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Filosofia trágica e pedagogia da escolha: imaginários cinematográficos sobre a afirmação da vida

Tragic philosophy and pedagogy of choice: cinematography imaginaries on life affirmation

Resumo

O vínculo entre a filosofia trágica (nada, acaso e convenção) e a afirmação da vida ( amor fati ), como estabelecido por Friedrich Nietzsche e Clément Rosset, é estudado neste artigo sob o método do perspectivismo hermenêutico e em diálogo com os filmes Lucky (2017), dirigido por John Carroll Lynch, Paterson (2016), de Jim Jarmush, e A árvore dos frutos selvagens (2018), de Nuri Bilge Ceylan. Os imaginários dessas três obras cinematográficas traduzem um processo de reflexão sobre a vida que culmina na aprovação trágica, revelada a partir da trajetória dos protagonistas e do caráter formativo de suas experiências, cujo saber ( páthei mathos ) conflui com a pedagogia da escolha em seus três movimentos: a suspensão da crença, pela qual se estabelece o jogo estético que permite ver o mundo por outra perspectiva; a estética da experiência, que valoriza o saber exercitado pelas obras de ficção; e, por fim, a constituição de itinerários de (auto)formação, que organizam as experiências formativas e possibilitam a escolha da afirmação trágica. As conclusões apontam que, em consonância com a continuidade da vida dos protagonistas dos filmes estudados, a afirmação incondicional da vida não é o resultado, a etapa final de uma escolha, mas um processo contínuo de aprovação, desde que se reconheça o caráter trágico da existência, do que é dado a viver.

Filosofia da educação; Filosofia trágica; Cinema e educação; Pedagogia da escolha

Abstract

The relationship between tragic philosophy (nothing, chance and convention) and the affirmation of life (amor fati), as established by Friedrich Nietzsche and Clément Rosset, is studied in this article under the method of hermeneutic perspectivism and in dialogue with the films Lucky (2017), directed by John Carroll Lynch, Paterson (2016), by Jim Jarmush, and The Wild Pear Tree (2018), by Nuri Bilge Ceylan. The imaginaries of these three cinematographic works reflect a process of reflection on life that culminates in approving tragical, revealed from the trajectory of the protagonists and the formative character of their experiences, whose knowledge (páthei mathos) converges with the pedagogy of choice in their three movements: the suspension of belief, through which the aesthetic game that allows seeing the world from another perspective is established; the aesthetics of experience, which values the knowledge exercised by works of fiction; and, finally, the constitution of (self)formation itineraries, which organize the formative experiences and enable the choice of the tragic statement. The conclusions reveals that, in line with the continuity of life of the protagonists of the studied films, the unconditional affirmation of life is not the result, the final step of a choice, but a continuous process of approval.

Philosophy of education; Tragic philosophy; Cinema and education; Pedagogy of choice

Introdução

Três filmes. Três finais. A mesma afirmação.

O afortunado personagem que dá nome ao filme Lucky (2017), de John Carroll Lynch, na última interpretação de Harry Dean Stanton, discursa para seus amigos de bar sobre a aceitação da verdade do universo: “tudo vai desaparecer, tudo vira escuridão, vazio. E ninguém está no comando. Nada. Isso é tudo que existe, nada”. Então a dona do bar questiona: “E o que fazemos com isso?” Lucky responde e é sua última fala: “O que fazemos com isso? Sorrimos”.

Paterson, do filme homônimo de 2016 de Jim Jarmush, está aborrecido, pois seu cão devorou seu caderno de poesias. Num parque, defronte ao rio que corre sob a ponte de Paterson, cidade de Nova Jersey onde viveu William Carlos Williams, é abordado por um turista japonês, que assim como Paterson escreve versos e quer conversar sobre o famoso poeta norte-americano, presenteando-o com um caderno em branco: “Às vezes, uma página vazia dá mais possibilidades”. Refletindo sobre a conversa, Paterson tira sua caneta do bolso e escreve: “Há uma velha canção / meu avô costumava cantá-la, / que tem uma questão, ‘ou você preferiria ser um peixe?’ / Na mesma canção, / há a mesma pergunta / mas com uma mula e um porco, / mas a que escuto às vezes / na minha cabeça é a do peixe. / Apenas aquela linha. Você preferiria ser um peixe? / Como se o resto da canção / não precisasse existir.”2 2 - Tradução livre do original: “There’s an old song / my grandfather used to sing / that has the question, / or would you rather be a fish? / In the same song / is the same question / but with a mule and a pig, / but the one I her sometimes / in my head is the fish one. / Just tha one line. / Would you rather be a fish? / As if the rest of the song / didn’t have to be there”. A canção referida no poema, Swinging on a star, foi escrita por Johnny Burke e Jimmy Van Heusen, e gravada em 1944 por Bing Crosby. Na referência ao verso “ou você preferiria ser um peixe?”, a letra diz: “Um peixe não faria nada além de nadar em um riacho, / Ele não pode escrever seu nome ou ler um livro” (A fish won’t do anything, but swim in a brook / He can’t write his name or read a book). A escrita cotidiana de Paterson é seu modo de amar a vida, de afirmar sua existência.

O jovem turco Sinan Karasu, de A árvore dos frutos selvagens (2018), conquanto desejasse seguir sua carreira como escritor e professor, vê seu livro fracassar, além de não conseguir emprego. Triste e ressentido, conversa com seu pai, com quem nutria uma difícil relação, e lhe pergunta sobre o poço que, teimosamente, insistia em cavar, sem jamais encontrar água. O pai responde que, depois de cavar 10 metros sem encontrar nada, resolveu desistir, admitindo a derrota para os camponeses, que desdenharam de seu intento. Em relação ao futuro, o filho se mostra pessimista, enquanto o pai tenta incentivá-lo: quando se ama o que se faz, pode-se sobreviver em qualquer lugar, e narra lembranças de sua vida, comentando que, embora esqueçamos muitas coisas, e é importante que as esqueçamos, o que fica na memória esculpe o tempo. O jovem cita uma passagem do livro que escreveu, dizendo que ele, seu pai e seu avô são como frutos selvagens, desajustados, solitários, tortos. O pai afirma, então, que cada um tem seu próprio temperamento e que a questão é ser capaz de aceitar e gostar. O filme termina com uma ação reveladora de que a lição foi aprendida. Depois de assistirmos a uma cena irreal, em que o filho aparece enforcado no poço (seria um pesadelo do pai, que dormia?), vemos Sinan cavando o poço sem água, metáfora da aprovação da vida, que não é vivida em busca de resultados, mas com amor ao que se é.

Embora muito diferentes entre si, os três filmes terminam com uma conversa em que os protagonistas são instados a refletir sobre a vida, a dar uma resposta ao sofrimento que os consterna. Lucky tem 90 anos, sofreu uma queda, pressente que a morte está perto. Paterson perdeu todos os poemas que escreveu em seu caderno, justamente quando foi convencido pela esposa de que devia publicá-los. Sinan Karasu fracassou como seu pai, seu livro não vendeu um só exemplar e a situação política e econômica da Turquia é desanimadora. Ainda assim, os três respondem ao sofrimento da mesma maneira, afirmando incondicionalmente a vida; mais que isso, assumindo um sentimento que Friedrich Nietzsche chamou de amor fati:

A minha fórmula para a grandeza do homem é amor fati: nada pretender ter de diferente, nada para frente, nada para trás, nada por toda a eternidade. O necessário não é apenas para se suportar, menos ainda para se ocultar — todo o idealismo é mentira perante o necessário —, mas para o amar ... ( NIETZSCHE, 1995NIETZSCHE, Friedrich. Ecce homo: como alguém se torna o que é. São Paulo: Cia. das Letras, 1995. , p. 51).

Essa atitude filosófica diante da vida, encontra-se em pensadores como Lucrécio, Michel de Montaigne, Baltasar Gracián, Friedrich Nietzsche e Clément Rosset; na literatura, além das tragédias gregas, que homenageavam Dioniso, o deus da afirmação trágica, pode ser encontrada em Shakespeare, Molière, Machado de Assis, na geração beatnik; nas obras cinematográficas, além dos três filmes em análise, em diversas produções recentes, como Nomadland (2020), Soul (2020) e Druk – Mais uma rodada (2020). Embora não seja um pensamento dominante, encontra seu espaço de expressão entre os imaginários contemporâneos e, de acordo com Clément Rosset (1989)ROSSET, Clément. A lógica do pior: elementos para uma filosofia trágica. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1989. , é a base do senso comum, que vê o mundo como desordem, acaso, absurdo, resumindo as dificuldades da existência à expressão “é a vida!”. Entretanto, como o filósofo francês reconhece, esse pensamento “quase nunca se manifesta” ( ROSSET, 1989ROSSET, Clément. A lógica do pior: elementos para uma filosofia trágica. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1989. , p. 34), razão pela qual “é recomendável fazer falar o trágico” (p. 30).

O pensamento trágico é a “fórmula de afirmação máxima, da plenitude, da abundância, um dizer sim sem reservas, até mesmo ao sofrimento, à própria culpa, a tudo o que é problemático e estranho na existência” ( NIETZSCHE, 1995NIETZSCHE, Friedrich. Ecce homo: como alguém se torna o que é. São Paulo: Cia. das Letras, 1995. , p. 118), o que Rosset (1989ROSSET, Clément. A lógica do pior: elementos para uma filosofia trágica. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1989. , p. 8) chamou de “ligação entre a alegria de existir e o caráter trágico da existência”. Portanto, o acesso do trágico à fala, embora não modifique os elementos trágicos da existência, ensina “a fazer falar algo que se pensava sem se exprimir” ( ROSSET, 1989ROSSET, Clément. A lógica do pior: elementos para uma filosofia trágica. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1989. , p. 31), tornando possível seu uso. Essa disponibilidade de servir-se do que se sabe possibilita o ato de aprovação , de si, de seus pensamentos e de suas ações:

[..] “o que existe” não existe somente a título “de fato”; encobre também tudo aquilo que, no homem, é concebível a título de “desejo” (ou seja: os pensamentos os mais cruéis são bons para se pensar, os atos os mais inúteis são bons para fazer, as vidas as mais pobres boas de se viver). Lucrécio abre seu livro por uma invocação à alegria, irradiadora do encanto da existência; Montaigne fecha o seu por uma profissão de fé na felicidade (“Quanto a mim, pois, eu amo a vida”); Nietzsche – nisto talvez o primeiro a ter feito a “filosofia” da tragédia – afirma que a aprovação é o critério e o signo próprio do pensamento trágico ( ROSSET, 1989ROSSET, Clément. A lógica do pior: elementos para uma filosofia trágica. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1989. , p. 51).

Desse modo, a filosofia trágica, ao possibilitar o ato da aprovação da vida, torna disponível também uma pedagogia da escolha ( ALMEIDA, 2015ALMEIDA, Rogério de. O mundo, os homens e suas obras: filosofia trágica e pedagogia da escolha. 2015. Tese (Livre-Docência) – Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/livredocencia/48/tde-15032016-143517/pt-br.php Acesso em: 01 fev. 2021.
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), por meio da qual o mundo é experimentado, as crenças são suspensas e a vida é narrada – etapas em que o trágico, pondo a existência à prova, vem à fala para aprová-la incondicionalmente. “O filósofo trágico pode assim se definir: um pensador submerso pela alegria de viver, e que, ainda que reconhecendo o caráter impensável desse júbilo, deseja pensar ao máximo sua impensável prodigalidade” ( ROSSET, 1989ROSSET, Clément. A lógica do pior: elementos para uma filosofia trágica. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1989. , p. 55). Não caberá à pedagogia da escolha, portanto, ensinar a alegria de viver, de resto impossível, mas torná-la exprimível, isto é, fazer da aprovação da vida o único valor possível de avaliá-la.

É justamente esse processo de afirmação, tornado possível por meio da fala – após a experimentação do mundo, a suspensão da crença e a reflexão sobre o vivido –, que encontramos nos três filmes cujos finais foram narrados: Lucky (2017), Paterson (2016) e A árvore dos frutos selvagens (2018), os quais foram estudados pelo perspectivismo hermenêutico, com o objetivo de tornar patente a afirmação trágica e a pedagogia da escolha, a primeira como aprovação incondicional da vida e a segunda como itinerário (auto)formativo pelo qual se chega a ser o que se é.

O perspectivismo hermenêutico, utilizado como método, deriva das concepções de Nietzsche de que “existe apenas uma visão perspectiva, apenas um ‘conhecer’ perspectivo” ( NIETZSCHE, 1998NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral. São Paulo: Cia. das Letras, 1998. , p. 109, itálico do autor). Isso significa que é impossível um conhecimento neutro, único e total, constituindo-se o perspectivismo como “a afirmação de que há uma pluralidade de sentidos, uma polissemia irredutível, no limite, a uma definição unívoca e não ambígua” ( MOTA, 2010MOTA, Thiago. Nietzsche e as perspectivas do perspectivismo. Cadernos Nietzsche, 27, São Paulo, 2010. Disponível em: https://periodicos.unifesp.br/index.php/cniet/article/view/7780/5321 Acesso em: 23 set. 2019.
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, p. 214). Em outras palavras, é “uma multiplicidade de sentidos e funções, interesses e figuras, forças e resistências, sucessivas camadas de interpretações” (GIACOIA JR., 2014a, p. 25), o que inviabiliza a redução dos “fatos” a um único sentido.

Desse modo, conquanto coexistam outras perspectivas para estudar os filmes selecionados, o que faria emergir outros sentidos, elegi a perspectiva do pensamento trágico por entender que as referidas obras realizam-se em consonância com seus postulados, além de fornecerem matéria para se pensar a pedagogia da escolha, uma vez que a aprovação incondicional da vida não é necessariamente um ponto de partida, mas de chegada, como se buscará apontar na última parte do artigo, depois da abordagem dos filmes. O caráter hermenêutico desse procedimento metodológico encontra-se na concepção de que a interpretação de um filme, assim como de um texto – afinal o filme também é um texto, ainda que verbo-imagético –, funciona como um “grande atalho dos sinais da humanidade depositados nas obras de cultura”, como afirma Paul Ricoeur (2008, p. 68). Assim, interpretar um texto ou um filme é se apropriar de sua proposição de mundo, dialogar com ela, pois o sentido de uma obra também se constrói com quem atribui sentido. “Por conseguinte, compreender é compreender-se diante do texto” (p. 68). Não é outro o caráter educativo do cinema: os filmes são obras com as quais dialogamos para compreendermos o mundo, os outros e nós mesmos.

Na perspectiva educativa do cinema, podemos compreendê-lo como, a um só tempo, janela, tela e espelho, metáforas que correspondem, respectivamente, às dimensões da representação, da linguagem e da expressão. Como “janela”, permite que o espectador lance seu olhar para o mundo apresentado no filme, para o que está “dentro” e “além” da imagem, o “de-fora” que se torna visível pelo olho mecânico da câmera e se projeta na tela. A arte cinematográfica, no entanto, não é um signo representacional da realidade, mas diálogo com uma realidade possível, a que se apresenta em imagens. Desse modo, o cinema é também “tela”, processo que envolve um conjunto de procedimentos específicos, uma “linguagem”, arte, estilo, técnica, de tal forma que o espectador sabe que o que vê é uma sucessão de imagens manipuladas (encenação, cenografia, fotografia, trilha sonora etc.), produzidas intencionalmente para serem vistas na sequência em que foram organizadas (montagem). Por fim, o cinema funciona como um “espelho” em cuja superfície os espectadores projetam suas ideias, seus desejos, medos, emoções, enfim, as múltiplas identificações e contrastes que participam da experiência de assistir a um filme e interpretá-lo, de modo a compreender-se no processo de compreendê-lo (ALMEIDA, 2017a).

Há, entre os estudos que relacionam cinema e educação, uma gama de abordagens distintas, mas que recuperam a interface entre a sedução estética das imagens e o potencial formador das narrativas ficcionais, como atestam as pesquisas de Monica Fantin com crianças e formação docente (2009, 2018); de Fabiana Marcelo e Rosa Fischer (2011) sobre seu caráter produtor de sentidos e revelador de realidades; de Alexander Freitas e Karyne Coutinho (2013) sobre o potencial de resistência às representações dominantes; de Fabris (2008FABRIS, Elí Henn. Cinema e educação: um caminho metodológico. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 33 n. 1, p. 117-134, jan./jun. 2008. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/educacaoerealidade/article/view/6690/4003 Acesso em: 23 set. 2019.
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, p. 120) na perspectiva de “uma produção cultural que não apenas inventa histórias, mas que, na complexidade da produção de sentidos, vai criando, substituindo, limitando, incluindo e excluindo ‘realidades’”; de Celso Luiz Prudente (2019)PRUDENTE, Celso Luiz. A dimensão pedagógica do cinema negro: a imagem de afirmação positiva do íbero-ásio-afro-ameríndio. Extraprensa, São Paulo, v. 13, n. 1, p. 6-25, jul./dez. 2019. https://doi.org/10.11606/extraprensa2019.163871
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na dimensão afirmativa do cinema negro; além de minhas próprias contribuições em busca das dimensões educativas do cinema (ALMEIDA, 2017b).

Em síntese, por meio do engendramento visual da narrativa cinematográfica, os filmes problematizam modos de olhar para o real e exercem uma função educativa, desde que se reconheça que “o cinema que ‘educa’ é o cinema que faz pensar, não só o cinema, mas as mais variadas experiências e questões que coloca em foco” ( XAVIER, 2008XAVIER, Ismail. Um cinema que “educa” é um cinema que (nos) faz pensar. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 33, n. 1, p. 13-20, 2008. Entrevista para a revista Educação & Realidade. Disponível em: https://www.redalyc.org/pdf/3172/317227051003.pdf Acesso em: 01 fev. 2021.
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, p. 15). Abordemos, então, essas experiências e questões, tais como aparecem nos três filmes que se seguem.

Lucky: diante do nada só nos resta sorrir

Lucky, o personagem que dá nome ao filme, tem 90 anos e é, de fato, um afortunado, como sugere seu apelido, recebido durante a Segunda Guerra Mundial, quando serviu como cozinheiro, sem jamais sair do navio. Fumante, ateu e bem disposto, vive numa cidade pequena no deserto da Califórnia e seu cotidiano é preenchido por atividades como ir à lanchonete tomar o café da manhã, comprar leite e cigarros no mercado, preencher palavras cruzadas e frequentar o bar onde, à noite, conversa com os amigos.

Em certa manhã, depois de cumprir sua rotina matinal – cigarro, música mexicana, barba, dentes, exercícios físicos –, encaminha-se para preparar o café e desmaia. No hospital, após uma série de exames, descobre que sua saúde segue perfeita, a despeito do maço de cigarros que fuma diariamente. Sua condição, no entanto, é a de um velho, cuja morte pode ocorrer a qualquer momento. Lucky passa, então, a meditar sobre a vida e a morte, enquanto segue sua rotina, caminhando de casa à lanchonete, da lanchonete ao mercado, do mercado ao bar, do bar à casa.

Lucky é de outro tempo. Ele faz um gesto de desaprovação quando dois homens se beijam na lanchonete e, sobretudo, se queixa da proibição de fumar em ambientes fechados, como a lanchonete e o bar. Toda vez que ele passa por uma fachada – não sabemos exatamente que tipo de estabelecimento é –, para brevemente, arremessa algum impropério que soa enigmático e segue seu caminho. No bar, à noite, ocorrem as conversas mais divertidas: Ungatz conta sempre a mesma história, de como era um miserável antes de ser aceito e transformado pela esposa, a dona do bar. Howard, interpretado pelo cineasta David Lynch (sem parentesco com o diretor do filme), está preocupado, pois o Presidente Roosevelt, seu jabuti, fugiu. É o mesmo que aparece na primeira e na última cena do filme, caminhando lentamente pelo deserto. Como é seu único companheiro, de quem sente falta, Howard contrata um advogado para redigir seu testamento em favor do jabuti desaparecido.

Por mais insólita que possa ser a situação, ela ganha dimensão existencial quando Lucky, contrariado, ofende o advogado, que ele considera um aproveitador, e alerta Howard sobre o fato de que o jabuti desapareceu e que agora está sozinho, por conta própria: “Nós entramos sozinhos e saímos sozinhos”, numa clara alusão ao nascimento e à morte. O amigo discursa, emocionado, dizendo que o Presidente Roosevelt nasceu do tamanho de um polegar, dentro de um buraco, cresceu como cresce um cacto e decidiu empreender sua jornada, enfrentando o mundo. O jabuti é lento, mas carrega em suas costas o casco, que é, a um só tempo, sua proteção e seu caixão. Os frequentadores do bar riem, Howard chora e Lucky chama o advogado, muito mais jovem que ele, para uma briga na rua.

O filme segue com outros episódios que demonstram a contínua meditação de Lucky sobre a morte. Nesse aspecto, parece realizar o pensamento de Montaigne (1984MONTAIGNE, Michel de. Ensaios. São Paulo: Abril Cultural, 1984. (Os pensadores; v. 11). , p. 45): “A meta de nossa existência é a morte; é este o nosso objetivo fatal”, o que torna a filosofia uma aprendizagem da morte. Lucky, de fato, está disposto a aprender a morrer. Assim, confessa à atendente da lanchonete que está assustado. Em outra ocasião, narra um episódio de quando tinha 12 ou 13 anos de idade e, após ficar sozinho, teve um ataque de ansiedade, de pânico. Selando a paz com o advogado que antes insultara, ouve sua história de como, temendo a morte, tomou providências para amparar a família, cuidando do testamento, do seguro de vida e da cremação. À mulher da loja de animais, que lhe oferece um cão para adoção, para que tenha um dono permanente, Lucky responde que nada é permanente. Depois pergunta se os grilos podem ser adotados, ela diz que não, estão lá para alimentar os répteis. Desse modo, a meditação sobre a morte se faz presente em cada pequena cena do filme, a partir de situações simples do cotidiano.

Lucky vai à festa de uma família mexicana, come bolo, conversa em espanhol, cita Che Guevara: “Hasta la victoria siempre” e canta uma música acompanhado pelos mariachis. À noite, no bar, Lucky está animado. Ouve de Howard, já conformado com a fuga do Presidente Roosevelt, que a ação deve ter sido planejada com antecedência e com algum propósito importante. Lucky saca um cigarro e ameaça acendê-lo. A dona o contraria dizendo que não pode fumar ali: “meu bar, minhas regras”. Lucky rebate que a propriedade privada é uma falácia. Então, ela resgata a história de quando ele foi expulso do bar Eve, em alusão ao estabelecimento diante do qual vimos, repetidas vezes, Lucky mostrar-se contrariado. Ele responde que não foi expulso, mas que saiu e insiste que a questão do cigarro não é importante, que o que conta é a verdade do universo.

O interessante da cena é que, embora estejam discutindo, trata-se de uma cena amena, circunscrita ao momento e molhada pelos tragos que beberam. Ainda assim, as palavras ganham um efeito simbólico. Ser expulso do bar que leva o nome bíblico da primeira mulher, por conta do prazer de um cigarro, o “fruto proibido”, remete à própria condição humana. É por isso que Lucky diz que devemos estar atentos à verdade do universo, que espera por nós. E a verdade do universo é que tudo vai desaparecer. Todas as pessoas do bar, o cigarro; tudo se tornará escuridão, vazio; ninguém está no comando e tudo caminha para o nada. E diante do nada, só nos resta sorrir.

Depois da reconciliação dos frequentadores do bar e de Lucky sair para fumar, a cena final ocorre durante o dia, com Lucky parado em frente ao bar Eve. Há um belo jardim – é a primeira vez que o vemos –, em alusão ao paraíso, mas as correntes na porta o impedem de entrar. Pela primeira vez, Lucky não se mostra contrariado, mas sorri, simbolizando sua aprovação da vida e, consequentemente, da morte. Ele caminha pelo deserto, torna-se cada vez menor, até desaparecer ao longe. Surge o jabuti, andando em sentido contrário ao do começo do filme. O círculo se fecha.

Paterson: sua vida podia ser um poema de William Carlos Williams

Quando, próximo ao final do filme, o poeta japonês diz a Paterson que sua vida de motorista de ônibus caberia num poema de William Carlos Williams, sua observação contém dois elementos complementares: o primeiro é a notória característica da escrita do poeta norte-americano, atada à simplicidade da linguagem e do cotidiano; o segundo é a dimensão estética da vida desse motorista de ônibus que traduz em seus versos o olhar poético com o qual vê o mundo.

Há, portanto, uma retroalimentação entre vida e poesia, pela qual a poesia fecunda a vida de Paterson, cuja plenitude inspira sua escrita. No entanto, a poesia não está restrita às palavras, mas sobretudo se expressa pelo olhar que as antecede, pelo estado poético, estético, que guia sua sensibilidade para as coisas simples da vida, os momentos comuns do cotidiano, de onde extrai as imagens que plasmará no seu caderno e, por uma opção estilística do cineasta, na própria tela, que, tal qual um papel transparente, recebe a grafia dos versos de Paterson no momento em que os declama.

Temos aqui um ideal de vida estética tal qual pensado por Nietzsche (2001NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. São Paulo: Cia. das Letras, 2001. , p. 299): “Nós, porém, queremos ser os poetas da nossa vida e, em primeiro lugar, das coisas mais pequenas e comuns”. Em noção convergente, Merleau-Ponty (1983MERLEAU-PONTY, Marcel. O cinema e a nova psicologia. In: XAVIER, Ismail (org.). A experiência do cinema. Rio de Janeiro: Graal, 1983. p. 101-117. , p. 115) afirma que a “arte da poesia não consiste em descrever didaticamente as coisas ou expor ideias, mas de criar uma máquina de linguagem que, de maneira quase infalível, coloca o leitor em determinado estado poético”. É por isso que, como assinala o filósofo francês, o “filme não deseja exprimir nada além do que ele próprio” (p. 115), o que significa que não explica sentimentos, sensações ou estados poéticos, como poderia ser feito, por exemplo, num romance, que nos colocaria em contato com a vida interior de uma determinada personagem, mas os sugere por meio de imagens (a menos que lance mão de uma narração sobreposta), as quais são percebidas, sentidas e traduzidas pelos espectadores, não apenas em entendimento (informação), mas também em sensações audiovisuais (dimensão estética).

Há no filme uma relação metonímica pela qual Paterson designa o título, a personagem, a cidade e o livro do poeta William Carlos Williams, também médico, e que residiu na cidade, tendo publicado em 1948 seu longo poema Paterson , no qual imaginou a cidade encarnada num homem. Como figura de retórica, a metonímia estabelece uma relação de contiguidade entre os múltiplos referentes: cidade, personagem, livro e filme. Assim, o recurso retórico opera como uma espécie de fractal, em que a parte contém em si o todo: o personagem contém a cidade que o contém, recebendo ambos o mesmo nome, que é também o do filme a que assistimos, além do livro de Williams. Essa relação metonímica está presente também nos padrões ( patterns ) das estampas com as quais a esposa de Paterson, Laura, decora a casa, o sofá, as cortinas e até mesmo seu violão, em incursões naïf pelo mundo das artes, nas quais a mistura de ingenuidade e autodidatismo produz “arte bruta”, conceito criado por Jean Dubuffet – aliás, citado no filme – para definir os trabalhos produzidos fora do sistema tradicional e profissional da arte. Poeticamente, é como se os objetos produzissem “rimas”, repetindo visualmente determinados padrões.

A repetição é, portanto, um elemento importante do filme, cuja abrangência temporal é de uma semana (de segunda a segunda), com os dias marcados por legendas sobre a tela e pelo ritual matinal do despertar de Patterson, que desliga o rádio-relógio, prepara o café e segue para seu trabalho. Enquanto dirige, presta atenção às conversas dos passageiros, no intervalo escreve alguns versos, depois retorna à casa, conversa sobre o dia com Laura, leva o cão para passear e aproveita para beber uma cerveja, sempre no mesmo bar, retornando finalmente para dormir.

O signo da repetição está presente inclusive nos detalhes, como no modo como Patterson endireita a caixa de correspondências da casa, diariamente entortada pelo cão; na rotina do trabalho; nos poemas cujos versos irrompem na tela com uma trilha musical extradiegética e sua voz declamando-os. A repetição, no entanto, não é enfadonha ou entediante, mas o contrário, expressão do eterno retorno, que Nietzsche associa ao desejo de eternidade, como aparece no aforismo 341 de A Gaia Ciência:

[...] a questão em tudo e em cada coisa, “Você quer isso mais uma vez e por incontáveis vezes?”, pesaria sobre os seus atos como o maior dos pesos! Ou o quanto você teria de estar bem consigo mesmo e com a vida, para mão desejar nada além dessa última, eterna confirmação e chancela? ( NIETZSCHE, 2001NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. São Paulo: Cia. das Letras, 2001. , p. 230, itálicos do autor).

Nietzsche nos provoca a imaginar como seria nossa vida se ela se repetisse indefinidamente. Para quem não a aprova, seja por qual motivo for, seria a pior das torturas imagináveis, mas os que a aprovam a aprovariam com tudo o que há de negativo, pois a alegria de viver (“estar bem consigo mesmo e com a vida”) não quer outra coisa que não a eternidade. Assim, a noção de eternidade em Nietzsche não se ajusta à ideia de um tempo paralisado ou sem fim, mas traduz-se pelo desejo de repetição. O eterno retorno, portanto, não é uma concepção cósmica, mas uma metáfora para o desejo de eternidade, um teste sobre a aprovação da vida. A confirmação de que a vida é aprovada incondicionalmente traduz-se pelo desejo de eternidade, de continuar repetindo dia a dia o que é vivido diariamente.

Essa concepção trágica perspectivada por Nietzsche estende-se à ideia mais geral de formação. A divisa “torna-te o que tu és”, que ele toma de empréstimo de Píndaro (NIETZSCHE, 1995), coloca em questão dois elementos que se complementam: em primeiro lugar, tornamo-nos porque não somos, porque estamos em constante devir, em constante formação; segundo, não nos cabe querer ser outra coisa que não nós mesmos, o que ressalta a singularidade de cada pessoa, de cada vida, o que significa que cada homem e cada mulher é uma existência única. Desse modo, a educação é um processo de educar-se, no sentido de assumir o próprio destino, amá-lo ( amor fati ), o que resulta na aprovação da vida. É evidente que não se ignoram, nessa concepção, as forças que estão em jogo nos contextos de vida (históricas, sociais, econômicas, familiares etc.), os quais não são definitivamente escolhidos. O que se escolhe, nessa pedagogia da escolha, é aprovar ou não a vida que se vive nessas condições, com todas as (im)possibilidades de transformá-las – a vida e as condições –, sem que, no entanto, essas transformações se constituam em condicionante para a afirmação. Há, portanto, um deslocamento de “quando o sofrimento cessar, viverei” para “apesar do sofrimento, vivo”, cuja aprovação da vida aprova também o inextirpável sofrimento que a acompanha, expresso pela consciência da morte. A intensidade com que se vive – e que é bem expressa pelo sentimento estético, pelo estado poético – não se constitui um esquecimento da morte, como se ela não existisse, “mas festa ante a morte” ( ROSSET, 1989ROSSET, Clément. A lógica do pior: elementos para uma filosofia trágica. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1989. , p. 198), reconhecimento de que a eternidade, dada a finitude da vida, só pode ser vivida no instante.

No filme Paterson , a valorização desse instante não é dada por sua importância histórica ou pelo seu caráter extraordinário ou fantástico, mas pela intensidade estética com que é vivido. Não houve, nos sete dias em que o filme transcorre, nenhum acontecimento, conflito ou drama digno de nota. Mesmo o caderno de poemas destruído pelo cão torna-se irrisório, pois o que importa não são os poemas escritos, mas o processo de escrevê-los, assim como a vida, que não é medida por realizações, mas por sua afirmação.

A Árvore dos Frutos Selvagens: se você ama o que faz, pode sobreviver em qualquer lugar

Nuri Bilge Ceylan cultiva em seus filmes um olhar complexo em relação à realidade humana, a qual frequentemente se apequena em contraste com as longas tomadas das paisagens campestres da Turquia. Ao mesmo tempo, essa realidade é explorada em profundidade e de maneira crua, que não ignora a crueldade das personagens, mas a tempera com duras experiências que conduzem à aprovação.

Com Era uma vez na Anatólia (2011), cuja narrativa lenta e contemplativa atém-se a dois prisioneiros que guiam um policial, um advogado e um médico legista até o lugar onde enterraram a vítima, Ceylan torna-se internacionalmente conhecido. Em 2014, recebe a Palma de Ouro em Cannes por Sono de inverno (2014), filme baseado em contos de Tchekhov, do qual se aproxima em densidade filosófica, afastando-se, em contrapartida, quanto ao sentido, já que o niilismo das situações narradas funciona como degraus para a afirmação trágica ( ALMEIDA, 2018ALMEIDA, Rogério de. Cinema, educação e imaginários contemporâneos: estudos hermenêuticos sobre distopia, niilismo e afirmação nos filmes O som ao redor, O cavalo de Tuim e Sono de inverno. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 44, p. 1-18, 2018. https://doi.org/10.1590/S1678-4634201844175009
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).

Essa fórmula pela qual o niilismo é vivido intensamente até a assunção trágica é exercitada novamente em A árvore dos frutos selvagens (2018), que segue o itinerário de (auto)formação de Sinan, que se inicia com uma miríade de ideais, principalmente literários, passa pela crise dos valores e caminha para a expressão de um doloroso amor fati , cuja reconciliação com o destino requer uma conciliação prévia com o pai e a ressignificação de suas escolhas.

O filme narra o difícil retorno de Sinan Karasu à casa dos pais, na cidade turca de Çan, após a conclusão de seus estudos em Istambul, e as dificuldades para iniciar-se como escritor. Esse contexto serve de premissa para que o cineasta explore, em meio às paisagens filmadas em plano aberto, os longos, reflexivos e filosóficos diálogos que atravessam a trajetória do jovem em formação. O conflito entre seus ideais e o mundo concreto enseja discussões sobre a sociedade contemporânea, o processo criativo, a ganância e o cinismo dos homens de negócio e a falta de emprego, culminando no valor da vida, questão que irrompe no final do filme e assinala o processo de transformação do protagonista.

Esse itinerário (auto)formativo dura mais de três horas de filme e é construído lentamente, explorando camadas e situações diversas da jornada de Sinan. Logo após seu retorno, o jovem acompanha seu pai à aldeia, onde a família tem um sítio, para ajudá-lo a perfurar um poço, ainda que todos na região sustentem que não há água ali. Depois busca apoio para publicar seu romance, que tem o mesmo nome do filme e faz referência a uma pereira de tronco retorcido, metáfora para as imperfeições da natureza, com as quais o jovem se identifica. Sinan não gosta de sua cidade natal, das pessoas mesquinhas e preconceituosas, e não pretende apodrecer ali, embora não veja muitas alternativas além de fazer os exames de um concurso público para ser admitido como professor, assim como seu pai, ou se tornar policial, como alguns de seus colegas.

Sinan reencontra Hatice, uma antiga colega de escola, com quem conversa sobre o futuro. Para Sinan, cada um pode escolher ter a vida que quiser. Mas Hatice, que sonhava conhecer o mundo e viver aventuras, vai se casar com um velho joalheiro e se vê forçada a aceitar seu destino, traçado pelos familiares. Após ela fumar furtivamente um cigarro, dá em Sinan um beijo de despedida, numa bela tomada de cima ( plongée ), que termina com uma mordida em seus lábios, como que a lembrá-lo de que a escolha, para ela, está interdita.

Embora não meça esforços para publicar seu livro, conversando com autoridades locais em busca de financiamento, Sinan tem de lidar com o vício do pai, que aposta compulsivamente em corridas de cavalo, tendo vendido a casa e se endividado com boa parte da cidade. Além do constrangimento de ser cobrado por essas pessoas, Sinan desconfia que seu pai pegou parte de suas economias. A situação se complica a tal ponto que até a energia elétrica da casa é cortada por falta de pagamento. Ainda assim, mesmo com todas essas dificuldades, Sinan consegue publicar seu livro.

Antes, porém, assistimos a alguns encontros e diálogos, muitos dos quais permeados por questionamentos sobre a condição humana, característica dos filmes de Ceylan. Há dois que merecem menção. O primeiro ocorre em um sonho, quando o jovem encontra o escritor Suleyman, com quem discute sobre o ofício de escrever. Sinan adota uma postura arrogante e sarcástica, sugerindo que Suleyman, assim como os demais escritores, estão mais interessados na fama e no cultivo da própria imagem do que propriamente na arte que produzem, a qual exigiria sacrifícios como isolamento social e obstinada busca por perfeição. Ao tratar do próprio livro, Sinan o descreve como reflexões sobre a cultura local, mas de uma forma original, uma espécie de “meta-romance de autoficção peculiar”, ou seja, trata-se da sua interpretação da cultura local, já que “não há fatos, somente interpretações”.

Essa referência a Nietzsche reforça o caráter niilista no qual se encontra Sinan, em crise com sua terra natal, sua família, sua profissão e consigo mesmo, como reforça o próprio Suleyman, que perde a paciência com ele e interrompe a conversa, acusando-o de ser um incorrigível romântico obcecado. Quando Sinan acorda e percebemos que se tratava de um sonho, somos levados, como espectadores, a reformular o entendimento da conversa, já que a autoconfiança de Sinan é a outra face de sua insegurança, bem como a idealização, a sublimação da arte, um modo compensar as dificuldades com as quais tinha de lidar.

Outra conversa que reforça o caráter niilista pelo qual passava Sinan ocorre com dois imãs, que reencontra em seu retorno a Çan. Sinan se recusa a aceitar os argumentos de que haja um destino prévio pelo qual as pessoas são guiadas, entendendo que a religião se constitui como uma barreira entre os fiéis e a realidade. Um dos imãs argumenta que as pessoas não querem ver a realidade. Sinan assume, então, uma postura niilista, apontando que os valores supremos da religião foram substituídos pelo conforto das tecnologias modernas.

Há outros diálogos que se desenvolvem ao longo do filme, inclusive com sua mãe, que é responsabilizada por ter escolhido se casar com seu pai, originando assim os sofrimentos pelos quais a família passa. Num momento nietzschiano, a mãe diz ao filho que se pudesse voltar no tempo faria tudo de novo, escolheria se casar com seu pai, mesmo sabendo de tudo pelo que iria passar.

Sinan finalmente consegue publicar seu livro, na sequência há um hiato de tempo, durante o qual prestou o serviço militar. Ao retornar novamente à casa, encontra a mãe e a irmã felizes com a aposentadoria do pai, o que permitiu trocar a geladeira e fazer outras melhorias na residência. Os exemplares do livro de Sinan estão amontoados num canto, alguns deles mofados por terem sido acidentalmente molhados. Antes de ir ao sítio conversar com seu pai, passa pela livraria e descobre que nenhum exemplar foi vendido. O final do filme, como já mencionado, marca o momento de amadurecimento do jovem, que se reconcilia com o pai e, sobretudo, com seu próprio destino. A prova de sua transformação se dá de maneira simbólica, quando assume a missão de seguir cavando o poço em busca de água, tarefa que, na cena inicial do filme, fez a contragosto. Em outras palavras, as dificuldades não desapareceram, mas Sinan decidiu enfrentá-las, aprovando a realidade, não por ela ter se ajustado aos seus ideais, mas por ser, efetivamente, a única que existe.

Pedagogia da escolha

Três filmes, a mesma afirmação trágica. No entanto, essa afirmação não é dada de início, mas construída como um processo, como um itinerário particular e imprevisível, que demandará uma reflexão ativa, não exatamente sobre o significado da vida, mas sobre a adesão incondicional a ela, o que significa aprovar o nada, o acaso e a convenção, três instâncias que definem o pensamento trágico.

De acordo com Clément Rosset (1989ROSSET, Clément. A lógica do pior: elementos para uma filosofia trágica. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1989. , p. 11), a filosofia trágica reconhece a impossibilidade da visão do Um, de uma única visão, afirmando, ao contrário, a diversidade do olhar, a visão do múltiplo, que é “visão de nada ( rien ) – de um nada que não significa a instância metafísica chamada nada (néant), mas antes o fato de não ver nada que seja da ordem do pensável e do designável” (itálicos do autor). O nada é, portanto, oposto à ideia de natureza ou de ser, isto é, não reconhece nada que seja eterno, imóvel ou imutável, uma força, uma lei, um sentido ou um ente gerador da existência. Portanto, o trágico constata a “incapacidade humana para reconhecer ou constituir uma natureza; donde o caráter vão do pensamento, que não reflete senão suas próprias ordens, sem avaliação sobre uma qualquer existência” ( ROSSET, 1989ROSSET, Clément. A lógica do pior: elementos para uma filosofia trágica. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1989. , p. 194).

É exatamente a esse nada que Lucky se refere em seu discurso final, quando diz que tudo vai desaparecer, que tudo vira escuridão. No entanto, o nada não se refere somente ao fim, como se a morte fosse o oposto da vida, mas também ao princípio, já que a vida não é intencionalidade, mas acaso. Nesse sentido, vida e morte estão imbricadas, sendo a primeira uma exceção ao caráter inorgânico da matéria que constitui o universo. “A ordem astral em que vivemos é uma exceção; essa ordem e a considerável duração por ela determinada tornaram possível a exceção entre as exceções: a formação do elemento orgânico” ( NIETZSCHE, 2001NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. São Paulo: Cia. das Letras, 2001. , p. 217, §109). Desse modo, o nada que envolve a existência atrela-se ao acaso, outro elemento constitutivo do pensamento trágico.

O acaso não designa, na filosofia trágica, a intersecção imprevisível de séries causais independentes, nem ausência de necessidade, isto é, não expressa uma imprevisibilidade ou inevitabilidade, como se o acaso irrompesse aqui ou lá, nas brechas de uma ordem geral. “O acaso, no sentido trágico, é anterior a todo acontecimento como a toda necessidade” ( ROSSET, 1989ROSSET, Clément. A lógica do pior: elementos para uma filosofia trágica. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1989. , p. 82), assumindo, portanto, sua condição original. Assim, o acaso surge antes de qualquer desordem (caos) ou ordem (natureza), originando-as. Então, pode-se declarar:

Há acaso, logo não há ser – “o que existe” é nada . Nada, isto é, nada a respeito do que pode se definir como ser: nada que “seja” suficientemente para se oferecer à delimitação, denominação, fixação no nível conceitual como no nível existencial. Nada, no domínio “do que existe”, que possa dar ao pensamento ao menos a ideia de um ser qualquer. ( ROSSET, 1989ROSSET, Clément. A lógica do pior: elementos para uma filosofia trágica. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1989. , p. 100, itálicos do autor).

Isso significa que a vida não é dada como “ser” ou “natureza”, mas como acaso, justamente ao irromper do seio da matéria inorgânica e se constituir como fluxo, trajeto, itinerário, algo que flui e desaparece. Nesse sentido, Paterson encarna bem, não somente esse fluxo, que ele capta em seus versos, como sobretudo o acaso, que comparece no que há de mais regrado – o cotidiano – para lembrar o caráter impermanente da ordem aparente. Porque, efetivamente, não há ordem, no sentido de uma organização intencional do universo, mas regularidade, percebida e mensurada como repetição em certos intervalos e dadas situações. Assim, a diegese3 3 - A narrativa fílmica, o mundo da ficção, os fatos relativos à história representada na tela, relativos à apresentação em projeção diante dos espectadores. É diegético tudo o que supostamente se passa conforme a ficção que o filme apresenta, tudo o que esta ficção implicaria se fosse supostamente verdadeira ( AUMONT; MARIE, 2003 , p. 77-78). fílmica marca uma semana, dividida em sete jornadas, separadas em dia e noite, com atividades regulares de trabalho e lazer, cotidiano em que “nada” acontece, ou melhor, em que “tudo” se dá como fluxo, ao saber do acaso.

Se o pensamento do acaso se contrapõe à ideia de natureza e ser, instaura, por outro lado, a noção de “convenção’, terceira instância do trágico:

Convenção designa, com efeito, em um nível elementar, o simples fato do encontro (congregações que resultam em “naturezas” mineral, vegetal ou outra; encontros que tornam possíveis as “sensações”). Em um nível mais complexo, de ordem humana e mais especificamente social, convenção toma sua significação derivada, de ordem institucional e costumeira (contribuição do acaso humano ao acaso do resto “do que existe”). As leis instituídas pelo homem não são nem mais artificiais nem mais naturais que as aparentes “leis” da natureza: elas participam de uma mesma ordem casual, num nível diferente. ( ROSSET, 1989ROSSET, Clément. A lógica do pior: elementos para uma filosofia trágica. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1989. , p. 101).

É essa a dura lição que aprende Sinan Karasu, quando renuncia a seus ideais para assumir o caráter convencional de sua situação. Viver da forma que vivia lhe parecia impossível pois a realidade desmentia os pressupostos necessários para realização de seus ideais: uma grandeza qualquer advinda da literatura, da captura do ser, da delimitação de uma natureza. Admitido o caráter convencional do que existe, Sinan pode se reaver com o caráter selvagem dos frutos da árvore, metáfora genealógica que simboliza a reconciliação com seu pai e consigo mesmo.

Assim, o “ acaso ” é original e constituinte, pois está na ausência de princípio, sentido e intencionalidade do que passa a existir, sem que, contudo, isso que existe se constitua uma ordem. Essa ausência de natureza ou ser (nada) não se confunde com uma falta, mas assinala, ao contrário, que o que existe é “convenção”, encontros ao acaso que constituem tanto a matéria quanto a vida. Disso resulta tanto o caráter frágil da vida – sua impermanência, sua ausência de essência – quanto seu supremo valor: o incontornável caráter de exceção, de festa, de júbilo. É por isso que, diante do nada, Lucky sorri, como testemunho de uma alegria de viver que não difere do que Nietzsche (1995NIETZSCHE, Friedrich. Ecce homo: como alguém se torna o que é. São Paulo: Cia. das Letras, 1995. , p. 51) chamou de amor fati , amor ao que constitui os acontecimentos, ou melhor, os fluxos da vida.

Os filmes em questão, ao aprovarem incondicionalmente a vida, afirmam, embora por meios diferentes, o nada, o acaso e a convenção que caracterizam o pensamento trágico, isso porque, segundo Rosset (1989ROSSET, Clément. A lógica do pior: elementos para uma filosofia trágica. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1989. , p. 53), há uma “ligação entre pensamento trágico e pensamento aprobatório”, que aparecem em sua filosofia como sinônimos. E isso por três razões: a primeira é que a aprovação (ou seu contrário, o suicídio) é o único ato disponível ao sujeito da ação. É como se a vida se assemelhasse a uma viagem de avião em que, como passageiros, não pudéssemos acessar a cabine de controle e alterar sua rota, seja qual for. Podemos aceitar estar nela (aprovação global) ou recusá-la (desaprovação global, suicídio); “não há solução intermediária: qualquer outro termo da alternativa é ilusório” (p. 54). Segundo, porque a aprovação é “incompreensível e injustificável” (p. 54), manifestando-se como uma alegria de viver que não tem explicação e que desafia a dor. Seu caráter é inesgotável, “pois ‘nada’, por definição, poderia jamais secar uma fonte que “nada” alimenta” (p. 55, itálicos do autor). Por fim, a aprovação é invulnerável, isso porque a “alegria vital” não pode ser pensada, logo não pode, em termos filosóficos, ser refutada, pois não se assenta em absolutamente nada. Ainda segundo Rosset, o filósofo trágico é aquele que se define como “um pensador submerso pela alegria de viver, e que, ainda que reconhecendo o caráter impensável desse júbilo, deseja pensar ao máximo sua impensável prodigalidade” (p. 55).

É justamente esse caráter trágico da existência (nada, acaso e convenção) que recomenda uma pedagogia da escolha, como desejo de pensar o impensável, de trazer o silêncio à fala, de afirmar a vida como único valor apto a avaliá-la. Trata-se de uma “poética educacional’ de valorização da dimensão estética da experiência; poética porque expressa certa arte de viver, modos de lidar com o acaso, de jogar com as convenções; e “educacional”l porque aposta na possibilidade de se aprender a selecionar o que torna a vida mais potente (alegria vital) e, portanto, passível de ser aprovada. Não se aprende tal “poética educacional” com um programa a ser seguido, um conjunto de saberes ou plano de desenvolvimento de habilidades, mas por meio de exercícios de perspectivação, em que se observa a longa duração dos processos, em que se reflete sobre a trajetória, a soma dos acasos da vida. Por isso, nos três filmes estudados, o desfecho ganha fundamental relevância, pois expressam a mesma escolha trágica pela aprovação da vida. No entanto, essa escolha não se deu como livre exercício racional de decisão entre um sim ou um não, mas se manifestou como uma organização reflexiva das experiências vividas. É esse processo, que engloba três movimentos, que constitui a pedagogia da escolha: suspensão da crença, estética da experiência e reflexão sobre os itinerários (auto)formativos.

1) A suspensão da crença é um exercício de admissão do nada, pois efetivamente não se crê no que se tem, no que se vê ou em algo de palpável, mas no que se deseja ter, ver ou realizar. Logo, suspender a crença é participar do “jogo estético” pelo qual se vivencia o mito, isto é, “a imagem concentrada do mundo” ( NIETZSCHE, 1999NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia: ou helenismo e pessimismo. São Paulo: Cia. das Letras, 1999. , p. 132). Não se trata da propalada suspensão da descrença, como formulada por Coleridge (2004)COLERIDGE, Samuel T. Biographia literaria. [S. l.: s. n.], 2004. EBook #6081. Project Gutenberg, release date Julho de 2004. Disponível em: http://www.gutenberg.org/ebooks/6081. Acesso em: 29 jun. 2021.
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, em que uma espécie de fé poética abole a realidade para participar do jogo estético proposto por uma obra, como se o mundo ficcional, para ser vivido, necessitasse ser crido, mas o contrário, da suspensão do que se crê para participar do real como se participa da ficção, ou seja, aceitando que “aquela realidade” é uma entre outras possíveis, de acordo com a perspectiva de quem vê e os limites do que é visto. Esse processo não elimina a crença, o que nos parece de resto impossível, mas a suspende, de modo que a própria crença assume a condição de ficcionalidade, tornando-se, também ela, uma perspectiva, no sentido dado por Nietzsche (1998NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral. São Paulo: Cia. das Letras, 1998. , p. 109): não existe a verdade como conhecimento do todo, mas apenas conhecer perspectivo. É o exercício pelo qual se reconhece o outro e, a partir do outro, o próprio eu, na medida em que as crenças se suspendem para a admissão do que diverge, do que move, do que emociona. Assemelha-se, em certo sentido, com a epoché fenomenológica4 4 - A epoché fenomenológica é a suspensão do juízo, “a contemplação desinteressada, ou seja, uma atitude desvinculada de qualquer interesse natural ou psicológico na existência das coisas do mundo ou do próprio mundo na totalidade” ( ABBAGNANO, 2007 , p. 339). , com a diferença de que não é apenas o juízo, o sentido, o entendimento que se suspende, mas a própria crença, com o sentimento de adesão que a acompanha.

2) A experiência estética, pela qual provamos o gosto do mundo, não é meramente uma ação contemplativa, mas se realiza como possibilidade de intensificação da vida, de manancial de experiências que não exigem os riscos concretos da ação, mas são provadas no campo da virtualidade, como ficção, como o “e se” que a obra de arte promove ao exercitar uma futuridade incerta ( STEINER, 2005STEINER, George. Depois de Babel: questões de linguagem e tradução. Curitiba: UFPR, 2005. , p. 494). As experiências estéticas nos fornecem leques de sentimentos, sensações, ideias e saberes que permanecem em nós e das quais dispomos nas mais diversas situações propiciadas pela vida. Nesse sentido, as experiências estéticas funcionam como uma espécie de jogo, são “imagens que procuram captar o tipo de deslocamento da subjetividade promovido pelas obras de arte” ( FAVARETTO, 2010FAVARETTO, Celso F. Arte Contemporânea e Educação. Revista Iberoamericana de Educación, Madrid, n. 53, p. 225-235, 2010. Disponível em: https://rieoei.org/historico/documentos/rie53a10.pdf Acesso em: 14 out. 2020.
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, p. 232), isso significa que as artes funcionam contemporaneamente como “interruptores da percepção, da sensibilidade, do entendimento” ( FAVARETTO, 2010FAVARETTO, Celso F. Arte Contemporânea e Educação. Revista Iberoamericana de Educación, Madrid, n. 53, p. 225-235, 2010. Disponível em: https://rieoei.org/historico/documentos/rie53a10.pdf Acesso em: 14 out. 2020.
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, p. 232). Portanto, mais do que fornecer um modelo de formação que deva ser seguido por todos, as artes nos conectam com a vida e o mundo pela interrupção dos fluxos cotidianos, pela deposição desse sujeito e a consequente possibilidade de deslocamento, de descentramento, de devir, sendo o sujeito um campo aberto de experiências múltiplas. Da experiência estética podemos rumar a uma estética da experiência ( ALMEIDA, 2020ALMEIDA, Rogério de. A transcriação do mundo pela experiência: esboço para uma educação estética. Eccos Revista Científica, São Paulo, v. 1, p. 1-18, 2020. https://doi.org/10.5585/eccos.n53.16676
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), pela qual se valoriza, ao lado do conhecimento lógico-racional-objetivo ( mathema ), um saber da experiência, que os trágicos antigos, como Ésquilo, chamavam de páthei máthos , aprendizagem pela experiência, termo resgatado por Larrosa (2014, p. 31) para assinalar o que nos faz vibrar, tremer, sofrer, gozar, “algo que nos faz pensar” Larrosa (2014, p. 10).

3) A reflexão sobre os itinerários de (auto)formação é o terceiro movimento da pedagogia da escolha, momento em que se organizam as experiências vividas e pensadas. Os itinerários (auto)formativos não estão dissociados da formação curricular e do aprendizado lógico-racional-objetivo ( mathema ), mas não podem ser pensados sem essa dimensão do saber da experiência, atrelada menos à ação pragmática do que à adesão (ou recusa) à vida. Assim, se não temos controle sobre o que nos acontece, sobre nossas experiências, podemos ao menos escolher como lidar com o saber que delas advém ( páthei máthos ), organizando-os em itinerários que podem nos conduzir, como nos exemplos colhidos dos filmes em questão, à aprovação trágica. Essa formação é contínua e se dá ao longo da vida, o que requer renovadas reflexões sobre os sentidos que damos aos itinerários que nos formam, deformam, transformam, reflexões que demandam não somente o exercício intelectual, de pensamento, mas também, e em igual importância, o cultivo da sensibilidade e dos afetos. Daí a relevância das obras de ficção, da mediação simbólica operada pela imaginação, bem como da suspensão das crenças e abertura para se provar novos sabores e perspectivas.

A pedagogia da escolha se realiza, em suma, como exercício contínuo de resistência à estagnação das crenças, pela disposição a aprender com as experiências e na organização desses saberes formativos. São essas escolhas que possibilitam “ser o que se é”, como aparece em Nietzsche (1995)NIETZSCHE, Friedrich. Ecce homo: como alguém se torna o que é. São Paulo: Cia. das Letras, 1995. a partir do “torna-te o que tu és” de Píndaro. Preciso “tornar-me” o que eu sou, pois jamais sou uma unidade dada ou acabada, mas estou sempre em fluxo, em devir, em transformação constante. Assim, não me torno outro, pois estou sempre me transformando em mim mesmo. Trata-se, portanto, de “criar um personagem que incorpora e faz uso de tudo o que lhe é genuinamente próprio, e que seria inteiramente ele mesmo – o que exclui qualquer imitação” (GIACOIA JUNIOR, 2014b, p. 260).

(In)conclusões

Três filmes, três finais, nenhuma conclusão. Embora a escolha pela afirmação trágica coincida com as últimas cenas dos filmes estudados, a trajetória dos protagonistas de Lucky, Paterson e A árvore dos frutos selvagens não chegou ao fim, a vida continua. E podemos, como espectadores incansáveis, seguir imaginando possibilidades para cada personagem. Podemos indagar se Lucky terá outras quedas, se participará de outras comemorações de aniversário, se desistirá de seguir acendendo seu cigarro ou mesmo se cairá morto, num ataque fulminante, entre dois cactos, enquanto caminha pela estrada poeirenta, sob o olhar vagaroso do jabuti. Também nada sabemos dos destinos possíveis de Paterson e Sinan. Quantas alvoradas, quantas viagens de ônibus, quantos passeios noturnos serão necessários para que Paterson povoe seu novo caderno de versos? Sua mulher conseguirá por fim convencê-lo a publicar? Algum dia alguém virá de um país distante somente para conhecer as ruas por onde andou, as mesmas que lhe forneceram matéria para seu olhar poético? E quanto a Sinan, escreverá outro livro, entrará para a polícia, será admitido como professor, encontrará água no fim do poço ou desistirá de sua busca, de sua aldeia, de sua família, para se lançar em aventuras que nunca sonhou?

Essas bifurcações sem fim que fazem parte da trajetória de cada um de nós, personagens ficcionais ou não, quer as escolhamos, quer sejamos levados pelas circunstâncias, inserem-se no devir próprio da vida e nos convidam a refletir, para além das condições socioeconômicas e históricas em que ela transcorre e que não são de menor importância, sobre os itinerários de formação, sobre esse saber que emerge das experiências, estéticas e concretas, e incita ao ato da escolha sobre a aprovação da vida e, consequentemente, do real. Estaríamos dispostos a afirmá-la integralmente, com tudo que há de estranho, com todos seus dissabores e sofrimentos? Teríamos a coragem que exige a suspensão da crença para admitir o real integralmente, com tudo que há de desagradável, insólito e insignificante? Ou condicionaríamos essa aprovação a alguma ilusão?

Essas questões exigem uma resposta pessoal, visceral (psicológica, fisiológica), que requer ser renovada várias e várias vezes ao longo da existência. A pedagogia da escolha, ao abolir princípios e finalidades de ordem metafísica, extrínsecos à própria vida, aspira, por outro lado, a ouvir o trágico e fazê-lo falar, valorizando a experiência e o saber que dela advém; apreciando a estética e a educação de sensibilidade que ela promove; provocando as crenças e sugerindo sua suspensão; rememorando a importância dos itinerários formativos para que cada um chegue a ser o que é; convidando, por fim, à afirmação trágica, pois “a alegria é a prova dos nove”, como nos ensinou Oswald de Andrade (1990ANDRADE, Oswald de. A utopia antropofágica. São Paulo: Globo: Secretaria de Estado da Cultura, 1990. , p. 51), mas também Lucky, Paterson e Sinan Karasu.

Referências

  • ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
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  • 2
    - Tradução livre do original: “There’s an old song / my grandfather used to sing / that has the question, / or would you rather be a fish? / In the same song / is the same question / but with a mule and a pig, / but the one I her sometimes / in my head is the fish one. / Just tha one line. / Would you rather be a fish? / As if the rest of the song / didn’t have to be there”. A canção referida no poema, Swinging on a star, foi escrita por Johnny Burke e Jimmy Van Heusen, e gravada em 1944 por Bing Crosby. Na referência ao verso “ou você preferiria ser um peixe?”, a letra diz: “Um peixe não faria nada além de nadar em um riacho, / Ele não pode escrever seu nome ou ler um livro” (A fish won’t do anything, but swim in a brook / He can’t write his name or read a book). A escrita cotidiana de Paterson é seu modo de amar a vida, de afirmar sua existência.
  • 3
    - A narrativa fílmica, o mundo da ficção, os fatos relativos à história representada na tela, relativos à apresentação em projeção diante dos espectadores. É diegético tudo o que supostamente se passa conforme a ficção que o filme apresenta, tudo o que esta ficção implicaria se fosse supostamente verdadeira ( AUMONT; MARIE, 2003AUMONT, Jacques; MARIE, Michel. Dicionário teórico e crítico de cinema. Campinas: Papirus, 2003. , p. 77-78).
  • 4
    - A epoché fenomenológica é a suspensão do juízo, “a contemplação desinteressada, ou seja, uma atitude desvinculada de qualquer interesse natural ou psicológico na existência das coisas do mundo ou do próprio mundo na totalidade” ( ABBAGNANO, 2007ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2007. , p. 339).
Editor responsável: Fernando Rodrigues de Oliveira

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Abr 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    07 Jul 2021
  • Revisado
    05 Out 2021
  • Aceito
    21 Out 2021
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