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A construção do estágio compartilhado no ensino remoto: desafios e possibilidades 1 1 Disponibilidade de dados: o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo não está disponível publicamente, devido ao fato de compor o ambiente virtual Google Classroom, em particular as salas criadas para a organização das disciplinas de estágio supervisionado em matemática da educação básica, vinculadas à Universidade Federal de São Carlos, bem como as gravações das aulas no Google Meet. O acesso foi restrito aos participantes das disciplinas. Para maiores informações, entrar em contato por e-mail.

Building shared supervised practice in remote education: challenges and possibilities

Resumo

O objetivo deste artigo é discutir os resultados de uma pesquisa de pós-doutoramento, que teve como propósito realizar um aprofundamento teórico acerca do conceito de estágio compartilhado e mobilizar esse estudo para a formação inicial e continuada de professores de matemática. Esses resultados estão relacionados, particularmente, às possibilidades e aos desafios que se manifestaram durante o desenvolvimento de quatro disciplinas de estágio do curso de licenciatura de matemática, no contexto remoto. Para tanto, trazem-se reflexões teóricas sobre obras literárias que dialogam com a temática do artigo. Em seguida, é feita uma contextualização acerca dessas quatro disciplinas, ministradas remotamente no segundo semestre de 2020, na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), campus de São Carlos (SP). A metodologia de pesquisa é qualitativa, e os dados são provenientes de tarefas teóricas realizadas pelos licenciandos e de gravações das aulas, que ocorreram via Google Meet. Observa-se que as mobilizações que ocorreram na formação inicial e continuada de professores de matemática, nesse cenário, foram: teóricas, por meio dos estudos realizados sobre conceitos que estão na base do estágio compartilhado e por meio da interlocução feita com a educação matemática crítica, que se manifestam na prática das formadoras por meio da intencionalidade na organização do ensino; e metodológicas, por meio das propostas pedagógicas que tiveram que ser planejadas para serem ofertadas remotamente, mobilizando licenciandos e professores da educação básica a debaterem entre si e a estudarem obras literárias que lhes permitissem criar tarefas que buscassem superar a lógica do paradigma do exercício.

Palavras-chave
Formação de professores de matemática; Ensino remoto de matemática na pandemia; Estágio supervisionado na educação básica; Educação matemática crítica; Covid-19

Abstract

This article discusses the results of a post-doctoral research that conducted an in-depth theoretical exploration on the concept of shared supervised practice and mobilized this study for the initial and continuing education of mathematics teachers. These results stem from the possibilities and challenges that emerged during four internship disciplines of the Mathematics degree course, in the remote context. Thus, theoretical reflections on literary works that dialogue with the theme are presented. Then, we contextualize these four disciplines, taught remotely in the second half of 2020, at the Federal University of São Carlos (UFSCar), São Carlos (SP) campus. Qualitative in nature, the research uses data obtained from theoretical tasks performed by the undergraduates and from class recordings, which took place via Google Meet. During the pandemic, the mobilizations that took place in the initial and continuing education of mathematics teachers were: theoretical, through studies about concepts that support shared supervised practice and through the interlocution with critical mathematics education, which are manifested in the professor’s practice by intentionality in organizing teaching; and methodological, through the pedagogical proposals planned to be offered remotely, mobilizing undergraduates and basic education teachers to debate among themselves and to examine literature that would allow them to create tasks that would overcome the logic of the exercise paradigm.

Keywords
Mathematics teacher education; Remote teaching of mathematics in the pandemic; Supervised practice in basic education; Critical mathematics education; Covid-19

Introdução

Há alguns anos temos acompanhado pesquisas que defendem parcerias como sendo de extrema importância na formação docente, tanto inicial quanto continuada. Nesse sentido, no contexto do campo educacional, concordamos com Foerste ( 2005FOERSTE, Erineu. Parceria na formação de professores. São Paulo: Cortez, 2005.) quando este defende que, em um sentido significativamente amplo, a parceria é destacada como uma prática sociocultural emergente.

Dessa forma, para o referido autor, pautado na análise da literatura disponível sobre essa temática, tanto nacional quanto internacional, a parceria é bem-sucedida quando acontece com o intuito de resolver problemas locais na área de formação de professores. Ou seja, nessa perspectiva, a profissionalização docente é beneficiada com um “[…] movimento de construção coletiva de novos patamares teóricos e práticos, em que os saberes da experiência passam a se constituir como eixo básico de uma nova epistemologia no processo de socialização profissional docente” (FOERSTE, 2005, p. 9FOERSTE, Erineu. Parceria na formação de professores. São Paulo: Cortez, 2005.).

Em consonância com essas ideias e com outros aportes teóricos (FIORENTINI; CASTRO, 2003FIORENTINI, Dario; CASTRO, Franciana Carneiro. Tornando-se professor de matemática: o caso de Allan em prática de ensino e estágio supervisionado. In: FIORENTINI, Dario (org.). Formação de professores de matemática: explorando novos caminhos com outros olhares. Campinas: Mercado de Letras, 2003. p. 121-156.; PIMENTA; LIMA, 2004PIMENTA, Selma Garrido; LIMA, Maria Socorro Lucena. Estágio e docência. São Paulo: Cortez, 2004.), Gama e Sousa ( 2015GAMA, Renata Prenstteter; SOUSA, Maria do Carmo. Elementos estruturantes que podem promover a construção do estágio compartilhado na licenciatura em matemática. In: LOPES, Celi Espasandin; TRALDI, Armando; FERREIRA, Ana Cristina (org.). O estágio na formação inicial do professor que ensina matemática. Campinas: Mercado de Letras, 2015. p. 11-42.) defendem que as disciplinas de estágio supervisionado na educação básica são espaços para a construção da identidade profissional docente. Assim, as referidas autoras argumentam sobre a construção do conceito de estágio compartilhado no ensino de matemática, cujo pressuposto é que “[…] tal compartilhamento é fundamental para que os futuros professores possam se identificar com a docência” (GAMA; SOUSA 2015GAMA, Renata Prenstteter; SOUSA, Maria do Carmo. Elementos estruturantes que podem promover a construção do estágio compartilhado na licenciatura em matemática. In: LOPES, Celi Espasandin; TRALDI, Armando; FERREIRA, Ana Cristina (org.). O estágio na formação inicial do professor que ensina matemática. Campinas: Mercado de Letras, 2015. p. 11-42., p. 13). Nessa perspectiva, há o desenvolvimento de uma forma de trabalho em parceria com os professores da educação básica, de modo que não haja uma divisão entre aqueles que irão planejar as ações e aqueles que irão executá-las, de forma que a parceria se transforma em metodologia para a formação de professores.

Portanto, trata-se de algo fundamental para se configurar o conceito de estágio compartilhado. Neste sentido, o movimento que caracteriza essa parceria, segundo Foerste ( 2005FOERSTE, Erineu. Parceria na formação de professores. São Paulo: Cortez, 2005.), é o desenvolvimento de atividades articuladas na formação inicial e na formação em serviço. Dessa forma, Gama e Sousa ( 2015GAMA, Renata Prenstteter; SOUSA, Maria do Carmo. Elementos estruturantes que podem promover a construção do estágio compartilhado na licenciatura em matemática. In: LOPES, Celi Espasandin; TRALDI, Armando; FERREIRA, Ana Cristina (org.). O estágio na formação inicial do professor que ensina matemática. Campinas: Mercado de Letras, 2015. p. 11-42.) partem do pressuposto de que é possível construir as bases teórico-metodológicas para que ocorra o estágio compartilhado entre universidade e escola.

Contudo, desde março de 2020 até o final de 2021, vivenciamos uma situação atípica no contexto educacional devido à pandemia de covid-19, de modo que escolas e universidades tiveram que operar de forma remota, durante praticamente dois anos letivos.

Paralelamente, especificamente em agosto de 2020, a partir de uma pesquisa de pós-doutorado que estava sendo realizada pela autora Maria Teresa Zampieri, sob supervisão da Profª. Dra. Maria do Carmo de Sousa, emergiram parcerias que foram de fundamental importância para atuarmos em atividades de pesquisa, ensino e extensão, de forma remota, devido à pandemia. Essas parcerias contribuíram para que o objetivo da pesquisa de pós-doutoramento fosse atingido, ou seja, para a realização do aprofundamento acerca do conceito de estágio compartilhado e sua mobilização nesses três pilares que alicerçam a universidade.

Reiteramos ainda que debater sobre o estágio compartilhado no contexto pandêmico focalizando no ensino de matemática é pertinente para contribuir tanto para as investigações nessa área quanto para os profissionais do ensino. Desse modo, os resultados do pós-doutorado são relevantes por abordar esse tema, com potencial ainda para promover o diálogo com outras áreas do conhecimento interessadas na problemática do estágio (em tempos de pandemia) e da formação inicial de professores.

Assim, essa referida pesquisa segue os pressupostos da metodologia qualitativa, cuja fonte de dados 4 4 A pesquisa obedeceu aos procedimentos éticos estabelecidos para a pesquisa científica, conforme diretriz do Comitê de Ética da UFSCar, que emitiu um parecer favorável ao seu desenvolvimento. é composta de: registros escritos das tarefas realizadas pelos licenciandos ao longo das disciplinas e áudios e videogravações das aulas.

Diante do exposto, este artigo tem como objetivo discutir os resultados dessa pesquisa de pós-doutoramento, relacionados particularmente às possibilidades e aos desafios que se manifestaram durante o desenvolvimento de quatro disciplinas de estágio no curso de licenciatura de matemática no contexto remoto, no ano de 2020, a partir dos pressupostos teóricos e metodológicos que fundamentam o conceito de estágio compartilhado. A pergunta diretriz que conduziu a pesquisa foi: “que mobilizações ocorrem na formação inicial e continuada de professores de matemática a partir do aprofundamento teórico acerca do conceito de estágio compartilhado?”

Teorização e contextualização

Para dar início ao aprofundamento teórico almejado, optamos por iniciá-lo pelos estudos de algumas obras literárias com as quais Gama e Sousa ( 2015GAMA, Renata Prenstteter; SOUSA, Maria do Carmo. Elementos estruturantes que podem promover a construção do estágio compartilhado na licenciatura em matemática. In: LOPES, Celi Espasandin; TRALDI, Armando; FERREIRA, Ana Cristina (org.). O estágio na formação inicial do professor que ensina matemática. Campinas: Mercado de Letras, 2015. p. 11-42.) dialogam para embasar o conceito.

Nesse sentido, a literatura que temos estudado nos cursos de licenciatura em matemática vinculados à Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), campus de São Carlos, junto à discussão com profissionais de diferentes áreas e atuantes em diferentes níveis de ensino dentro do grupo, tem nos permitido um aprofundamento acerca de conceitos teóricos que estão na base do estágio compartilhado. Um deles é o estudo sobre o conceito de “atividade”, a partir dos pressupostos da teoria histórico-cultural.

Segundo Moura ( 2001, p. 155MOURA, Manoel Oriosvaldo de. A atividade de ensino como ação formadora. In: CASTRO, Amélia Domingues de; CARVALHO, Anna Maria Pessoa de. Ensinar a ensinar: didática para a escola fundamental e média. São Paulo: Pioneira, 2001. p. 143-162.), “[…] para Leontiev (1988), a atividade é um processo psicológico dirigido à satisfação de uma necessidade que se concretiza por ações que buscam objetivar o motivo que a originou”.

Então, a atividade do professor é a busca da organização do ensino, articulando teoria e prática, e especificamente a atividade de ensino. Suas ações devem ser organizadas intencionalmente, de modo a criar no estudante “[…] um motivo especial para a sua atividade: estudar e aprender teoricamente sobre a realidade” (MOURA et al., 2010, p. 90MOURA, Manoel Oriosvaldo de et al. A atividade orientadora de ensino como unidade entre ensino e aprendizagem. In: MOURA, Manoel Oriosvaldo de (org.). A atividade pedagógica na teoria histórico-cultural. Brasília, DF: Líber Livro, 2010. p. 71-100.).

Desse modo, no estágio compartilhado, as atividades propostas estão em consonância com esse conceito de “atividade”, em que a organização do ensino é intencional. Isto é, ao planejarmos as atividades para as disciplinas de estágio, partimos do pressuposto de que é necessário “[…] tentar provocar algum tipo de deslocamento de atitudes e posturas por parte dos estagiários para que possam […] refletir sobre suas crenças e concepções, reorganizá-las e repensá-las” (GAMA; SOUSA, 2015GAMA, Renata Prenstteter; SOUSA, Maria do Carmo. Elementos estruturantes que podem promover a construção do estágio compartilhado na licenciatura em matemática. In: LOPES, Celi Espasandin; TRALDI, Armando; FERREIRA, Ana Cristina (org.). O estágio na formação inicial do professor que ensina matemática. Campinas: Mercado de Letras, 2015. p. 11-42., p. 31).

Ao mesmo tempo, há de se considerar que outra parceria que tem contribuído para planejarmos propostas a serem desenvolvidas em sala de aula que tenham potencial para esse deslocamento de atitudes e posturas é a participação em um grupo de estudos que reúne pesquisadores e professores de diferentes instituições de ensino, provenientes de distintas regiões do Brasil. Esse grupo faz parte de uma ação do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Atividade Pedagógica (GEPAPe) e de outros grupos de pesquisa associados, cujo propósito é o aprofundamento conceito de situações desencadeadoras de aprendizagem (SDAs).

De acordo com Moura, Sforni e Lopes ( 2017MOURA, Manoel Oriosvaldo de; SFORNI, Marta Sueli de Faria; LOPES, Anemari Roesler Luersen Vieira. A objetivação do ensino e o desenvolvimento do modo geral de aprendizagem da atividade pedagógica. In: MOURA, Manoel Oriosvaldo de (org.). Educação escolar e pesquisa na teoria histórico-cultural. São Paulo: Loyola, 2017. p. 71-100.), as SDAs permitem a criação de condições reais para que os sujeitos se coloquem em atividade de aprendizagem, de modo a se apropriarem de conceitos construídos historicamente.

Cabe ressaltar ainda o papel das SDAs na perspectiva da atividade orientadora de ensino (AOE), outro conceito que vem sendo estudado nesse grupo de pesquisa. Nesse sentido, a AOE se define como

[…] a mediação na atividade do professor que tem como necessidade o ensino de um conteúdo ao sujeito em atividade, cujo objetivo é a apropriação desse conteúdo entendido como um objetivo social, nessa perspectiva […] o conteúdo principal é o conhecimento teórico e seu objeto é a constituição do pensamento teórico do indivíduo no movimento de apropriação do conhecimento. (MOURA et al., 2010, p. 100MOURA, Manoel Oriosvaldo de et al. A atividade orientadora de ensino como unidade entre ensino e aprendizagem. In: MOURA, Manoel Oriosvaldo de (org.). A atividade pedagógica na teoria histórico-cultural. Brasília, DF: Líber Livro, 2010. p. 71-100.).

Isso significa, segundo Araujo ( 2019ARAUJO, Elaine Sampaio. Atividade orientadora de ensino: princípios e práticas para a organização do ensino de matemática. Revista Paranaense de Educação Matemática, Campo Mourão, v. 8, n. 15, p. 123-146, 2019.), que há, na AOE, uma intencionalidade pedagógica, que se manifesta a partir do momento em que um dado plano teórico orienta o metodológico. Desse modo, a dimensão orientadora se manifesta na dimensão executora – e esse processo se inicia com a introdução da SDA aos estudantes. Essa situação engloba a apresentação do problema, cujo intuito é deixar evidente a necessidade social do homem de produzir conhecimento. Os modos de ações concernentes à SDA podem se dar por meio de histórias virtuais e jogos, sendo possível trabalhar ainda com situações que emergem do cotidiano dos sujeitos em aprendizagem.

Nesse sentido, ao dialogar com os aportes teóricos ora mencionados, dentre outros, a construção do conceito de estágio compartilhado, nos cursos de licenciatura em matemática da UFSCar, por parte dos formadores, tem se pautado em

[…] dois elementos estruturantes: a intencionalidade e a mediação nas atividades desenvolvidas no processo de parceria entre a universidade e a escola. Faz-se necessário afirmar que os professores da universidade que ministram as disciplinas devem planejar ações articuladas e regulares que convidem licenciandos e professores da Educação Básica a planejarem conjuntamente o ensino de Matemática de forma contextualizada. [GAMA; SOUSA, -GAMA; SOUSA ( 2015GAMA, Renata Prenstteter; SOUSA, Maria do Carmo. Elementos estruturantes que podem promover a construção do estágio compartilhado na licenciatura em matemática. In: LOPES, Celi Espasandin; TRALDI, Armando; FERREIRA, Ana Cristina (org.). O estágio na formação inicial do professor que ensina matemática. Campinas: Mercado de Letras, 2015. p. 11-42.), p. 34, grifo das autoras].

Assim, em consonância com esse referencial, tivemos que refletir sobre como promover essas ações articuladas e regulares, de modo a convidar os atuais e os futuros professores a realizarem esse planejamento conjunto e contextualizado em um cenário remoto e emergencial. Sobre isso, cabe destacar que, quando

[…] professores das escolas e da universidade compartilham ideias, juntamente aos licenciandos de forma institucionalizada, os desafios colocados pela pandemia são analisados coletivamente. Há o fortalecimento desse modelo de estágio [estágio compartilhado], considerando-se que precisamos elaborar ferramentas apropriadas e planejar ações diversificadas que considerem o isolamento social. Há novas necessidades e motivos que fazem a diferença entre um aluno frequentar ou não a escola. Nesse movimento, todos aprendem. (SOUSA; ZAMPIERI; GAMA, 2021SOUSA, Maria do Carmo de; ZAMPIERI, Maria Teresa; GAMA, Renata Prenstteter. O estágio supervisionado compartilhado no contexto pandêmico: ações do movimento de uma política institucionalizada. Revista Baiana de Educação Matemática, Juazeiro, v. 2, n. 1, e202126, 2021., p. 24).

Então, mais uma vez, houve uma importante parceria que foi fundamental para a viabilidade do desenvolvimento das disciplinas nesse cenário: o diálogo entre formadores de diferentes instituições, doutorandos, professores da educação básica e licenciandos.

Tal diálogo se inicia no segundo semestre de 2020, quando ofertamos duas disciplinas de “Estágio supervisionado de matemática da educação básica 1” (a que nos referiremos como Estágio 1), nos períodos matutino e noturno, com carga horária de 60 horas, sendo 30 horas de tarefas teóricas na UFSCar e 30 horas de tarefas práticas nas escolas em que os licenciandos realizaram o estágio; e duas de “Estágio supervisionado de matemática da educação básica 3” (a que nos referiremos como Estágio 3), nos períodos matutino e noturno, com carga horária de 180 horas, sendo 60 horas de tarefas teóricas na UFSCar e 120 horas de tarefas práticas nas escolas em que os licenciandos realizaram o estágio.

Devido ao contexto pandêmico, as disciplinas foram ministradas remotamente, com a carga horária das tarefas teóricas sendo distribuídas igualmente entre atividades síncronas e assíncronas, por meio das plataformas Google Meet e Google Classroom, sendo que nesta última foram anexados todos os materiais que nos ajudaram a configurar as disciplinas (textos teóricos, materiais didáticos, materiais complementares, instruções para a realização das tarefas etc) e na qual os licenciandos postavam suas tarefas. As tarefas práticas também foram realizadas remotamente por meio de distintas plataformas, como Centro de Mídias 5 5 O Centro de Mídias é uma plataforma que visa ampliar a oferta de aulas mediadas por tecnologias às escolas públicas da rede estadual paulista, uma iniciativa da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo. , Google Meet, WhatsApp, entre outras tecnologias utilizadas pelos professores das escolas em que os licenciandos atuaram.

Como os licenciandos não interagiram presencialmente com a equipe escolar, o grande desafio foi planejar as aulas de modo que as relações virtuais se estabelecessem da melhor forma possível, com tarefas que lhes permitissem abordar essa temática e “[…] desenvolver uma visão ampla da escola e do ensino de matemática ao conhecer seus objetivos e seus aspectos estruturais, sociais e políticos” [GAMA; SOUSA, -GAMA; SOUSA ( 2015GAMA, Renata Prenstteter; SOUSA, Maria do Carmo. Elementos estruturantes que podem promover a construção do estágio compartilhado na licenciatura em matemática. In: LOPES, Celi Espasandin; TRALDI, Armando; FERREIRA, Ana Cristina (org.). O estágio na formação inicial do professor que ensina matemática. Campinas: Mercado de Letras, 2015. p. 11-42.), p. 34, grifo das autoras].

Para isso, durante os meses de junho e julho de 2020, a Profa. Dra. Maria do Carmo de Sousa (que foi responsável por ministrar essas quatro disciplinas), a Profa. Dra. Renata Prenstteter Gama e a autora Maria Teresa Zampieri realizaram várias reuniões de planejamento, a fim de refletir e definir cronogramas que contemplassem as propostas dessas disciplinas, iniciadas no final de agosto de 2020. A disciplina de Estágio 1 do período matutino contou com a participação de quinze licenciandos; a de Estágio 1 do período noturno, com treze; a de Estágio 3 matutino, com dez; e a de Estágio 3 noturno, catorze.

Para o Estágio 1, tanto no período matutino quanto no noturno, foram planejadas as seguintes tarefas: 1) debate sobre a escola que temos e a que queremos e os professores de matemática que tivemos e os que queremos ser, com escrita e análise de episódios de sala de aula; 2) discussão do estágio como eixo articulador no currículo de licenciatura em matemática e apresentação de mapas conceituais sobre o texto de Gama e Sousa ( 2015GAMA, Renata Prenstteter; SOUSA, Maria do Carmo. Elementos estruturantes que podem promover a construção do estágio compartilhado na licenciatura em matemática. In: LOPES, Celi Espasandin; TRALDI, Armando; FERREIRA, Ana Cristina (org.). O estágio na formação inicial do professor que ensina matemática. Campinas: Mercado de Letras, 2015. p. 11-42.); 3) apresentação de mapas conceituais referentes a Melo, Souza e Dayrell ( 2012MELO, Luciana Cezário Milagres de; SOUZA, Gilmara Silva; DAYRELL, Juarez Tarcísio. Escola e juventude: uma relação possível? Paidéia, Belo Horizonte, v. 9, n. 12, p. 161-186, 2012.) sobre os temas “escola” e “juventude”; 4) apresentação de mapas conceituais sobre o tema “desigualdade” e apresentação de pesquisas sobre as escolas e seus entornos, após a escolha e realização dos trâmites para a atuação, em grupos, nas escolas, remotamente; 5) pesquisas sobre o que vem a ser o ensino de matemática no contexto remoto; 6) entrevistas com os professores das escolas e mapas conceituais sobre o currículo do estado de São Paulo; 7) elaboração de mapas conceituais para refletir acerca dos desafios de ser professor de matemática no início da docência; 8) planejamento, junto aos professores da educação básica e dos colegas de grupo, das tarefas a serem realizadas nas escolas; e 9) elaboração de três escritas reflexivas ao longo da disciplina e de um relatório final.

Assim, houve momentos síncronos e assíncronos e tarefas desenvolvidas em grupo e individualmente. A avaliação foi estruturada da seguinte forma:

Tabela 1 - Avaliação das disciplinas de Estágio 1
Avaliações: assíncronas
Nota 1 Atividades realizadas durante as aulas desenvolvidas de forma síncrona: 1) Apresentação dos mapas conceituais dos textos; 2) Pesquisa sobre as escolas e seus entornos. Deverão ser encaminhadas única e exclusivamente, através do Classroom (10,0).
Nota 2 Escritas reflexivas sobre as atividades realizadas durante o estágio. Deverão ser encaminhadas única e exclusivamente, através do Classroom, em formato doc, conforme cronograma (10,0) .
Nota 3 Elaboração e apresentação do relatório final de estágio (escrito), o qual deverá ser encaminhado única e exclusivamente, através do Classroom (10,0) .
Nota final

- Média aritmética das três avaliações.

- Frequência será considerada a partir do desenvolvimento das atividades assíncronas.

A disciplina não comporta recuperação para os alunos que não cumprirem as atividades propostas para o semestre. Fonte: Dados da pesquisa.

Para as disciplinas de Estágio 3, cujo eixo temático consistia em “seminários e projetos de pesquisa”, foram planejadas as seguintes tarefas: 1) mapas conceituais e debates sobre diálogo e educação matemática, com base em Faustino ( 2018FAUSTINO, Ana Carolina. “Como você chegou a esse resultado?”: o diálogo nas aulas de matemática dos anos iniciais do ensino fundamental. 2018. Tese (Doutorado em Educação Matemática) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Rio Claro, 2018.); 2) entrevistas com professores de matemática da educação básica e relação com a análise do documentário Nunca me sonharam 6 6 O documentário, em linhas gerais, problematiza a falsa ideia de que oferecer a escola já é suficiente para a educação dos jovens; denuncia que, toda vez que a equipe escolar desiste de lutar pela aprendizagem dos estudantes, está aumentando o custo da sociedade; e, por fim, defende a importância de a escola abordar conhecimentos mais ligados às vidas dos estudantes (NUNCA…, 2017). ( 2017NUNCA me sonharam. Direção: Cacau Rhoden. Produção: Juliana Borges. São Paulo: Maria Farinha Filmes, 2017.); 3) preparação e apresentação de seminários temáticos ao longo de toda a disciplina (referentes a temas que emergem das práticas escolares e que os licenciandos sentem a necessidade de problematizar teoricamente e abordar nas regências e demais tarefas a serem desenvolvidas nas escolas); 4) planejamento de regências a serem desenvolvidas de forma remota nas escolas; 5) análise e debate das questões centrais sobre uma entrevista de Ubiratan D’Ambrosio com Paulo Freire; 6) teorização sobre as diferenças entre educação a distância e ensino emergencial remoto; 7) roda de conversa com os pesquisadores Ole Skovsmose e Miriam Godoy Penteado sobre educação matemática crítica e cenários para investigação; 8) análise sobre a relação entre os temas abordados na referida roda de conversa e os acontecimentos que os licenciandos estavam vivenciando nas escolas, remotamente; e 9) elaboração de escritas reflexivas ao longo de toda a disciplina e do relatório final. A avaliação teve configuração análoga à do Estágio 1, considerando as diferenças nas tarefas realizadas, conforme acabamos de destacar.

Cabe ressaltar ainda as parcerias que fizemos para conduzir as tarefas das disciplinas nos momentos síncronos e assíncronos. Contamos com outros colaboradores (duas doutorandas, uma pós-doutoranda e uma professora da área de letras), que, com suas experiências em diferentes áreas de pesquisa e diferentes contextos, contribuíram para o andamento dessas disciplinas, fomentando os debates, colaborando com a correção das escritas reflexivas e dos relatórios e sugerindo encaminhamentos para a realização das tarefas nas escolas da educação básica.

A correção das escritas e dos relatórios foi feita por meio de comentários que fazíamos nos próprios documentos anexados pelos licenciandos na plataforma Google Classroom, na qual dialogávamos com eles pontuando sugestões de referenciais teóricos e solicitando maiores detalhamentos sobre alguns trechos que porventura tivessem ficado desconexos. As notas foram atribuídas de acordo com critérios preestabelecidos e acordados com eles no primeiro dia de aula, de acordo com as instruções dadas para a realização de cada tarefa, que, em linhas gerais, envolviam: clareza nas ideias apresentadas nos textos, diálogo com referenciais teóricos coerentes com os temas tratados, ortografia e domínio dos conceitos matemáticos e das metodologias de ensino abordados nos planos de aula.

Contamos ainda com outras participações especiais no decorrer dessas disciplinas, como a do coordenador de área de matemática do Programa de Residência Pedagógica (PRP) da UFSCar, o Prof. Dr. Paulo César Oliveira, e dos três preceptores do PRP da área de matemática, que contribuíram para o levantamento das principais problemáticas enfrentadas pela escola e para o planejamento e a elaboração de propostas didáticas a serem desenvolvidas pelos estagiários nas escolas, tanto os que participam quanto os que não participam do programa.

Os detalhes sobre a metodologia de pesquisa serão apresentados a seguir.

Metodologia qualitativa

Conforme já mencionado no início do artigo, a pesquisa de pós-doutorado aqui discutida seguiu os pressupostos da metodologia qualitativa, cuja fonte de dados é composta de registros escritos das tarefas realizadas pelos licenciandos ao longo das disciplinas e áudios e videogravações das aulas.

Os recortes discutidos neste artigo são provenientes dos planos de aula das quatro disciplinas, das videogravações de uma aula do Estágio 1 (período matutino) sobre a temática “a escola pública, diferentes questões que a permeiam” e de uma aula do Estágio 3 (período matutino) sobre a temática “dificuldades no ensino emergencial remoto e encaminhamentos para superá-las”. As aulas ocorreram na plataforma Google Meet e foram todas gravadas (áudio e vídeo). São também trazidos excertos dos relatórios finais de alguns licenciandos que cursaram a disciplina Estágio 3 (período matutino), bem como da tarefa de análise das entrevistas com os professores da educação básica, conduzidas pelos próprios licenciandos dessa mesma disciplina, cujo intuito principal foi compreender como suas aulas na educação básica estavam sendo ministradas remotamente. Trazemos ainda outras reflexões sobre parte dos mapas conceituais elaborados nas disciplinas, que complementam a discussão.

Dessa forma, a partir do exposto, as discussões que faremos a seguir se pautam no desenvolvimento dessas disciplinas, seguindo uma abordagem metodológica qualitativa, que, em concordância com Goldenberg ( 1999GOLDENBERG, Mirian. A arte de pesquisar: como fazer pesquisa qualitativa em ciências sociais. 2. ed. Rio de Janeiro: Record, 1999.), visa se aprofundar em aspectos subjetivos emergentes em um determinado grupo social, constituído, nesse caso, pelos participantes dessas disciplinas.

Assim, a análise dos dados se deu de forma interpretativa, ao buscarmos compreender o fenômeno em questão, a partir da combinação dos diferentes procedimentos de produção desses dados. Para Goldenberg ( 1999GOLDENBERG, Mirian. A arte de pesquisar: como fazer pesquisa qualitativa em ciências sociais. 2. ed. Rio de Janeiro: Record, 1999.) e Lincoln e Guba ( 1985LINCOLN, Yvonna S.; GUBA, Egon G. Naturalistic inquiry. Newbury Park: Sage, 1985.), a análise realizada a partir dessa multiplicidade de procedimentos, conhecida como triangulação, contribui para um maior aprofundamento acerca do objeto de investigação estudado.

Nesse sentido, em consonância com a pergunta diretriz (que mobilizações ocorrem na formação inicial e continuada de professores de matemática, a partir do aprofundamento teórico acerca do conceito de estágio compartilhado?) e com a proposta deste artigo (discutir recortes dessa pesquisa que tematizam os desafios e as possibilidades que se manifestaram durante o desenvolvimento de quatro disciplinas de estágio no curso de licenciatura de matemática no contexto remoto), discorreremos a seguir sobre temas que versam sobre questões que dialogam com a educação matemática crítica e com a configuração do estágio compartilhado no ensino remoto.

Um diálogo com a educação matemática crítica e a configuração do estágio compartilhado no ensino remoto

Já no início das aulas de Estágio 3, em ambos os períodos, propusemos o estudo, a elaboração de mapas conceituais em pequenos grupos e o debate acerca do capítulo “Diálogo e educação matemática” (FAUSTINO, 2018FAUSTINO, Ana Carolina. “Como você chegou a esse resultado?”: o diálogo nas aulas de matemática dos anos iniciais do ensino fundamental. 2018. Tese (Doutorado em Educação Matemática) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Rio Claro, 2018.), cujo objetivo é discutir a relação entre a comunicação, o ensino e a aprendizagem de matemática na perspectiva da educação matemática crítica. Os conceitos mais destacados pelos licenciandos em seus mapas incluíram: comunicação, diálogo, intencionalidade, argumentação, ensino e aprendizagem de matemática, trabalho com projetos, democracia, cenários para investigação, autonomia, aprendizagem crítica da matemática, entre outros.

É importante destacar que temas como esses, concernentes à educação matemática crítica, já vêm ganhando espaço há algum tempo em meio às tarefas desenvolvidas nas disciplinas de estágio nos cursos de licenciatura em matemática da UFSCar. Isso ocorre porque, nos pressupostos da educação matemática crítica, há diferentes preocupações sobre a sociedade, a matemática e a educação matemática, e temas que convergem para isso são fortemente debatidos ao longo das disciplinas, principalmente pelo fato de emergirem nos relatos feitos pelos licenciandos acerca do desenvolvimento de suas atividades práticas nas escolas.

Essas preocupações são frequentemente debatidas nas disciplinas de estágio, principalmente quando os licenciandos iniciam suas atividades práticas nas escolas, junto aos professores que os recebem. As temáticas frequentes que emergem em seus relatos e que nos permitem dialogar com os aportes teóricos da educação matemática crítica versam sobre: desafios enfrentados para lidar com a complexidade decorrente de diferentes contextos socioeconômicos que se manifestam nas escolas; dificuldade em ministrar regências que superem a lógica do paradigma de exercícios; dificuldade em utilizar metodologias diferentes das aulas expositivas; etc.

Por isso, ao propormos estudos teóricos com base na educação matemática crítica nas disciplinas de estágio, intencionalmente, esperamos provocar nos licenciandos um deslocamento de suas atitudes para que reflitam e ressignifiquem suas concepções acerca da matemática e de seu ensino, conforme defendido por Gama e Sousa ( 2015GAMA, Renata Prenstteter; SOUSA, Maria do Carmo. Elementos estruturantes que podem promover a construção do estágio compartilhado na licenciatura em matemática. In: LOPES, Celi Espasandin; TRALDI, Armando; FERREIRA, Ana Cristina (org.). O estágio na formação inicial do professor que ensina matemática. Campinas: Mercado de Letras, 2015. p. 11-42.). Alguns conceitos, especificamente, têm contribuído para essas reflexões e ressignificações, sendo eles: cenários para investigação, imaginação pedagógica (MILANI, 2015MILANI, Raquel. O processo de aprender a dialogar por futuros professores de matemática com seus alunos no estágio supervisionado. 2015. Tese (Doutorado em Educação Matemática) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Rio Claro, 2015. Disponível em: http://hdl.handle.net/11449/124074. Acesso em: 22 mar. 2021.), diálogo (FAUSTINO, 2018FAUSTINO, Ana Carolina. “Como você chegou a esse resultado?”: o diálogo nas aulas de matemática dos anos iniciais do ensino fundamental. 2018. Tese (Doutorado em Educação Matemática) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Rio Claro, 2018.; MILANI, 2015MILANI, Raquel. O processo de aprender a dialogar por futuros professores de matemática com seus alunos no estágio supervisionado. 2015. Tese (Doutorado em Educação Matemática) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Rio Claro, 2015. Disponível em: http://hdl.handle.net/11449/124074. Acesso em: 22 mar. 2021.; SKOVSMOSE, 2000SKOVSMOSE, Ole. Cenários para investigação. Bolema, Rio Claro, v. 13, n. 14, p. 66-91, 2000.), zona de risco e zona de conforto (SKOVMOSE, 2000SKOVSMOSE, Ole. Cenários para investigação. Bolema, Rio Claro, v. 13, n. 14, p. 66-91, 2000.).

Esses são alguns dos conceitos que temos estudado com os licenciandos desde o Estágio 1. No caso da aula de Estágio 3, relatado anteriormente, por terem estudado o texto de Faustino ( 2018FAUSTINO, Ana Carolina. “Como você chegou a esse resultado?”: o diálogo nas aulas de matemática dos anos iniciais do ensino fundamental. 2018. Tese (Doutorado em Educação Matemática) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Rio Claro, 2018.), que se alicerça em referenciais da educação matemática crítica, os licenciandos já estavam familiarizados com alguns conceitos abordados pela autora, o que contribuiu para a elaboração de seus mapas conceituais.

Desse modo, dando continuidade à discussão após a apresentação dos mapas conceituais, instigamos os licenciandos a pensarem em possíveis situações que pudessem ser desenvolvidas virtualmente com os estudantes da educação básica, a partir de uma SDA (ARAUJO, 2019ARAUJO, Elaine Sampaio. Atividade orientadora de ensino: princípios e práticas para a organização do ensino de matemática. Revista Paranaense de Educação Matemática, Campo Mourão, v. 8, n. 15, p. 123-146, 2019.) sintetizada pelo seguinte questionamento: em que ocasiões vocês não aceitavam o convite do professor para se engajar nas tarefas da escola? De modo geral, os licenciandos argumentaram que o engajamento é difícil quando os estudantes não entendem o sentido daquilo que estão fazendo.

A licencianda A 7 7 Os sujeitos de pesquisa serão representados por letras, conforme orientação do Comitê de Ética. colocou a seguinte questão: “Em um cenário normal a mediação já é difícil, como fica agora a distância? Como seria o trabalho em grupo com os alunos?” (Licencianda A, Estágio 3, período matutino, aula realizada em 8 de setembro de 2020).

Essa questão da licencianda A demonstrou a preocupação que muitos estavam sentindo em relação ao desenvolvimento das tarefas na educação básica, diante do contexto remoto, uma vez que os relatos dos professores da educação básica, com os quais tínhamos um contato mais direto, como os preceptores do PRP, por exemplo, indicavam uma baixa adesão dos estudantes nas aulas remotas e grandes dificuldades estruturais, operacionais e metodológicas por parte da escola em “atrair” esses estudantes e para o desenvolvimento de qualquer proposta pedagógica.

Nas entrevistas realizadas pelos licenciandos com os professores da educação básica – tarefa proposta nas quatro disciplinas com o intuito de compreendermos de que modo os professores estavam ensinando matemática no contexto remoto –, pudemos compreender com mais profundidade as especificidades dessas dificuldades. Embora haja diferenças entre as ações mais efetivas tomadas por cada escola, o que fica evidente nas análises das entrevistas feitas pelos licenciandos é o foco voltado para a “busca ativa” 8 8 Termo usado frequentemente pelos professores e gestores, que indica múltiplas iniciativas por parte da equipe escolar para atrair os estudantes para as aulas remotas, incluindo a criação de grupos em redes sociais e visitas nas casas. dos estudantes.

No caso das disciplinas do Estágio 1, antes de adentrarmos as especificidades do contexto remoto, sentimos a necessidade de debater em aulas anteriores as ideias que permeiam o conceito de estágio compartilhado (GAMA; SOUSA, 2015GAMA, Renata Prenstteter; SOUSA, Maria do Carmo. Elementos estruturantes que podem promover a construção do estágio compartilhado na licenciatura em matemática. In: LOPES, Celi Espasandin; TRALDI, Armando; FERREIRA, Ana Cristina (org.). O estágio na formação inicial do professor que ensina matemática. Campinas: Mercado de Letras, 2015. p. 11-42.) e algumas problemáticas relacionadas à escola e à juventude, com base em Melo, Souza e Dayrell ( 2012MELO, Luciana Cezário Milagres de; SOUZA, Gilmara Silva; DAYRELL, Juarez Tarcísio. Escola e juventude: uma relação possível? Paidéia, Belo Horizonte, v. 9, n. 12, p. 161-186, 2012.).

Sobre o estágio compartilhado, os licenciandos ressaltaram no debate e em seus mapas conceituais o fato de que, nessa perspectiva, o estágio é visto como um espaço de produção de conhecimento tanto para os licenciandos quanto para os formadores e os professores da educação básica.

Já a dificuldade de adequação às aulas remotas, em decorrência do período de pandemia, foi mencionada frequentemente pelos licenciandos das quatro disciplinas, por meio das análises que fizeram das entrevistas realizadas com professores da educação básica, entregues por escrito e debatidas sincronamente. Essas análises também foram relacionadas aos temas tratados no documentário Nunca me sonharam ( 2017NUNCA me sonharam. Direção: Cacau Rhoden. Produção: Juliana Borges. São Paulo: Maria Farinha Filmes, 2017.), no caso das disciplinas de Estágio 3. A partir dessa tarefa, os licenciandos levantaram os seguintes percalços relatados pelos professores nas entrevistas: falta de autonomia dos alunos em relação à rotina de estudos; evasão dos alunos por diferentes motivos, sobretudo por questões socioeconômicas; professores se sentindo restritos pela “cobrança” do uso do Centro de Mídias, desmotivando a articulação com outras alternativas metodológicas; etc.

A licencianda A discorre ainda sobre o papel do professor diante dessa situação adversa:

Realizar o estágio de forma remota deixou claro também a importância e a complexibilidade do trabalho do professor. Além do preparo e domínio sobre a área de atuação, a mediação, o tratamento das informações e todo o estudo das ferramentas digitais é fundamental para a elaboração das atividades. O professor também é essencial no suporte dado aos alunos em toda a adaptação ao novo modelo de ensino, novas plataformas utilizadas (como o Centro de Mídias de Educação de São Paulo e o CAED [Centro de Políticas Públicas e Avaliação da Educação]) e se faz extremamente necessário também no suporte emocional, ao desenvolver um ambiente acolhedor diante de todo o cenário que estamos enfrentando. (Licencianda A, Estágio 3, período matutino, relatório final entregue em 15 de dezembro de 2020).

Além de problematizar o papel do professor, principalmente ao longo do período emergencial remoto, a licencianda A discute em seu relatório questões sociais que chamaram sua atenção, as quais impactavam o engajamento dos estudantes nas atividades escolares, como a falta de acesso às tecnologias digitais. Nesse sentido, ela reforçou a importância do trabalho da professora com quem estagiou e de toda a equipe gestora escolar, uma vez que sua ação voltada à busca ativa dos estudantes foi “[…] fundamental em criar possibilidades e buscar alternativas para atender individualmente esses casos (muitas vezes por meio de ligações e até liberação da presença de pais nas escolas para retirar material e receber orientações)” (Licencianda A, Estágio 3, período matutino, relatório final entregue em 15 de dezembro de 2020).

De modo geral, ao refletirem sobre os percalços encontrados para atuar nas escolas, foram muitas as relações que os licenciandos, nas disciplinas de Estágio 3, estabeleceram entre os relatos dos professores nas entrevistas e o tema abordado no documentário Nunca me sonharam. Em sua análise, a licencianda A pontua:

Durante o filme é falado sobre meritocracia. Nos é dado um exemplo, onde há uma corrida e o destino é [o] topo do prédio. Mas, um participante começa do subsolo, enquanto outro sai do quinto andar e vai de elevador. Esse exemplo reflete muito o que acontece na prática quando é falado sobre meritocracia, nem todos têm as mesmas oportunidades. E no cenário atual, é perceptível essas desigualdades. Será que todos [os] alunos têm acesso à internet para frequentar as aulas do ensino remoto? Será que eles têm os equipamentos necessários? Um lugar adequado? Será que os alunos das escolas públicas estão tendo as mesmas oportunidades de ensino que os alunos das escolas particulares? (Licencianda A, Estágio 3, período matutino, tarefa “Análise da entrevista com o documentário Nunca me sonharam” entregue em 20 de setembro de 2020).

Entretanto, algo que chamou ainda mais a atenção dessa licencianda e de outros, de maneira geral, foi que a pandemia apenas acentuou os diversos problemas já existentes na escola contemporânea, como bem apontam gestores de escola, professores, estudantes e especialistas da área de educação, participantes do documentário analisado (NUNCA…, 2017NUNCA me sonharam. Direção: Cacau Rhoden. Produção: Juliana Borges. São Paulo: Maria Farinha Filmes, 2017.).

Voltando ao conteúdo das entrevistas, ao debaterem essas dificuldades com os professores, os licenciandos também lhes perguntaram sobre como estavam ocorrendo as aulas diante de tudo que foi exposto, com o propósito de tomarem conhecimento sobre os tipos de tarefas que poderiam desenvolver remotamente, e como poderiam contribuir para a parceria com os professores durante o estágio. A principal ação elencada pelos professores nas entrevistas foi a realização da busca ativa pelos alunos de diversas formas – por meio de grupos no WhatsApp, e-mail, imprimindo as atividades para os alunos buscarem presencialmente nas escolas etc. Porém, algo que ficou marcado nas entrevistas concedidas por eles foi o uso do Google Forms, com questões de múltiplas escolhas para os alunos realizarem as tarefas, recurso que atraía uma participação mais efetiva.

Segundo os professores, a parceria com os licenciandos por meio da realização dos estágios seria profícua na medida em que esses contribuíssem com essa busca ativa, principalmente na parte de produção de atividades que despertassem o interesse e a participação dos alunos. Como os professores já haviam dito, o Google Forms era um importante meio de realização de tarefas por parte dos alunos, então, produzir atividades utilizando esse recurso, bem como o uso e a produção de vídeos, foi o que norteou algumas tarefas dos licenciandos na parte prática dos estágios. Entretanto, a professora da disciplina expôs uma preocupação de que isso deveria ser feito na tentativa de superar a lógica de “lista de exercícios”. Era necessário refletir sobre a relação existente entre os formulários e o paradigma do exercício, segundo os pressupostos de Skovsmose ( 2000SKOVSMOSE, Ole. Cenários para investigação. Bolema, Rio Claro, v. 13, n. 14, p. 66-91, 2000.).

Nesse sentido, outra importante parceria que estabelecemos no decorrer das disciplinas, e que foi fundamental para que os licenciandos buscassem lidar com essa preocupação exposta pela professora, foi uma roda de conversa realizada virtualmente com os pesquisadores Ole Skovsmose e Miriam Godoy Penteado, ocorrida em meados do segundo semestre de 2020, na qual foram debatidos os pressupostos da educação matemática crítica. Durante o evento, os licenciandos buscaram elementos que os ajudassem a pensar em abordagens com as características de cenários para investigação (SKOVSMOSE, 2000SKOVSMOSE, Ole. Cenários para investigação. Bolema, Rio Claro, v. 13, n. 14, p. 66-91, 2000.), voltadas para o contexto remoto.

Detalhes do desenvolvimento das tarefas pelos estudantes foram discutidos por eles em seus relatórios finais. Chamou nossa atenção a realização das tarefas por um dos grupos devido ao uso diferenciado do Google Forms, com o intuito de promover uma abordagem mais voltada para a compreensão conceitual. Nas palavras do licenciando B:

Em nosso grupo de estagiários imperaram as preocupações em fugir do paradigma do exercício e de buscar atividades que promovessem uma aprendizagem significativa, mesmo com as limitações presentes na comunicação. Algumas alternativas encontradas foram a inserção de videoaulas nos formulários e o uso da revisão (ideia originada em nossas discussões, que acabou adotada em toda a escola). (Licenciando B, Estágio 3, período matutino, relatório final entregue em 16 de dezembro de 2020).

Essas foram algumas das ações que os licenciandos – em parceria conosco, enquanto formadores, e com o professor da educação básica e seus colegas de grupo no estágio – desenvolveram como parte da etapa prática da disciplina de Estágio 3. É importante destacar que (segundo o licenciando B, seu grupo, o professor responsável e o coordenador da escola) essa ação diferenciada com o Google Forms foi tão proveitosa para atrair um número maior de alunos para o desenvolvimento das tarefas que tornou esse uso um modelo para a escola inteira.

Outro ponto importante a ser esclarecido é que o uso da revisão, a que o licenciando B faz referência, consiste em uma estrutura condicional do Google Forms, que direciona seções do formulário de acordo com a resposta dada às questões. Resumindo, se o aluno escolhesse a opção incorreta, seria encaminhado a outra seção do formulário, que poderia ter um vídeo ou uma imagem explicativa que o convidasse a repensar sua resposta, contribuindo para uma melhor compreensão do conceito abordado.

Essa preocupação dos licenciandos para que os estudantes compreendessem o conceito vai ao encontro das constantes reflexões que fazíamos nas aulas, para que buscássemos romper com o paradigma do exercício (SKOVMOSE, -SKOVSMOSE ( 2000SKOVSMOSE, Ole. Cenários para investigação. Bolema, Rio Claro, v. 13, n. 14, p. 66-91, 2000.)). Ao refletir sobre o desenvolvimento das tarefas de estágio na pandemia, de maneira geral, o licenciando B reitera:

Considero que essa experiência, além de desafiadora, foi bastante construtiva, pois exigiu uma reestruturação em diversas práticas tradicionais no processo educacional, trazendo à tona estratégias que foram construídas coletivamente, criadas para que fizessem mais sentido aos alunos. Evidente que aqui não me refiro a todos os malefícios produzidos e acentuados no atual contexto. (Licenciando B, Estágio 3, período matutino, relatório final entregue em 16 de dezembro de 2020).

Essa reflexão do licenciando B vai ao encontro das ideias que Sousa, Zampieri e Gama ( 2021SOUSA, Maria do Carmo de; ZAMPIERI, Maria Teresa; GAMA, Renata Prenstteter. O estágio supervisionado compartilhado no contexto pandêmico: ações do movimento de uma política institucionalizada. Revista Baiana de Educação Matemática, Juazeiro, v. 2, n. 1, e202126, 2021.) apontam acerca do ensino remoto. Para as autoras, o ensino remoto no contexto de pandemia demanda mudanças, pois “[…] não há como escolas e universidades desenvolverem atividades isoladamente quando o foco é a Educação, uma vez que o conceito de compartilhado envolve o desenvolvimento de um trabalho com o outro e não para o outro” (SOUSA; ZAMPIERI; GAMA, 2021, p. 24, grifo dos autores).

Nesse sentido, a licencianda C, membro do mesmo grupo de estágio que o licenciando B, discorreu ainda sobre a proposta feita pelo preceptor, com quem estavam atuando tanto no estágio quanto no PRP, para que os licenciandos elaborassem suas questões. Segundo a licencianda C, o preceptor sugeriu, além da elaboração das questões utilizando o Google Forms, seguindo a sistemática anteriormente mencionada, que os licenciandos gravassem vídeos curtos abordando os conceitos trabalhados nos formulários. No trecho a seguir, trazemos alguns detalhes sobre a produção desses materiais, que abordaram o conceito de funções exponenciais, relatados pela licencianda C em seu relatório final de estágio:

Antes de darmos início a elaboração do formulário, optei por realizar um pequeno levantamento teórico acerca das aplicações das funções exponenciais, para conseguir posteriormente construir uma questão que tratasse sobre uma situação similar ao que estamos vivendo hoje [fazendo referência à pandemia de covid-19], para isso assisti alguns vídeos e também levantei alguns artigos que discutisse a contextualização do tema. (Licencianda C, Estágio 3, período matutino, relatório final entregue em 14 de dezembro de 2020).

Este relato mostra uma preocupação em não se fundamentar apenas nos materiais didáticos recomendados pela escola ou pelo governo para abordar os conceitos, mas também buscar referenciais teóricos em plataformas científicas, de modo a ter uma ampla compreensão conceitual e de possibilidades metodológicas para seu ensino. Essa busca por textos científicos era algo constantemente indicado pelas formadoras, em consonância com as ideias de AOE e SDA, em que a intencionalidade pedagógica orienta o plano metodológico.

Por isso, é necessário “[…] compreender o conhecimento científico a ser ensinado, considerando seus nexos conceituais; é preciso compreender como a criança aprende e como a humanidade produziu este conceito; e então definir quais são os conhecimentos fundantes […]” (ARAUJO, 2019, p. 133ARAUJO, Elaine Sampaio. Atividade orientadora de ensino: princípios e práticas para a organização do ensino de matemática. Revista Paranaense de Educação Matemática, Campo Mourão, v. 8, n. 15, p. 123-146, 2019.). Sob essa perspectiva, é preciso que as ações do professor sejam intencionais, de modo a criar no estudante “[…] um motivo especial para a sua atividade: estudar e aprender teoricamente sobre a realidade” (MOURA et al., 2010, p. 90MOURA, Manoel Oriosvaldo de et al. A atividade orientadora de ensino como unidade entre ensino e aprendizagem. In: MOURA, Manoel Oriosvaldo de (org.). A atividade pedagógica na teoria histórico-cultural. Brasília, DF: Líber Livro, 2010. p. 71-100.).

Além disso, o relato da licencianda C mostra que se levou em consideração uma das temáticas sobre educação matemática crítica estudadas ao longo das disciplinas de estágio cursadas, em particular a importância de abordar problemas reais, no sentido de que “[…] as referências à vida real parecem ser necessárias para estabelecer uma reflexão detalhada sobre a maneira como a matemática pode estar operando enquanto parte da nossa sociedade” (SKOVSMOSE, 2000SKOVSMOSE, Ole. Cenários para investigação. Bolema, Rio Claro, v. 13, n. 14, p. 66-91, 2000., p. 19).

O problema elaborado pela licencianda C abordou uma infecção por um determinado vírus, que estava ocorrendo em uma dada cidade, de modo que cada pessoa infectada poderia contaminar outras três, caso estivessem sem nenhum tipo de proteção. O propósito seria descrever esse fenômeno definindo uma função que relacionasse o número de pessoas infectadas a cada interação. Depois desse processo de elaboração do problema, a licencianda passou a planejar a produção de seu vídeo. Então, montou um roteiro para se organizar.

Assim, seu vídeo ficou organizado do seguinte modo: inicialmente, abordou uma situação-problema similar àquela criada por ela, modificando apenas a função. Em seguida, levantou alguns questionamentos e apresentou diferentes formas de resolução dessa situação-problema. Por fim, mostrou a relação apresentada no problema com os conceitos matemáticos abordados e, depois, fez a generalização. Cabe destacar que esses vídeos produzidos pelo grupo foram idealizados para contribuir para a compreensão conceitual dos estudantes, no caso de não conseguirem resolver os problemas propostos no Google Forms.

Essa produção de vídeo, associada a um uso diferenciado do Google Forms, que buscava romper com o “certo e errado”, característicos das questões de múltiplas escolhas, vai ao encontro de um dos propósitos dos cenários para investigação, em que “[…] o pressuposto de que há uma, e somente uma, resposta correcta não faz mais sentido” (SKOVSMOSE, 2000, p. 13SKOVSMOSE, Ole. Cenários para investigação. Bolema, Rio Claro, v. 13, n. 14, p. 66-91, 2000.).

A importância dessa ação é destacada pela licencianda C:

De maneira geral, apesar das imensas dificuldades e falta de experiência em produzir trabalhos por meios virtuais, todas as atividades contribuíram para nosso crescimento acadêmico e também para a construção da nossa formação como futuros docentes. (Licencianda C, Estágio 3, período matutino, relatório final entregue em 14 de dezembro de 2020).

As dificuldades e superações vivenciadas por C e seu grupo parecem descrever um movimento de uma zona de conforto para uma zona de risco, em que há imprevisibilidades, mas também há possibilidades para aprender, conforme nos alerta Skovsmose ( 2000SKOVSMOSE, Ole. Cenários para investigação. Bolema, Rio Claro, v. 13, n. 14, p. 66-91, 2000.). Nesse processo, houve muita pesquisa sobre o desenvolvimento de materiais e abordagens que valorizassem a compreensão conceitual e que se distanciassem do paradigma do exercício (SKOVMOSE, 2000SKOVSMOSE, Ole. Cenários para investigação. Bolema, Rio Claro, v. 13, n. 14, p. 66-91, 2000.), contando com a orientação das formadoras e do professor. Isso caracteriza “[…] uma nova qualidade nas relações entre universidade e escola pública, que passa por uma compreensão da função social da escola como um espaço social no qual se é garantido o conhecimento como bem e direito de todos” (ARAUJO, 2019, p. 144ARAUJO, Elaine Sampaio. Atividade orientadora de ensino: princípios e práticas para a organização do ensino de matemática. Revista Paranaense de Educação Matemática, Campo Mourão, v. 8, n. 15, p. 123-146, 2019.).

Também com essa intencionalidade, cabe destacar que o preceptor responsável por esse grupo frequentemente reforçava aos licenciandos, durante as próprias aulas teóricas de estágio em que participava, que priorizassem a elaboração de questões que valorizassem os conceitos, focalizando menos em técnicas e procedimentos, pois isso era o que considerava primordial que seus alunos aprendessem, principalmente levando em consideração o contexto remoto. Nesse sentido, houve uma preocupação de que os alunos atribuíssem sentido ao que estavam estudando e que entendessem como a matemática opera na realidade (SKOVSMOSE, 2000SKOVSMOSE, Ole. Cenários para investigação. Bolema, Rio Claro, v. 13, n. 14, p. 66-91, 2000.).

A importância de que os licenciandos tenham a oportunidade de, em parceria com o professor e formadores, realizar esse amplo estudo vai ao encontro de um dos elementos estruturantes do estágio compartilhado, destacados por Gama e Sousa ( 2015, p. 34GAMA, Renata Prenstteter; SOUSA, Maria do Carmo. Elementos estruturantes que podem promover a construção do estágio compartilhado na licenciatura em matemática. In: LOPES, Celi Espasandin; TRALDI, Armando; FERREIRA, Ana Cristina (org.). O estágio na formação inicial do professor que ensina matemática. Campinas: Mercado de Letras, 2015. p. 11-42.): “[…] considerar o professor pesquisador de sua própria prática. Isso porque nessa dinâmica se observam, planejam-se, sistematizam-se, compartilham-se e se ressignificam saberes docentes; além de refletir sobre esses”. Para a construção do vídeo requerido por seu preceptor, a licencianda C destaca:

[…] contei com o suporte dos meus colegas de grupos, docentes da disciplina de estágio e também do professor preceptor, que compartilharam materiais teóricos e também contribuíram com ideias que auxiliaram para uma produção mais adequada dos materiais. (Licencianda C, Estágio 3, período matutino, relatório final entregue em 14 de dezembro de 2020).

Esse relato da licencianda C reforça a importância da parceria na formação de professores, inicial e continuada, para a mobilização de conhecimentos teórico-metodológicos concernentes à docência. Nesse sentido, Foerste ( 2005, p. 87FOERSTE, Erineu. Parceria na formação de professores. São Paulo: Cortez, 2005.) defende que “[…] tanto o professorado, como no meio acadêmico, parceria é compreendida como uma prática emergente de colaboração, cooperação, partilha de compromissos e responsabilidade, entre outros aspectos”. Ademais, “[…] quando professores das escolas e da universidade compartilham ideias, juntamente aos licenciandos de forma institucionalizada, os desafios colocados pela pandemia são analisados coletivamente” (SOUSA; ZAMPIERI; GAMA, 2021SOUSA, Maria do Carmo de; ZAMPIERI, Maria Teresa; GAMA, Renata Prenstteter. O estágio supervisionado compartilhado no contexto pandêmico: ações do movimento de uma política institucionalizada. Revista Baiana de Educação Matemática, Juazeiro, v. 2, n. 1, e202126, 2021., p. 24).

Portanto, diante do que foi exposto, destacamos que houve grandes desafios para a construção do conceito de estágio compartilhado no contexto remoto, conforme discutimos anteriormente. Tratou-se de dificuldades em relação ao desenvolvimento das atividades práticas nas escolas, que ficaram bastante restritas pelo alto índice de evasão dos alunos da educação básica, ligado a motivos socioeconômicos, à falta de autonomia para organizar uma rotina de estudos, entre outros fatores, analisados a partir dos relatos de professores da educação básica ao longo das disciplinas de estágio e a partir da análise das entrevistas com esses e outros professores, feita pelos licenciandos, como parte das tarefas teóricas propostas.

Contudo, por meio das diferentes parcerias estabelecidas, em especial as que ocorreram durante o desenvolvimento das disciplinas, foi possível enfrentar esses desafios ora mencionados, o que fica explícito nas atitudes dos licenciandos, ao lançarem mão de diferentes conhecimentos teórico-metodológicos para a realização de suas atividades práticas. Assim, a característica que está no cerne do estágio compartilhado – a defesa de que professores, pesquisadores e futuros professores sejam pensadores do ensino trabalhando de modo colaborativo [GAMA; SOUSA, -GAMA; SOUSA ( 2015GAMA, Renata Prenstteter; SOUSA, Maria do Carmo. Elementos estruturantes que podem promover a construção do estágio compartilhado na licenciatura em matemática. In: LOPES, Celi Espasandin; TRALDI, Armando; FERREIRA, Ana Cristina (org.). O estágio na formação inicial do professor que ensina matemática. Campinas: Mercado de Letras, 2015. p. 11-42.)] – manteve-se nesta nova configuração das disciplinas de estágio, ministradas remotamente.

Por fim, os fatores que possibilitaram a construção do estágio compartilhado, no contexto de ensino remoto decorrente da pandemia, foram: a intencionalidade das formadoras em fomentar essa construção por meio do planejamento e do desenvolvimento de suas propostas didáticas para as disciplinas (GAMA; SOUSA, 2015GAMA, Renata Prenstteter; SOUSA, Maria do Carmo. Elementos estruturantes que podem promover a construção do estágio compartilhado na licenciatura em matemática. In: LOPES, Celi Espasandin; TRALDI, Armando; FERREIRA, Ana Cristina (org.). O estágio na formação inicial do professor que ensina matemática. Campinas: Mercado de Letras, 2015. p. 11-42.; MOURA, 2001MOURA, Manoel Oriosvaldo de. A atividade de ensino como ação formadora. In: CASTRO, Amélia Domingues de; CARVALHO, Anna Maria Pessoa de. Ensinar a ensinar: didática para a escola fundamental e média. São Paulo: Pioneira, 2001. p. 143-162.; MOURA et al., 2010MOURA, Manoel Oriosvaldo de et al. A atividade orientadora de ensino como unidade entre ensino e aprendizagem. In: MOURA, Manoel Oriosvaldo de (org.). A atividade pedagógica na teoria histórico-cultural. Brasília, DF: Líber Livro, 2010. p. 71-100.); a presença marcante dos professores da educação básica ao longo dos encontros síncronos; a participação de docentes de outras instituições de ensino superior (IESs) e estudantes de doutorado; a roda de conversa com dois pesquisadores com os quais dialogamos constantemente por meio de seus referenciais teóricos sobre educação matemática crítica; as atitudes da maioria dos licenciandos ao se manterem dispostos para enfrentar suas zonas de risco; e a partilha de tarefas, compromissos e responsabilidades, que permeou todo o desenvolvimento dessas disciplinas.

Considerações finais

Este artigo teve como objetivo discutir resultados de uma pesquisa de pós-doutorado, que teve como propósito realizar um aprofundamento teórico acerca do conceito de estágio compartilhado e mobilizar esse estudo para a formação inicial e continuada de professores de matemática, considerando os três pilares da universidade: pesquisa, ensino e extensão. Esses resultados estão relacionados, particularmente, aos desafios e às possibilidades que se manifestaram no desenvolvimento do estágio compartilhado no contexto remoto.

Diante do que foi exposto, e em consonância com Foerste ( 2005FOERSTE, Erineu. Parceria na formação de professores. São Paulo: Cortez, 2005.), sintetizamos aqui que as parcerias estabelecidas ao longo desse pós-doutorado contribuíram para um movimento de busca por respostas à pergunta de pesquisa, configurada do seguinte modo: “que mobilizações ocorrem na formação inicial e continuada de professores de matemática a partir do aprofundamento teórico acerca do conceito de estágio compartilhado?”

A parceria com professores e pesquisadores de distintas áreas possibilitou um aprofundamento acerca de alguns conceitos que constituem a base do estágio compartilhado, como a noção de “atividade”, de Leontiev (2006 apud GAMA; SOUSA, 2015GAMA, Renata Prenstteter; SOUSA, Maria do Carmo. Elementos estruturantes que podem promover a construção do estágio compartilhado na licenciatura em matemática. In: LOPES, Celi Espasandin; TRALDI, Armando; FERREIRA, Ana Cristina (org.). O estágio na formação inicial do professor que ensina matemática. Campinas: Mercado de Letras, 2015. p. 11-42.), dentre outros importantes conceitos comuns às pesquisas dos membros do grupo, ou que concernem a algumas temáticas mais particulares, mas que, de todo modo, permitem um aprofundamento teórico na perspectiva da teoria histórico-cultural.

Na base do estágio compartilhado, também há a ideia de planejamento compartilhado de ações (MOURA, 1999MOURA, Manoel Oriosvaldo de. O estágio na formação docente compartilhada do professor: retratos de uma experiência. São Paulo: Feusp, 1999.) e a intencionalidade pedagógica no ensino. Isso nos levou a participar do grupo de estudos vinculado ao GEPAPe, que conta com professores e pesquisadores de diversas regiões brasileiras. Essa parceria tem nos permitido um amplo estudo teórico acerca dos conceitos de SDA e AOE, o que tem contribuído significativamente para a organização do ensino nas disciplinas de estágio supervisionado de matemática na educação básica da UFSCar.

As demais parcerias realizadas ao longo do desenvolvimento das disciplinas –professores de outras IEs, estudantes de doutorado, outros professores da UFSCar, professores da educação básica vinculados ao PRP e que participaram assiduamente dos momentos síncronos, além da interação com os pesquisadores Ole Skovsmose e Miriam Godoy Penteado por meio da realização de uma roda de conversa – foram fatores imprescindíveis para a construção do estágio compartilhado dentro do contexto remoto.

Outro fator importante foi o comprometimento da maioria dos licenciandos conosco e com esses parceiros que tivemos ao longo das disciplinas, o que contribuiu para que tivessem diferentes ideias a fim de tentar superar a lógica do paradigma do exercício para o desenvolvimento de suas atividades práticas. Ainda há alguns entraves que percebemos em relação à parceria entre os próprios licenciandos: enquanto há aqueles que naturalmente trabalham em grupo, há alguns que têm certa dificuldade para desenvolver SDAs coletivamente, tanto em tarefas teóricas quanto práticas. Esse é um dos desafios enfrentados em nossa prática, o qual buscamos superar a cada dia a partir do diálogo e de propostas pedagógicas que incitem a colaboração entre eles. Por isso, é importante que outros formadores de professores desenvolvam experiências de estágios compartilhados e busquem desenvolver propostas que se aproximem de uma perspectiva crítica na formação de professores.

Por fim, a partir da análise desse recorte de dados aqui apresentados, em consonância com a pergunta de pesquisa e os referenciais teóricos discutidos, destacamos que as mobilizações que ocorreram, nesse cenário debatido, foram: teóricas, a partir dos estudos realizados acerca de conceitos que estão na base do estágio compartilhado e da interlocução feita com a educação matemática crítica, que se manifestam em nossa prática por meio de intencionalidade na organização do ensino; e metodológicas, a partir das propostas pedagógicas que tiveram que ser cuidadosamente replanejadas e adaptadas para as disciplinas de estágio ofertadas remotamente, que mobilizaram licenciandos e professores da educação básica a debaterem entre si e a estudarem obras literárias que lhes permitissem criar SDAs que buscassem superar a lógica do paradigma do exercício, priorizando a compreensão conceitual e a atribuição de sentido pelos alunos da educação básica.

Referências

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  • FAUSTINO, Ana Carolina. “Como você chegou a esse resultado?”: o diálogo nas aulas de matemática dos anos iniciais do ensino fundamental. 2018. Tese (Doutorado em Educação Matemática) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Rio Claro, 2018.
  • FIORENTINI, Dario; CASTRO, Franciana Carneiro. Tornando-se professor de matemática: o caso de Allan em prática de ensino e estágio supervisionado. In: FIORENTINI, Dario (org.). Formação de professores de matemática: explorando novos caminhos com outros olhares. Campinas: Mercado de Letras, 2003. p. 121-156.
  • FOERSTE, Erineu. Parceria na formação de professores. São Paulo: Cortez, 2005.
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  • LINCOLN, Yvonna S.; GUBA, Egon G. Naturalistic inquiry. Newbury Park: Sage, 1985.
  • MELO, Luciana Cezário Milagres de; SOUZA, Gilmara Silva; DAYRELL, Juarez Tarcísio. Escola e juventude: uma relação possível? Paidéia, Belo Horizonte, v. 9, n. 12, p. 161-186, 2012.
  • MILANI, Raquel. O processo de aprender a dialogar por futuros professores de matemática com seus alunos no estágio supervisionado. 2015. Tese (Doutorado em Educação Matemática) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Rio Claro, 2015. Disponível em: http://hdl.handle.net/11449/124074. Acesso em: 22 mar. 2021.
  • MOURA, Manoel Oriosvaldo de. O estágio na formação docente compartilhada do professor: retratos de uma experiência. São Paulo: Feusp, 1999.
  • MOURA, Manoel Oriosvaldo de. A atividade de ensino como ação formadora. In: CASTRO, Amélia Domingues de; CARVALHO, Anna Maria Pessoa de. Ensinar a ensinar: didática para a escola fundamental e média. São Paulo: Pioneira, 2001. p. 143-162.
  • MOURA, Manoel Oriosvaldo de et al. A atividade orientadora de ensino como unidade entre ensino e aprendizagem. In: MOURA, Manoel Oriosvaldo de (org.). A atividade pedagógica na teoria histórico-cultural. Brasília, DF: Líber Livro, 2010. p. 71-100.
  • MOURA, Manoel Oriosvaldo de; SFORNI, Marta Sueli de Faria; LOPES, Anemari Roesler Luersen Vieira. A objetivação do ensino e o desenvolvimento do modo geral de aprendizagem da atividade pedagógica. In: MOURA, Manoel Oriosvaldo de (org.). Educação escolar e pesquisa na teoria histórico-cultural. São Paulo: Loyola, 2017. p. 71-100.
  • PIMENTA, Selma Garrido; LIMA, Maria Socorro Lucena. Estágio e docência. São Paulo: Cortez, 2004.
  • SKOVSMOSE, Ole. Cenários para investigação. Bolema, Rio Claro, v. 13, n. 14, p. 66-91, 2000.
  • NUNCA me sonharam. Direção: Cacau Rhoden. Produção: Juliana Borges. São Paulo: Maria Farinha Filmes, 2017.
  • SOUSA, Maria do Carmo de; ZAMPIERI, Maria Teresa; GAMA, Renata Prenstteter. O estágio supervisionado compartilhado no contexto pandêmico: ações do movimento de uma política institucionalizada. Revista Baiana de Educação Matemática, Juazeiro, v. 2, n. 1, e202126, 2021.
  • 4
    A pesquisa obedeceu aos procedimentos éticos estabelecidos para a pesquisa científica, conforme diretriz do Comitê de Ética da UFSCar, que emitiu um parecer favorável ao seu desenvolvimento.
  • 5
    O Centro de Mídias é uma plataforma que visa ampliar a oferta de aulas mediadas por tecnologias às escolas públicas da rede estadual paulista, uma iniciativa da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo.
  • 6
    O documentário, em linhas gerais, problematiza a falsa ideia de que oferecer a escola já é suficiente para a educação dos jovens; denuncia que, toda vez que a equipe escolar desiste de lutar pela aprendizagem dos estudantes, está aumentando o custo da sociedade; e, por fim, defende a importância de a escola abordar conhecimentos mais ligados às vidas dos estudantes (NUNCA…, 2017NUNCA me sonharam. Direção: Cacau Rhoden. Produção: Juliana Borges. São Paulo: Maria Farinha Filmes, 2017.).
  • 7
    Os sujeitos de pesquisa serão representados por letras, conforme orientação do Comitê de Ética.
  • 8
    Termo usado frequentemente pelos professores e gestores, que indica múltiplas iniciativas por parte da equipe escolar para atrair os estudantes para as aulas remotas, incluindo a criação de grupos em redes sociais e visitas nas casas.

Editado por

Editor:

Lia Machado Fiuza Fialho

Maria Teresa Zampieri

é doutora em educação matemática pelo Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), campus de Rio Claro, e professora assistente do Departamento de Educação do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Unesp, campus de São José do Rio Preto.

Maria do Carmo de Sousa

é doutora em educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Campinas (Unicamp) e docente do Departamento de Metodologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    22 Nov 2021
  • Revisado
    23 Maio 2022
  • Aceito
    10 Out 2022
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