Acessibilidade / Reportar erro

RESOLUÇÃO DE PROBLEMAS MATEMÁTICOS NOS ANOS INICIAIS DO ENSINO FUNDAMENTAL: UMA INVESTIGAÇÃO COM PROFESSORES POLIVALENTES

MATHEMATICAL PROBLEM SOLVING IN ELEMENTARY EDUCATION’S EARLY YEARS: AN INVESTIGATION WITH POLYVALENT TEACHERS

RESOLUCIÓN DE PROBLEMAS MATEMÁTICOS EN LOS AÑOS INICIALES DE LA EDUCACIÓN PRIMÁRIA: UNA INVESTIGACIÓN CON MAESTROS POLIVALENTES

Resumos

O presente artigo traz resultados de uma pesquisa realizada com professoras polivalentes dos anos iniciais de uma escola da rede privada de São Paulo, que investigou quais são suas concepções a respeito do tema Resolução de Problemas, buscando compreender de que maneira elas exercem influência em sua prática. O quadro teórico recorre às ideias de Brousseau, especificamente àquelas relativas à teoria das situações didáticas (TSD) e ao conceito de contrato didático. A investigação, de abordagem qualitativa, valeu-se de dois instrumentos: um questionário, objetivando a análise dessas concepções, e posterior observação das aulas dessas professoras, de modo a permitir um confronto entre discurso e prática. Os resultados apontaram que os sujeitos compreendem a importância de seu papel problematizador nas aulas e valorizam o pensamento matemático dos alunos, contudo, ainda têm dificuldade em organizar um milieu antagonista, capaz de provocar desequilíbrios. Identificou-se, ainda, alguns efeitos do contrato didático, devidamente descritos nas análises.

Resolução de problemas; Teoria das situações didáticas; Contrato didático; Professoras polivalentes


This paper presents the results of a research conducted with a private school's early grades polyvalent teachers in São Paulo. The research investigated what are their views on the subject "problem solving", trying to understand how they influence in the teachers' practice. The theoretical framework draws on Guy Brousseau ideas, specifically those related to the theory of didactic situations (TSD) and the concept of didactic contract. The research, qualitative approach, used two separate instruments: a questionnaire to analyze these concepts and the subsequent teachers classes' observation, to allow a confrontation between discourse and practice. The results showed that the subjects understand the importance of their role in problem-solving lessons and value the mathematical thinking of students, but still have some difficulty in organizing an antagonist milieu able to cause imbalances. Additionally, some effects of the didactic contract were found and equally described through the analysis.

Problem solving; Didactic situations theory; Didactic contract; Polyvalent teachers


Este artículo presenta los resultados de una investigación realizada con maestras polivalentes de los años iniciales de una escuela de la red privada de São Paulo, que investigó cuáles son sus concepciones a respeto del tema Resolución de Problemas, buscando comprender de qué manera ellas influencian su práctica. El cuadro teórico recurre a las ideas de Guy Brosseau, específicamente a las relativas a la teoría de las situaciones didácticas (TSD) y al concepto de contracto didáctico. La investigación, de abordaje cualitativo, usa dos instrumentos distintos: un cuestionario con el objetivo de analizar esas concepciones y la posterior observación de las clases de esas maestras, de manera a permitir un confronto entre discurso y práctica. Los resultados muestran que los sujetos comprenden la importancia de su papel problematizador en aula y valoran el pensamiento matemático de los alumnos, pero todavía tienen alguna dificultad en organizar un milieuantagonista capaz de provocar desequilibrios. Además, fueron identificados efectos del contracto didáctico, debidamente descriptos a lo largo de los análisis.

Resolución de problemas; Teoría de las Situaciones Didácticas; Contracto Didáctico; Maestras Polivalentes


Introdução: sobre o problema de pesquisa

Os fatores que geraram o tema da pesquisa que aqui relatamos originaram-se da observação exercida, em pesquisa, de aulas de matemática dos anos iniciais do Ensino Fundamental de uma escola da rede particular de São Paulo. A constatação de que muitos alunos chegavam ao final desse ciclo ainda dependentes de comentários do professor para resolver certos problemas tornou-se, na verdade, uma inquietação. Habituados a "buscar pistas" no enunciado para descobrirem qual operação deveriam fazer como principal recurso de resolução, mostravam-se inseguros em relação ao movimento de investigar, de maneira autônoma, no intuito de propor resoluções e/ou conjecturas. As argumentações e confrontações que deveriam estar em pleno exercício, mesmo quando incentivadas, nem sempre aconteciam como prática estabelecida nas aulas.

Buscando compreender o cenário supramencionado, foi realizada, anteriormente, uma pesquisa nessa escola, no final do ano de 2009, com alunos do 5º ano do Ensino Fundamental (MASTROIANNI, 2010MASTROIANNI, M. T. M. R. A Leitura de Problemas Matemáticos: as dificuldades identificadas por alunos do quinto ano do ensino fundamental na interpretação desse tipo de texto. 116 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Especialização em Educação Matemática) - Faculdade de Ciências Exatas e Tecnológicas, Universidade de Franca, Franca- SP, 2010.). No estudo, após colocá-los em uma situação de resolução de problemas, foi efetuada uma entrevista individual com alguns, buscando entender qual a dificuldade na leitura dos problemas e por que solicitavam constantemente ajuda da professora para sua compreensão.

Embora o foco desse estudo fosse direcionado para a autonomia da leitura em problemas matemáticos ao final das séries iniciais, os dados coletados trouxeram outros elementos, que acabaram por gerar novas questões. Esta é uma característica observável em pesquisas qualitativas: respostas obtidas podem trazer à tona outros ângulos do fenômeno analisado, indicando novos caminhos e sublinhando fatos que até então não se mostravam relevantes no cenário observado. Desta forma, os resultados observados nos trouxeram outra inquietação, no sentido de compreender por que os alunos mantinham uma postura tão insegura frente à resolução de problemas.

Dessa forma, tornaram-se esses dados, vindos da voz dos próprios sujeitos de uma pesquisa qualitativa, um ponto real e concreto; um ponto de partida para uma nova investigação, direcionando o foco, dessa vez, para o professor. Dessa forma, podemos dizer que uma investigação sobre a atividade discente e processos de resolução de problemas, gerou, indiretamente, um estudo sobre a resolução de problemas como metodologia de ensino.

A partir desse movimento é que o aspecto metodológico da resolução de problemas se delineou como uma nova hipótese e encaminhou o segundo movimento de pesquisa, ou seja, a investigação que aqui descrevemos. Preliminarmente, havíamos percebido que os resultados obtidos com os alunos trouxeram questões que apontavam com grande nitidez para a vigência e influência de um contrato didático, no sentido destacado por Brousseau (2008BROUSSEAU, G. Introdução ao Estudo das Situações Didáticas. São Paulo: Ática, 2008.), e que mais adiante esclarecemos, o qual é preciso compreender de forma mais aprofundada.

Enfim, esse contexto contribuiu para a eleição do quadro teórico apresentado neste artigo, que inclui o conceito de contrato didático e elementos da teoria das situações didáticas (BROUSSEAU, 2008BROUSSEAU, G. Introdução ao Estudo das Situações Didáticas. São Paulo: Ática, 2008.), além de contribuir para o delineamento das questões de pesquisa:

  • Quais efeitos do contrato didático ocorrem na prática dessas professoras do ponto de vista do trabalho didático com resolução de problemas nas aulas de Matemática?

  • De que forma as estratégias utilizadas para a resolução de problemas matemáticos por professoras polivalentes dos anos iniciais de uma escola da rede particular de São Paulo podem ser posicionadas do ponto de vista da teoria das situações didáticas?

Para responder a esses questionamentos, buscamos, inicialmente, compreender as principais ideias e proposições acerca do tema "resolução de problemas", de modo a posicionar nossos procedimentos de pesquisa de forma consistente. Este esforço se encontra sintetizado a seguir. Nas próximas seções deste trabalho, evidenciamos as bases teóricas e metodológicas que sustentam as argumentações surgidas a partir das análises, também descritas em sequência. Na última parte, alinhamos as considerações finais, resultantes do esforço de investigação aqui relatado.

Resolução de problemas: ideias e proposições

É comum encontrarmos em relatórios de pesquisa e em estudos especializados, como em English e Sriraman (2010ENGLISH, L; SRIRAMAN, B. Theories of mathematics education: seeking new frontiers. Amsterdã: Springer, 2010.), que, para a maioria dos alunos, resolver um problema significa fazer cálculos com os números encontrados no enunciado, buscando, já em uma primeira leitura, as palavras que indiquem as operações a serem utilizadas para a resolução. Também em nossa pesquisa anterior, realizada junto aos alunos do quinto ano, esse foi um dos fatos constatados (MASTROIANNI, 2010MASTROIANNI, M. T. M. R. A Leitura de Problemas Matemáticos: as dificuldades identificadas por alunos do quinto ano do ensino fundamental na interpretação desse tipo de texto. 116 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Especialização em Educação Matemática) - Faculdade de Ciências Exatas e Tecnológicas, Universidade de Franca, Franca- SP, 2010.).

Esse padrão nos leva a pensar se não é dessa forma que o trabalho com resolução de problemas tem sido encaminhado, ou seja, voltado para a aquisição de procedimentos eficazes, disponíveis ao alcance do aluno para atingir uma meta. Porém, como e quando utilizar estes procedimentos de maneira autônoma?

Para Echeverría e Pozo (1998ECHEVERRÍA, M. P; POZO, J. I. Aprender a resolver problemas e resolver problemas para aprender. In: POZO, J. I. (Org.) A solução de problemas. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998.),

A aprendizagem da solução de problemas somente se transformará em autônoma e espontânea se transportada para o âmbito do cotidiano, se for gerada no aluno a atitude de procurar respostas para suas próprias perguntas/problemas, se ele se habituar a questionar-se ao invés de receber somente respostas já elaboradas por outros, seja pelo livro-texto, pelo professor ou pela televisão. O verdadeiro objetivo final da aprendizagem da solução de problemas é fazer com que o aluno adquira o hábito de propor-se problemas e de resolvê-los de forma a aprender.

(ECHEVERRÍA; POZO, 1998ECHEVERRÍA, M. P; POZO, J. I. Aprender a resolver problemas e resolver problemas para aprender. In: POZO, J. I. (Org.) A solução de problemas. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998., p.15)

Dessa forma, muitos dos problemas que são apresentados aos alunos podem ser caracterizados como pseudoproblemas, ou seja, meros exercícios de aplicação de rotinas aprendidas por emprego e repetição, praticamente automatizadas, "sem que o aluno saiba discernir o sentido do que está fazendo e, por conseguinte, sem que possa transferi-lo ou generalizá-lo de forma autônoma a situações novas" (ECHEVERRÍA; POZO, 1998ECHEVERRÍA, M. P; POZO, J. I. Aprender a resolver problemas e resolver problemas para aprender. In: POZO, J. I. (Org.) A solução de problemas. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998., p. 15).

Ao contrário desses exemplos, um problema deve aguçar no estudante o desejo de resolvê-lo, porque este sente algum obstáculo nessa tarefa. De acordo com Charnay (1996CHARNAY, R. Aprendendo (com) a resolução de problemas. In: PARRA, C.; SAIZ, I (Org.). Didática da matemática: reflexões psicopedagógicas. Porto Alegre: Artmed, 1996., p. 46), "só há um problema se o aluno perceber uma dificuldade: uma determinada situação, que 'provoca problema' [...] há então, uma ideia de obstáculo a ser superado". Sendo assim, então, em que momento um problema é realmente um problema ou deixa de sê-lo para caracterizar-se como exercício?

Para Echeverría e Pozo (1998ECHEVERRÍA, M. P; POZO, J. I. Aprender a resolver problemas e resolver problemas para aprender. In: POZO, J. I. (Org.) A solução de problemas. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998., p. 16), "um problema se diferencia de um exercício, na medida em que, neste último caso, dispomos e utilizamos mecanismos que nos levam, de forma imediata à solução". Os autores sublinham, ainda, a ideia de que a mesma situação pode, para um sujeito, representar um problema, mas, para outro, não.

Refletindo sobre essas questões, podemos compreender a importância que a escolha de atividades realizada pelo professor tem no contexto de uma metodologia voltada para a resolução de problemas, juntamente com a abordagem que este faz ao trabalhar essas atividades. Para Brousseau (2008BROUSSEAU, G. Introdução ao Estudo das Situações Didáticas. São Paulo: Ática, 2008.), as concepções atuais do ensino exigirão do professor que provoque no aluno - por meio da seleção sensata dos "problemas" propostos - as adaptações desejadas.

Além disso, outro aspecto emergiu: a organização didática. Foi necessário incluir esse elemento em função da importância da constituição de uma dinâmica distinta para o trabalho didático com resolução de problemas. Deste ponto de vista, adotamos a Teoria das Situações Didáticas (TSD) como referencial, no esforço de compreender, a partir da análise dos dados, os procedimentos levados a efeito pelos professores ao trabalharem com resolução de problemas em suas aulas de Matemática. Outra referência relevante, também empregada nas análises, está ligada ao conceito de contrato didático (BROUSSEAU, 1990BROUSSEAU, G. Introdução ao Estudo das Situações Didáticas. São Paulo: Ática, 2008.), um constructo teórico cuja finalidade é explicar as relações entre professor e aluno em contextos de ensino/aprendizagem.

Elementos da Teoria das Situações Didáticas

A TSD apoia-se em três hipóteses principais, a saber (BROUSSEAU, 1986BROUSSEAU, G. Le contrat didactique et le concept de milieu: dévolution. Recherches em Didactique des Mathématiques, Grenoble, v. 9, n. 3, p. 309-336, 1990.):

  • O aluno aprende adaptando-se a um milieu, que é fator de dificuldades, de contradições, de desequilíbrio. Esse saber, fruto da adaptação do aluno, manifesta-se pelas respostas novas, que são a prova da aprendizagem;

  • O milieu não munido de intenções didáticas é insuficiente para permitir a aquisição de conhecimentos matemáticos pelo aprendiz. Para que haja essa intencionalidade didática, o professor deve criar e organizar um milieu no qual serão desenvolvidas as situações suscetíveis de provocar essas aprendizagens;

  • Esse milieu e essas situações devem engajar fortemente os saberes matemáticos envolvidos no processo de ensino e aprendizagem.

Notamos, em Brousseau (2008BROUSSEAU, G. Introdução ao Estudo das Situações Didáticas. São Paulo: Ática, 2008.), a importância atribuída à organização do milieu, considerado o ambiente onde ocorrem as interações do sujeito, e que deve ser planejado como um sistema antagonista no qual o sujeito age. É nele que se provocam mudanças visando desestabilizar o sistema didático e propiciar o surgimento de conflitos, contradições e possibilidades de aprendizagem de novos conhecimentos. Para isso concorre, preponderantemente, a intencionalidade do professor no planejamento das situações, vistas como

o conjunto de relações estabelecidas explicitamente e/ou implicitamente entre um aluno ou um grupo de alunos, um certo milieu (contendo eventualmente instrumentos ou objetos) e um sistema educativo (o professor) para que esses alunos adquiram um saber constituído ou em constituição.

(BROUSSEAU, 1978BROUSSEAU, G. Fondements et méthodes de la didactique des mathématiques. Recherches em Didactique des Mathématiques, Grenoble, v. 7, n. 2, p. 33-116, 1986. citado por ALMOLOUD , 2010ALMOULOUD, S. A. Fundamentos da didática da matemática. Curitiba: UFPR, 2010., p. 33)

Assim, o milieu constitui a ambientação na qual sucedem as interações entre os agentes (alunos e professores) e o conhecimento em jogo. Idealmente, deve ser planejado pelo professor como um sistema antagonista, de modo a levar o estudante ao desequilíbrio. Isso significa prever resistências, restrições e até mesmo dificuldades, passíveis de superação por meio do engajamento dos sujeitos no jogo didático e na investigação de conjecturas que levem à resolução dos problemas componentes. Dessa maneira, o milieu deve ser engendrado a partir da intencionalidade didática do professor, o qual, ao organizar sua estrutura, provê elementos para que as respostas esperadas como resolução das questões propostas representem o próprio processo de construção do conhecimento.

Perrin-Glorian (1998)PERRIN-GLORIAN, M. J. Analyse d'un problème de fonctions en termes de milieu: structuration du milieu pour le maître et pour l'élève. Actes de l'université d'été de la Rochelle, Clermont-Ferrand, IREM de Clermont-Ferrand, 1998. indica que o milieu teria três componentes essenciais: o de natureza material, constituído por objetivos e instrumentos; o de natureza cognitiva, tecido por conhecimentos necessários para a resolução dos problemas propostos, e o de natureza social, formado pelos atores (alunos, professores) cuja interação interfere na resolução dos problemas em análise.

Além disso, é preciso observar que um milieu aliado não seria adequado para efetivar o processo de construção do conhecimento nos termos supramencionados, uma vez que é constituído por elementos facilitadores e por uma preparação que exime os sujeitos do processo investigativo e do esforço para a superação de eventuais dificuldades e restrições. Nesse caso, os componentes cognitivos já se encontram explicitados na forma de exemplos ou modelos e, frequentemente, o componente social é substituído por exposições/instruções do professor.

Ainda segundo Brousseau (2008BROUSSEAU, G. Introdução ao Estudo das Situações Didáticas. São Paulo: Ática, 2008.), no processo de ensino e aprendizagem, deve haver condições para que o aluno realize, ele mesmo, suas aproximações sobre determinados procedimentos e raciocínios que não são e nem deveriam ser explicitados pelo professor. Para ele, o que evidencia a caracterização de uma situação didática, no caso da matemática, é a natureza específica do trabalho com a resolução de problemas.

Assim, na prática pedagógica, não se trata de permanecer no nível da transmissão de um conhecimento; deve-se, sobretudo, trabalhar com a apresentação e com a devolução de bons problemas, ou seja, "uma situação didática se caracteriza pelo jogo de interações do aluno com os problemas colocados pelo professor" (ALMOULOUD, 2010ALMOULOUD, S. A. Fundamentos da didática da matemática. Curitiba: UFPR, 2010., p. 34). A forma como este propõe os problemas é chamada de devolução, no sentido de transferência de responsabilidade (o aluno tomando o problema como dele), e seu objetivo deve ser o de promover uma interação rica e que oportunize o desenvolvimento da autonomia do estudante. Dessa forma, o professor deve evitar a apresentação precoce de resultados envolvendo conceitos formalizados e, sempre que possível, promover a simulação de um ambiente de pesquisa que permita aos alunos vivenciarem momentos de investigação, simulação e elaboração de hipóteses.

Nessa etapa do processo, há a necessidade de que os alunos trabalhem independentemente do controle do professor. O aluno deve tentar superar, por seu próprio esforço, certas passagens que conduzem o raciocínio na direção de sua aprendizagem. São essas deduções racionais do aluno, realizadas sem o controle pedagógico explícito, que caracterizam as chamadas situações adidáticas. Nelas, o aluno se apropria das situações, como se fosse um pesquisador buscando a solução, com seus próprios passos, sem a ajuda de seu orientador (papel do professor). Este, aliás, é justamente o lugar de um problema do ponto de vista da TSD: no âmbito de uma situação adidática. Ainda aqui, o papel do professor na escolha dos problemas é essencial, pois deve garantir três características fundamentais, de acordo com Brousseau (1986)BROUSSEAU, G. Le contrat didactique et le concept de milieu: dévolution. Recherches em Didactique des Mathématiques, Grenoble, v. 9, n. 3, p. 309-336, 1990.:

  • Permitir que o aluno aja, reflita, fale e evolua por conta própria;

  • Ensejar que o estudante construa os novos conhecimentos de forma inteiramente justificada pela lógica interna da situação, ou seja, sem apelo a razões didáticas;

  • Criar condições, via mediação, para que o aluno seja o principal agente na construção dos conhecimentos, a partir do problema em questão.

Ainda segundo Brousseau (1986)BROUSSEAU, G. Le contrat didactique et le concept de milieu: dévolution. Recherches em Didactique des Mathématiques, Grenoble, v. 9, n. 3, p. 309-336, 1990., o trabalho dos estudantes ao longo de um percurso típico de aprendizagem envolve a passagem por dialéticas distintas e interligadas, próprias da construção do conhecimento:

  • Dialética de Ação: o aluno empenhado na solução de um problema realiza determinadas ações mais imediatas, que resultam na produção de um conhecimento de natureza mais operacional. Ocorre o predomínio do aspecto experimental do conhecimento.

  • Dialética de Formulação: o aluno já utiliza, na solução do problema estudado, alguns modelos ou esquemas teóricos explícitos, além de mostrar um evidente trabalho com informações teóricas de uma forma bem mais elaborada, podendo ainda utilizar uma linguagem mais apropriada para viabilizar esse uso da teoria. Faz afirmações relativas à sua interação com o problema, mas ainda sem a intenção de julgamento da validade. Elabora conjecturas.

  • Dialética de Validação: o aluno utiliza mecanismos de prova em que o saber é usado com a finalidade de validar suas conjecturas. Nessas situações, então, é preciso elaborar algum tipo de prova daquilo que já se afirmou, de outra forma pela ação. Podem servir para confirmar ou mesmo contestar ou rejeitar proposições.

Como o processo nessas situações adidáticas é, geralmente, muito amplo, faz-se necessária uma fase de institucionalização do saber, que deve ser conduzida pelo professor. Essa fase visa dar acabamento ao conhecimento elaborado pelos alunos ou mesmo trabalhar no sentido de descartar possíveis aspectos não valorizados na perspectiva do saber socialmente formalizado. Nesse momento, ainda que dialético, não se está mais numa situação adidática, pois o controle sobre o saber volta para o professor. Assim, cabe a ele organizar a síntese do conhecimento, procurando elevá-lo a um estatuto de saber que não dependa mais dos aspectos subjetivos e particulares.

A constituição de situações didáticas no âmbito da teoria de que nos valemos não prescinde da compreensão/organização das relações entre os agentes do processo, professores e alunos, que ocorrem por meio do chamado contrato didático, constructo teórico que empregamos também nas análises e cujos conceitos esclarecemos em seguida.

O contrato didático

Brousseau (1990)BROUSSEAU, G. Le contrat didactique et le concept de milieu: dévolution. Recherches em Didactique des Mathématiques, Grenoble, v. 9, n. 3, p. 309-336, 1990. define o contrato didático como o conjunto de comportamentos específicos do professor que são esperados pelos alunos e o conjunto de comportamentos característicos dos alunos que são esperados pelo professor. Essa relação está sujeita a muitas regras e convenções, que acabam funcionando como cláusulas de um contrato. Assim, na definição desse autor, esse contrato é:

Uma relação que determina - explicitamente em pequena parte, mas sobretudo implicitamente - aquilo que cada parceiro, professor e aluno, tem a responsabilidade de gerir e pelo qual será, de uma maneira ou de outra, responsável perante o outro. Esse sistema de obrigações recíprocas assemelha-se a um contrato. Aquilo que aqui nos interessa é o contrato didático, ou seja, a parte deste contrato que é específica do "conteúdo": o conhecimento matemático visado.

(BROUSSEAU, 1990BROUSSEAU, G. Le contrat didactique et le concept de milieu: dévolution. Recherches em Didactique des Mathématiques, Grenoble, v. 9, n. 3, p. 309-336, 1990., p. 51)

As obrigações recíprocas que ocorrem nesse meio quase nunca são explícitas, porém revelam-se principalmente quando ocorre sua transgressão, ou seja, quando ocorrem rupturas nesse contrato. Dessa forma, quando o professor se depara com dificuldades ou apresenta insucessos em suas ações, ambas as partes se comportam como se estivessem unidas por um contrato que acaba de ser quebrado: "cada um supõe compromissos por parte do outro - um, de explicar, o outro, de entender - e os dois tentam encontrar as cláusulas e as sanções de quebra" (BROUSSEAU, 2008BROUSSEAU, G. Introdução ao Estudo das Situações Didáticas. São Paulo: Ática, 2008., p. 76.).

Segundo Ricardo, Slongo e Pietrocola (2003RICARDO, E.; SLONGO, I.; PIETROCOLA, M. A perturbação do contrato didático e o gerenciamento dos paradoxos. Revista Investigações em Ensino de Ciências, Porto Alegre, v. 8, n. 2, ago. 2003. Disponível em:<http://www.if.ufrgs.br/public/ensino/vol8/n2/v8_n2_a4.html>. Acesso em: 10/12/2014.
http://www.if.ufrgs.br/public/ensino/vol...
), Brousseau faz alusão à dimensão paradoxal que permeia o contrato didático. O professor tem responsabilidades em seu papel, bem distintas das do aluno, e como gerenciador desse contrato, deve respeitar seu desenvolvimento cognitivo. Vivencia uma situação em que, ao mesmo tempo em que sua mediação na relação didática se faz necessária, ela não pode revogar as condições indispensáveis para o processo de apropriação do conhecimento. O professor procura reestruturar o problema, devolvendo-o ao educando; entretanto essa "proximidade" provoca a constante tentação de ajudar o aluno a ser bem-sucedido, quando se trata de aprender (PERRENOUD, 1999PERRIN-GLORIAN, M. J. Analyse d'un problème de fonctions en termes de milieu: structuration du milieu pour le maître et pour l'élève. Actes de l'université d'été de la Rochelle, Clermont-Ferrand, IREM de Clermont-Ferrand, 1998. citado por RICARDO; SLONGO; PIETROCOLA, 2003RICARDO, E.; SLONGO, I.; PIETROCOLA, M. A perturbação do contrato didático e o gerenciamento dos paradoxos. Revista Investigações em Ensino de Ciências, Porto Alegre, v. 8, n. 2, ago. 2003. Disponível em:<http://www.if.ufrgs.br/public/ensino/vol8/n2/v8_n2_a4.html>. Acesso em: 10/12/2014.
http://www.if.ufrgs.br/public/ensino/vol...
).

O cenário a que nos remete esse paradoxo contempla alguns fenômenos que interferem no processo de ensino e aprendizagem em matemática e que são denominados efeitos do contrato didático, considerados de natureza deletéria, à medida que trazem prejuízos ao processo de construção do conhecimento. Alguns deles aparecem ao longo das análises contempladas neste artigo, o que nos permite classificá-los e explicar sua relação com o processo de aprendizagem em curso.

Natureza e procedimentos metodológicos

Para responder aos questionamentos realizados neste trabalho, optamos por uma pesquisa que se caracteriza como qualitativa. Como a origem de nossas questões nasceu da própria atuação em sala de aula, é para ela que voltamos nossas lentes de observação, procurando entender os fenômenos que perpassam as aulas de matemática dos anos iniciais, do ponto de vista da Teoria das Situações Didáticas e em particular, como se manifestam os fenômenos relativos ao contrato didático, suas rupturas e negociações levando em conta todo o dinamismo que ocorre nesse ambiente. Outro ponto que justifica a escolha pela abordagem qualitativa é sua essência descritiva, fundamental para a compreensão dos fenômenos que queremos investigar.

A escola na qual se desenvolveu a investigação pertence à rede particular de ensino e situa-se na zona oeste do município de São Paulo. É uma escola cujos alunos/egressos obtêm boas pontuações no ENEM e nos vestibulares, e que vem, por meio de cursos de formação continuada para os professores, buscando aperfeiçoar seu sistema de ensino.

Os sujeitos da pesquisa aqui apresentada são seis professoras voluntárias dos anos iniciais do Ensino Fundamental, cujos nomes reais foram substituídos por outros, fictícios, para a preservação do anonimato. Quanto à formação, quatro das professoras são graduadas em Pedagogia, uma em Psicologia e uma em Artes. Todas possuem especialização lato-sensu: três em Psicopedagogia, uma em Neuroeducação, uma em Educação Ambiental e uma em Neurociência e Transtornos de Aprendizagem. Todas lecionam há mais de vinte anos nas séries iniciais.

Os dados analisados neste artigo foram obtidos, principalmente, por meio de observações de aulas dadas pelos sujeitos da pesquisa. Além disso, um questionário com seis perguntas foi distribuído entre os sujeitos. Essas questões, expostas no Quadro 1, não são o principal objeto de análise deste artigo, mas algumas respostas dadas pelas professoras surgem nas análises como elemento de confronto entre o discurso e a prática dos sujeitos.

Quadro 1
O questionário

Os sujeitos responderam às questões privadamente, entregando suas respostas antes das observações de suas aulas. Em relação ao principal foco da análise, o procedimento foi o de observar como os professores, em sua ação pedagógica, ativam os mecanismos relacionados aos elementos teóricos discutidos nesse trabalho e como lidam com eles: como se dá o estabelecimento do contrato didático, o desenvolvimento de processos investigativos nas aulas e a forma como compreendem a resolução de problemas matemáticos em suas aulas.

Em nosso relatório de pesquisa, fizemos a análise de cinco aulas, destacando, neste artigo, os excertos significativos de duas delas, escolhidas por sintetizarem de forma mais ampla os fenômenos observados, cujas análises apresentamos a seguir, considerando as observações efetuadas e trechos das falas de professores e alunos envolvidos, tomados a partir da gravação em áudio das interações ocorridas, posteriormente transcritas.

A prática da professora Marília: uma aula no quinto ano

Marília optou por usar uma aula prevista no planejamento mensal do quinto ano, pelo qual é responsável. A proposta era que ela trouxesse para os alunos um problema de travessia 1 1 Esse tipo de problema é assim denominado pelo grupo que faz assessoria externa aos professores. De forma geral, são problemas envolvendo espaços de estados, com operadores, estados iniciais e fiais e operações que levam (ou não) aos estados fiais, por meio de heurísticas. De forma mais simples, são problemas que simulam jogos, nos quais os personagens devem atravessar um rio, uma ponte ou um caminho qualquer com restrições. Tais restrições podem limitar o número ou tipo de personagens que podem atravessar juntos, o tempo de travessia, um limite para os movimentos, etc. São desse tipo problemas conhecidos e típicos como "Missionários e Canibais", "Lobo, Ovelha e Verdura", "O problema da lanterna", entre outros. Via de regra, a resolução pede dos jogadores a mobilização de recursos lógicos e esquemas. , a fim de variar o repertório de problemas não convencionais trabalhados com os alunos. O enunciado do problema era o seguinte:

Era uma vez um pai e dois filhos. O pai tinha 80kg, o menino, 40kg e a menina, 35kg. Eles tinham de atravessar um rio. Por sorte, os três sabiam remar e encontraram um bote na margem. Só que, junto ao bote, havia um aviso assustador: Não se afogue! O bote suporta, no máximo, 85 kg. Faça deduções, elabore hipóteses e descubra: nessas condições, de que maneira os três poderão atravessar o rio utilizando o bote? Escreva e explique sua resposta. (Professora Marília, anotações de pesquisa)

Quando chegamos, os alunos do quinto ano já estavam organizados em duplas2 2 Nestas falas, como nas demais, a letra M designa a fala da professora Marília, enquanto a letra C se refere à fala da classe (resposta coletiva dos alunos). .

M: Coloquem o nome e a série. Bom hoje a gente vai fazer um problema...Qual é o nome que está escrito no alto da folha?

C: Desafio!

M: Na verdade é um desafio porque vocês vão ver que é um problema...Todos os problemas a gente resolve com conta, com o algoritmo? Sim ou Não? [Alguns alunos disseram sim, outros não]

M: Alguma vez vocês já resolveram algum problema que não tenha algoritmo, ou conta pra gente fazer?

{Alguns alunos disseram que sim}

M: Então, acontece às vezes, né? {Alguns responderam sim e outros falaram não}

M: Vamos ver.... Então a gente tem um problema aqui, que vocês vão discutir com a sua dupla. É um problema de... na verdade de lógica, pra gente pensar como é que a gente vai fazer esta situação-problema. Porque muitas vezes, o que que acontece: vocês sempre estão buscando que conta é pra fazer... Então, é pra gente pensar um pouquinho que nem sempre a gente precisa, pra resolver algum problema, fazer uma conta, que é o que vai acontecer aqui. Então na dupla, vocês vão ler o problema. Eu vou passar pra ver a discussão de vocês na dupla, que é importante; e, depois, a gente vê se vem pra lousa pra gente colocar soluções diferentes que apareceram aí. Tudo bem?

(Professora Marília e alunos, transcrição de vídeo)

Consideramos que a professora, em seu discurso, enfatizou a importância das interações entre os alunos nas duplas, valorizando o processo investigativo. Procurou desmistificar para os alunos uma crença relativa ao contrato didático, segundo a qual os alunos entendem que, em Matemática, resolve-se um problema efetuando operações e que a tarefa dos mesmos é encontrar uma operação adequada e aplicá-la corretamente. Porém, antecipou para os alunos que este era um problema que não seria resolvido pelo algoritmo, prevendo algumas ações e estratégias que deveriam ser mobilizadas por eles. Em sua mediação, enquanto se esperava a ocorrência da dialética de Formulação, de acordo com Brousseau (2008BROUSSEAU, G. Introdução ao Estudo das Situações Didáticas. São Paulo: Ática, 2008.), ela deveria evitar intervir sobre o conteúdo.

Ainda nesse sentido, compreendemos que a professora classificou esse problema como sendo de lógica para reforçar a ideia de que não precisariam usar algoritmos para a resolução. No final da aula, alegou estar em dúvida se este seria mesmo um problema de lógica, pois não apresentava nenhum tipo de tabela, como são os problemas de lógica com os quais já trabalhou. A esse respeito, podemos recordar a resposta dada por ela à segunda questão do questionário, sobre a forma pela qual desenvolve este trabalho:

{...} em algumas resoluções os alunos sentam em dupla. Os alunos recebem uns 5 problemas (convencional) e iniciam a resolução. Chamo alguns alunos para colocarem suas resoluções na lousa, discutimos cada uma delas. Também trabalhei com problemas de lógica. (Professora Marília, questionário)

No confronto entre seu discurso e sua prática, percebemos que compreende o tipo de problema mencionado (lógica) como não-convencional, pelo fato de permitir estratégias diferenciadas de resolução ao invés de operações matemáticas.

Stancanelli (2001STANCANELLI, R. Conhecendo diferentes tipos de problema. In: SMOLE, K.S.; DINIZ, M.I. Ler, escrever e resolver problemas: habilidades básicas para aprender matemática. Porto Alegre: Artmed, 2001.), de fato, classifica problemas de lógica de maneira análoga a essa ideia. De outro modo, porém, podemos observar que o problema apresentado pressupõe algum raciocínio numérico e emprega operações de adição, o que indica que tais problemas não precisam representar opostos diametrais em relação aos chamados problemas numéricos:

Problemas de Lógica - são problemas que fornecem uma proposta de resolução cuja base não é numérica, que exigem raciocínio dedutivo e propiciam uma experiência rica para o desenvolvimento de operações de pensamento como previsão e checagem, levantamento de hipóteses, busca de suposições, análise e classificação.

(STANCANELLI, 2001STANCANELLI, R. Conhecendo diferentes tipos de problema. In: SMOLE, K.S.; DINIZ, M.I. Ler, escrever e resolver problemas: habilidades básicas para aprender matemática. Porto Alegre: Artmed, 2001., p. 114)

Podemos observar, na sequência de trechos extraídos da aula3 3 Optamos, nesta transcrição e nas demais, pela manutenção das falas originais, sem corrigir os eventuais erros gramaticais, registrando integralmente o que foi dito. , que, além da argumentação, foi exigida dos estudantes a operação ou cálculo para validação da resposta. Ainda que nesta situação aresolução do problema prescinda do algoritmo, nota-se a importância dadaa tal aspecto, possivelmente associada a uma exigência formal dessaestratégia, comumente valorizada no âmbito escolar.

{Os alunos se evolveram com a leitura e resolução do problema. A classe estava barulhenta, mas todos estavam envolvidos na discussão. A professora começou a passar pelas duplas, perguntando como estavam resolvendo}

4 4 Nesta sequência de falas, a letra M representa as falas da professora Marília, enquanto as falas dos alunos envolvidos são designadas por A1 até A8.

M: Já... Como vocês pensaram?

A1: Primeiro, vão eles dois. Aí depois volta a menina. Aí depois a menina fica aqui e o pai vai. Aí depois volta o menino e pega a menina e os dois vão juntos.

M: Hã ... e aí? Faz a conta pra gente ver se é isso mesmo...Será que deu? Porque eles têm.... Têm, olha lá, o quilo olha... Vê se dá...Faz a conta... Deu setenta e cinco quilos?

A2: Eles têm setenta e cinco quilos.

M: Como você pode comprovar isso, com conta ou escrevendo... Pensem aí na resposta.

{Os alunos somam quarenta quilos mais trinta e cinco quilos...Depois observou outra dupla que discutia e a chamou}

A3: Professora, vem aqui. Professora, vai o filho e depois o pai?

A4: Mas o bote vai estar do outro lado...

A3: É...Só se o pai for remando primeiro...

A4: Ah, porque esse pai não faz um regime...? {riem}

M: Oh, vamos lá; calma, fala de novo, quem vai primeiro?

A3: O pai.

M: Tá. E a minha pergunta foi: e como que o barco vai voltar? {Silêncio...} Pensem de novo...

A3: Acho que já sei...Vai os dois meninos... Aí vai... volta um..

A4: Aí um menino fica aqui - {aponta pro outro lado do rio} - aí vai o pai, aí volta a criança e volta... eeeeee {comemoraram} {A professora foi em outra dupla}

M: Vamos lá, como é que é?

A5: Vão os dois meninos, aí volta um...

M: Volta um qualquer? Pode ser um ou o outro?

A5: É. Não... Não sei...É, volta um qualquer.

M: Por que que pode ser um ou outro?

A5: Por que cabe no bote, dá pra segurar...

M: Ah, tá por causa do peso...

A5: Ai volta o menino por exemplo, aí vai o pai, ai volta a menina, aí pega o menino e vai...

M: Tá bom...Legal! Agora tem que registrar. Vamos ver como vocês conseguem escrever isso... E o quilo, deu? Vocês olharam isso? Fizeram a conta dos quilos?

A6: Primeiro vamos somar... {e começaram a fazer os cálculos} {A professora foi em outra dupla, muitos já tinham resolvido mas estavam, a pedido dela, registrando a resposta no espaço}

M: Vocês terminaram? Explica pra mim como vocês pensaram?

A6: Vamos explicar pra ela, vai. Vai as duas crianças, aí volta a menina, aí vai o pai depois, aí volta o menino e pega o outro menino.

M: E não passou o peso em nenhum momento?

A6: Não.

M: Como vocês podem mostrar pra mim que não passou?

A6: Porque 40 + 35 = 75, então aí volta 35 que é da menina, aí vai o pai que é 80, sozinho, que cabe... depois volta o menininho que é 40 e depois pega a menininha que é 35 e vai, que dá 75.

{As duplas chegavam todas à solução e, como viram alguns explicando, queriam também explicar. A professora perguntou em uma dupla}

M: Vocês chegaram à conclusão juntos?

A7: Mais ou menos.

M: Mais ou menos? Como que foi essa discussão.

A8: É foi junto.

M: Tá bom vocês falaram pra mim, como é que é? Fica a menina... e volta o menino?

A8: Não, fica o menino e volta a menina.

M: E pode ser o contrário ou não? Em vez de ficar o menino, fica a menina e vai o outro? Dá certo isso? Sim ou não?

A8: Sim.

M: Por que que daria?

A8: Porque ficaria assim, parecido.

M: Então vamos lá. Vocês olharam o peso dele?

A7: Sim o pai oitenta, ela trinta e cinco e ele quarenta.

M: Então faz diferença voltar um ou outro, um primeiro ou o outro ou tanto faz?

A7: Ah, tanto faz.

M: Por que tanto faz? Que conta você tem que fazer pra saber se é tanto faz?

A7: Quarenta mais trinta... e cinco...

M: Mais? Pensa..., quem que vai junto na volta? Quanto é o peso do pai?

A8: Oitenta.

M: Então você tem que contar o peso do pai mais...

A8: Mas aí não daria porque passaria...porque o pai tem oitenta, aí passaria, caberia só mais cinco...

M: Exatamente! Por isso que ele tem que ir...? {Os dois alunos responderam juntos:: "Sozinho!"}

M: Muito bem. {Questionou outras duplas que deram a resposta} Mas não passa o peso?

A8: Não porque o pai é oitenta e o pai já está lá, e eles dois juntos dá setenta e cinco quilos, daí eles voltam... {Mais uma dupla anunciou a resposta correta. Ela fez o mesmo questionamento, perguntando se fazia diferença voltar um ou outro. A professora ouviu ainda mais duplas que queriam contar como resolveram. A classe estava barulhenta pois os que já tinham resolvido, contado e registrado conversavam. Em todas as duplas que ouviu fez a mesma pergunta (se fazia diferença uma ou outra das crianças voltarem).

(Professora Marília e alunos, transcrição de vídeo)

A análise das mediações da professora com as duplas nos leva a pensar que ela dá espaço para os alunos interagirem com seus pares e argumentarem, mas acaba por induzi-los ao que considera como validação da resposta, atitude que entra em desacordo com as concepções anunciadas em sua fala na resposta à questão seis de nosso instrumento, a qual questiona os sujeitos sobre o momento em que se sentem mais à vontade para trabalhar com resolução de problemas na sala de aula:

Não existe momento melhor ou não para se trabalhar com resolução de problemas. Existem as aulas para se trabalhar com resolução de problemas. Tento deixar a aula de forma que os alunos proponham soluções, explorem possibilidades e validem suas próprias conclusões. (Professora Marília, questionário)

Constatamos também em nossa análise que a professora tinha pouco repertório de questionamentos para esse problema: praticamente um único foi feito aos alunos, sobre a ordem dos garotos na volta da travessia. A uma dupla, perguntou sobre como o barco voltaria, fazendo-os refletir sobre a resposta que tinham produzido. Além desses, somente a verificação pelo cálculo foi sugerida. Isso nos leva a refletir sobre as palavras de Brousseau (2008BROUSSEAU, G. Introdução ao Estudo das Situações Didáticas. São Paulo: Ática, 2008.) quando se refere à seleção sensata dos problemas propostos que devem fazer, pela própria dinâmica, que o aluno evolua. O professor deve ter consciência da escolha feita e avaliar o grau de dificuldade ou de desafio na proposta. Nesse caso, o desafio era insuficiente para sustentar questionamentos que fomentassem maiores reflexões.

Além disso, ao intervir dessa forma, a professora põe em questão todo o trabalho envidado pelos alunos na dialética de validação. Ao antecipar etapas da institucionalização, a professora cria prejuízos para a proposta de construção do conhecimento. Essa tentativa de obter justificativas formais indica a resistência que a docente apresenta a um contrato didático distinto daquele que prevê respostas em certo formato para as questões propostas. Finalmente, ao fornecer "pistas" e apontar antecipações por meio de dicas em sua fala com os estudantes, incorre no efeito do contrato didático denominado Topaze 5 5 O nome dado a este efeito provém de uma peça de teatro, homônima, em que há uma cena que se passa em um colégio interno. O protagonista, Topaze, faz um ditado a um aluno que demonstra muita difiuldade na execução da tarefa. Como não consegue aceitar um excesso de erros grosseiros, mas também não pode dizer abertamente ao aluno quais são esses erros e a ortografi correta, começa a insinuar-lhe respostas, sutilmente, sob a forma de códigos didáticos cada vez mais transparentes. (BROUSSEAU, 2008BROUSSEAU, G. Introdução ao Estudo das Situações Didáticas. São Paulo: Ática, 2008.), ou seja, no momento em que o aluno encontra alguma dificuldade, o professor tende a criar condições para que o aluno supere esta dificuldade e avance, esquecendo-se, porém, do engajamento que deveria ter o discente nesse processo. Nesse caso, então,

A resposta que o aluno deve dar é previamente determinada. O professor escolhe as perguntas que a podem provocar. É claro que os conhecimentos necessários para a produção dessas respostas mudam de significação. Fazendo perguntas cada vez mais fáceis, tenta obter o máximo de significação do máximo de alunos.

(BROUSSEAU, 2008BROUSSEAU, G. Introdução ao Estudo das Situações Didáticas. São Paulo: Ática, 2008., p. 80)

Retomamos nossa observação na problematização relatada no início deste artigo, sobre a dificuldade, para alguns professores, na organização e no planejamento de aulas em que se priorizem momentos de discussão de conceitos, argumentação e confrontação sem necessariamente conduzir os alunos ao acerto.

Como todas as duplas já tinham respondido, não havia mais o que contestar. A professora procurou-nos e disse:

M: Acho que já deu... Esse problema deu pista que foi fácil, dá pra procurar outros mais difíceis... Eu ia fazer o Painel de Solução mas não tem mais sentido.- {Optou por fazer um fechamento da aula focando na forma em como registraram as conclusões}

M: Pessoal, atenção - {disse para a classe chamando a atenção de todos que iam parando de conversar}.- Eu fui passando pra ver as resoluções e percebi que todos vocês chegaram à solução do problema. Só que cada um registrou, ou escreveu, lógico, da sua maneira. Aí eu queria que vocês fossem me falando como cada um registrou para eu ir escrevendo na lousa. Aí vocês vão perguntar: é pra apagar o que eu fiz, pra copiar o que você fez na lousa? Não. Esse que eu vou por na lousa, vou escrever num papel pra gente ter depois a resposta de todos vocês; a gente vai tentar montar uma resposta comum, da classe. Então não apaguem nada do que vocês escreveram {...}.

(Professora Marília, transcrição de vídeo)

Os alunos foram descrevendo os passos da resolução, enquanto a professora escrevia na lousa. Alguns solicitaram algumas pequenas mudanças, apenas troca de palavras. Nesse registro, não houve nenhuma menção numérica, apenas a sequência de ações realizadas pelas personagens. Todavia, oralmente, na elaboração do texto coletivo, retomou-se a pergunta sobre a ordem das crianças na volta do bote e os cálculos com os pesos. A classe repetia em coro, já muito dispersa.

Observamos que a professora teve a percepção de que o Painel de Soluções6 6 Segundo explicações dos sujeitos, o painel de soluções consiste em uma plenária, apresentada sempre ao fial do trabalho com os problemas, na qual são discutidas as soluções apresentadas por cada aluno ou grupo envolvido. era desnecessário e refletiu sobre o grau de dificuldade dessa e de uma próxima atividade. Quando ia encerrar, um aluno levantou a mão dizendo que esse problema tinha sido fácil porque já haviam feito um bem mais difícil na aula de computação. A professora novamente deu voz aos alunos:

M: Então, o Paulo falou que na aula de computação vocês fizeram um problema de travessia. Quem disse que foi mais difícil que esse?

A9: Era mais difícil porque tinha um tempo pra fazer.

M: Ah, tinha um tempo... E tinha essa questão dos quilos?

C: Não.

M: Qual era o problema dessa travessia?

{Muitos alunos falavam. Todos queriam contar sobre personagens e sobre o tempo para fazer}

M: Agora eu sei porque vocês acharam este tão fácil, porque já fizeram um mais difícil...

(Professora Marília e alunos, transcrição de vídeo)

Nesse encerramento, notamos mais uma vez a valorização, por essa professora, dos processos de raciocínio e pensamento dos alunos. A docente oferece também uma discussão coletiva sobre o texto final, lançando a ideia de que não devem apagar o seu, mas compará-lo. No final, então, a dialética de institucionalização conseguiu recuperar alguns elementos importantes do trabalho investigativo.

Não podemos deixar de mencionar uma dificuldade na gestão do trabalho didático por essa professora: Brousseau (2008BROUSSEAU, G. Introdução ao Estudo das Situações Didáticas. São Paulo: Ática, 2008.) indica que a estruturação de situações ricas, do ponto de vista da atividade cognitiva dos alunos, depende, em grande parte, da seleção de bons problemas. Tal seleção foi prejudicada aqui, uma vez que aspectos característicos do problema como estruturador de um milieu antagonista não existiram: os alunos já haviam trabalhado com problemas semelhantes, em condições ainda mais adversas.

Dessa forma, pudemos inferir dessa situação que, para este sujeito, faltou clareza quanto ao que ensinar, o que acaba prejudicando a intencionalidade didática essencial ao milieu, tornando-o insuficiente para avivar no aluno os conhecimentos pretendidos. Atentamos para o fato de que a professora, apesar de incentivar nos estudantes, em seu discurso, movimentos de busca pelo conhecimento, acaba caracterizando sua atuação estabelecendo um contrato didático prescritivo: para todos, indica a operação numérica como chave para a resolução do problema.

A prática da professora Ana: uma aula no 4º ano

A professora iniciou a aula comentando sobre a prova que haviam feito recentemente e na qual alguns alunos haviam tirado notas baixas. Enfatizou, com veemência, que muitos alunos não perceberam que todos os problemas colocados como itens da prova que fizeram, e repetiu "TODOS", tinham um modelo similar no caderno. Acrescentou também que todos envolviam mais de uma operação. Depois disso, iniciou a aula, anunciando que os alunos deveriam resolver um problema, cujo enunciado era o seguinte:

Uma fábrica funciona em turnos e, em cada um deles há uma quantidade de funcionários. Na quinta-feira da semana passada, amanheceu e já havia 197 pessoas trabalhando. Às 8h entraram 342 pessoas e saíram 183. Às 14h entraram 255 e saíram 298. Às 20h entraram 184 pessoas e saíram 362. Quantas pessoas ficaram trabalhando na fábrica após as 20h? (Professora Ana, relatório de pesquisa)

Em seguida, começou a andar por entre as fileiras, observando as resoluções7 7 Nestas falas, PA representa as intervenções da professora Ana, enquanto A1 e A2 representam falas de alunos. Da mesma forma, nas próximas falas, a letra A seguida de um número designa um aluno específio. .

A1: Professora, eu lembrei do problema do ônibus!

PA: Lembrou?

A2: Eu também lembrei do problema do ônibus.

PA: Lembrou do ônibus também? Na verdade mudaram os dados mas é bem parecido...

(Professora Ana e alunos, transcrição de vídeo)

Podemos perceber, pelo discurso da professora Ana com os alunos inicialmente, que ela anuncia a existência de um modelo de resolução de problemas que pode ser aplicado em outros do mesmo tipo. Ao ler o problema, alguns alunos imediatamente estabeleceram essa conexão. A respeito da problematização inicial da atividade, como um modelo desafiador, parece que encontramos mais um exercício de aplicação de conteúdo ou estratégias, e não realmente um problema.

Destacamos as ideias de English e Sriraman (2010ENGLISH, L; SRIRAMAN, B. Theories of mathematics education: seeking new frontiers. Amsterdã: Springer, 2010.) que citam esta como uma das abordagens existentes na suposta resolução de problemas: conceitos e procedimentos necessários devem ser ensinados em primeiro lugar para, logo depois, serem aplicados por meio da resolução de problemas que contam uma "história", os quais normalmente não envolvem os alunos numa verdadeira resolução de problemas.

Pelo prisma de Brousseau (2008BROUSSEAU, G. Introdução ao Estudo das Situações Didáticas. São Paulo: Ática, 2008.), não temos a devolução de um problema com o qual os alunos interajam ou sintam-se intrigados. Dessa forma, como já resolveram um problema similar, os alunos devem utilizar-se do repertório de heurísticas e estratégias adquirido anteriormente para esse fim. Neste caso podemos identificar a resolução de problemas como independente dos conceitos matemáticos ensinados e não como uma via para trazer novos conhecimentos. Ainda de acordo com Brousseau (2008BROUSSEAU, G. Introdução ao Estudo das Situações Didáticas. São Paulo: Ática, 2008.), essa prática pode incidir em um dos efeitos do contrato didático, denominado "deslize metacognitivo", ou seja, o professor concebe uma técnica útil para resolver um problema e a considera como o verdadeiro objeto de estudo, perdendo de vista o real conhecimento a se desenvolver, no caso, a habilidade em resolver problemas, que fica comprometida nessa atividade para quem lembrar do "modelo do ônibus".

No questionário essa professora diz que "tudo pode ser um problema em Matemática, depende da forma como é colocado para o resolvedor. Alguns exercícios são desafiadores e mobilizam o aluno, outros são importantes para a sistematização" (Professora Ana, questionário). Assim, acreditamos que, para ela, como para muitos professores, a abordagem sobre resolução de problemas ainda não esteja associada à concepção de utilizá-la como um valoroso meio de desenvolvimento de novos conceitos matemáticos.

Outro ponto que se destaca nesta aula, e que se conjuga com nossa análise das respostas ao questionário, é a falta de um processo investigativo compartilhado. Os alunos leem e resolvem o problema sozinhos e as discussões ocorrem depois. Ao unirmos as concepções explicitadas pela professora e sua prática, podemos ter pistas de que trabalhar com a interação entre os alunos e organizar o milieu de forma a promover e mediar discussões durante o processo de resolução pode ser uma visão a ser desenvolvida com os professores dessa escola. Percebemos que, possivelmente, essa professora sinta-se mais à vontade para trabalhar com o que chama de resolução de problemas na sala de aula, de modo a realizar intervenções individualmente. Outra resposta sua indica esse percurso: "quando há tempo para propor a atividade e observar o aluno resolvendo-a sozinho, descubro como cada um pensa, quais recursos utiliza para resolver as atividades, como faz para resolver o problema" (Professora Ana, questionário).

Enquanto os alunos resolviam o problema, a professora foi passando e fazendo algumas intervenções:

PA: Você está fazendo aqui mas tem um monte de coisa pra cá ... olha só... Você acha que esse caderno vai dar prazer em estudar? Confuso, né, amigo?

{Para outro aluno}

PA: Deixa eu ver como você respondeu. Você leu o problema direitinho?

O aluno afirmou com a cabeça que sim.

PA: Leia de novo.

{Para outro aluno}PA: Não se põe a resposta logo assim... tem que primeiro calcular!

{Observando outro aluno na carteira que havia feito uma operação e depois parou}

PA: Continua fazendo...Sabe qual é o problema? Você fica pensando lá na frente e aí você perde todo o resto... faz devagar, vai de parte em parte. Daí você vai ver que chega ao resultado...

{Continuou andando pelas carteiras vendo os procedimentos de resolução. Parou em um aluno}

PA: Deixa eu ver como você fez? Ah você juntou uma conta na outra é isso?...

A3: Não pode?

PA: Eu é que te pergunto: pode?

A3: Eu fiz assim mas ...não sei..

PA: Você acha que pode as contas juntas mas você não sabe se pode... Ah......

{Para outro aluno]

PA: Precisa apagar esse R (de resposta) e resposta vem só no final do problema... senão você se atrapalha...

(Professora Ana e alunos, transcrição de vídeo)

Nota-se que a professora está atenta aos processos de resolução, porém, as intervenções acontecem na esfera individual. Não identificamos a abertura para as interações entre os estudantes, oportunizando reflexão sobre seus pensamentos e procedimentos. A individualidade impede que outros reflitam, também, a respeito das observações feitas por elementos do grupo, mobilizando conhecimentos e estabelecendo relações. Veremos que esse momento acontece no momento de discussões coletivas promovido no chamado painel de soluções, porém, após os alunos terem (ou não) resolvido o problema, o que pode desmotivá-los, principalmente aqueles que não conseguem chegar a uma resposta. Do ponto de vista da TSD, essa ausência de discussões indica que não ocorreram trânsitos nas dialéticas adidáticas, ou seja, não existiram momentos de ação, formulação e validação compartilhados.

Após alguns minutos, a professora anunciou que iria "pedir a gentileza de alguns alunos colocarem suas resoluções na lousa". Muitos alunos levantaram a mão e pediram para ir, mas ela começou a colocar alguns nomes na lousa e dividir os espaços. Voltou à carteira de alguns alunos para confirmar se seriam mesmo esses alunos que queria chamar. Uns alunos começaram a reclamar que era "injustiça", pois alguns já tinham ido à lousa no problema do ônibus. A professora interviu:

PA: Não é injustiça. O Ricardo sempre participa da aula e você às vezes não me escuta. Talvez eu repita algumas pessoas.{[Escreveu o nome na lousa de quem iria; Julia, Debora, Lucas Raul, Carol}

PA: Eu pedi para alguns alunos que viessem aqui colocar a resolução exatamente do jeito que estava no caderno, tá...? A gente vai dar uma observada como cada colega pensou... tem outros... outros poderiam vir...É que eu quis escolher diferentes resoluções... tá bom? Não quer dizer que os outros estão certos ou errados... [Enquanto os alunos escreviam na lousa a professora foi passando entre carteiras. Falou para um aluno que não terminou]

PA: Falei pra você reler mais de três vezes... {E para a pesquisadora: Não releu nem uma vez} {Para outro aluno}

PA: Vamos Gabriel, você vai esperar e copiar da lousa? Não consigo entender seus números...

{Para um aluno que estava na lousa}

PA: Pode pôr do jeito que você pôs, só a letra A tá?

{Para classe}

PA: Não é porque a gente vai pra lousa que tem que modificar alguma coisa não...

(Professora Ana e alunos, transcrição de vídeo)

Conquanto as falas dos alunos que eventualmente ocorriam ao longo das interações revelassem a incompreensão pelas escolhas da professora, percebemos que ela contemplou propositadamente as resoluções sobre as quais gostaria de promover o debate. Ela explica isso aos alunos e procura demovê-los da ideia de pensar somente no resultado correto em função de pensar, neste momento, nos processos desenvolvidos. Essa ação condiz com sua descrição de quais recursos ou posturas se utiliza quando da resolução de problemas: "procuro valorizar qualquer empenho e não coloco o sinal de X (errado) nos exercícios; peço aos alunos que o revejam e verifiquem onde está o 'erro'" (Professora Ana, questionário).

Nas falas subsequentes, encontramos também marcas de seu discurso na prática, configurando, novamente a falta da interação nas dialéticas de ação e formulação e a concepção da professora de que a dificuldade dos alunos na resolução de problemas seria vinculada aos processos de leitura. Dessa forma, existe um processo de orientação, porém sem resultado, pois não acontece efetivamente do ponto de vista da mediação: se o aluno não compreende, na leitura individual, um texto totalmente compatível com as competências leitoras da faixa etária, provavelmente ler novamente, ou reler três vezes não trará melhores resultados. Todavia, esse é um dos mecanismos anunciados pela professora em seu discurso: "{...} e, o mais importante, é necessário que eles leiam as atividades e consigam entender o que é pedido em cada uma delas. Assim, quando um aluno diz logo que não entendeu, eu digo a ele para ler novamente até que perceba o que realmente não entendeu e o que entendeu" (Professora Ana, questionário).

Enquanto os alunos que foram à lousa colocavam suas resoluções, a professora fazia algumas intervenções na organização, no traçado dos números, sempre enfatizando os comentários com toda a turma.

Os alunos começaram a comparar seus resultados. Alguns diziam: "- O meu está igual ao da...". Um deles disse: "- Achei o meu erro...". Ocorre um burburinho, alguns levantaram para ver melhor a lousa ou para ver o de algum colega que comentou estar igual ao de algum da lousa.

PA: Quem já olhou, senta... que a gente vai discutir um pouquinho...A gente vai conversar agora porque eu tô vendo que cada resolução até agora deu uma resposta diferente...

A4: Menos o do Raul, da Malu e do Lucas...

PA: A gente vai verificar porque o seu e o da Malu estão iguais ao do Lucas e o do Guga não... deixa só os colegas terminarem e a gente já vai conversar.

A4: É. {Observando seu caderno e a resolução na lousa atentamente}; o meu está igual ao da Carol {que estava feito na lousa}

PA: Quarto ano... vamos dar uma olhada nas resoluções pra gente conversar... Dá uma olhada no que os amigos fizeram e nos resultados encontrados... A gente já fala...

(Professora Ana e alunos, transcrição de vídeo)

À luz desse trecho, podemos perceber o quão estimulante poderia ter sido uma discussão feita em pequenos grupos durante a resolução do problema a partir dos movimentos dialéticos de ação, formulação e validação. Alunos que estavam em silêncio durante a aula, aqueles que já tinham terminado há algum tempo ou aqueles que não tinham conseguido resolver, de repente, interessaram-se por ver os procedimentos dos colegas, compará-los e discuti-los. As propostas expostas na lousa estimularam os estudantes a olhar novamente as suas respostas e as dos colegas. Mais interessante do que resultados corretos ou o emprego do procedimento utilizado no problema "do ônibus", seria a discussão, o desenvolvimento das argumentações, enfim, de acordo com Brousseau (2008BROUSSEAU, G. Introdução ao Estudo das Situações Didáticas. São Paulo: Ática, 2008.), toda a organização do milieu.

Barth (1996BARTH, M.B. O saber em construção: para uma pedagogia da compreensão. Lisboa: Instituto Piaget, 1996.) afirma que a construção do saber é feita pelo indivíduo, no entanto, decorre também de interações sociais e em contextos exteriores à própria pessoa, influenciadas por aspectos inerentes aos indivíduos e por condições políticas, sociais e culturais. Essa premissa nos estimula a valorizar a comunicação e a negociação em sala de aula. A mediação do saber demanda considerar a aprendizagem nas suas dimensões cognitiva, afetiva e social. É preciso que estejamos atentos tanto para a quantidade como para a qualidade das interações aluno-aluno, aluno-professor e professor-professor, cabendo a este último o papel decisivo na direção e na natureza do discurso que se deve instaurar a fim de promover um ambiente motivador, desafiador e de questionamento constante em que não existam condicionamentos de espaço ou de tempo.

A seguir traremos grande parte da discussão desenvolvida durante o Painel de Soluções, para que se compreendam melhor a lógica, o desencadeamento e o significado das ações contextualmente. Em cada fragmento expressivo de acordo com nossa temática, incluiremos algumas considerações.

PA: Pessoal: Nós temos aí cinco resoluções: Eu "peguei" aqui o Raul comentando que um está muito igual ao outro mas tá diferente...Uma única diferença... Você pode falar mais alto? {Ele repetiu, mas foi baixo ainda. A professora repetiu}

PA: Ah, o Lucas fez 6 contas e você fez 3. Mas o resultado foi igual? {Ele e outros responderam}

C: Foi.

PA: Hum...Por que será?

A5: A resolução.

PA: Por que será?

A5: Por causa que... por que a resolução foi diferente...o raciocínio...

PA: A resolução foi diferente mas porque será que o resultado foi igual?{Alguém disse "Eu sei!" Outros falavam junto} Espera aí que eu não estou entendendo o que vocês estão falando... Olhando na do Lucas... ele fez 3 adições e 3 subtrações...Olhando na sua... tem 2 adições e uma subtração. {Um aluno levantou a mão, a professora disse:} Espera... segura o que você está pensando um pouquinho...Giovana:

A6: [Giovana]: Ele somou todos os que iam entrar, e também fez adição dos que saíram e pegou os resultados dos que saíram menos o resultado dos que entraram...

A7: O caminho foi diferente!

PA: Sim os, caminhos foram diferentes...Você disse que o Raul somou todos que entraram na fábrica, somou todos que saíram pegou os dois resultados e subtraiu e descobriu o quê?

Alunos (em coro) 235...

PA: Que é o que?

C: A resposta

PA: A resposta que é o que? Os trabalhadores...que...

C: ...Que ficaram na fábrica depois das 20 horas...

PA: Tá. Vocês entenderam o que a Giovana falou? Foi mais ou menos o que o Raul falou. Ele diminuiu as contas... mas ele fez a mesma coisa que o Lucas.

A8: O caminho foi diferente.

PA: O caminho foi diferente? Explica um pouco melhor essa ideia.

A: O Raul pensou de um jeito diferente mas os dois jeitos podem estar certos. {A professora repetiu a frase do aluno}

PA: Será que estão certos? Vamos verificar? Fala Fábio... Espera um pouquinho {para a classe que falava junto} ...senão eu não escuto o colega. Fala alto. {O aluno falou em tom muito baixo. Parece apenas ter retomado a fala anterior porque ela apenas repetiu: "sim uniu duas operações."} O que o Lucas fez? Ele fez passo a passo... de cada informação que o problema apresentou. Então o problema dizia lá... espera que eu não esqueci os outros não espera aí...Vamos lá...

(Professora Ana e alunos, transcrição de vídeo)

Nessa parte da discussão, bem como em outras, podemos perceber que a professora procura administrar as respostas redirecionando-as como novas perguntas aos alunos, possibilitando aos alunos a verbalização sobre concordâncias ou discordâncias. Os comentários dos alunos, de um modo geral, são reaproveitados e utilizados para reencaminhar a discussão, e o uso de diferentes caminhos ou estratégias é enfatizado em seu discurso. São oferecidos momentos para que outras sugestões sejam apresentadas, ou hipóteses levantadas; porém, o tempo dado para isso é curto e insuficiente para proporcionar uma reflexão: essa atitude denota certa ansiedade em esclarecer qual é a resposta certa. Do ponto de vista do contrato didático, essa necessidade de que a resposta correta apareça logo indica a ocorrência de um efeito ligado ao controle da incerteza, ou seja, o chamado efeito Topaze, à medida que se tenta garantir o acerto da resposta independentemente do engajamento do estudante na situação.

A professora releu o problema e foi identificando os dados nas operações feitas na lousa.

PA: Se comparar mais uma com o Raul...pelo que eu observei aqui da Carol, tem alguma coisa parecida...pelo menos a quantidade de contas é a mesma... Quem pode comentar um pouquinho: semelhanças e diferenças da resolução?

PA: John você falou em caminhos diferentes...São diferentes os caminhos da Carol e do Lucas?

A7 Mais ou menos.

PA: Mais ou menos?

A7: Ah... Pera aí...

PA: Pera aí que ele está pensando e calculando... Fala Fábio, o que você queria falar... É a mesma coisa? Mas agora você me explica: Se é a mesma coisa porque é que no do Lucas eu tenho 135 e no da Carol deu 235?

A8: Deu 100 a mais.

PA: Espera... Deu 100 a mais. Paula: [A aluna falou baixo, a professora repetiu] A Carol esqueceu de cortar o negocinho e passar o número pro lado...Matematicamente eu não tô entendendo...

A10: Eu sei!

PA: Quem pode ajudar a Paula na ideia que ela tá trazendo... Mariana: [A aluna falou baixo a professora repetiu] Dar para o outro quando subtrai? Qual a palavra certa para isso? Giovana:

A11: Destrocar ..

PA: Destrocar! Onde? Qual conta?

(Professora Ana e alunos, transcrição de vídeo)

Observamos nesse trecho que o discurso da professora busca propiciar e enfatizar a utilização de termos e da linguagem matemática corretos, apostando em sua utilização e na correção dos alunos. Procura estabelecer a relação entre a linguagem informal do mundo da criança e a terminologia formal da matemática. Para Santos (2005SANTOS, V. M. Linguagem e comunicação na aula de Matemática. In: NACARATO, A. M.; LOPES, C. E. (Orgs.). Escritas e Leituras na Educação Matemática. Belo Horizonte. Autêntica, 2005., p. 118), "a ação e os discursos praticados pelo professor, quando ensina Matemática, decorrem do seu conhecimento e o modo de ver a Matemática, de como enxerga e escuta o aluno". Para o autor há aspectos para os quais o professor deve dar atenção, como a manifestação de diferentes formas de comunicação e os diversos significados de que se revestem as noções matemáticas na sala de aula. Por exemplo, especial atenção deve ser dada às dificuldades observadas entre alunos do fundamental decorrentes de conflitos entre linguagem corrente e linguagem matemática, ou do significado que os alunos podem intuitivamente atribuir a determinado conceito.

A12: Eu..456... mais...

PA: Não. qual? Guilherme? 539 menos 183? Vamos ver se realmente a Carol se confundiu aqui? 9 menos 3, seis. Três menos oito... não dá O que eu preciso fazer? A Carol, na verdade... ela não cortou...eu não entendi o que ela fez aqui.Eu não entendi o seu número aqui se é 6. Se é 2 o que que é? Você esqueceu de destrocar mas o que você fez aqui? A gente já descobriu onde tá o erro mas a gente precisa entender o que que você pensou. Lembra o que eu disse...

A13: Professora!

PA: Escuta. Lembra o que eu disse? Que mesmo errando, a gente tem um pensamento matemático grande? Lembra? Eu preciso saber o que você pensou pra chegar aqui no 4. Você fez 5 menos 1 mas que números são esses aqui ó? Que eu não tô entendendo. {A aluna ficou olhando para sua resolução, alguns alunos querendo falar} Deixa ver se ela lembra.

PA: Organizar pra não perder qual cálculo estava fazendo? {repetiu a fala da aluna]. João você consegue explicar... porque eu me perdi... {João foi à lousa e explicou} Ah agora entendi... Entendi... Primeira conta, segunda conta...Tá vendo como é importante.... A professora não entendeu... eu pensei que fazia parte da conta que você fez... Ah... então não tem erro aqui. Não tem erro aqui neste número que eu estava olhando e não estava entendendo... Ela descobriu... Ela esqueceu de destrocar... (errou na subtração) Descobrimos onde está a falha?

C: Sim

PA: Concorda Carol? E aí mudou porque ficou uma centena a mais nesta conta...O resultado ficou com uma centena a mais. Interessante. Descobrimos. Então a Carol pensou como o Lucas mas se confundiu na execução das contas. E a Débora? Como é que a Debora fez?{Alguns quiseram falar mas a professora pediu}Espera ela falar. Débora o que você somou aqui?

A14: (Debora) Todos que estavam entrando. {A professora foi conferir, lendo o problema}

PA: Olhando no problema eu tinha: 197 na fábrica, 342 que entraram...Duzen...{deu uma parada; alguns alunos fizeram Aháaaaaa...} Todos que entraram, você diz?

A14 : Não, que estavam na fábrica {a professora repetiu a fala que foi baixa}: Ah os que estavam na fábrica...Os que estavam... e aqui os que saíram...Olha só um pouquinho o problema. Vou ler pra você uma frase: pera aí que eu vou ler uma frase pra ela: É... nós sabemos que tinha 197... às 8 horas entraram 342 pessoas e saíram 183...Você colocou que essas 183 {era mais, gritou um aluno} estavam na fábrica, elas estavam?

C: Nãooo

PA: Deixa a Debora falar. {Mas já foi emendando} Olha o que você pensou. Elas estavam mas você não registrou que elas saíram. Porque para sair da fábrica, onde elas tinham que estar?

C: Na saída... (risos.). Na fábrica! (risos)

PA: O pensamento da Debora foi bacana... ela falou o que ela pensou e tá certo... se a pessoa saiu da fábrica é porque ela estava dentro da fábrica...Olha o pensamento aí... esse pensamento não está errado. Pra sair ela precisava estar dentro. Só que... eu não posso contar que ela FICOU NA FÁBRICA; usar o verbo estavam está certo; mas na verdade a DIFERENÇA para o Raul é que ele somou quem entrou na fábrica e realmente ficou depois das 8. Só quem entrou realmente. Os 183 saíram. Tanto que você Debora, colocou o 183 aqui... e eles realmente saíram só que eles saíram mas eles continuaram lá. Percebeu onde dá a diferença? Que mais... Oh 298 que saiu também você colocou como entrou na fábrica. Mas você não pensou FICOU. Olha onde tá o certo no pensamento dela... Ela pensou ESTAVAM NA FÁBRICA. E estavam na fábrica?

PA: Simmmm, porque para sair da fábrica, precisa estar dentro. Perceberam? O pensamento aqui ó tá diferente. Ela não tinha que pensar em ESTAVAM tinha que ter pensado em quem FICOU. Percebeu a falha? Ela pensou certo, mas usou esse pensamento diferente um pouquinho...

(Professora Ana e alunos, transcrição de áudio)

Na sequência que se desenrolou, gostaríamos de salientar dois aspectos que se relacionam com nosso estudo. Um deles, já assegurado pela professora em suas respostas e bastante presente em sua prática, é a valorização do pensamento do aluno. Há, em sua aula, perguntas que fazem o aluno pensar sobre o motivo do erro, porém, observamos que há uma preocupação constante em esclarecer os erros e ressaltar o procedimento certo: em função disso, como já dissemos, o tempo para o aluno pensar no motivo do erro, para reelaborar saberes e realizar a resolução de forma correta, apropriando-se do conhecimento e do objeto de trabalho é, muitas vezes, insuficiente. Em muitas passagens da discussão ficou evidente a antecipação da professora às respostas de vários alunos, não dando voz a estes em certas ocasiões. A fala organizada da plenária fica na mão da professora o tempo todo, assim como as conclusões. Os alunos poderiam falar mais.

Ao encontro dessas duas observações - o empenho em valorizar o pensamento do aluno e a preocupação com a exposição de modelos corretos - pudemos identificar, com base em nosso estudo teórico, a incidência de um efeito do contrato didático denominado por Brousseau (2008BROUSSEAU, G. Introdução ao Estudo das Situações Didáticas. São Paulo: Ática, 2008.) de "Efeito Jourdain ou mal-entendido fundamental". Esse efeito caracteriza-se quando um comportamento comum do aluno é visto pelo professor como uma manifestação de saber. Alguns dos erros que surgiram na discussão, como o da interpretação do texto do problema, por exemplo, com relação a pessoas que ficaram ou estavam na fábrica foi valorizado como pensamento matemático, quando na verdade isso não ocorreu. O erro na destroca na subtração também foi minimizado pela professora: "- Então, não tem erro aqui".

A forma de colocar a tarefa e de relacioná-la com modelos preexistentes, além de descaracterizar a atividade em relação às definições de problema adotadas neste estudo, prejudica a possibilidade indicada por Brousseau (2008BROUSSEAU, G. Introdução ao Estudo das Situações Didáticas. São Paulo: Ática, 2008.) ao mencionar que, no âmbito de uma situação didática, deve o sujeito aprender por meio de retroações do milieu antagonista. Isso não aconteceu: tratava-se de um milieu aliado, pois havia referências seguras e estabelecidas nas condições do problema.

Além disso, reiteramos o fato de percebermos, em alguns dos sujeitos, uma postura resistente ao erro e ao fracasso dos alunos, o que, muitas vezes, parece desregular suas mediações nas discussões.

Considerações finais

A observação (e respectiva análise) das duas aulas aqui apresentadas permite indicar uma síntese, com destaque para os principais aspectos que foram alvo de nossa investigação. No geral, as ideias que emergiram da prática, principalmente, e da fala dos sujeitos, subsidiariamente, destacam que as professoras reconhecem a importância da resolução de problemas como método de ensino. Consideram-na importante no processo educativo, como maneira de incentivar os alunos na busca e construção de novos conhecimentos além de propiciar o desenvolvimento de ferramentas para um trabalho com autonomia, permitindo um avanço nas competências que favorecem processos de investigação, como argumentar, elaborar e confrontar hipóteses.

Constatamos que a maioria dos sujeitos destacou, em alguma de suas respostas, a importância de problematizar e propor desafios nas aulas de matemática. Contudo, em seu discurso, todas as professoras localizam em suas aulas momentos específicos para a realização desse trabalho, previstos no planejamento. Nessas aulas, pudemos perceber que se preocupam em ensinar os alunos a resolverem problemas, tendo como foco o uso de heurísticas, estratégias e outras ferramentas. Dessa forma, percebemos que, de maneira geral, entendem como dificuldade a não aplicabilidade imediata dos conteúdos aprendidos nas resoluções, o que nos leva a pensar que acreditam na utilização da resolução de problemas depois da formalização dos conceitos, como abordagem instituída implicitamente em sua prática, e não para introdução dos mesmos. Portanto, nesse aspecto há um descompasso entre seu discurso e a prática na sala de aula. Andrade (1998ANDRADE, S. Ensino-aprendizagem de matemática via resolução, exploração, codificação e descodificação de problemas e a multicontextualidade da sala de aula. 298 f. Dissertação de Mestrado (Educação Matemática) - IGCE, UNESP, Rio Claro - SP, 1998.) e Onuchic (1999ONUCHIC, L. R. Ensino-Aprendizagem de matemática através da resolução de problemas. In: BICUDO, M. A. V. (Org). Pesquisa em Educação Matemática. São Paulo: UNESP, p. 199-218, 1999.) enfatizam que, de modo geral, o professor, ao atuar no ensino de matemática, não tem clareza da distinção entre resolução de problemas tratada como metodologia de ensino ou como aplicação de algoritmos e procedimentos.

Outro ponto em comum que identificamos, tanto na fala como na prática dessas professoras, é que atribuem as dificuldades apresentadas pelos estudantes às questões de leitura e entendimento, e não os compreendem como parte do processo investigativo que necessita da mediação do professor, muitas vezes, para estimular ou desbloquear possíveis entraves. Com isso, notamos, ainda, nas observações de aula, um repertório restrito de perguntas no momento em que o professor coloca o aluno em uma situação adidática e este se depara com algum bloqueio no desenvolvimento de seu raciocínio. Tanto em seu discurso, como na prática, a atitude em que investem limita-se à solicitação de releitura.

Uma perspectiva que emergiu nas respostas, e que depois pudemos verificar também nas aulas, é a de que a interação predominante é a que ocorre entre o professor e o aluno; o processo investigativo é solitário e o professor pouco fala sobre sua atuação em mediar nessa instância; todos citaram o painel de soluções, ou plenária, como espaço para que os alunos argumentassem, formulassem hipóteses e expusessem raciocínios, identificando-o, obviamente sem nomeá-lo nesses termos, como a dialética da institucionalização (BROUSSEAU, 2008BROUSSEAU, G. Introdução ao Estudo das Situações Didáticas. São Paulo: Ática, 2008.). Observamos, tanto no discurso como na prática, que há uma preocupação em garantir as aprendizagens nessa instância, e a reestruturação do conhecimento fica exclusivamente na mão do professor. Outra consideração que gostaríamos de tecer é a de que, conquanto as respostas a uma das questões fundamentais de nosso questionário (Para você, o que é um problema?) trouxessem uma gama bastante diversificada de definições, a maioria delas apresentou o significado de desafio, de algo de que inicialmente se desconhece a resposta, na prática, o que os professores trazem para os alunos, na maioria das vezes, são exercícios de aplicação.

As observações das aulas, de um modo geral, trouxeram um panorama sobre a prática da resolução de problemas nos anos iniciais dessa instituição e fizeram emergir alguns aspectos que condizem com nossos focos de observação na problemática investigada, os quais gostaríamos de salientar, por agregarem sentido às questões geradoras desse estudo. Deste modo, destacamos nas aulas dos sujeitos desta pesquisa:

  • A apresentação de problemas aos alunos e não a devolução dos mesmos;

  • A escolha de exercícios pelo professor, no lugar de problemas;

  • Os problemas propostos foram resolvidos por operações ou algoritmos;

  • A ocorrência, nas aulas observadas, de um processo de resolução solitária, diferente da proposta de Brousseu (2008), que indica a importância das interações investigativas. Apesar de estarem organizados em duplas, muitos alunos resolveram o problema sem trocar informações com os parceiros; em alguns casos, o processo de realização foi individual e silencioso;

  • O uso de painéis de soluções no final do processo de resolução;

  • Postura do professor sempre pronta a valorizar o pensamento do aluno, mesmo quando tal pensamento contém erros;

  • Ausência do papel mediador do professor durante o processo investigativo; seu protagonismo nessa situação ocorre na plenária final;

  • Correção coletiva e exposição de resultados em alguns momentos no painel de soluções; há um direcionamento na discussão, por parte do professor, no sentido de encontrar e corrigir os erros. A expectativa pelas respostas certas é notória e o foco em tratar o erro fica mais em evidência na proposta do que a priorização de discussões e confrontações pela turma;

  • Elementos reveladores da prevalência de um contrato didático de caráter prescritivo, ou seja, baseado em instruções procedimentais explícitas ou implícitas em relação às tarefas e a ocorrência de alguns de seus efeitos;

  • No fechamento da aula, intuitivamente, as posturas metodológicas das professoras aproximam-se do modelo da dialética de institucionalização, porém, nem sempre ocorre a construção de novos significados.

O trabalho também destacou algumas finalidades, que acabaram por constituir-se no decurso da investigação pela coexistência de aspectos relacionados com a temática e por serem inerentes às situações observadas:

  • Observar e analisar as eventuais situações didáticas construídas pelos sujeitos (os professores polivalentes dos anos iniciais) nas quais são identificadas as interações estabelecidas entre o professor, o aluno e o saber matemático na perspectiva da resolução de problemas;

  • Verificar se os professores conseguem reconhecer, em sua prática a distinção entre problemas e exercícios e como ocorrem as interações com os alunos em cada caso.

No que diz respeito às concepções e crenças dos professores em relação à resolução de problemas, há uma amplitude de ideias e variáveis que se constituíram historicamente. Nos dados analisados neste artigo, pudemos observar que as professoras compreendem o conceito de problema relacionado a situações de desafio. Em seu discurso, mencionam um trabalho nas aulas de matemática permeado pela resolução de problemas, mas, na prática, a maioria entende que há uma aula, dentro do currículo, específica para realizar este trabalho, o que revela, ainda, dubiedade quanto a considerá-lo metodologia ou conteúdo a ser trabalhado.

Pautando nossas observações a partir da teoria das situações didáticas, pudemos concluir também que os professores, apesar de entenderem problemas como desafios, encontram dificuldades na escolha dos mesmos, selecionando, na maioria das vezes, exercícios de aplicação de conteúdos e conceitos, o que dificulta o procedimento de devolução, como definido por Brousseau (2008BROUSSEAU, G. Introdução ao Estudo das Situações Didáticas. São Paulo: Ática, 2008.), à medida que procedimentos dessa natureza (exercícios) dificilmente se prestam ao trabalho investigativo autônomo. Sobre isso, aliás, notamos que os professores desta investigação ainda não percebem nitidamente seu papel mediador no processo investigativo; por consequência, interações e parcerias quase não ocorrem, o que leva os alunos, na maioria das vezes, a trabalharem sozinhos; as intervenções vêm somente no momento da validação, no entanto, com certa pressa em institucionalizar os conhecimentos: as discussões são privilegiadas no momento do Painel de Soluções e o erro é mais corrigido do que explorado.

Os sujeitos desta pesquisa tendem a valorizar o pensamento dos estudantes, porém é notável a dimensão paradoxal, vivenciada por eles, com relação ao contrato didático (RICARDO; SLONGO; PIETROCOLA, 2003RICARDO, E.; SLONGO, I.; PIETROCOLA, M. A perturbação do contrato didático e o gerenciamento dos paradoxos. Revista Investigações em Ensino de Ciências, Porto Alegre, v. 8, n. 2, ago. 2003. Disponível em:<http://www.if.ufrgs.br/public/ensino/vol8/n2/v8_n2_a4.html>. Acesso em: 10/12/2014.
http://www.if.ufrgs.br/public/ensino/vol...
). Esse paradoxo permeia suas mediações como gerenciadores do contrato. Assim, o foco das mediações, que permanece na correção dos enganos, no desimpedimento dos entraves, no esclarecimento dos erros e na fala organizada, frequentemente se encerra na figura do professor. Nessa instância, muitas vezes pudemos evidenciar que o professor, sem perceber, se apropria da fala do aluno, explicitando seus raciocínios, entendimentos e até mesmo suas dúvidas.

Isso posto, encontramos também, nas interações observadas nas aulas, indícios que apontam para ocorrência dos efeitos do contrato didático. Foram descritos episódios dos efeitos Topaze, Jourdain e do deslize metacognitivo, além das crenças relativas ao contrato didático, descritas por Silva (2010SILVA, B. A. O contrato didático. In: MACHADO, S. D. A.(Org.). Educação Matemática: uma (nova) introdução. São Paulo: EDUC, 2010.), em várias situações da prática, devidamente sinalizadas nas análises deste estudo.

Enfim, podemos concluir que os professores polivalentes, sujeitos dessa pesquisa, entendem a relevância de seu papel problematizador nas aulas de matemática, contudo, ainda é difícil para eles organizar um milieu antagonista, que provoque desequilíbrios e adaptações nos estudantes. Os alunos, por sua vez, acabaram se acostumando a deixar o processo investigativo ser conduzido pelo professor no final, desistindo de insistir diante dos entraves que aparecem no caminho.

Mediante a natureza de todas essas reflexões e a partir da literatura consultada sobre a prática da resolução de problemas, concepções dos professores a esse respeito e demais assuntos abordados neste trabalho, compreendemos a importância da utilização do espaço da sala de aula como ambiente voltado à investigação dos problemas relacionados ao ensino e aprendizagem na matemática. Neste sentido, julgamos importante, também, em função do estudo aqui realizado, que os professores que ensinam matemática dominem conceitos e práticas relativas à resolução de problemas, de forma a promover, entre seus alunos, processos de investigação que sejam efetivos como veículos da construção do conhecimento.

  • ALMOULOUD, S. A. Fundamentos da didática da matemática. Curitiba: UFPR, 2010.
  • ANDRADE, S. Ensino-aprendizagem de matemática via resolução, exploração, codificação e descodificação de problemas e a multicontextualidade da sala de aula. 298 f. Dissertação de Mestrado (Educação Matemática) - IGCE, UNESP, Rio Claro - SP, 1998.
  • BARTH, M.B. O saber em construção: para uma pedagogia da compreensão. Lisboa: Instituto Piaget, 1996.
  • BROUSSEAU, G. Introdução ao Estudo das Situações Didáticas. São Paulo: Ática, 2008.
  • BROUSSEAU, G. Le contrat didactique et le concept de milieu: dévolution. Recherches em Didactique des Mathématiques, Grenoble, v. 9, n. 3, p. 309-336, 1990.
  • BROUSSEAU, G. Fondements et méthodes de la didactique des mathématiques. Recherches em Didactique des Mathématiques, Grenoble, v. 7, n. 2, p. 33-116, 1986.
  • CHARNAY, R. Aprendendo (com) a resolução de problemas. In: PARRA, C.; SAIZ, I (Org.). Didática da matemática: reflexões psicopedagógicas. Porto Alegre: Artmed, 1996.
  • ECHEVERRÍA, M. P; POZO, J. I. Aprender a resolver problemas e resolver problemas para aprender. In: POZO, J. I. (Org.) A solução de problemas. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998.
  • ENGLISH, L; SRIRAMAN, B. Theories of mathematics education: seeking new frontiers. Amsterdã: Springer, 2010.
  • MASTROIANNI, M. T. M. R. A Leitura de Problemas Matemáticos: as dificuldades identificadas por alunos do quinto ano do ensino fundamental na interpretação desse tipo de texto. 116 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Especialização em Educação Matemática) - Faculdade de Ciências Exatas e Tecnológicas, Universidade de Franca, Franca- SP, 2010.
  • ONUCHIC, L. R. Ensino-Aprendizagem de matemática através da resolução de problemas. In: BICUDO, M. A. V. (Org). Pesquisa em Educação Matemática. São Paulo: UNESP, p. 199-218, 1999.
  • PERRIN-GLORIAN, M. J. Analyse d'un problème de fonctions en termes de milieu: structuration du milieu pour le maître et pour l'élève. Actes de l'université d'été de la Rochelle, Clermont-Ferrand, IREM de Clermont-Ferrand, 1998.
  • RICARDO, E.; SLONGO, I.; PIETROCOLA, M. A perturbação do contrato didático e o gerenciamento dos paradoxos. Revista Investigações em Ensino de Ciências, Porto Alegre, v. 8, n. 2, ago. 2003. Disponível em:<http://www.if.ufrgs.br/public/ensino/vol8/n2/v8_n2_a4.html>. Acesso em: 10/12/2014.
    » http://www.if.ufrgs.br/public/ensino/vol8/n2/v8_n2_a4.html
  • SANTOS, V. M. Linguagem e comunicação na aula de Matemática. In: NACARATO, A. M.; LOPES, C. E. (Orgs.). Escritas e Leituras na Educação Matemática. Belo Horizonte. Autêntica, 2005.
  • SILVA, B. A. O contrato didático. In: MACHADO, S. D. A.(Org.). Educação Matemática: uma (nova) introdução. São Paulo: EDUC, 2010.
  • STANCANELLI, R. Conhecendo diferentes tipos de problema. In: SMOLE, K.S.; DINIZ, M.I. Ler, escrever e resolver problemas: habilidades básicas para aprender matemática. Porto Alegre: Artmed, 2001.
  • 1
    Esse tipo de problema é assim denominado pelo grupo que faz assessoria externa aos professores. De forma geral, são problemas envolvendo espaços de estados, com operadores, estados iniciais e fiais e operações que levam (ou não) aos estados fiais, por meio de heurísticas. De forma mais simples, são problemas que simulam jogos, nos quais os personagens devem atravessar um rio, uma ponte ou um caminho qualquer com restrições. Tais restrições podem limitar o número ou tipo de personagens que podem atravessar juntos, o tempo de travessia, um limite para os movimentos, etc. São desse tipo problemas conhecidos e típicos como "Missionários e Canibais", "Lobo, Ovelha e Verdura", "O problema da lanterna", entre outros. Via de regra, a resolução pede dos jogadores a mobilização de recursos lógicos e esquemas.
  • 2
    Nestas falas, como nas demais, a letra M designa a fala da professora Marília, enquanto a letra C se refere à fala da classe (resposta coletiva dos alunos).
  • 3
    Optamos, nesta transcrição e nas demais, pela manutenção das falas originais, sem corrigir os eventuais erros gramaticais, registrando integralmente o que foi dito.
  • 4
    Nesta sequência de falas, a letra M representa as falas da professora Marília, enquanto as falas dos alunos envolvidos são designadas por A1 até A8.
  • 5
    O nome dado a este efeito provém de uma peça de teatro, homônima, em que há uma cena que se passa em um colégio interno. O protagonista, Topaze, faz um ditado a um aluno que demonstra muita difiuldade na execução da tarefa. Como não consegue aceitar um excesso de erros grosseiros, mas também não pode dizer abertamente ao aluno quais são esses erros e a ortografi correta, começa a insinuar-lhe respostas, sutilmente, sob a forma de códigos didáticos cada vez mais transparentes.
  • 6
    Segundo explicações dos sujeitos, o painel de soluções consiste em uma plenária, apresentada sempre ao fial do trabalho com os problemas, na qual são discutidas as soluções apresentadas por cada aluno ou grupo envolvido.
  • 7
    Nestas falas, PA representa as intervenções da professora Ana, enquanto A1 e A2 representam falas de alunos. Da mesma forma, nas próximas falas, a letra A seguida de um número designa um aluno específio.
  • *
    Gerson Pastre de Oliveira - Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo (USP). Professor do Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação Matemática da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP).E-mail: gpastre@pucsp.br.
  • **
    Maria Teresa M. R. Mastroianni - Mestre em Educação Matemática pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Assessora Pedagógica (Matemática - Educação Infantil e Fundamental I) e Professora do Colégio Albert Sabin (SP). E-mail: teresa.mastroianni@ig.com.br.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Ago 2015

Histórico

  • Recebido
    20 Jan 2015
  • Aceito
    15 Jun 2015
Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais Av. Antonio Carlos, 6627, CEP 31270-901 Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil, Tel.: (55 31) 3409-5338, Fax: (55 31) 3409-5337 - Belo Horizonte - MG - Brazil
E-mail: ensaio@fae.ufmg.br