Acessibilidade / Reportar erro

Ética da psicanálise e modalidades de gozo: considerações sobre o Seminário 7 e o Seminário 20 de Jacques Lacan

Ethics of psychoanalysis and modalities of enjoyment: considerations about The Seminar VII and about The Seminar XX of Jacques Lacan

Resumos

Este artigo busca apontar um deslocamento na concepção lacaniana sobre a ética, a partir de uma comparação entre as perspectivas do Seminário, livro 7 - a ética da psicanálise e do Seminário, livro 20 - mais, ainda. Enquanto a primeira perspectiva privilegiaria a organização de uma lei simbólica, cuja ultrapassagem culminaria na concepção do gozo impossível de das Ding, a última destacaria o gozo do corpo como não-todo organizado pelo simbólico. Passa-se, assim, de uma ética da transgressão, que visa a um ponto além do princípio do prazer e do serviço dos bens, para uma ética onde esse além do princípio do prazer já invade o campo de saída. A lógica da contingência é o modo como Lacan pretende formalizar uma maneira de fazer com que a necessidade simbólica e a impossibilidade do desejo inscrevam-se nos registros do contingente e do possível.

psicanálise lacaniana; ética; fórmulas da sexuação; modalidades de gozo


This article intends to demonstrate a displacement in Lacan's conception on the Ethics, using a comparison between the perspectives of The Seminar, book 7: the ethics of psychoanalysis and of The Seminar, book 20: on feminine sexuality, the limits of love and knowledge: encore. While the first perspective privileges the organization of a symbolic Law - and this one, if trespassed, culminates in the approach of an impossible jouissance (enjoyment) to das Ding - the latter emphasizes the jouissance of the body as something that is not-all organized by the symbolic. Therefore, there is a movement from an ethics of breach, which aims at a point beyond the pleasure principle and of the service of goods, to an ethic where the addition of the pleasure principle invades the field since the beginning. The logic of contingency is how Lacan intends to formalize a manner of making the symbolic necessity and the impossibility of the desire to register in the records of the contingent and the possible.

lacanian psychoanalysis; formulas of sexuation; ethics; modalities of jouissance


ARTIGOS

Ética da psicanálise e modalidades de gozo: considerações sobre o Seminário 7 e o Seminário 20 de Jacques Lacan

Ethics of psychoanalysis and modalities of enjoyment: considerations about The Seminar VII and about The Seminar XX of Jacques Lacan

Fábio Santos Bispo; Luis Flávio Silva Couto

Universidade Federal de Minas Gerais

RESUMO

Este artigo busca apontar um deslocamento na concepção lacaniana sobre a ética, a partir de uma comparação entre as perspectivas do Seminário, livro 7 - a ética da psicanálise e do Seminário, livro 20 - mais, ainda. Enquanto a primeira perspectiva privilegiaria a organização de uma lei simbólica, cuja ultrapassagem culminaria na concepção do gozo impossível de das Ding, a última destacaria o gozo do corpo como não-todo organizado pelo simbólico. Passa-se, assim, de uma ética da transgressão, que visa a um ponto além do princípio do prazer e do serviço dos bens, para uma ética onde esse além do princípio do prazer já invade o campo de saída. A lógica da contingência é o modo como Lacan pretende formalizar uma maneira de fazer com que a necessidade simbólica e a impossibilidade do desejo inscrevam-se nos registros do contingente e do possível.

Palavras-chave: psicanálise lacaniana; ética; fórmulas da sexuação; modalidades de gozo.

ABSTRACT

This article intends to demonstrate a displacement in Lacan's conception on the Ethics, using a comparison between the perspectives of The Seminar, book 7: the ethics of psychoanalysis and of The Seminar, book 20: on feminine sexuality, the limits of love and knowledge: encore. While the first perspective privileges the organization of a symbolic Law - and this one, if trespassed, culminates in the approach of an impossible jouissance (enjoyment) to das Ding - the latter emphasizes the jouissance of the body as something that is not-all organized by the symbolic. Therefore, there is a movement from an ethics of breach, which aims at a point beyond the pleasure principle and of the service of goods, to an ethic where the addition of the pleasure principle invades the field since the beginning. The logic of contingency is how Lacan intends to formalize a manner of making the symbolic necessity and the impossibility of the desire to register in the records of the contingent and the possible.

Keywords: lacanian psychoanalysis; formulas of sexuation; ethics; modalities of jouissance.

"Não há clínica sem ética" - é esse o título que Miller (1996, p. 107) sugere para uma conferência na qual busca destacar a incidência ética da práxis psicanalítica. Essa proposição remete-nos a outra que introduz uma das principais reflexões sobre a ética no campo da filosofia: "Toda arte e toda indagação, assim como toda ação e todo propósito, visam a algum bem" (Aristóteles, 2001, p. 17).

A Ética a Nicômacos começa colocando o bem no centro da ética, de modo que, de toda práxis, pode-se formular, com o auxílio da razão demonstrativa, sua relação com um bem ao qual a ação se dirige. Se traduzíssemos a afirmação de Miller em termos aristotélicos, teríamos, então, que não há clínica que não vise a algum bem. Essa posição, embora plausível, não deixa de evocar uma série de problemas que se destacam à luz da experiência que emerge da clínica de Freud.

Desde Além do princípio de prazer (Freud, 1920/1996a), mas principalmente em O mal-estar na civilização, a relação do sujeito com o que se poderia formular como sendo o seu bem é radicalmente posta em questão. De um lado, Freud demonstra que tudo o que a civilização cria para encurtar o caminho do sujeito em direção a sua felicidade, se não está diretamente fadado ao fracasso, é passível de gerar uma quota irredutível de mal-estar. Segundo ele, "nossas possibilidades de felicidade sempre são restringidas por nossa própria constituição" (Freud, 1930/1996b, p. 84). Por outro lado, o caminho que o sujeito percorre na busca do prazer está marcado pela barreira do recalque, de maneira que algumas condutas que buscam satisfazer os prazeres recalcados acabam por gerar um profundo desprazer para a consciência. Além disso, há uma parte da experiência subjetiva que, embora se imponha ao homem com o aspecto compulsivo de uma necessidade irresistível, não traz nenhuma possibilidade de prazer de qualquer espécie, seja consciente ou inconsciente (Freud, 1920/1996a, p. 31).

Assim, não há nada que garanta ao sujeito um bom caminho em direção a seu bem, já que tantas coisas lhe interrompem o caminho do prazer: "Ficamos inclinados a dizer que a intenção de que o homem seja 'feliz' não se acha incluída no plano da criação" (Freud, 1930/1996b). É justamente por destacar essa ausência de garantias que a psicanálise evoca tão fortemente a dimensão ética em sua clínica. Afinal, propor um bem qualquer para o sujeito em um tratamento psíquico não comporta nenhuma garantia antecipada de sucesso. Pelo contrário, isso até pode conduzir ao pior. É nesse sentido que Lacan (1974/2003) adverte quanto aos limites da psicoterapia, dizendo que é aí que ela "estanca, não porque não exerça um certo bem, mas por ser um bem que leva ao pior" (p. 513).

Em relação à proposição não há clínica que não vise a algum bem, teríamos, então, que acrescentar uma ressalva, indicando a inexistência de garantias nesse campo. Além disso, nada impede que o bem ao qual se visa na clínica conduza ao pior, dependendo do modo como é posto em operação. Lacan (1959-1960/1997) indica que o espetáculo trágico nos antecipa isso: "O bem não poderá reinar sobre tudo sem que apareça um excesso, de cujas consequências fatais nos adverte a tragédia" (p. 314).

Freud já deixa entrever uma relação da psicanálise com a ética quando sublinha o modo como o analista responde à demanda de um paciente. Ele diz que "o caminho que o analista deve seguir (...) é um caminho para o qual não existem modelos na vida real" (Freud, 1915/1996c, p. 183). Isso indica que ele não propõe um caminho único e necessário, mas algo que se descobre em cada caso. O analista sustenta sua resposta suspendendo o juízo moral diante da fala do analisando. Desse modo, pode-se entrar em cena o que conta como responsabilidade do próprio sujeito por suas paixões. Miller (1996) sugere que a técnica fundamental da psicanálise comporta essa suspensão. Diz ainda que "na psicanálise, uma interpretação é uma questão de ética" (Miller, 1996, p. 109).

De fato, é isso que Lacan (1959-1960/1997) tenta demonstrar no Seminário 7 - a ética da psicanálise. Pode-se dizer que, até esse seminário, o campo da Ética tinha ficado apenas como pano de fundo para outras questões clínicas e culturais. No Seminário 6 - o desejo e sua interpretação, por exemplo, Lacan já antecipa, pela via do desejo, o tema com o qual se ocupará no ano seguinte. Tomando como centro de sua reflexão a relação do sujeito com o desejo, ele aponta o horizonte ético que essa experiência permite entrever:

O desejo é o que no coração mesmo de nossa subjetividade, é o mais essencial ao sujeito. Mas ele é, ao mesmo tempo, alguma coisa que é também o contrário, que aí se opõe como uma resistência, como um paradoxo, como um núcleo rejeitado, como um núcleo refutável. É a partir daí, insisto nisso inúmeras vezes, que uma determinada experiência ética é desenvolvida. (Lacan, 1958-1959/2009a, p. 805, tradução dos autores)

A perspectiva do Seminário 7

Ao problematizar diretamente a ética no Seminário 7, é justamente pela via do desejo que Lacan (1959-1960/1997) irá interrogá-la. É o desejo, definido como o "universo da falta", que deverá colocar em questão a ordem suposta nas diversas formalizações da ética tradicional. No Seminário 5, Lacan (1957-1958/1999) já havia definido o desejo por "uma defasagem essencial em relação a tudo o que é (...) da ordem da direção imaginária da necessidade" (p. 96). Ele sugere que essa necessidade é introduzida, pela demanda, numa outra ordem, "na ordem simbólica, com tudo o que ela pode introduzir aqui de perturbações" Lacan (1957-1958/1999, p. 96).

Retomando, então, desde a ética da eudaimonia de Aristóteles, até a formulação kantiana da vontade autônoma, passando pelo utilitarismo de Bentham e pela máxima do gozo absoluto de Sade, Lacan (1959-1960/1997) promove esse exercício de contrapô-los ao campo irredutível da falta.

Essa falta não é concebida como uma simples necessidade que a maturação ou o progresso seriam capazes de suprimir. A demanda a introduz no registro simbólico. Assim, o que está em foco é a relação do sujeito com a dimensão simbólica que organiza seu gozo. Pelo assentimento à Lei que o Outro introduz, o sujeito se inscreve como castrado no laço social. Fica-lhe interditado o acesso ao gozo que não poderá ser obtido a não ser pela mediação da linguagem, que introduz aí uma perda fundamental.

Nas palavras de Teixeira (1999), o que está em foco é "a instância traumática do desejo do Outro como hiância ou limite interno da apreensão do real pela linguagem, limite a partir do qual o sujeito inscreve seu próprio desejo" (p. 204). O real entra em jogo, nesse momento, a partir do simbólico e da demarcação de seus limites. Não se trata de reduzir tudo à estrutura simbólica. A operação é, a partir da constatação de um funcionamento do simbólico, a de demonstrar a radicalidade daquilo que permanece excluído e que permanece, inclusive, determinando o funcionamento da estrutura. O desejo do Outro aparece como uma falta fundamental, insaturável, que nenhum objeto é capaz de preencher.

O modo como Lacan (1959-1960/1997) introduz o objeto é partidário dessa lógica de articulação simbólica: "... é esse objeto, das Ding, enquanto o Outro absoluto do sujeito que se trata de reencontrar" (p. 69). A castração está no interior dessa vertente do objeto, já que é um objeto impossível, que tem como acessível apenas as suas coordenadas de prazer. Das Ding é, então, o elemento chave, que Lacan retira de Freud e eleva ao estatuto de um conceito com o qual deverá operar na demarcação dos impasses da ética.

Miller (2000) sugere que essa abordagem do seminário da ética introduz um corte na obra de Lacan, que ele localiza no paradigma do gozo impossível. É isto que das Ding representa, "que a satisfação, a verdadeira, a pulsional, a Befriedigung não se encontra nem no imaginário, nem no simbólico, que ela está fora do que é simbolizado, que ela é da ordem do real" (Miller, 2000, p. 91). Pelo fato de o gozo ser tomado como inacessível, o desejo recebe o estatuto de falta inerradicável. O próprio simbólico, representado pela lei moral, se coloca como uma barreira para esse gozo que ele exclui. A outra barreira é a do imaginário, que Lacan formula sob a forma do belo, que tem a função de ser a última defesa frente a das Ding - descrita a partir do exemplo de Antígona.

Das Ding demarca um núcleo problemático para o sujeito, na medida em que a castração marca a inacessibilidade da mãe como objeto, já que nenhum outro é capaz de substituí-la totalmente. Em outras palavras, não haveria nada no campo dos bens capaz de substituir esse Bem primordial, reconhecido como supremo, suposto suprir toda a falta do desejo. Nessa direção, Lacan (1959-1960/1997) propõe que é isto que Freud demonstra:

que não há Bem Supremo - que o Bem Supremo, que é das Ding, que é a mãe, o objeto do incesto, é um bem proibido e que não há outro bem. Tal é o fundamento, derrubado, invertido, em Freud, da lei moral. (p. 90)

Contrapondo-se, pois, a Aristóteles, Lacan (1959-1960/1997) diz que o filósofo desconsidera o que a psicanálise destaca como essencial: "Um campo muito grande do que para nós constitui o corpo dos desejos sexuais é pura e simplesmente classificado por Aristóteles dentro da dimensão das anomalias monstruosas" (p. 14).

Para Aristóteles, o Bem Supremo é aquele que é desejável em si, e não por outras causas. Seria, pois, um bem insubstituível e que não seria passível de inclusão no conjunto dos bens que servem para outros fins. Ele o formula nos seguintes termos:

Se nas coisas práticas existe algum fim que se deseja por si mesmo, e por ele se deseja todo o resto e, se é verdade que nem toda coisa desejamos por outra (se não, ir-se-ia ao infinito: donde inútil e vão fora o nosso desejar), claro está que tal fim será o bem, ou antes o sumo bem. (Aristóteles, 2003, p. 23)

Se Lacan (1959-1960/1997) contesta esse finalismo de Aristóteles, fazendo seu Bem Supremo situar-se num plano quase mítico, o plano de das Ding, no final do Seminário 7, ele faz uma ressalva. Diz que, com isso, a psicanálise não nega o campo dos bens, mas inverte sua perspectiva, incluindo o que havia ficado fora da Ética de Aristóteles. Lacan (1959-1960/1997) propõe que "não há outro bem senão o que pode servir para pagar o preço do acesso ao desejo -, na medida em que esse desejo, nós o definimos alhures como a metonímia de nosso ser" (p. 385).

O finalismo de Aristóteles (2001) é posto a partir da ontologia - como Filosofia Primeira - da qual decorre que "o bem é aquilo a que todas as coisas visam" (p. 17) por tendência natural a realizarem a excelência (areté) do ser. Em outras palavras, aquilo que, para Aristóteles, marcaria a essência de um ser é o que deveria ser posto como ponto de articulação de seu bem. No caso do homem, que se definiria essencialmente pela razão, seria pela repetição dos atos nos hábitos que ele poderia atingir sua excelência conforme a justa medida. Lacan, em contrapartida, introduz algo paradoxal do ponto de vista ontológico, formulando que a única essência inexpugnável do ser do sujeito é sua falta a ser, pois não há nada no campo da linguagem capaz de traduzir o essencial do desejo, de modo que toda predicação do ser restaria insuficiente. Assim, onde Aristóteles toma como referência a justa medida, a ação razoável que evita os excessos e que corresponde a uma medida do possível, Lacan (1959-1960/1997) situa o impossível, lugar "onde reconhecemos a topologia do nosso desejo" (p. 378).

Para formular resumidamente, pode-se dizer que a concepção ética do Seminário 7 tem, como operador conceitual principal, o desejo - definido como o universo da falta, incomensurável e irredutível. Introduz, ainda, uma dimensão real na experiência subjetiva, situando-a, entretanto, como consequência da operação simbólica. O componente real inassimilável, representado por das Ding, é bordejado pelo significante. É aquilo que "do real padece dessa relação fundamental, inicial, que induz o homem nas vias do significante" (Lacan, 1959-1960/1997, p. 168). Então, o que está no início, no foco, é o campo simbólico, a referência ao Outro à linguagem, como se estruturando em torno de um núcleo excluído.

Essa mesma lógica está presente durante o primeiro ensino de Lacan e é a forma essencial pela qual o campo simbólico se articula. No Seminário 5 - as formações do inconsciente (Lacan, 1957-1958/1999), essa lógica é chamada de lógica da castração. É a lógica da metáfora paterna, que tem o Nome-do-Pai como o significante que faz função de exceção para que a cadeia dos outros significantes se estruture como lei (p. 202). Lacan (1971-1972/2009b), relacionando essa forma lógica com a teoria dos conjuntos, situá-la-á do lado masculino das fórmulas da sexuação, onde a exclusão de ao-menos-um, que diz não à função da castração, opera a formação do conjunto dos seres castrados, conforme desenvolveremos a seguir.

Essa lógica - que podemos denominar de lógica fálica, lógica edipiana ou lógica da castração - desemboca em saídas paradoxais quando articuladas ao campo da ética. É isso que o título concedido ao último capítulo do Seminário 7 indica. É isso também que é destacado na questão que Lacan (1959-1960/1997) diz possuir um valor de Juízo final: "Agiste conforme o desejo que te habita?" (p. 376). Ora, essa questão chega a ser frustrante, já que dela não se pode extrair nenhuma significação positiva. Sendo o desejo inconsciente, torna-se impossível respondê-la sem cair no círculo da demanda. Mesmo no interior da experiência analítica, a questão só pode ser não-toda respondida. Esse paradoxo é apontado por Vieira (2001) nos seguintes termos:

O parâmetro ético que diz respeito ao nosso campo, (...) por não ser saturado pelo registro das significações, apresenta-se nesse universo de maneira paradoxal: "uma medida desmedida" é o modo como Lacan situa o desejo como parâmetro da ética da psicanálise. (p. 119)

A passagem do Seminário 7 ao Seminário 20

Não se pode dizer que, ao propor a crítica ao discurso ético no Seminário 7, o trabalho de Lacan tenha terminado. Durante todo o restante de seu ensino, ele se empenha na construção de recursos lógicos que possibilitem a abordagem da experiência psicanalítica de modo inteligível, mas sem prejuízo da radicalidade que representa, para o sujeito, a experiência do inconsciente. Em outros termos, ele se preocupa em abordar essa experiência pela razão, sem excluir o que nela existe de paradoxal, de antinômico, ou mesmo de irracional. Ele busca circunscrever justamente aquilo que desafia a formalização lógica em seus próprios limites.

Miller (1995, 2000, 2003) apresenta algumas proposições que giram em torno de uma tese fundamental para o nosso artigo: entre o Seminário 7 e o Seminário 20 há alguns movimentos epistemológicos no interior da obra de Lacan que indicam mudanças de perspectiva. Há uma especificidade na abordagem do Seminário 20 que, como fica ilustrado com as passagens seguintes, demarca o deslocamento de um foco no universal da estrutura para um foco no particular de cada posição de gozo. Nesse sentido, Miller sugere que algumas formulações conceituais mostrar-se-ão diferenciadas, dependendo do que esteja em foco em um ou outro momento. Em relação à noção de gozo, por exemplo, Miller (2000) sugere seis diferentes paradigmas. Esses começariam por privilegiar uma dimensão imaginária, caminhariam para uma focalização da dimensão simbólica, com a significantização do gozo, de maneira que o último paradigma, situado no Seminário 20 - mais, ainda, acabaria por operar um distanciamento entre o gozo e o significante. Contrapondo diversos elementos, esse seminário coloca em evidência uma não-relação fundamental: "A disjunção do significante e do significado, a disjunção do gozo e do Outro, a disjunção do homem e da mulher sob a forma de A relação sexual não existe" (Miller, 2000, p. 101). O paradigma no qual o Seminário 7 se situaria seria o do "gozo impossível", já que o acesso a das Ding estaria duplamente barrado: no simbólico (pela função da Lei) e no imaginário (pela função do belo).

Em outro momento, Miller (2003) sugere esse movimento, não apenas a propósito da noção de gozo, mas como um movimento geral da concepção lacaniana. Ele sugere que Lacan começa seu ensino demarcando o campo do Outro, da linguagem, disso que é de todos e que aponta para o universal. Posteriormente, com a extração do objeto a como um elemento que resiste à apreensão pela linguagem, ele elabora as relações do objeto a com o Outro e, inclusive, com a falta no campo do Outro (), até se concentrar naquilo que há de mais singular - o gozo do corpo próprio.

De um modo mais geral, haveria, num primeiro momento, na época do Seminário 7, uma centralidade do simbólico e da linguagem, que faria o inconsciente se estruturar em torno de uma falta fundamental, o desejo, com toda a sua referência ao reconhecimento do Outro. Depois, principalmente a partir do Seminário 20, o gozo como não-todo ordenado pela linguagem é que se tornaria o problema crucial. Miller (2003) aponta uma dimensão do gozo que pode ser qualificada de autística, na medida em que não se dá à comunicação com o outro, mas se sustenta no próprio corpo, é o gozo de um sozinho, que não chega a atingir o gozo do Outro:

O desejo foi o termo chave do primeiro ensino de Lacan. O desejo é do Outro. Foi a isso que Lacan chegou ao reformular a posição histérica. O desejo do Outro se inscreve na língua, é tomado em uma metonímia. É uma categoria que não pode se sustentar sem o suporte do Outro (...) em seu último ensino, o gozo do Outro permanece vazio. Por oposição ao desejo, o gozo é uma categoria que se sustenta do Um. Pode-se sonhar o gozo do Outro, mas o gozo está ligado ao corpo próprio, ao corpo do Um. (p. 10)

Há, ainda, outra referência de Miller (1995) que opera com essa diferenciação, sugerindo que a sexualidade feminina fora tratada a partir da falta, relativa ao falo (-φ), no Seminário 4 - a relação de objeto, mas que, no Seminário 20, passa a ser tratada a partir de um excesso. Haveria um suplemento de gozo próprio à mulher em comparação com o homem. Essa observação nos interessa porque é também a partir do "universo mórbido da falta" (Lacan, 1959-1960/1997, p. 10) que o destino ético do sujeito é confrontado num primeiro momento. Isso nos deixa a questão sobre como seria essa confrontação sob a ótica do excesso de gozo.

Miller (2005) sugere que essas mudanças de perspectiva assinaladas no percurso de Lacan influenciam sua abordagem da ética. Ele diz que, se no Seminário 7 já se celebra o para-além do princípio de prazer, o gozo que comporta essa dimensão estaria interditado ao sujeito, que não o acessaria senão pela via da transgressão. Isso resultaria numa ética da transgressão, que precisa exigir de Antígona uma vontade heróica para ultrapassar a fronteira "que pode discernir precisamente um elemento do campo do para além do princípio do bem" (Lacan, 1959-1960/1997, p. 289). Contudo, no Seminário 17, esse aspecto de transgressão já não se mostraria mais. Miller (2005) diz que Lacan fará empalidecer essa ética, denunciando sua ficção. Segundo ele, "O mais além do princípio do prazer faz-se sozinho o tempo todo. (...) constantemente, o gozo extravaza o princípio do prazer e viola a regra" (Miller, 2005, p. 160). Nas palavras de Lacan (1969-1970/1992):

O que a análise mostra (...) é precisamente isto, não se transgride nada. Entrar de fininho não é transgredir. Ver uma porta entreaberta não é transpô-la. (...) não se trata aqui de transgressão, mas antes de irrupção, queda no campo de algo que é da ordem do gozo. ( p. 17)

Isso tudo nos indica que é possível tomar o gozo como operador chave para pensar as consequências éticas de uma mudança de perspectiva. Nesse sentido, é a partir do Seminário 20 - mais, ainda, que Lacan (1972-1973/1985) desenvolve mais detidamente a noção de gozo, operando um corte em relação a tudo o que tinha desenvolvido até então. Miller (2003) apresenta esse movimento que parte do universal da linguagem para o modo particular que o sujeito tem de gozar da língua. É esse o motivo principal que nos leva a propor uma leitura comparativa entre os seminários. Segundo Miller, Lacan teria se distanciado da abstração da linguagem para nos reconduzir ao particular de cada língua (p. 14). Ele destaca o efeito de corte produzido no ensino de Lacan por esse deslocamento, que acaba por colocar em questão o conceito de linguagem com a invenção de lalíngua, uma dimensão particular do gozo da fala antes de seu ordenamento gramatical e lexográfico (Miller, 2000, p. 101). Nossa tentativa é, pois, demarcar a importância desse deslocamento para a ética da psicanálise.

Que se possa tirar, dessa inversão de perspectiva, algumas consequências éticas, parece estar sugerido no próprio texto do Seminário 20. Já na primeira linha, Lacan (1972-1973/1985) evoca: "Me aconteceu não publicar A Ética da Psicanálise. (...) Com o tempo aprendi que podia dizer sobre isto um pouco mais" (p. 9). De fato, ele diz então muitas coisas sobre as quais é possível supor que não lhe escapam as consequências éticas. Ele mesmo as assinala em diversos pontos, por exemplo, quando evoca o percurso do Seminário 7. Ele parte da consideração do ser na Ética de Aristóteles, acompanha o seu deslizamento no curso dos tempos até a teoria das ficções de Bentham e volta a interrogar, a partir disso, o bem supremo como objeto de contemplação.

Ao retomar a Ética a Nicômacos no capítulo 5, Lacan (1972-1973/1985) fala novamente de sua recusa em publicar a Ética: "Mesmo assim, aquele seminário não era nada mau, todo ele serve. (...) É talvez hoje, de todos os seminários que algum outro deve publicar, o único que eu mesmo reescreveria, e do qual eu faria um escrito" (p. 72). Mais adiante, ele acrescenta o que pode ser o sentido deste reescrito: "Eu disse que refarei a Ética da Psicanálise, mas é porque eu a reextraio" (Lacan, 1972-1973/1985, p. 78). De modo que essa reextração, ele a efetua relacionando-a com "esse negócio da relação sexual (...) do lado das damas, na medida em que é da elaboração do não-todo que se trata de romper o caminho (...). Talvez assim eu chegue a fazer aparecer algo de novo sobre a sexualidade feminina" (Lacan, 1972-1973/1985, p. 78).

Serge André (1998) interpreta nessa direção o que ele chama de "engajamento ético" do Seminário 20: "O Seminário sobre a Ética, que gira em torno de noções de bem supremo, de prazer e de satisfação, deveria, então, ser revisto e reestruturado a partir da noção de gozo" (p. 211).

A perspectiva do Seminário 20

Lacan (1972-1973/1985) sugere que o que há de novo, o que lhe pode abrir caminho nesse seminário, é justamente a possibilidade de articular a demarcação lógica do gozo paraalém do gozo fálico, que era até onde ele já havia caminhado. Ele articula, então, do lado feminino, outra modalidade de gozo com uma lógica que se define pelo não-todo. Com isso, o campo do gozo é repartido em dois modos distintos.

Miller (2005) nos lembra que a palavra modo não é utilizada aqui por acaso, mas parece responder à sua acepção filosófica, que indica "a maneira de ser de uma substância" (p. 150). Essa substância, que Lacan nos convida a pôr em marcha nesse seminário, difere tanto da substância extensa quanto da substância pensante de Descartes. Ela é a "substância gozante. (...) a substância do corpo, com a condição de que ela se defina apenas como aquilo de que se goza" (Lacan, 1972-1973/1985, p. 35).

A referência do Seminário 20 ao ser de gozo, embora não contradiga a formulação da falta a ser, é operada por uma positividade. Dessa maneira, o gozo do corpo ganha um estatuto que o distingue do gozo marcado pela falta que o singnificante provoca: "O ser é o gozo do corpo como tal, quer dizer, como assexuado, pois o que chamamos gozo sexual é marcado, dominado, pela impossibilidade de estabelecer (...) o Um da relação sexual" (Lacan, 1972-1973/1985, p. 15). Enquanto a falta permanece no campo sexual, surge outro modo do ser que a experiência analítica permite supor. Lacan evoca uma suposição que incide não sobre o sujeito não substancial, concebido como sujeito barrado pelo significante que o divide, mas sobre uma substância (Miller, 2005).

A constatação de uma materialidade nessa concepção de substância gozante não nos conduz a um materialismo estrito, pois, quando Lacan diz que o gozo comporta uma corporização significante, ele indica que não há outro jeito de abordá-lo, senão pela mediação da linguagem. O significante seria a própria causa material do gozo, pois não se poderia abordar nenhuma parte do corpo se o Outro não o simbolizasse. Nesse sentido, Serge André sugere que a ideia de um gozo do corpo como tal, ou de um gozo especificamente feminino, permanece uma ideia, isto é, um efeito do significante (André, 1998, p. 238). Isso quer dizer que, como não existe realidade pré-discursiva, o gozo já se encontra desde sempre marcado pela incidência do significante que o limita ao ser sexuado. É a simbolização pela qual o corpo advém no gozo que pode ser chamada de sexuação e que não acontece de forma simétrica no homem e na mulher.

Lacan esclarece que essa suposição do corpo como uma substância gozante advém daquilo que sobre ele o sujeito não consegue dizer. Dessa maneira, o ser permaneceria um "fato do dito". Tudo o que o processo de análise demonstraria é que "há relação de ser que não se pode saber", que, mesmo permanecendo impossível de se escrever, o ser é "interdito, ele é dito entre palavras, entre linhas" (Lacan, 1972-1973/1985, pp. 160-162). Por isso, quando se fala em modos do ser, isso indica justamente que há mais de uma maneira de enunciar a impossibilidade quanto ao gozo. Erik Porge (2006) esclarece, referindo-se às fórmulas da sexuação, tais como apresentadas abaixo, que elas definiriam modos de declaração de sexo. Isso quer dizer que elas não se baseiam em uma identidade de substância, mas em modos de enunciação da função fálica.

É por isso que é possível, para compreender as modalidades do gozo, evocar a lógica modal. Desde o Seminário 19 bis - o saber do psicanalista, Lacan (1971-1972/2009b) articula as fórmulas da sexuação, também chamadas de fórmulas proposicionais (Lacan, 1972-1973/1985, p. 107), ou fórmulas quânticas da sexuação (Lacan, 1973-1974/2009c), com o quadro das oposições assertóricas e modais de Aristóteles1 1 . Ver Kneale & Kneale (1962) para uma exposição comentada sobre a classificação quaternária de frases declarativas gerais e sobre a lógica modal de Aristóteles. Esse quadro de oposições, que teria sido forjado por Apuleu de Madaura, também teve seu uso lacaniano comentado por Porge (2006), por Julien (1996) e por Gerbase (2006). . No entanto, ele adverte que sua lógica de oposições é distinta: "a alternância da necessidade, do contingente, do possível e do impossível não está na ordem que Aristóteles dá; pois, aqui, é do impossível que se trata, isto é, no final das contas, do real" (Lacan, 1971-1972/2009b, p. 125, tradução dos autores).

A lógica da sexuação é construída a partir da inclusão de duas outras referências - a da formalização matemática e a da teoria dos conjuntos. Na primeira, Lacan (1971-1972/2009b) lança mão de uma escritura marcada pela formulação de uma topologia que substitui a proposição lógica tradicional por uma função proposicional. Essa função é algo que se especifica pelo lugar vazio deixado pelo x, em função do qual se determina o argumento. O estilo silogístico de Aristóteles é substituído pelo termo de uma função que se escreve F(x) e que, no caso da função sexual, escreve-se ΦX. Porge (2006) comenta que a lógica proposicional de Aristóteles implica a inerência de um predicado (no caso, masculino ou feminino) a um sujeito. Ele sugere que, servindo-se da distinção fregeana entre função e argumento, Lacan transforma essa lógica para destacar, no lugar vazio do x, uma variável fundamental que é a enunciação do sujeito, sua declaração de sexo.

A teoria dos conjuntos, a outra referência incluída por Lacan, é a que inverte mais radicalmente o sentido das relações, tal como eram concebidas na lógica proposicional. Se Aristóteles propõe uma relação de contradição entre uma particular negativa e uma universal afirmativa, com a teoria dos conjuntos, Lacan pode dar a essa contradição a função de sustentação do todo. Do mesmo modo como se diz que "a exceção confirma a regra", supõe-se que é o particular negativo - o ao-menos-um que diz não à função da castração - que é o verdadeiro fundamento da afirmação universal que dá conta da castração. Ademais, enquanto numa lógica de classes o nenhum da negação universal esvazia a classe, Lacan (1971-1972/2009b) supõe que, na lógica dos conjuntos, "quando o conjunto se esvazia, há ainda esse elemento do conjunto vazio" (p. 85).

Retomamos essas articulações porque Lacan (1972-1973/1985) as utiliza no Seminário 20. Em primeiro lugar, para destacar a função do escrito, da formalização matemática como tentativa de superar o impasse da formalização pelo qual o real se inscreve. Em segundo lugar, ele as retoma para definir os dois modos de gozo conforme a lógica constituída nas fórmulas da sexuação. Elas estão dispostas na figura 1.


Lacan (1972-1973/1985) sugere que os seres falantes se inscrevem de um ou de outro lado. Podemos ler cada uma das fórmulas do seguinte modo:

Lado homem

Existe pelo menos um x tal que a função fálica não se aplica ao x.

Para todo x é verdadeiro que a função fálica se aplica ao x.

Lado mulher

Não existe pelo menos um x tal que a função fálica não se aplica ao x.

Para não-todo x é verdadeiro que a função fálica se aplica ao x.

No lado esquerdo, a linha inferior indica que é pela função fálica que o homem como um todo toma inscrição, embora essa função encontre seu limite na proposição da existência de um x que a nega. Lacan (1972-1973/1985) relaciona esse que diz não à castração, marcada pela função fálica, à função do pai que, ao se colocar como o único não castrado, constitui o conjunto de todos os outros como castrados. O todo repousa, portanto, diz Lacan, na exceção colocada como termo sobre aquilo que nega integralmente a função fálica (ΦX).

O lado masculino é, pois, definido pela mesma lógica com a qual Lacan já costumava articular o campo simbólico, pela extração de um significante (S1) que ordena toda a cadeia. Esse significante é, na parte superior da fórmula, representado pelo ao-menos-um que diz não à função da castração, , e, na parte inferior, pelo Φ que suporta a divisão do sujeito ($). Ao sujeito que se inscreve do lado masculino, só é dado buscar seu parceiro sexual, que é o Outro, por intermédio do objeto a, daquilo que lhe causa o desejo. Essa conjunção, $<>a, corresponde à fórmula da fantasia, na qual o sujeito é preso. A fantasia é o "suporte do que se chama expressamente, na teoria freudiana, o princípio de realidade" (Lacan, 1972-1973/1985, p. 108).

O lado feminino se define pela inexistência do ao-menos-um que, do outro lado, tem a função de exceção sustentadora do universal da castração. Isso significa que, por não existir A

Mulher não-castrada, aquela que operaria por dizer não à função fálica, , o universal do lado das mulheres permanece em aberto. Em outras palavras, não há conjunto das mulheres, de maneira que elas não formam um todo. Por isso, a negação do universal desse lado incide sobre o todo, indicando que a mulher se orienta pela função fálica, mas não-toda, . A inscrição nesse lado dos seres falante, Lacan (1972-1973/1985) indica que está aberta a qualquer que seja, mesmo àqueles providos dos atributos da masculinidade, mas acrescenta: "Se ele se inscreve nela, não permitirá nenhuma universalidade, será não-todo, no que tem a opção de se colocar na ΦX ou bem de não estar nela" (p. 107).

O que a parte inferior do lado direito indica é justamente a impropriedade de se falar da mulher pelo artigo definido, que deve ser escrito com a barra, já que não existe La Femme non barrée (não castrada). Do lado das mulheres, não existe um significante que dê conta do gozo feminino. Por isso, elas se relacionam com a falta no campo significante [S()] em relação ao gozo. Nas palavras de Lacan (1972-1973/1975): "Esse não se pode dizer. Nada se pode dizer da mulher. A mulher tem relação com S(), e já é nisso que ela se desdobra, que ela não é toda, pois, por outro lado, ela pode ter relação com Φ"2 2 . Optamos aqui por não verter o ( La), em referência a La Femme, para evitar confundir A mulher, que não existe, com o Outro, que também aparece marcado pela barra que indica a sua inexistência ( ). (p.75, tradução dos autores). Lacan (1972-1973/1985) nos adverte que o gozo feminino, chamado de Outro gozo, não chega a compor Um outro gozo, mas se especifica por ser suplementar, por ser o que vai além do falo: "Há um gozo, já que nos atemos ao gozo, gozo do corpo, que é (...) para além do Falo" (p. 100).

Em termos modais, o lado masculino é definido pelo modo do necessário e o lado feminino, ao invés de definir-se pelo oposto - o não-necessário (ou contingente) -, é definido pelo impossível. O gozo fálico, então, adquire o aspecto de uma necessidade, que é instituída pela lei que organiza a linguagem. É uma necessidade simbólica que Lacan traduz como aquilo que não cessa de se escrever. O Outro gozo é definido por, justamente, não se inscrever totalmente no regime fálico. Resta sempre uma parte desse gozo que é impossível, que não cessa de não se escrever no simbólico. Lacan (1972-1973/1985) o explica da seguinte maneira:

O necessário (...) é aquilo que não para, de quê? - de se escrever. É uma maneira muito boa de repartir pelo menos quatro categorias modais (...). O que não para de não se escrever, é uma categoria modal que não é a que vocês terão esperado para opor ao necessário, que mais teria sido o contingente. Figurem que o necessário é conjugado ao impossível e que esse

não para de não se escrever

é a sua articulação. Aí está o correlato de não haver relação sexual, e o que é o substancial da função fálica. (pp. 80-81)

Tem-se, então, que, pelo menos para os seres que se inscrevem de um dos lados da sexuação, o gozo fálico não é tudo. O gozo do corpo se apresenta como um gozo que se supõe experimentado no real já de saída, de modo que a barreira da lei não lhe interdita totalmente - diferente do que acontece com o real articulado com das Ding no Seminário 7. Diante dessa configuração, sugerimos que o horizonte ético apontado pelo discurso psicanalítico acaba ganhando outro estatuto, outra formalização lógica.

Podem-se encontrar indicações sobre algumas soluções éticas no decorrer do próprio Seminário 20. Elas podem ser denominadas problemáticas, no sentido aristotélico, já que se articulam ao modo contingente. Lacan (1972-1973/1985) as enuncia evocando o funcionamento do discurso da psicanálise e seu modo de operar na clínica:

O analista, com efeito, de todas as ordens de discurso que se sustentam atualmente - e este termo não é um nada se damos ao ato seu pleno sentido aristotélico - é aquele que, ao pôr o objeto

a

no lugar do semblante, está na posição mais conveniente para fazer o que é justo fazer, a saber, interrogar como saber o que é da verdade. (p. 129)

Essa é uma forma de situar o desejo, que entra pelo modo contingente. "Ele se inscreve por uma contingência corporal" (Lacan, 1972-1973/1985, p. 126). A análise o faz funcionar como causa a partir da função do analista que suporta o lugar de semblante de objeto a para o analisando. Propõe-se que, assim, a relação sexual pare de não se escrever: "É enquanto modo do contingente que ela para de não se escrever. A contingência é aquilo no quê se resume o que submete a relação sexual a ser, para o ser falante, apenas o regime do encontro" (Lacan, 1972-1973/1985, p. 127). Dessa maneira, a aparente necessidade do sintoma na função fálica mostra-se ser apenas contingência. É ao fazer o sujeito despir-se de sua subserviência ao saber que viria do Outro que a análise possibilita que ele use a marca propiciada pela língua de modo singular.

A impossibilidade engendrada pela falha do simbólico em recobrir todo o gozo abre-se para o contingente pela operação que situa o saber no lugar onde não se pretenda que ele diga toda a verdade (universal). Onde não se pretenda que ele se torne necessário. Aqui, a psicanálise entra pelo contingente, mas, no Seminário 24 - L'insu-que-sait de l'une bévue s'aille à mourre, Lacan (1976-1977/2009d) define como seria a entrada do possível, dizendo "que o possível é o que cessa de se escrever, (...) o que cessa o menos de se escrever" (p. 02), não continua se escrevendo, a menos que se queira. De modo que, para o impossível, a saída analítica é pela contingência, indicando que a solução seja o tornar possível ao sujeito lidar com o gozo, mas de um modo que não indique a prisão na necessidade própria do sintoma. Para o necessário, a saída indicada como o caminho possível não difere da forma contingente, já que o contingente se define por aquilo que é possível, mas não necessário.

Conclusão

A impossibilidade do Bem Supremo, universal e necessário, não implica que algum bem não possa ser sustentado de modo contingente. Aliás, ao abordar as principais questões relativas ao desejo, ao gozo e à intervenção analítica, Lacan se preocupa com a formalização buscando, justamente, evitar que o particular de cada experiência se perca no universal da solução que o saber ambiciona. Safatle (2006) enuncia essa preocupação sugerindo que Lacan faz uma aposta na formalização, em lugar da conceitualização, para evitar as pretensas estratégias de submissão do diverso da experiência à atribuição predicativa de traços de identificação positiva.

Conjugar a referência ao universal, que a transmissão da psicanálise pressupõe, e a experiência do corpo, onde um gozo se inscreve no real, é a razão do recurso à lógica efetuado por Lacan (1972-1973/1985) no Seminário 20. Ele formula essa preocupação em Televisão, evocando a estratégia do matema: "É ao coordenar essas vias instauradas por um discurso que, mesmo no que ele só procede de um a um, no particular, concebe-se uma novidade que esse discurso transmite, tão incontestavelmente como a partir do matema numérico" (Lacan, 1974/2003, p. 537).

Para que seja possível ao discurso da psicanálise captar a contingência, formulada pela suposição de que, em algum ponto, a relação sexual cesse de não se escrever, o impossível da relação precisa permanecer em aberto, para instituí-la no real. A assunção dessa estratégia é expressa nos seguintes termos: "Essa própria chance, podemos antecipá-la por um recurso à axiomática, lógica da contingência a que nos acostuma aquilo de que o matema (...) sentiu necessidade: abandonar o recurso a qualquer evidência" (Lacan, 1974/2003, p. 537).

Pode-se dizer, então, que encontramos no Seminário 20 uma tentativa de passar do impasse da formalização - exposto no seminário da ética - à formalização do impasse. É por tomar a experiência segundo uma lógica da contingência que uma posição ética se demarca, pelo abandono da pretensão de se forjar um saber que seja bom para todo mundo.

Abordar a ética pela lógica da contingência nos ajuda a esclarecer o que está em jogo quando Lacan responde: "Devo extrair de minha prática a ética do Bem-dizer" (Lacan, 1974/2003, p. 539). Sobre isso, Vieira (2001) discorre estabelecendo um percurso similar ao que realizamos aqui: "A interrogação Lacaniana sobre a ética da psicanálise a partir do desejo conduz, como já vimos, à conceituação do gozo. A partir disso, o gozo, como conceito, retorna sobre esta ética, produzindo uma nova formulação: a ética do Bem dizer" (p. 156). Ele sugere que se deva compreender essa ética por sua relação entre o dito e o dizer, de maneira que, no que se transmite a propósito de algum bem em psicanálise, sua proposição não seja somente bem dita, mas que seja aberta para suportar o ato de dizer. Em outras palavras, que não se recue da enunciação de uma solução contingente diante da impossibilidade de formalização de um enunciado válido para todos.

Em toda essa articulação da psicanálise com a ética, supomos que a noção de bem não está dela excluída. Pode-se até sustentar que não há clínica que não vise a algum bem, já que consideramos que uma prática deve articular sua direção e responder por ela. Entretanto, acrescentamos que, quando Lacan associa esse bem ao Bem-dizer, ele preserva seu caráter enunciativo, singular e contingente. O caráter matemático desse bem é, pois, um esforço para evitar que sua articulação suture o real que já era apresentado no domínio da ética desde o Seminário 7. O matema auxilia-nos a transmitir a topologia do que se passa com o ser falante sem saturar de significações, sejam ontológicas, sejam psicológicas, sua relação com a experiência de corpo recortado pela linguagem.

A orientação do ser falante no campo da ética aparece, pois, para a psicanálise, de forma essencialmente contingente. É tão casual que algo da relação sexual se inscreva para o sujeito, que é impossível formular um saber sobre a felicidade do homem. É por um feliz acaso (bon heur) que a felicidade (bonheur) do sujeito pode advir (Lacan, 1974/2003, p. 525). Embora não deixa de ser uma ambição cultural construir caminhos seguros para alcançá-la, a contribuição que a psicanálise continua a dar à ética é esta: que esses caminhos para o bem, quanto mais rígidos e promissores, mais riscos oferecem de levar ao pior.

Notas:

Recebido em 14.nov.09

Revisado em 23.abr.11

Aceito em 15.ago.11

Fábio Santos Bispo, mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais, é doutorando em Psicologia na mesma universidade. Endereço para correspondência: Rua Radialista José Correia, 347, casa 1, Céu Azul, Belo Horizonte/MG. CEP: 31580-230. Tels.: (31)3889-2988/(31)9249-7167. E-mail: fabio.siloe@gmail.com

Luis Flávio Silva Couto, doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e e pós-doutor em Psicanálise pela Université Paris, é professor Adjunto da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. E-mail: luisflaviocouto@terra.com.br

  • André, S. (1998). O que quer uma mulher? Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
  • Aristóteles. (2001). Ética a Nicômacos (4Ş ed.). Brasília: Universidade de Brasília.
  • Aristóteles. (2003). A Ética - textos selecionados (2Ş ed.). São Paulo: Edipro.
  • Freud, S. (1996a). Além do princípio do prazer. In S. Freud (Org.), Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (vol. XII, pp. 11-76. Rio de Janeiro: Imago. (Publicado originalmente em 1920)
  • Freud, S. (1996b). O Mal-Estar na Civilização. In S. Freud (Org.), Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (vol. XXI, pp. 65-148). Rio de Janeiro: Imago. (Publicado originalmente em em 1930)
  • Freud, S. (1996c). Observações sobre o amor transferencial (novas recomendações sobre a técnica da psicanálise III). In S. Freud (Org.), Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (vol. XII, pp. 173-188). Rio de Janeiro: Imago. (Publicado originalmente em 1915)
  • Gerbase, J. (2006). Modalidades do Gozo. Projeto Freudiano, 7(11), 3-5.
  • Julien, P. (1996). O estranho gozo do próximo: ética e psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
  • Kneale, W., & Kneale, M. (1962). O Desenvolvimento da Lógica. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
  • Lacan, J. (1975). Le Séminaire de Jacques Lacan, livre 20 - Encore. Paris: Éditions du Seuil. (Lições originalmente pronunciadas em 1972-1973)
  • Lacan, J. (1985). O Seminário, livro 20: mais, ainda (2Ş edição revista). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Lições originalmente pronunciadas em 1972-1973)
  • Lacan, J. (1992). O Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Lições originalmente pronunciadas em 1969-1970)
  • Lacan, J. (1997). O Seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Lições originalmente pronunciadas em 1959-1960)
  • Lacan, J. (1999). O Seminário, livro 5: as formações do inconsciente Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Lições originalmente pronunciadas em 1957-1958)
  • Lacan, J. (2003). Televisão. In J. Lacan (Org.), Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Entrevista transmitida pela Radiodiffusion-Télévision Française (RTF) em 9 e 16/03/1974)
  • Lacan, J. (2009a). Séminaire VI - Le désir et son interprétation [O Seminário, livro 6 - O desejo e sua interpretação]. [Versão eletrônica]. Recuperado em 21 de outubro de 2009 de http://gaogoa.free.fr/Seminaires_HTML/06-DI/DI01071959.htm (Lições originalmente pronunciadas em 1958-1959).
  • Lacan, J. (2009b). Séminaire XIX-bis - Le savoir du psychanalyste [O Seminário, livro 19 bis: o saber do psicanalista]. [Versão eletrônica]. Recuperado de http://gaogoa.free.fr/Seminaires_HTML/19bis-SP/SP04111971.htm
  • Lacan, J. (2009c). Séminaire XXI - Les non-dupes errent [O Seminário, livro 21: Os não-tolos erram]. [Versão eletrônica]. Recuperado de http://pagesperso-orange.fr/espace.freud/topos/psycha/psysem/nondup/nondup1.htm
  • Lacan, J. (2009d). Séminaire XXIV - L'insu-que-sait de l'une bévue s'aille à mourre [O Seminário, livro 24: O insucesso do inconsciente é o amor]. [Versão eletrônica]. Recuperado de http://gaogoa.free.fr/Seminaires_HTML/24-INSU/INSU16111976.htm
  • Miller, J.-A. (1995). A lógica da direção da cura - Elaborações sobre o Seminário IV de Jacques Lacan, A Relação de Objeto. Belo Horizonte: O Lutador.
  • Miller, J.-A. (1996). Não há clínica sem ética. In Matemas I Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 107-115.
  • Miller, J.-A. (2000). Os seis paradigmas do gozo. In Opção Lacanian , 26/27, 87-105. SP: Edições Eólia.
  • Miller, J.-A. (2003). O último ensino de Lacan.In Opção Lacaniana, 35, 5-24. SP: Edições Eólia.
  • Miller, J.-A. (2005). Silet: os paradoxos da pulsão, de Freud a Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
  • Porge, E. (2006). Jacques Lacan, um psicanalista: percurso de um ensino. Brasília: Universidade de Brasília.
  • Safatle, V. (2006). A paixão do negativo: Lacan e a dialética. São Paulo: UNESP.
  • Teixeira, A. M. R. (1999). O topos ético da psicanálise Porto Alegre, RS: EDIPUCRS.
  • Vieira, M. A. (2001). A ética da paixão: uma teoria psicanalítica do afeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
  • 1
    . Ver Kneale & Kneale (1962) para uma exposição comentada sobre a classificação quaternária de frases declarativas gerais e sobre a lógica modal de Aristóteles. Esse quadro de oposições, que teria sido forjado por Apuleu de Madaura, também teve seu uso lacaniano comentado por Porge (2006), por Julien (1996) e por Gerbase (2006).
  • 2
    . Optamos aqui por não verter o (
    La), em referência a
    La Femme, para evitar confundir A mulher, que não existe, com o Outro, que também aparece marcado pela barra que indica a sua inexistência (
    ).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      28 Nov 2011
    • Data do Fascículo
      Ago 2011

    Histórico

    • Revisado
      23 Abr 2011
    • Recebido
      14 Nov 2009
    • Aceito
      15 Ago 2011
    Programa de Pós-graduação em Psicologia e do Programa de Pós-graduação em Psicobiologia, Universidade Federal do Rio Grande do Norte Caixa Postal 1622, 59078-970 Natal RN Brazil, Tel.: +55 84 3342-2236(5) - Natal - RN - Brazil
    E-mail: revpsi@cchla.ufrn.br