, com as suas mãos, sente a textura da parede. Chegando no solário, Paulo observa atentamente os objetos localizados na área externa da sala – brinquedos de madeira, bacias de inox e bolinhas coloridas de crochê. Após explorar os objetos, Paulo começa a brincar com o seu próprio corpo, testando seus pontos de apoio no solo e seu equilíbrio. Observo que o menino tem seus pontos de apoio nas duas mãos, pois inclina seu corpo para a frente, criando uma situação de equilíbrio estático. Assim, Paulo ensaia diferentes movimentos, colocando a mão esquerda à frente, posteriormente a mão direita e assim sucessivamente, permanecendo nesse jogo por algum tempo. Após alguns segundos, o menino começa a movimentar as suas pernas – estendendo-as, flexionando-as, tencionando-as e finalmente relaxando a musculatura. Posteriormente, observo que Paulo tenta ficar em pé, segurando-se na área de proteção do solário. Em instantes, o menino se aproxima das paredes e as toca. Após cerca de 20 minutos no solário, sob o olhar atento da professora auxiliar, Paulo retorna engatinhando para a sala-referência.

(Diário de Campo do Pesquisador).

O episódio ilustra a relevância do movimento livre, da atividade autônoma e da sensorialidade e corporeidade (Amadini, 2016 ) experimentadas pelo bebê. A vivência espacial de Paulo começa no seu deslocamento inicial para o solário, culmina com a exploração dos objetos, assim como de movimentos corporais, até o seu retorno para a sala-referência. Nesse sentido, Piva e Carvalho ( 2020 , p. 12) argumentam que a aprendizagem de deslocamento dos bebês “[...] de um espaço a outro é complexa, já que a produção da espacialidade envolve um repertório de experiências que permite a constituição do espaço como território”. Para tanto, é primordial a confiança da professora e a promoção de possibilidades para que os bebês exerçam a atividade autônoma. Todavia, essa postura “[...] demanda o entendimento docente de que as crianças necessitam ter sua ação social garantida por meio de liberdade de expressão, de interação e do deslocamento por todos os espaços” (p. 12) da creche. É notório que a vivência espacial de Paulo durante o seu deslocamento, permanência no solário e retorno para a sala se configura a partir de uma topologia espacial (Amadini, 2016 , p. 95, tradução nossa) que “[...] nasce do corpo que se relaciona com o espaço”.

Continuando a discussão, na próxima seção abordaremos episódios que narram as vivências espaciais dos bebês através da exploração de materialidades presentes na creche.

Os bebês e as explorações das materialidades que constituem os espaços da creche

Durante a pesquisa, evidenciamos que as vivências espaciais dos bebês também ocorrem através da ação deles sobre as materialidades na creche. A partir de Rodrigues ( 2020 , p. 17), nomeamos como materialidades “[...] os móveis, objetos, brinquedos, elementos naturais (galhos, pedras, terra), que compõem o espaço da creche, assim como a estrutura física (paredes, pisos e portas) e o mobiliário”. Desse ponto de vista, consideramos que “[...] as primeiras experiências que cada criança cumpre são de contato físico com a realidade” (Amadini, 2016 , p. 95, tradução nossa). Isso significa que “[...] é fundamental para as crianças viverem situações perceptivas autênticas, como protagonistas que têm a possibilidade de tocar, sentir, ver e cheirar [...]” (Amadini, 2016 , p. 97, tradução nossa). Nessa perspectiva, a seguir compartilharemos um episódio no qual Eduarda (1 ano e 1 mês) explora um cesto no pátio da creche:

Episódio 4 – Eduarda e suas explorações com o cesto de tocos de madeira

Na sala-referência, observo Eduarda (1 ano e 1 mês) levantando-se e caminhando sozinha em direção ao solário. Ao chegar ao solário, a menina perambula vagarosamente pelo espaço e observa os materiais não estruturados que estão dispostos no chão. Após alguns instantes, Eduarda senta-se no chão, aproxima-se de um cesto com um conjunto de pequenos tocos de madeira e os observa atentamente. Após um longo período de observação, Eduarda senta-se próxima ao cesto, pega os tocos de madeira, aproxima-os de seu corpo, sente a textura deles e os coloca em seu colo. Prosseguindo a exploração, a menina retira os tocos de madeira do colo, levanta-se e começa a espalhar vagarosamente esses materiais pelo chão do solário. Eduarda distribui os tocos de madeira em uma grande área do solário, alinhando-os e colocando-os em relação. Eduarda observa os objetos espalhados e decide novamente colocá-los de volta no cesto. Tal ação, de coleta dos tocos de madeira, é realizada vagarosamente, pois Eduarda recolhe uma unidade por vez e a coloca novamente no cesto. Após coletar todos os materiais, a menina senta-se próxima ao cesto, pega dois tocos de madeira e começa a bater com eles no chão. A brincadeira prossegue. Eduarda interrompe a ação, vira o cesto no chão e consequentemente espalha os tocos de madeira. A menina permanece muito tempo no solário desfrutando do espaço e desses materiais. Eduarda somente encerra sua ação quando é avisada pela professora que a sua mãe está na sala e veio lhe buscar. A menina deixa os objetos no solário e retorna para a sala com o intuito de encontrar a sua mãe.

(Diário de Campo do Pesquisador).

Em relação ao episódio, inicialmente ressaltamos que o espaço na creche investigada é entendido como “[...] uma categoria pedagógica que [...] se constitui em campo de possibilidades para as ações das crianças [...]” (Rodrigues, 2020 , p. 23). Desse modo, as materialidades em destaque no episódio – especialmente o cesto com os tocos de madeira – foram dispostas previamente pela professora em um espaço circunscrito no pátio. Tal disposição dos materiais no espaço se configurou como um convite à interação e à brincadeira dos bebês.

Como se pode notar a partir da leitura do episódio, Eduarda (1 ano e 1 mês) exerce a sua atividade autônoma, assumindo “[...] todos os papeis [e] acumulando suas competências modais de querer, saber e poder” (Chokler, 2017 , p. 160, tradução nossa). Todavia, o exercício da atividade autônoma de Eduarda demanda tempo e disponibilidade da professora em conferir suporte – através de sua ação indireta e relacional – para que ela tenha oportunidade de exercer o brincar livre (Kálló; Balog, 2013 ).

Além disso, as ações de Eduarda evidenciam uma coreografia do brincar (Rodrigues, 2020 ), marcada pela sua ação direta sobre as materialidades escolhidas para a brincadeira. Observação, escolha, exploração, experimentação e reiteração constituem as ações da menina. A distribuição dos tocos de madeira por Eduarda no solário ratifica o argumento de Gruss e Rosemberg ( 2017 , p. 68, tradução nossa) de que o brincar “[...] vai se enriquecendo quando o bebê começa a pôr os objetos em relação, tirar e pôr, alinhar, empilhar”. Eduarda coloca os objetos em relação, mas também seu corpo é colocado em relação com o espaço e com os materiais que tem à disposição. É visível a segurança postural da menina, seu equilíbrio e o modo como ela se posiciona no espaço para poder brincar.

Tendo em vista a recomendação de Tardos ( 2011 , p. 13, tradução nossa) de que “[...] o adulto precisa estar atento às condições em que se desenvolve o brincar” dos bebês, apresentaremos a seguir um episódio no qual evidenciaremos as experimentações e descobertas de Patrício (1 ano e 3 meses) a partir da exploração de um conjunto de bacias no pátio da creche:

Episódio 5 – As experimentações e descobertas de Patrício com as bacias

Os bebês estão brincando em uma grande área circunscrita no pátio da creche, sob o olhar das professoras. Observo Patrício (1 ano e 3 meses) sozinho, sentado, manipulando duas bacias de plástico. O menino levanta-se do chão e vira as bacias. Logo depois, coloca uma mão em cada uma das bacias e – na posição de quatro apoios – começa a se deslocar pelo pátio. Durante o deslocamento, Patrício emite um som que imediatamente é ouvido pela professora auxiliar. Ouço a professora dizendo: “Patrício, você está andando de carro?”. O menino sorri e segue se deslocando. Observo a destreza, segurança postural e equilíbrio com que Patrício se desloca com as bacias em suas mãos pelo pátio. Durante um longo período, o menino se desloca de um lado para o outro com as bacias, sorrindo e emitindo o mesmo o som. De repente, Patrício senta-se no chão. Imediatamente, o menino coloca uma bacia dentro da outra e assim inicia uma nova brincadeira. O menino repete tal ação inúmeras vezes, até que decide buscar uma outra bacia para compor a sua ação exploratória. Ao pegar a terceira bacia, o menino a coloca dentro das demais. Logo depois, separa as três bacias e as recoloca uma dentro da outra novamente. A brincadeira apenas cessa quando o menino perde o interesse nas bacias e se desloca até o cesto de materiais que está sendo explorado por Olga (1 ano e 2 meses).

(Diário de Campo do Pesquisador).

Como se observa nos eventos descritos, com a exploração das bacias, o menino evidencia que a “[...] a função dos objetos não reside neles, mas nas narrativas elaboradas pelos sujeitos a partir da interpretação dos significados e relações com as coisas e com o outro” (Rodrigues, 2020 , p. 228). No espaço do solário, o uso das bacias por Patrício adquire uma nova funcionalidade, servindo para o seu deslocamento e para a ação de contenção de um objeto dentro do outro. A ação de Patrício com as bacias é complexa, pois os recipientes são grandes e o piso é irregular para o seu deslocamento, todavia é justamente esse desafio que mobiliza a exploração do menino. Ademais, a emissão do som por Patrício durante o deslocamento, nomeado pela professora como sendo o barulho de um carro, potencializa a construção de uma narrativa durante a brincadeira.

Conforme argumenta Amadini ( 2016 , p. 15, tradução nossa), “as crianças são exploradoras, curiosas e ávidas por tocar, cheirar, aventurar-se”, fato que notamos durante a pesquisa. Concordamos com a autora que a “inteligência cognitiva e emotiva [das crianças] se desenvolve por meio de experiências que se podem cumprir nos ambientes nos quais se habita” (Amadini, 2016 , p. 94, tradução nossa).

Diante do exposto, também destacamos a ação exploratória de Patrício de contenção de uma bacia dentro da outra. Tal ação, de acordo com Gruss e Rosemberg ( 2017 , p. 68, tradução nossa), é característica do brincar manipulatório dos bebês, geralmente por volta dos 12 meses, quando “[...] surge o interesse pelos [objetos] que podem conter outros, pelos buracos que podem ser preenchidos e pelos elementos que penetram e permitem ser penetrados”. Entretanto, é preciso lembrar a recomendação de Kálló e Balog ( 2013 ) de que é o interesse dos bebês que orienta a oferta ou retirada dos materiais que compõem a área do brincar.

Além dos episódios compartilhados, durante a pesquisa também tivemos a oportunidade de observar a interação dos bebês com o mobiliário pikleriano dentro da sala-referência. Através da livre exploração do circuito de rampas, do túnel, dos cubos e do triângulo que compunham a sala, os bebês tinham “[...] o prazer de sentir seu[s] corpo[s], o prazer de mover-se [e] de experimentar suas próprias capacidades [...]” (Falk, 2017 , p. 105-106, tradução nossa). O mobiliário disposto na sala ficava acessível à exploração de todas as crianças, sem nenhuma censura das professoras em relação ao seu uso. Entretanto, a presença das professoras, a observação atenta, a garantia do movimento livre e a segurança transmitida às crianças proporcionavam que estas, autonomamente, dentro de suas possibilidades, explorassem o mobiliário.

Durante a investigação, ratificamos o dito por Kálló e Balog ( 2013 ) de que o brincar é uma atividade prazerosa para os bebês, desde que realizada de modo livre, espontâneo e autônomo. Ou seja, o centro da atividade cotidiana de um bebê (Szanto-Feder, 2014 , p. 68, tradução nossa) se encontra na possibilidade de ele “descobrir o mundo a partir de sua própria curiosidade [e] de sua própria vontade de compreender e experimentar” o mundo. Desse ponto de vista, as vivências espaciais dos bebês também se constituem com base na possibilidade que eles têm de se apropriar e de atribuir significados às materialidades que compõem os espaços da creche. Baseados na ação direta sobre os materiais, os bebês observam, exploram e realizam descobertas que se configuram como aprendizagens.

Prosseguindo a discussão, na próxima seção focalizaremos as análises nos efeitos das interações dos bebês, por meio do movimento livre e da atividade autônoma, em suas vivências espaciais.

As interações entre os bebês na ocupação dos espaços da creche

A observação das interações entre os bebês durante os momentos de brincadeira nos possibilitou acompanhar cotidianamente “[...] a criação de significados compartilhados” (Moura; Souza; Amorim, 2020 , p. 10) entre eles. Observamos uma recorrência de interações em situações de brincadeira compartilhada entre os bebês, nas quais eles puderam “[...] experimentar uma fecunda exploração sensorial e afetiva” (Amadini, 2016 , p. 17, tradução nossa) através do uso do mobiliário e dos materiais disponíveis na sala-referência. Nessa direção, foi possível constatarmos que “[...] o olhar e atenção às ações/atividades dos pares frequentemente desdobraram-se em deslocamentos” (Moura; Souza; Amorim, 2020 , p. 18) e no compartilhamento de brincadeiras, como poderá ser acompanhado a seguir:

Episódio 6 – Encontros e interações entre os bebês na área do brincar

Olga (1 ano e 2 meses) caminha na sala-referência em direção à caixa de madeira com bolinhas amarelas que está localizada em um dos cantos da área do brincar. A menina aproxima-se da caixa e mexe nas bolinhas. Após alguns instantes de exploração, Olga entra na caixa. Eduarda (1 ano e 1 mês) e Patrício (1 ano e 3 meses) observam por alguns minutos a ação de Olga, caminham em direção à menina e entram na caixa. Ao entrarem na caixa, Eduarda e Patrício retiram algumas bolinhas e iniciam um diálogo composto por vocalizações, sorrisos e gestos realizados com as mãos. Olga observa a retirada das bolinhas pelos seus pares e decide repetir a mesma ação. Em instantes, simultaneamente, os três bebês, em pé dentro da caixa, começam a retirar as bolinhas. Olga sai da caixa e interrompe a ação de Eduarda e Patrício, que passam novamente a lhe observar. Após alguns segundos, Eduarda e Patrício sentam-se dentro da caixa de madeira. Olga, do lado de fora da caixa, começa a recolher as bolinhas e a colocá-las no lugar de origem. Após a coleta e devolução das bolinhas, Olga entra na caixa e fica em pé. Eduarda e Patrício continuam sentados brincando com as bolinhas. Olga se senta ao lado dos colegas. Os três bebês reiniciam a ação de retirada das bolinhas da caixa. Durante a retirada das bolinhas, percebo novamente a ocorrência de diálogos entre Eduarda, Patrício e Olga. Após algum tempo, Patrício sai da caixa e recomeça a recolher as bolinhas. Após alguns instantes, Olga e Eduarda também saem da caixa e ajudam Patrício a coletar as bolinhas e a colocá-las novamente no lugar de origem. A interação entre os três bebês permanece até o aviso da professora de que os familiares chegaram para buscá-los.

(Diário de Campo do Pesquisador).

Como se pode verificar no episódio, “o arranjo espacial é a base sobre a qual se organizam as interações bebê – ambiente, bebê – coetâneos e bebê – educadores” (Moura; Souza; Amorim, 2020 , p. 19). A área do brincar, organizada pelas professoras com a caixa de madeira e as bolinhas em uma determinada área da sala-referência, se configura como um lugar de encontro no qual ocorre a interação entre os bebês. No episódio descrito, as ações de Olga convocam Eduarda e Patrício, que estão lhe observando. Trata-se de uma interação imitativa (Maisonnet; Stambak; Barrière, 2011 ) na qual Eduarda e Patrício repetem as ações de Olga. Ou seja, “os vínculos entre as crianças estabelecem-se a partir de atividades com os objetos; a atividade de uma atrai a atenção de um (ou de vários) membros do grupo, que se põe a fazer o mesmo que o iniciador” (p. 49).

No episódio, percebe-se uma dinâmica comum (Maisonnet; Stambak; Barrière, 2011 ) de interação entre os bebês, na qual Olga inicialmente ocupa o papel de desencadeadora da ação de seus pares. Ao entrarem na caixa de bolinhas, Eduarda e Patrício repetem a ação de Olga. Todavia, após alguns minutos, ambos os bebês iniciam a ação de retirada das bolinhas da caixa de madeira. Ao retirarem as bolinhas da caixa, Eduarda e Patrício passam a ser imitados por Olga. No desfecho das interações entre os bebês, “a imitação das atividades realizadas [...] parece fazer parte [...] [do] desejo de fazer coisas juntos” (p. 20).

No episódio, há uma alternância de papéis entre os bebês, por “[...] novas atividades que dificilmente a criança poderia realizar sozinha” (p. 29). Tal alternância de papéis entre os bebês é constituída pelas ações de: 1) retirada das bolinhas da caixa de madeira; e 2) recolhimento das bolinhas que estavam fora da caixa e colocação delas em seu lugar de origem. Em ambas as ações elencadas, foram os “processos de imitação que causaram atividade em comum” entre os bebês (p. 28).

A seguir, compartilhamos outro episódio, de interação entre dois bebês, no qual “as trocas [entre eles] adquirem forma de diálogos” (p. 49):

Episódio 7 – A troca de bolinhas entre Alice e Patrício

Sala do berçário. Área do brincar. Caixa de madeira com bolinhas. Alice (1 ano e 2 meses) entra na caixa de madeira com bolinhas e começa a manipulação. Patrício (1 ano e 3 meses) observa a menina e em seguida também entra na caixa. O menino senta-se virado de frente para a menina, observa-a durante alguns segundos e começa a mexer nas bolinhas dentro da caixa. Alice retribui o olhar de Patrício enquanto manipula as bolinhas. Após alguns minutos de manipulação individual de ambos os bebês, Patrício oferta uma bolinha vermelha a Alice, que a recebe com um sorriso. A menina repete a ação e entrega uma bolinha amarela a Patrício, que responde estendendo as duas mãos. Os bebês se olham atentamente e começam a emissão de vocalizações. Durante alguns minutos, os bebês seguem realizando a troca de bolinhas. Todavia, a troca de bolinhas é interrompida por Patrício, quando ele puxa a corrente na qual se encontra preso o bico de Alice, na tentativa de retirá-lo da menina. A ação de Patrício desencadeia a reação de Alice, que se joga para trás dentro da caixa de madeira, impedindo que o menino retire o seu bico. A negação de Alice em compartilhar o bico é evidenciada corporalmente a partir do seu afastamento de Patrício e do choro que se inicia logo em seguida. Ao perceber que Alice está chorando, Patrício lhe oferece uma bolinha. Alice estende a mão e recebe a bolinha. A partir desse momento, os bebês retomam a interação inicial e passam novamente a trocar bolinhas.

(Diário de Campo do Pesquisador).

Mediante a leitura do episódio, é possível observar que a Alice e Patrício interagem por meio de “[...] olhares, mímicas, gestos e vocalizações que constituem mensagens [de um] para o outro; [nesse contexto,] cada resposta confere precisão ao significado da mensagem inicial” (Maisonnet; Stambak; Barrière, 2011 , p. 49). Embora haja uma disputa pelo bico de Alice, que, de certo modo, interrompe o projeto comum dos bebês, a brincadeira inicial envolvendo a manipulação e a troca de bolinhas é retomada.

Além disso, nesse episódio, consideramos importante apontar a centralidade do olhar dos bebês em seus processos interativos. Segundo Amorim, Anjos e Rossetti-Ferreira ( 2012 , p. 380), “os bebês olham continuamente, ora para o próprio corpo, ora a objetos e pessoas próximas, ora a coisas e situações a maior distância”. No caso da manipulação e da troca de bolinhas que constituiu o enredo interativo, pode-se perceber que o modo como os bebês observam-se mutuamente “[...] desencadeia ações no coetâneo (vocalizações, movimentos de aproximação ou de afastamento do parceiro), emoções [...] ou ações semelhantes que o outro realiza [...]” (Amorim; Anjos; Rossetti-Ferreira, 2012 , p. 380).

Em vista do exposto, destacamos que o arranjo espacial (Moura; Souza; Amorim, 2020 ) da sala-referência, as materialidades (Rodrigues, 2020 ) disponíveis, o movimento livre (Szanto-Feder, 2014 ) e a atividade autônoma (Falk, 2011 ) dos bebês possibilitam que eles vivenciem o espaço mediante um processo de interação com os seus pares. Entretanto, isso só é possível porque há “um tempo suficiente e calmo para [que os bebês possam] perceber, explorar, eleger, combinar, transformar e imaginar” (Chokler, 2017 , p. 156, tradução nossa). Prosseguindo a discussão, na próxima seção compartilharemos as considerações finais do artigo.

Considerações finais

Observar a vida cotidiana em uma creche que tem o seu projeto educativo pautado nos princípios da abordagem Pikler foi a escolha para investigarmos as vivências espaciais dos bebês. A pesquisa nos possibilitou evidenciar que as vivências espaciais ocorrem por meio “[...] do encontro entre o plano pessoal e social” (Lopes, 2021 , p. 119) dos bebês. Isso quer dizer que é no contexto de vida coletiva que estes significam os espaços e estabelecem relações sociais.

No decorrer do artigo, com a análise dos episódios, defendemos que o movimento livre (Szanto-Feder, 2014 ) e a autonomia (Falk, 2011 ) dos bebês em seus deslocamentos, explorações e interações sociais na creche operam na promoção de vivências espaciais. Com base nesse argumento, destacamos que, em nossa investigação, as vivências espaciais do grupo de bebês ocorreram por meio dos deslocamentos, das explorações das materialidades e das interações sociais dos bebês com seus pares na ocupação dos espaços. O repertório de ações dos bebês viabilizou evidenciarmos analiticamente que as vivências espaciais dos bebês estão sempre marcadas pela produção do novo (Lopes, 2021 ) em decorrência das escolhas realizadas por eles.

No entanto, a escolha dos bebês em relação aos modos de habitar os espaços da creche ocorreu pelo fato de eles terem a possibilidade de exercer o movimento livre mediante a segurança afetiva (Chokler, 2017 ) e a presença das professoras que os acompanhavam em seus processos de atribuição de sentidos aos tempos, espaços e materialidades que compunham o cotidiano institucional. Em outras palavras, entendemos que as vivências espaciais dos bebês se deram como efeito da repetitividade, da continuidade e da estabilidade (Amadini, 2016 ) conferidas pelos modos de organização da creche. Por tudo isso, argumentamos que “[...] o laço com os espaços se [tornou] rigoroso, profundo, contínuo e nada ocasional” (p. 102, tradução nossa) para os bebês.

Diante do exposto, reafirmamos que o movimento livre (Szanto-Feder, 2014 ) possibilita que os bebês aprendam com seus pares, realizando ações semelhantes ou ainda novas ações decorrentes de tal processo. Por sua vez, quanto às materialidades (Rodrigues, 2020 ), observamos que os espaços e mobiliários auxiliam na construção da autonomia, viabilizando as interações dos bebês com seus coetâneos. Em relação aos deslocamentos, notamos que a promoção de possibilidades para que os bebês se movimentem livremente nos espaços internos/externos da creche influencia a autonomia deles. Com respeito às relações sociais entre os bebês, constatamos que estas não só promovem a autonomia deles como também aprendizagens. Afinal, eles “[...] desejam conhecer o mundo, vivê-lo na sua plenitude e não apenas nos espaços confinados e delimitados pelo adulto [...]” (Amadini, 2016 , p. 111, tradução nossa).

Portanto, a partir da pesquisa, inferimos a importância de uma docência relacional pautada na promoção de espaços, tempos e materialidades, a qual possibilite que os bebês desfrutem do movimento livre e tenham a oportunidade de exercer a atividade autônoma por meio de suas vivências espaciais.

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  • 3
    - O trabalho de campo foi realizado por um dos autores do artigo; todavia, o planejamento da pesquisa, as análises e o artigo foram escritos em coautoria.
  • 4
    - Os nomes dos bebês são fictícios.

Editado por

  • Editora responsável:
    Profa. Dra. Renata Marcílio Cândido

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Nov 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    21 Jul 2023
  • Aceito
    11 Jun 2024
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