Acessibilidade / Reportar erro

Silêncio docente e emancipação: entre lições indígenas, Freire e Rancière 1 1 - Agradeço sobejamente Lidiane Krenak, liderança e professora indígena da aldeia Vanuíre, que sempre me recebeu e educou com atenção e paciência, à sombra da mangueira.

Teacher silence and emancipation: between indigenous lessons, Freire and Rancière

Resumo

Este trabalho articula as noções de autonomia na concepção de Paulo Freire e de emancipação segundo Jacques Rancière com práticas educacionais indígenas coletadas por meio de pesquisa bibliográfica e de campo. O sentido dessa articulação está no uso pedagógico do silêncio na educação indígena como ensinamento de uma educação não-indígena que se pretenda emancipadora e autônoma. Diferencia-se, para tanto, em contexto educacional, as noções de silêncio físico, vazio, silenciamento, monologismo, silêncio vocal dos não-humanos e breviloquência docente. O trabalho de campo ouviu professores e professoras indígenas das etnias Krenak (aldeia Vanuíre) e Guarani Mbya (aldeia Krukutu) do estado de São Paulo. A pesquisa bibliográfica coletou saberes de povos Kaingang, Munduruku, Wapichana, Mebêngôkre, Pataxó e Maia sobre o papel do silêncio de quem ensina durante processos pedagogicamente investigativos. Resulta dessa articulação, o uso consciente do silêncio por humanos e não-humanos como propulsor de práticas autônomas, dialógicas e emancipatórias por parte de crianças e jovens. Trazidos à luz da educação não-indígena, o conhecimento aprofundado das pessoas em processo de aprendizagem, a recusa da explicação e a redução dos signos da linguagem são ações que contribuem para a emancipação, a autonomia e para uma prática investigativa epistemologicamente revolucionária por parte de quem se envolve no processo de aprendizagem3 3 - Todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo foi publicado no próprio artigo. .

Educação; Autonomia; Educação indígena; Emancipação

Abstract

This work articulates the notions of autonomy in the conception of Paulo Freire and emancipation according to Jacques Rancière with indigenous educational practices collected through bibliographic and field research. The purpose of this articulation is to use the pedagogical use of silence in indigenous education as a teaching of a non-indigenous education that aims to be emancipatory and autonomous. Therefore, in the educational context, the notions of physical silence, emptiness, silencing, monologism, vocal silence of non-humans, and teacher brevity are differentiated. The fieldwork heard indigenous teachers from the Krenak (Vanuíre village) and Guarani Mbya (Krukutu village) ethnicities in the state of São Paulo. Bibliographic research collected knowledge from Kaingang, Munduruku, Wapichana, Mebêngôkre, Pataxó, and Maia peoples on the role of the silence of those who teach during pedagogically investigative processes. The result of this articulation is the conscious use of silence by humans and non-humans as a propellant for autonomous, dialogical, and emancipatory practices by children and youth. Brought to light in non-indigenous education, the in-depth knowledge of people in the learning process, the refusal of explanation, and the reduction of language signs are actions that contribute to emancipation, autonomy, and to an epistemologically revolutionary investigative practice by those involved in the learning process

Education; Autonomy; Indigenous education; Emancipation

Introdução

Você pode ouvir o som de uma mão batendo na outra em uma palma, mas qual é o som que só uma das mãos faz neste movimento? Essa pergunta é um famoso koan zen-budista. Especialmente utilizados em ensinamentos passados entre mestres e aprendizes, portanto estrito à esfera interpessoal, os koans são situações, narrativas ou perguntas, normalmente paradoxais, que eventualmente ferem a lógica e, por essa razão, são utilizadas para criar perplexidade e um vazio em quem as ouve ( BOUSO, 2016BOUSO, Raquel. La articulación de la realidad: aproximación al lenguaje religioso desde el pensamiento japonés. Ideas y Valores, Bogotá, v. 65, n. 2, p. 17-29, 2016. Suplemento. ). Como se sabe, essa tradição oriental tem no esvaziamento da alma, através de atividades mecânicas, meditativas e espirituais, um de seus principais caminhos para minar a poluidora razão e acessar o interior. O vazio, a ausência e o silêncio aqui são os mais valiosos expedientes a serem buscados por neófitos e seus mestres.

Na educação escolar indígena, nas narrativas e relações de ensinamento de mestres pajés, xamãs ou pessoas mais velhas com as crianças, também se verifica a utilização proposital do silêncio e da ausência como parte do processo educacional. Daniel Munduruku (2014)MUNDURUKU, Daniel. Tempo de histórias: antologia de contos indígenas de ensinamento. São Paulo: Moderna, 2014. assegura que a vida na floresta ou nas aldeias exige saber ouvir não só pessoas, mas o que dizem as coisas todas: o rio, as árvores e os animais falam, só não como os humanos, e para aprender com eles “é necessário o silêncio para saber ouvir com os ouvidos de dentro” ( MUNDURUKU, 2014MUNDURUKU, Daniel. Tempo de histórias: antologia de contos indígenas de ensinamento. São Paulo: Moderna, 2014. , p. 44). Não se trata aqui de uma visão alegórica sobre as vozes manifestas pelos agentes não-humanos do mundo, mas de uma realidade. Conforme demonstrado na pesquisa etnológica, o perspectivismo ameríndio ( VIVEIROS DE CASTRO, 2001VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac & Naif, 2001. , 2015VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Metafísicas canibais. São Paulo: Cosac & Naif, 2015. ) compreende uma agencialidade dos seres imbuídos de alteridade, vozes, diálogos e ensinamentos. Assim, tal qual o mestre evoca o silêncio para provocar o conhecimento, assim o fazem os agentes não-humanos, para igualmente ensinar os seus conhecimentos. De modo que, antes de haver o silêncio da pessoa mais velha que ensina, há o silêncio das agências do mundo que ensinam aos mais velhos.

Em uma passagem de sua infância, na qual costumava perguntar muitas coisas aos mais velhos sem ter resposta, Daniel Munduruku recorda:

Cresci achando que eles não sabiam a resposta. E eu até ficava magoado com o silêncio que faziam. Para mim era pouco caso o comportamento deles. Por isso não era incomum que eu me isolasse algumas horas por dia para continuar fazendo as perguntas que ninguém queria ouvir. Foi assim que alimentei a ideia de que as “coisas” podiam me ouvir e falar comigo. Assim, no grande quintal sem muro onde cresci, fui aprendendo a ler os sinais das “coisas”. Um dia meu pai me chamou de canto. Disse que queria falar comigo. Fiquei um pouco assustado, pois o rosto dele expressava certa preocupação. Meu pai era sempre muito brincalhão. Vivia causando alegria para todos da aldeia. Obediente, eu o acompanhei. Ele me levou para uma clareira e sob a copa de uma mangueira secular me contou uma história. [...]. ( SÃO PAULO, 2019SÃO PAULO. Secretaria Municipal de Educação. Coordenadoria Pedagógica. Currículo da cidade: povos indígenas: orientações pedagógicas. São Paulo: SME, 2019. , p. 28).

Pode-se entender este […] como um silencio proposital por parte do escritor deste artigo com a finalidade de exemplificar uma das formas pelas quais o silêncio é usado entre diversos povos indígenas: como elemento provocador que dialoga com a curiosidade de quem aprende. Nota-se, nesses exemplos de mestres indígenas e zen-budistas, que o silêncio funciona como um operador pedagógico dotado de finalidade e, portanto, é consciente e planejado.

Neste texto, procurarei detalhar como povos indígenas, em especial os Munduruku, os Wapichana, os Krenak, os Kaingang, os Guarani Mbya, os Mebêngôkre (Kayapó), os Pataxó e os Maia, costumam lidar com o silêncio dentro dos seus processos educacionais, escolarizados ou não, além de mostrar como o expediente do silêncio tem forte apelo à curiosidade, sendo, portanto, parte das investigações científicas empreendidas pelas crianças indígenas. Trazidas para o campo da educação não-indígena, essas lições são igualmente profícuas. Sua potência não está apenas circunscrita a uma técnica e sua forma de criar silêncios, mas, sobretudo, está atrelada à formação de pessoas autônomas ( FREIRE, 2002FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 25. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2002. ) e emancipadas que prescindem da figura explicadora que professores e professoras eventualmente encarnam ( RANCIÈRE, 2018RANCIÈRE, Jacques. O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. 4. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2018. ). Com isso, é esperado, ainda que timidamente, indianizar – para usar o termo zapatista – práticas educativas, isto é, trazer de volta formas de relação, de aprendizado e de ciências originárias violentadas pelo epistemicídio moderno que a ciência, e seu ensino, abraçou ( ROZENTAL, 2015ROZENTAL, Emmanuel. Indianizar-nos frente a la hidra capitalista es armonizar el pensamiento y la práctica. In: EZLN, El pensamiento crítico frente a la hidra capitalista III. Chiapas: Comisión Sexta del EZLN, 2015. p. 112-143. ). Para iniciar, entretanto, é preciso compreender os sentidos e significados do que é entendido aqui por silêncio.

Qual é o som do silêncio?

Silêncio é fisicamente a ausência de som e não a ausência de vozes. Mikhail Bakhtin (1997)BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997. mostrou que a extração do som de uma palavra não a esvazia. Quem lê um texto, o faz normalmente em silêncio e, mediado pelos signos da linguagem, pode inclusive lê-lo em um lugar silencioso, mas, ao fazê-lo, lida com muitas vozes. Trata-se de um dialogismo, um diálogo sem som, a dialogia das vozes ( BAKHTIN, 1997BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997. ). A voz discursiva de quem escreve dialoga com quem lê, sendo possível perceber a personalidade, o tom, a ironia e outras características por meio de seus enunciados. Assim, para Bakhtin (1997)BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997. , o silêncio físico é menos importante do que o monologismo (lidar com uma única voz). E, na sua concepção, no “silêncio e o vazio absoluto” não há voz ( BAKHTIN, 1997BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997. , p. 184). O silêncio, para o autor, não se relaciona com o som, mas com a voz. Portanto, o silêncio físico não implica o vazio, mas a ausência de som. Calar alguém, ou calar-se, vai muito além do impedimento da fala.

Paulo Freire (1976)FREIRE, Paulo. Ação cultural para a liberdade e outros escritos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976. se aproxima desta noção bakhtiniana quando se refere à “cultura do silêncio”. O forjamento dessa expressão se dá no contexto da luta camponesa na qual o analfabetismo foi usado pelos opressores como instrumento de silenciamento violento e dominação da consciência. Aqui o silêncio tem tanto aspecto físico quanto epistemológico, na medida em que tal processo procura inibir o pensamento. “Na cultura do silêncio, existir é apenas viver. O corpo segue ordens de cima. Pensar é difícil; dizer a palavra, proibido” ( FREIRE, 1976FREIRE, Paulo. Ação cultural para a liberdade e outros escritos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976. , p. 62). De fato, neste trecho, Freire adota uma dimensão extrafonética do silêncio e se aproxima de Bakhtin. O silêncio físico é repleto de significados que precisam ser apreendidos por educandos e educadores, mas o silenciamento é o impedimento do pensar (FREIRE, 2002). Por isso, é predicado indispensável para a pedagogia da autonomia que professores e professoras saibam escutar:

A importância do silêncio no espaço da comunicação é fundamental. De um lado, me proporciona que, ao escutar, como sujeito e não como objeto, a fala comunicante de alguém, procure entrar no movimento interno do seu pensamento, virando linguagem; de outro, torna possível a quem fala, realmente comprometido com comunicar e não com fazer puros comunicados, escutar a indagação, a dúvida, a criação de quem escutou. Fora disso, fenece a comunicação. ( FREIRE, 2002FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 25. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2002. , p. 43).

A cultura do silêncio é um sintoma da educação bancária enquanto ação disciplinar e opressora que a Pedagogia do oprimido combate. Nas palavras do educador, “fazendo valer do silenciamento refletindo a sociedade opressora, sendo dimensão da cultura do silêncio, a educação bancária mantém e estimula dominações” ( FREIRE, 1970FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 1970. , p. 51). Em ambos os casos, como na maior parte de sua obra, Freire chama atenção de quem educa para o respeito à autonomia dos educandos. “A autonomia, enquanto amadurecimento do ser para si, é processo, é vir a ser” (FREIRE, 2002, p. 41), vir a ser alguém consciente das mazelas e desigualdades do mundo e, portanto, alguém capaz de emancipar-se. Assim, dentro de seu projeto de educação libertadora, a liberdade a que se refere Paulo Freire é a antítese da opressão. A emancipação do ser é conseguir se livrar dos mecanismos de dominação.

Em caminho semelhante, encontra-se Jacques Rancière em seu livro O mestre ignorante , no qual descreve e analisa os pensamentos de Joseph Jacotot, professor parisiense do século XVIII. Rancière (2018)RANCIÈRE, Jacques. O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. 4. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2018. coloca em xeque a premissa de que uma metodologia de ensino deve ser pensada por quem educa: método é algo de quem aprende. Neste sentido, o filósofo francês radicaliza a percepção e o papel do chamado “mito pedagógico”. Esse mito ancora-se na falsa divisão de inteligências, de que existe uma inteligência inferior e uma superior e que cabe à última explicar as coisas à primeira:

A explicação não é necessária para socorrer uma incapacidade de compreender. É, ao contrário, essa incapacidade, a ficção estruturante da concepção explicadora de mundo. É o explicador que tem necessidade do incapaz, e não o contrário, é ele que constitui o incapaz como tal. Explicar alguma coisa a alguém é, antes de mais nada, demonstrar-lhe que não pode compreendê-la por si só. ( RANCIÈRE, 2018RANCIÈRE, Jacques. O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. 4. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2018. , p. 23).

Para Rancière (2018)RANCIÈRE, Jacques. O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. 4. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2018. , existem dois princípios que regem a aprendizagem: a inteligência e a vontade. Sempre que a vontade do “mestre” se sobrepõe à vontade do “aluno”, tem-se a sujeição do segundo. E, sempre que uma inteligência se sobrepõe à outra, tem-se o embrutecimento. Provoca o autor, toda a pedagogia está calcada na diferenciação entre quem aprende e quem ensina ( RANCIÈRE, 2018RANCIÈRE, Jacques. O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. 4. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2018. ). Logo, o mito pedagógico é um mito de perpetuação de diferença e aprofundamento da desigualdade. O “professor embrutecedor” – diferente do professor bancário, acrescento – “é dotado de boa intenção, boa formação e defende com naturalidade que a educação envolve compreensão de algumas coisas e que para tal sê-lhe ofereçam explicações melhores e metodologias melhores que se aproximem” ( RANCIÈRE, 2018RANCIÈRE, Jacques. O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. 4. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2018. , p. 24).

O caminho buscado por Rancière é o da autonomia e emancipação das pessoas em um rompimento radical das hierarquias entre quem educa e quem ensina, de sorte que estes termos sequer parecem válidos. Emancipar é negar que uma inteligência (docente) possa se sobrepor à outra (discente). Ao pensar em novas formas de explicar, professoras e professores estão silenciando e inferiorizando as pessoas, portanto, as embrutecendo. Por isso a apologia ao mestre ignorante que não estabelece diferença entre a sua inteligência e a inteligência do aprendente, não colocando o processo de aprendizagem dentro da lógica de explicação e compreensão. O explicativismo é um silenciamento e um aprofundamento de diferenças em um ciclo que nunca se encerra. Pois, assim que uma criança julga compreender algo, distancia-se da outra que não compreende, tencionando explicar-lhe aquilo que a primeira desconhece e estabelecendo, assim, uma nova hierarquia. Por isso, destaca-se: a recusa da explicação é um ato de silêncio deliberado que impele o outro à autonomia, à busca e ao improviso, sem a necessidade do mestre. Rancière (2018)RANCIÈRE, Jacques. O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. 4. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2018. adiciona, então, mais uma camada de significado sobre o silêncio, aquela em que a explicação, o esforço pedagógico para que o estudante compreenda algo é, em si, um ato de embrutecimento e, portanto, de silenciamento. Já o silêncio do professor ou da professora, ou a recusa da explicação, é um ato de emancipação.

Por fim, mas não menos importante, há ainda uma outra dimensão distinta para pensar o silêncio e a ação educacional: as vozes dos não-humanos. É preciso considerar que, ao lidar com ciências e educação indígena, existe um elemento ontológico constitutivo das práticas sociais que precisa ser ressalvado: tudo é gente, tudo fala, não só os humanos. “Numerosos povos do novo mundo compartilham uma concepção segundo a qual o mundo é composto por uma multiplicidade de pontos de vista: todos os existentes são centros potenciais de intencionalidade, que apreendem os demais existentes” ( VIVEIROS DE CASTRO, 2015VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Metafísicas canibais. São Paulo: Cosac & Naif, 2015. , p. 42). Quando o avô de Daniel Munduruku lhe disse, quando criança, para ir ao rio: “sua tarefa vai ser ouvir o rio. Ouça o que ele tem para te dizer. Fica lá, quietinho” ( SÃO PAULO, 2019SÃO PAULO. Secretaria Municipal de Educação. Coordenadoria Pedagógica. Currículo da cidade: povos indígenas: orientações pedagógicas. São Paulo: SME, 2019. p. 12), ou quando Ailton Krenak se lembra da montanha na frente de sua aldeia na infância: “aprendi que aquela serra tem nome, Takukrak, e personalidade” (KRENAK, A., 2019, p. 10), está se versando sobre vozes efetivas e com impacto direto e profundo nas relações de aprendizagem. As coisas falam e se pode, com maior ou menor grau, conversar com elas. Ou, eventualmente, o que é muito comum para as crianças indígenas, receber o silêncio delas. Tal distinção ontológica, portanto, não interfere no que se depreende do silêncio. Quando as inúmeras narrativas indígenas mostram diálogos ou silêncios com os seres não-humanos, pode-se dizer que existem aí também vozes. Por isso essa ressalva é relevante para compreender que o pequeno Munduruku sentado na margem do rio tentando ouvi-lo, ainda que não consiga, está diante do silêncio das vozes não-humanas, na presença de outras vozes. E, se fosse o pajé Pataxó ouvindo as estrelas, diria que há ali “muitas vozes, embora o silêncio fosse completo” (PATAXÓ, 2013, p. 20).

Para finalizar e resumir, nesta seção procurei expandir os sentidos dos silêncios e silenciamentos. O silêncio enquanto ausência de som não encerra o sentido buscado aqui, pois, vozes humanas e não-humanas independem de energia sonora. Silêncio, neste texto, é a ausência de vozes e, em outros termos, o vazio. Quando se impinge este silêncio aos estudantes (a “cultura do silêncio”), tem-se o silenciamento, a sujeição, o embrutecimento, a violência e a opressão. Apesar das diferenças entre Freire e Rancière quanto ao caminho para emancipação, ambos acreditam nela como forma de combater opressões e violências, de conquistar autonomia de pensamento e de possibilitar a transformação social. Quando em ato consciente, o silêncio do ensinante, provocado por ele ou por ela ao criar os vazios ou recusar-se a explicar, representa o caminho para a emancipação da pessoa aprendente. Contra a cultura do silêncio, contra o embrutecimento e em favor da autonomia e da emancipação, vale, cada vez mais, o silêncio docente e a recusa da explicação. Tal lição não é de Freire ou de Rancière, mas muito mais ancestral: são práticas indígenas. A educação indígena, cuja ontologia é essencialmente a diplomacia com os viventes ( VIVEIROS DE CASTRO, 2001VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac & Naif, 2001. ), tem muito a nos ensinar sobre como educar crianças curiosas e autônomas. O silêncio, então, é uma das maneiras que as pessoas indígenas mais velhas utilizam conscientemente para pavimentar esse caminho. Na seção seguinte, serão detalhados alguns exemplos de como isso ocorre na educação indígena.

Breviloquência e aprendizagem

Entre 2017 e 2020, em decorrência do trabalho e da pesquisa relacionados à tese de doutoramento, realizou-se uma série de conversas e visitas às aldeias indígenas Vanuíre, Ekeruá, Krukutu, Tekoá Pyau, no estado de São Paulo, com o objetivo de conhecer as escolas indígenas e, em especial, as práticas de professoras e professores das disciplinas ligadas às ciências da natureza e suas tecnologias. Essas visitas consideraram professoras, professores e lideranças indígenas como referenciais teóricos fundamentais por meio de suas falas orais. As pessoas ouvidas consentiram com a utilização de suas falas em nome dos seus respectivos povos. Para além das falas orais, realizou-se também um trabalho de pesquisa bibliográfica das publicações feitas por povos ou autores indígenas sobre educação e ciências. Esse conjunto de relatos, informações, ideias, práticas e modos de enxergar a educação, sejam coletados pessoalmente ou por meio dos livros indígenas, foi considerado referencial teórico fundamental a partir do qual se pensou aspectos gerais e específicos da educação não-indígena. A partir desses registros sobre o silêncio e a educação indígena, buscou-se uma reflexão sobre estes expedientes na educação não-indígena com vistas à construção da autonomia e emancipação de estudantes.

Para os povos indígenas em relatos aqui coletados, tal qual os Munduruku do baixo Tapajós, os Wapichana do extremo norte brasileiro, os Krenak do Rio Doce (Uatu) em Minas Gerais e do oeste paulista, os Kaingang do oeste catarinense, paranaense e paulista; os Guarani Mbya do litoral sudestino, os Mebêngôkre (Kayapó) do centro amazônico, os Pataxó do centro mineiro, e os Maia de Chiapas, o silêncio é um construto ativo não apenas dentro das aldeias, mas também como um elemento de interlocução e luta política. Em dezembro 2012, último dia do ciclo maia, conhecido e temido por trazer o fim do mundo, um protesto silencioso levou 40 mil Maia para as ruas do México. Milhares de zapatistas saíram de seus territórios autônomos em Chiapas com suas balaclavas e tomaram grandes cidades sem nenhum grito ou discurso. Eles ocuparam as ruas com dois gestos simbólicos: o punho erguido e o silêncio (SOUZA, L. P., 2017). Nota-se a vocalidade, em sentido bakhtiniano, do silêncio nesta ação. Aproveitou-se de um sentimento instaurado acerca do fim do mundo para dialogar sem som, educar pessoas e mostrar resistência precisamente sobre o tema do fim do mundo que a mudança climática carrega. Os Maia do movimento zapatista entendem por missão reeducar os brancos modernos e, para isso, utilizam toda a sua estrutura e conhecimentos em encontros, estudos e vivências educacionais. Eles que cunharam o termo indianizar-se , ou seja, procurar nos saberes indígenas originários caminhos para ressignificar conhecimentos e práticas modernas que são nocivas à Terra. A escola não-indígena atua e age como uma instituição moderna por excelência, isto é, evoca, propaga e amealha ideais pretensamente universais de progresso, mobilidade social e justiça ( SILVA, 1995SILVA, Tomaz Tadeu da. O projeto educacional moderno: identidade terminal? In: VEIGA-NETO, Alfredo (org.). Crítica pós-estruturalista e educação. Porto Alegre: Sulina, 1995. p. 245-260. ). É, portanto, essa própria escola moderna um logradouro de uniformização de discursos. Lembra Viveiros de Castro (2017VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Últimas notícias sobre a destruição. In: RICARDO, Carlos Alberto; RICARDO, Fany Pantaleoni (ed.). Povos indígenas no Brasil: 2011-2016. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2017. p. 144-148. , p. 147) sobre os Maia: “esta rara revolta, o movimento zapatista, é um exemplo possível de ‘sustentabilidade’, no sentido ecológico e político do termo. Os Maia, portanto, que viveram vários fins de mundo, mostram-nos hoje como é possível viver depois do fim do mundo”.

Na educação indígena, escolarizada ou não, as pessoas mais velhas exercem papel essencial na formação integral dos seres. As escolas indígenas trazem para o centro de sua organização, mediada pelo Estado, aquilo que são práticas educacionais ancestrais. Antes da separação do conhecimento em disciplinas, a educação indígena lidava com a educação para a sobrevivência ( SEE-MT, 1997SEE-MT. Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso. Urucum, jenipapo e giz: a educação escolar indígena em debate. Cuiabá: SEE-MT, 1997. ). Quando a escola indígena precisou se organizar junto à estrutura estatal de educação, adotaram-se, para não fugir à ancestralidade, abordagens por projetos interdisciplinares. Antes de haver internet e bibliotecas, as pessoas mais velhas operavam – e ainda operam – como guardiãs do conhecimento milenar. Com uma escola indígena estadual, traz-se para dentro do espaço escolar etapas de investigação que nunca deixam de contemplar os mais velhos onde os jovens param para ouvir e aprender a memória coletiva (KRENAK, A., 2018; MARQUES, 2019MARQUES, Ludmyla. Krenak: vivos na natureza morta: guia de uso pedagógico. Goiânia: Futura, 2019. Disponível em: http://futurabucket2017.s3.amazonaws.com/wp-content/uploads/2018/08/Krenak-2017.pdf. Acesso em: 22 mar. 2022.
http://futurabucket2017.s3.amazonaws.com...
; OLIVEIRA; SANTOS, 2014; PATAXÓ, 2013PATAXÓ, Kanatyo. Diálogos dos saberes: a pedagogia da lente do nosso olhar e as mãos da Natureza: povo Pataxó da Aldeia Muã Mimatxi. Belo Horizonte: UFMG, 2013. ; INÁCIO, 2010INÁCIO, Andila Nivygsãnh. Venh Kanhrãn. In: BERGAMASCHI, Maria Aparecida; VENZON, Rodrigo Allegretti (org.). Pensando a educação kaingang. Pelotas: UFPEL, 2010. p. 23. ; SÃO PAULO, 2019SÃO PAULO. Secretaria Municipal de Educação. Coordenadoria Pedagógica. Currículo da cidade: povos indígenas: orientações pedagógicas. São Paulo: SME, 2019. ; SEE-SC, 1998SEE-SC. Secretaria de Estado de Educação de Santa Catarina. Projeto Político pedagógico guarani Wherá: Yynn Moroti Wherá (Aldeia M’Biguaçú). Florianópolis: SEE-SC, 1998. ). As pessoas mais velhas são extremamente respeitadas e não costumam falar muito, mas, quando o fazem, trazem consigo os conhecimentos milenares, ancestrais, os mitos e as ciências. As pessoas mais velhas são meios pelos quais os conhecimentos circulam. Este encontro entre crianças e velhos é essencial, pois “enquanto um representa a sabedoria e experiência de vida, outro representa a perpetuação desses saberes” ( INÁCIO, 2010INÁCIO, Andila Nivygsãnh. Venh Kanhrãn. In: BERGAMASCHI, Maria Aparecida; VENZON, Rodrigo Allegretti (org.). Pensando a educação kaingang. Pelotas: UFPEL, 2010. p. 23. , p. 36). Tal admiração se traduz em atitudes das crianças indígenas: “Assim a criança cresce querendo imitar os adultos nos seus afazeres, querendo, um dia, poder ajudar. O que ela faz não sai bom e ainda assim todos continuam incentivando até que um dia ela faz bem” ( INÁCIO, 2010INÁCIO, Andila Nivygsãnh. Venh Kanhrãn. In: BERGAMASCHI, Maria Aparecida; VENZON, Rodrigo Allegretti (org.). Pensando a educação kaingang. Pelotas: UFPEL, 2010. p. 23. , p. 23).

Entre os Guarani Mbya, a fala e a oratória são elementos utilizados apenas pelas pessoas mais velhas, que podem deixar os conhecimentos fluírem boca a fora. “Não é recomendado aos mais novos usar a retórica para aprender. Eles devem, ao contrário, concentrar-se em ouvir, observar e imitar” ( CABRAL DE OLIVEIRA; SANTOS, 2014CABRAL DE OLIVEIRA, Joana; SANTOS, Lucas Keese dos. “Perguntas de mais” – Multiplicidades de modos de conhecer em uma experiência de formação de pesquisadores Guarani Mbya. In: CUNHA, Manuela Carneiro da; CESARINO, Pedro de Niemeyer (org.). Políticas culturais e povos indígenas. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2014. p. 113-134. , p. 120). Porém, principalmente nas aldeias com constante contato com o mundo não-indígena, o papel da fala diante dos outros também é incentivado em determinadas etapas da formação. Isso se deve ao fato de estarem em contato com o branco, tendo de se expressar, se fazer compreender e, assim, lutar por direitos ( MARQUES, 2019MARQUES, Ludmyla. Krenak: vivos na natureza morta: guia de uso pedagógico. Goiânia: Futura, 2019. Disponível em: http://futurabucket2017.s3.amazonaws.com/wp-content/uploads/2018/08/Krenak-2017.pdf. Acesso em: 22 mar. 2022.
http://futurabucket2017.s3.amazonaws.com...
).

Para além do papel do ouvir e do falar, existe o papel dos espaços de ausência propositalmente criados para jogar as crianças na roda de seus próprios aprendizados autônomos. Edson Krenak (2015)KRENAK, Edson. O sonho de Borum. Ilustrações de Maurício Negro. Belo Horizonte: Autêntica, 2015. narra como o pajé de sua aldeia o educou, em um relato de experiência educacional profunda. Quando criança, o pajé lhe pediu que contasse um sonho na fogueira no dia seguinte. Trazia em suas mãos um lindo arco e flecha de um grande guerreiro, que seria dele quando o fizesse. Porém, o nervosismo fez com que não sonhasse por duas noites seguidas, embora nunca cogitasse deixar de comparecer à fogueira: “fugir da roda de conversa, um Borum jamais foge” (KRENAK, E., 2015, p. 18). Mas acabou por pensar que sonhou ter resgatado um filho de onça de uma armadilha e trazido peixes para a aldeia. No dia seguinte, depois de ter contado essa história à roda da fogueira no inverno, o pajé apareceu em sua casa bem cedo com o arco e flecha nas mãos lhe dizendo que tinham que sair. Caminharam até atrás do monte para resgatar a onça. Porém, quando chegaram na margem do Uatu (Rio Doce), o pajé então lhe disse o seguinte: “A partir daqui você vai sozinho. Não tema suas águas. Atravesse o rio, na trilha da onça pintada procure a armadilha e, antes que o filhote seja preso por ela, traga-a para mim. Borum, por isso acordamos tão cedo: para evitar que o filhote da pintada seja pego” (KRENAK, E., 2015, p. 22). O que acontece a seguir fica por conta do garoto e são inúmeras aventuras entre conversas com mico, arara e onça. Ao resgatar o filhote e conseguir os peixes, o garoto volta correndo e logo vê à entrada da aldeia o pajé o esperando junto com seus pais. Sua excitação é enorme em contar tudo o que se passou e ele, de longe, vai falando, ao que o pajé o interrompe: “agora não é hora de falar, agora é hora de comer o peixe. Na hora certa você contará a sua história para todos. O que aconteceu na mata deve ser guardado e pensado em seu coração” (KRENAK, E., 2015, p. 30).

Essa história nos mostra como o pajé construiu uma experiência de aprendizagem com poucas palavras. Mostra também que o pajé tinha plena consciência de todo o processo, tal qual a necessidade de o garoto seguir sozinho. Mostra ainda que existem momentos de falar e momentos em que é melhor não falar. Não se transmite essa sensação neste excerto, mas, no livro, o garoto fica muito nervoso, pois reconhece o quão importante é o papel do pajé, sábio, ao passar-lhe uma tarefa e o presentear. Trata-se de um rito de passagem em que as crianças deixam de ser crianças. O rito nunca é o mesmo, cada criança é observada pela aldeia toda, cresce tendo seus gostos reforçados e, quando chega a hora, o pajé sabe que tipo de tarefa lhe pedirá.

A professora de ciências Lidiane Krenak, da escola indígena Vanuíre, narra outra passagem sobre os velhos da aldeia:

Por exemplo. O vô fala assim. “Essa aldeia Vanuíre não era assim, quando eu era pequeno. Ela era maior”, daí ele deixa esse adendo para criança . E a criança fala assim: “Gente, era maior, mas como será que era?”, aí ele vai no vô. O vô vai sentar-se, falar, outro mais velho vai contar, vai narrar… porque o indígena solta e não responde. É do indígena mais velho aguçar sua curiosidade . Ele fala assim. Como era assim, se perguntar “Como eram as festas aqui?”, ele diz, antigamente as festas eram muito boas, mas eram muito boas. E para ali. E a criança hoje em dia é curiosa… e ela vai buscar em outras fontes. ( MACHADO, 2020MACHADO, Vitor Fabrício. O hálito das palavras: ciências (multi)naturais contra o preconceito. 2020. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2020. , p. 206, grifo do autor).

Tal relato coincide com o que narrou Daniel Munduruku sobre fazer perguntas e não ter respostas de seus pais. Mas reflete ele ao fim: “verdade é que a história que meu pai contou – e para a qual não me deu explicação alguma – ficou dentro de mim querendo brotar como se ele tivesse jogado uma semente que precisasse ser cuidada. Sementes precisam de silêncio” ( SÃO PAULO, 2019SÃO PAULO. Secretaria Municipal de Educação. Coordenadoria Pedagógica. Currículo da cidade: povos indígenas: orientações pedagógicas. São Paulo: SME, 2019. , p. 32). Munduruku narra a visão da criança que recebe o vazio como resposta, assim como Lidiane Krenak narrou sobre os velhos.

No outro relato supracitado aqui, Daniel Munduruku fez algo parecido ao pedir para ouvir o que o rio tinha a dizer. Sozinho, tal qual Edson Krenak. Daniel, frustrado, contou a seu avô que não havia escutado as palavras do rio, ao que a resposta do velho foi: “Ele falou sim, meu neto. Você é que não o ouviu. O rio sempre fala. Hoje seu espírito está fechado, mas ele contou uma bela fábula para lembrar que precisamos aprender com ele” ( SÃO PAULO, 2019SÃO PAULO. Secretaria Municipal de Educação. Coordenadoria Pedagógica. Currículo da cidade: povos indígenas: orientações pedagógicas. São Paulo: SME, 2019. , p. 12). Hoje, é o próprio Daniel quem ensina, sendo escritor e professor de escola para não-indígenas, que “a observação não é uma questão de sentidos apenas, envolve ouvir com os ouvidos de fora e os de dentro e há coisas que só podemos ver quando fechamos os olhos” ( MUNDURUKU, 2014MUNDURUKU, Daniel. Tempo de histórias: antologia de contos indígenas de ensinamento. São Paulo: Moderna, 2014. , p. 44). Compreende e defende o papel do silêncio dizendo que “só se educa pelo carinho e catar piolho, é o carinho que o educador faz na cabeça do educando, estimulando-o, pela palavra e pela magia do silêncio” ( SÃO PAULO, 2019SÃO PAULO. Secretaria Municipal de Educação. Coordenadoria Pedagógica. Currículo da cidade: povos indígenas: orientações pedagógicas. São Paulo: SME, 2019. , p. 5). A professora Isabel Murphy, ao escrever sobre a educação Mebêngôkre (Kayapó) lembra como as palavras se tornam coisas menos relevantes na aprendizagem das crianças. “Tudo o que pode ser demostrado sem muitas palavras deve ser ensinado numa demonstração. Assim a criança olha e acompanha. Depois experimentam sem que haja comentários do professor ” ( MURPHY, 1997MURPHY, Isabel. Educação indígena Kayapó: orientações para professores não-kayapó. In: SECCHI, Darci (org.). Ameríndia: tecendo os caminhos da educação escolar. Cuiabá: SEE-MT, 1997. p. 195-207. , p. 206, grifo do autor).

Utilizo o termo breviloquência para nomear esta característica da educação indígena, em que o silêncio é ativo no processo de aprendizagem, tanto naqueles regidos por humanos quanto por não-humanos. O papel ativo da breviloquência envolve, em termos práticos, silenciar, deixar falas no ar, não explicar, fazer com que as pessoas façam os seus caminhos por conta própria. Essa postura acredita na igualdade de inteligências, sem nenhum tipo de sobreposição, e na curiosidade (vontade, para Rancière) para criar caminhos de aprendizagem e autonomia. O professor ou a professora breviloquente se afasta de explicações, não responde e consegue inclusive reduzir enunciados. Consegue fazê-lo por cultivar a curiosidade, a dúvida e a investigação. O mistério é amigo do silêncio e ambos andam juntos quando se pretende que estudantes empreendam seus caminhos investigativos.

O tempo de uma aula pode ser planejado para que termine com alguma questão importante e relevante no ar, que não será respondida. No máximo, professores e professoras podem incentivar que estudantes busquem respostas e certificar-se, ao longo do tempo, se as pessoas o fizeram e balizar caminhos. Esse expediente, muito comum em investigações científicas, suprime a necessidade imediata de apontar a melhor hipótese ou a “resposta verdadeira” para um determinado problema, que pode permanecer em aberto para sempre, sobretudo quando se trata de conhecimentos em áreas de fronteira, cujas respostas estão a plena investigação no mesmo momento da aula. Não há problema algum em deixar respostas pelo caminho. Ao contrário, o que a educação indígena ensina é a potência dessa postura.

A princípio, pode-se pensar que “ouvir os mais velhos” e “imitar em silêncio” um processo de demonstrações técnicas e construção de artefatos seja um processo passivo por parte das crianças e, quiçá, associado à falta de autonomia, e não o contrário. Contudo, essa impressão é apenas superficial, embora recomende uma clareza distintiva quando esses processos ocorrem com estudantes indígenas e não-indígenas. Tanto Paulo Freire quanto Jacques Rancière não escrevem sobre autonomia e emancipação com vistas à educação que os povos indígenas realizam. E ambas comumente assumem mais um diálogo com as pessoas ensinantes e menos com as pessoas aprendentes, como crianças e adolescentes. Ainda assim, suas noções pensadas estão, sobremaneira, associadas à construção de um ser capaz de ver-se em um meio, reconhecer as contradições deste meio, tomar decisões e criar os próprios caminhos para investigar e conhecer. Desta maneira, a pessoa poderá se livrar dos mecanismos de dominação, opressão e docilidade impostos pela sociedade desde as primeiras práticas educacionais. Não existe, nesta leitura conjunta de Freire e Rancière, nenhum tipo de crítica à observação de procedimentos, repetição e aperfeiçoamento nas práticas educacionais. Imitar em silêncio para aprender é também um processo de domínio de si e de suas habilidades. “É a força criadora do aprender de que fazem parte a comparação, a repetição , a constatação, a dúvida rebelde, a curiosidade não facilmente satisfeita, que supera os efeitos negativos do falso ensinar” ( FREIRE, 2002FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 25. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2002. , p. 13, grifo do autor)

A breviloquência expressa nos vazios criados e nos silêncios ensinantes dos não-humanos é fonte de criatividade, curiosidade, busca e investigação autônoma. Para estudantes não-indígenas, este caminho é, acima de tudo, um convite para exploração de outros espaços, fontes, seres e saberes para além da aula na qual a pessoa ensinante provocou este processo. Para professores e professoras não-indígenas, estreitar laços e saber cavar para cada ser um vazio provocador é despertar na pessoa o estímulo à busca. Tal espírito investigativo nunca é independente, dado que a aprendizagem é sempre um processo coletivo, mas desencadeia a construção dos próprios caminhos e explicações, que poderão ser confrontados com outros no futuro. Por mais paradoxal que possa parecer, é possível que a pessoa ensinante sequer conheça aquilo que se ensina.

Ao provocar o vazio breviloquente, o velho indígena não espera extrair da investigação estudantil elementos a partir dos quais conhecimentos previamente estabelecidos se imporão. Ao contrário, ao evocar a investigação, espera que novos conhecimentos, observações, informações e práticas emerjam dos caminhos desenhados pela criança que investiga, e que possam, junto com outros, modificar inclusive o conjunto geral de conhecimentos. Visto pela ótica não-indígena, pode-se pensar que a prática docente precisa sempre mirar a possibilidade de seus estudantes quebrarem algum paradigma. Esta noção amplamente conhecida de paradigma foi cunhada por Thomas Kuhn, para se referir à determinado conceito ou conhecimento acordado pela comunidade acadêmica. Paradigmas são “as realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência” (KUHN, 1998, p. 13). E, na história das ciências, novas observações, novas evidências oriundas de investigações podem, se continuamente comprovadas, quebrar paradigmas e reformular toda uma área de conhecimento diante de um novo conjunto de conhecimentos. É o que Thomas Kuhn (1998)KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 1998. chama de “revolução científica”.

Assim, relacionando o propósito da educação indígena com a educação não-indígena, o exercício da breviloquência deve ter como horizonte próximo cotidiano o espírito de ignorância dos resultados da investigação. A quebra do paradigma pode emergir a qualquer momento pelas mãos de estudantes. Neste sentido, de fato, ensinar envolve, incondicionalmente, ignorar aspectos do que se ensina. Para Rancière (2018)RANCIÈRE, Jacques. O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. 4. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2018. , ensinar o que se ignora é um convite ao movimento nas bases do conhecimento:

[…] pode-se ensinar o que se ignora, desde que se emancipe o aluno; isso é, que se force o aluno a usar sua própria inteligência. Mestre é aquele que encerra uma inteligência em um círculo arbitrário do qual não poderá sair se não se tornar útil a si mesma. Para emancipar um ignorante, é preciso e suficiente que sejamos, nós mesmos, emancipados; isso é, conscientes do verdadeiro poder do espírito humano. ( RANCIÈRE, 2018RANCIÈRE, Jacques. O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. 4. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2018. , p. 27).

Trata-se de uma autonomia investigativa tão aberta que contém em si a esperança de as investigações autônomas de estudantes serem potencialmente revolucionárias. Por estas razões que a prática da breviloquência por parte dos ensinantes enseja, se devidamente sensibilizada, o espírito autônomo de curiosidade aguçada que rejeita explicações, caminhando, assim, para a construção de um ser com maiores condições de emancipação.

Por fim, não se deve confundir a breviloquência com a omissão. O vazio e o silêncio criado pela pessoa ensinante são conscientes e planejados: um vazio com sentido pedagógico e educacional. A pessoa omissa, ao ensinar, pode não falar nada, mas o faz por falta de capacidade para criar o vazio. Omitir-se em aula é uma negligência com a própria natureza do ofício que se presta. Já a breviloquência planejada é o oposto da omissão, embora ambas se manifestem por meio da ausência de ruído. Docentes breviloquentes não silenciam seus estudantes, ao contrário, os estimulam a buscar caminhos próprios de investigação e conhecimento. Para fazer isso, são necessários conhecimentos profundos das pessoas, dos gostos, das afeições, das vozes e dos conhecimentos envolvidos. Assim, é possível cavar o vazio a partir do qual o estudante e a estudante preencheram por ímpeto próprio.

Considerações finais

“O silêncio não é a ausência de uma presença, mas a presença de uma ausência” ( HELLER, 2008HELLER, Alberto Andrés. Jonh Cage e a poética do silêncio. 2008. Tese (Doutorado em Literatura) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2008. , p. 16). Essa assertiva de John Cage, que se refere à composição musical, mostra que o silêncio, o vazio, a pausa, dentro de uma música não é apenas o intervalo de tempo entre notas, mas um elemento constitutivo da própria música. Isso significa que precisa ser pensado, criado, trazido, tal qual todos os componentes harmônicos. Trazer o silêncio dentro da música com a finalidade de causar alguma sensação é uma tarefa que exige muita sensibilidade, além de criatividade.

O silêncio é um elemento pedagógico constitutivo de qualquer aula. A breviloquência docente é uma ação, um gesto, que pode ser ou não consciente do seu propósito pedagógico. Tomado de intencionalidade, precisa ser construído, usado com as intenções dialógicas que o subjazem, de modo a provocar inquietação e curiosidade investigativa em primeiro lugar, a autonomia em segundo e – por que não – o tempo certo das coisas, como tantas narrativas indígenas costumam nos ensinar. Seja no planejamento didático, acertando o tempo de encerramento de aulas com a criação de espaços de não-resposta, seja pela mudança de postura em sala de aula evitando explicações, falando menos e criando os vazios, essas práticas são caminhos de uma educação para emancipação. Antes de ser um método, a breviloquência é sintoma de um modo de conceber a relação com a formação de pessoas e construção de conhecimentos.

Neste trabalho, procurei trazer conhecimentos e práticas educacionais indígenas à luz de uma perspectiva de formação de pessoas não-indígenas autônomas e emancipadas. Os referenciais balizadores dos conceitos de autonomia e emancipação foram Paulo Freire e Jacques Rancière. A articulação desses saberes considerou os públicos indígenas e não-indígenas e, consequentemente, as diferenças ontológicas e de abordagens dessas escolas. No certame das diferenças, propus o conceito de breviloquência para intermediar uma relação pedagógica intencional comum às formas de ensinar de professores e professoras indígenas (mais velhos), mas também de seres não-humanos. A breviloquência, trazida para a organização da escola não-indígena, permite a estudantes engendrar uma prática investigativa aberta, autônoma e potencialmente revolucionária de conhecimentos. Com isso, ao trazer a breviloquência como princípio educacional ulterior a uma simples técnica didática, é possível fomentar a formação de pessoas emancipadas e autônomas capazes de compreender, conviver, pensar, organizar e estruturar caminhos e conhecimentos a partir de seus próprios esforços, comparando este percurso com outros possíveis. Por fim, espera-se, para usar o termo de Daniel Munduruku, compartilhar piolhos e sonhos, sem pretensão finalística, com professores, professoras, pesquisadores e pesquisadoras que tenham na educação emancipadora a forja de seus interesses e ações.

AGRADECIMENTOS

1- Agradeço sobejamente Lidiane Krenak, liderança e professora indígena da aldeia Vanuíre, que sempre me recebeu e educou com atenção e paciência, à sombra da mangueira.

Referências

  • BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
  • BOUSO, Raquel. La articulación de la realidad: aproximación al lenguaje religioso desde el pensamiento japonés. Ideas y Valores, Bogotá, v. 65, n. 2, p. 17-29, 2016. Suplemento.
  • CABRAL DE OLIVEIRA, Joana; SANTOS, Lucas Keese dos. “Perguntas de mais” – Multiplicidades de modos de conhecer em uma experiência de formação de pesquisadores Guarani Mbya. In: CUNHA, Manuela Carneiro da; CESARINO, Pedro de Niemeyer (org.). Políticas culturais e povos indígenas. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2014. p. 113-134.
  • FREIRE, Paulo. Ação cultural para a liberdade e outros escritos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.
  • FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 25. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
  • FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 1970.
  • HELLER, Alberto Andrés. Jonh Cage e a poética do silêncio. 2008. Tese (Doutorado em Literatura) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2008.
  • INÁCIO, Andila Nivygsãnh. Venh Kanhrãn. In: BERGAMASCHI, Maria Aparecida; VENZON, Rodrigo Allegretti (org.). Pensando a educação kaingang. Pelotas: UFPEL, 2010. p. 23.
  • KRENAK, Ailton. Ailton Krenak – A potência do sujeito coletivo: parte I. [Entrevista cedida a] Jailson de Souza e Silva. Blog Ailton Krenak, [S. l.], 2018. Disponível em: http://ailtonkrenak.blogspot.com/2018/06/ailton-krenak-potencia-do-sujeito.html Acesso em: 22 mar. 2022.
    » http://ailtonkrenak.blogspot.com/2018/06/ailton-krenak-potencia-do-sujeito.html
  • KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
  • KRENAK, Edson. O sonho de Borum. Ilustrações de Maurício Negro. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.
  • KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 1998.
  • MARQUES, Ludmyla. Krenak: vivos na natureza morta: guia de uso pedagógico. Goiânia: Futura, 2019. Disponível em: http://futurabucket2017.s3.amazonaws.com/wp-content/uploads/2018/08/Krenak-2017.pdf Acesso em: 22 mar. 2022.
    » http://futurabucket2017.s3.amazonaws.com/wp-content/uploads/2018/08/Krenak-2017.pdf
  • MUNDURUKU, Daniel. Tempo de histórias: antologia de contos indígenas de ensinamento. São Paulo: Moderna, 2014.
  • MURPHY, Isabel. Educação indígena Kayapó: orientações para professores não-kayapó. In: SECCHI, Darci (org.). Ameríndia: tecendo os caminhos da educação escolar. Cuiabá: SEE-MT, 1997. p. 195-207.
  • PATAXÓ, Kanatyo. Diálogos dos saberes: a pedagogia da lente do nosso olhar e as mãos da Natureza: povo Pataxó da Aldeia Muã Mimatxi. Belo Horizonte: UFMG, 2013.
  • RANCIÈRE, Jacques. O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. 4. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2018.
  • ROZENTAL, Emmanuel. Indianizar-nos frente a la hidra capitalista es armonizar el pensamiento y la práctica. In: EZLN, El pensamiento crítico frente a la hidra capitalista III. Chiapas: Comisión Sexta del EZLN, 2015. p. 112-143.
  • SÃO PAULO. Secretaria Municipal de Educação. Coordenadoria Pedagógica. Currículo da cidade: povos indígenas: orientações pedagógicas. São Paulo: SME, 2019.
  • SEE-MT. Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso. Urucum, jenipapo e giz: a educação escolar indígena em debate. Cuiabá: SEE-MT, 1997.
  • SEE-SC. Secretaria de Estado de Educação de Santa Catarina. Projeto Político pedagógico guarani Wherá: Yynn Moroti Wherá (Aldeia M’Biguaçú). Florianópolis: SEE-SC, 1998.
  • SILVA, Tomaz Tadeu da. O projeto educacional moderno: identidade terminal? In: VEIGA-NETO, Alfredo (org.). Crítica pós-estruturalista e educação. Porto Alegre: Sulina, 1995. p. 245-260.
  • SOUZA, Luciana Palhares. O Movimento Zapatista e seu projeto de emancipação: elementos de uma educação não formal para a autonomia. In: ENCONTRO IBERO-AMERICANO DE ESTUDOS MAYAS, 1., 2017, Niterói; CONGRESSO BRASILEIRO DE ESTUDOS MAYAS, 1., 2017, Niterói. Anais [...]. Niterói: UFF, 2017.
  • MACHADO, Vitor Fabrício. O hálito das palavras: ciências (multi)naturais contra o preconceito. 2020. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2020.
  • VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac & Naif, 2001.
  • VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Metafísicas canibais. São Paulo: Cosac & Naif, 2015.
  • VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Últimas notícias sobre a destruição. In: RICARDO, Carlos Alberto; RICARDO, Fany Pantaleoni (ed.). Povos indígenas no Brasil: 2011-2016. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2017. p. 144-148.
  • 1
    - Agradeço sobejamente Lidiane Krenak, liderança e professora indígena da aldeia Vanuíre, que sempre me recebeu e educou com atenção e paciência, à sombra da mangueira.
  • 3
    - Todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo foi publicado no próprio artigo.
Editora: Profa Dra. Carlota Boto

Disponibilidade de dados

- Todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo foi publicado no próprio artigo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Abr 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    18 Abr 2021
  • Aceito
    21 Mar 2022
Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo Av. da Universidade, 308 - Biblioteca, 1º andar 05508-040 - São Paulo SP Brasil, Tel./Fax.: (55 11) 30913520 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revedu@usp.br