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O pensamento transdisciplinar como percepção do real e os desafios educacionais e planetários

RESUMO

Neste texto, temos como objetivo refletir sobre o pensamento transdisciplinar e os possíveis desdobramentos do princípio epistemológico da transdisciplinaridade no enfrentamento dos desafios educacionais e planetários. O princípio epistemológico da transdisciplinaridade tem como pressuposto a compreensão da dinâmica da realidade e dos seus diferentes níveis pela via da complexidade biofísica e cultural do real. Por esta razão, entendemos que é pela via do princípio epistemometodológico da transdisciplinaridade que se pode pensar em uma educação que leve em conta a nossa condição humana com vistas a uma civilização planetária. O texto foi elaborado com base na metodologia de pesquisa interpretativa, com apoio em referências bibliográficas, tendo como fonte primária os pensadores que abordam e analisam essa temática.

Palavras-chave:
Transdisciplinaridade; Consciência do real; Civilização planetária

ABSTRACT

In this text we aim to reflect on transdisciplinary thinking and the possible unfolding of the epistemological principle of transdisciplinarity in the face of educational and planetary challenges. The epistemological principle of transdisciplinarity is based on the understanding of the reality dynamics and its diverse levels through the biophysical and cultural complexity of reality. For this reason, we understand it is through the epistemomethodological principle of transdisciplinarity that one may think of an education which considers our human condition towards a planetary civilization. Based on the interpretative research methodology, we developed the text guided by bibliographical references, having as primary source the thinkers who analyze and deal with this theme.

Keywords:
Transdisciplinarity; Reality consciousness; Planetary civilization

Considerações iniciais

Iniciamos este texto movidos por dúvidas e questionamentos. Uma questão que nos incentiva para esta reflexão é se, após mais de dois milênios de especulações filosóficas e de avanços de pesquisas científicas, será possível constatar e afirmar que o homem, finalmente, está se deparando com os confins do conhecimento? Será que estamos nos umbrais de decifrar as forças mais potentes da nossa mente humana em termos de capacidade para conhecer a realidade que nos cerca e da qual fazemos parte? As perguntas fazem sentido após a declaração bombástica e em tom convincente de Michel Random (2000)RANDOM, Michel. O pensamento transdisciplinar e o real. Tradução de Lucia Pereira de Souza. São Paulo: Triom, 2000. quando, ao final das discussões do 1º Congresso Internacional da Transdisciplinaridade1 1 O 1º Congresso Internacional da Transdisciplinaridade foi realizado no Convento de Arrábida, na cidade de Setúbal, em Portugal, de 3 a 7 de novembro de 1994 e reuniu os principais estudiosos dessa temática, entre eles Edgar Morin, Michel Random, Basarab Nicolescu, Lima de Freitas e Ubiratan D’Ambrósio. A disseminação do termo transdisciplinaridade começou a se universalizar e teve grande repercussão nos meios acadêmicos, tendo em vista que o evento recebeu apoio da Unesco. afirmou que “[...] doravante a ciência encontrava-se diante dos confins do conhecimento” (RANDOM, 2000RANDOM, Michel. O pensamento transdisciplinar e o real. Tradução de Lucia Pereira de Souza. São Paulo: Triom, 2000. , p. 12, grifo do autor).

Em relação a essa ousada declaração, somos instados a perguntar: O homem, algum dia, poderá alcançar um estágio tal que lhe permita concluir que, finalmente, atingiu o último degrau do conhecimento? Random teria se baseado em quais argumentos para expressar tamanha convicção? A perspectiva de um pensamento transdisciplinar teria um potencial tão significativo a ponto de permitir vislumbrar os confins do conhecimento? Sem pretender antecipar uma resposta a essa problemática, entendemos que, devido ao espírito da historicidade humana e, por via de consequência, do conhecimento como produto da História da humanidade, parece-nos que tal pretensão ainda está muito longe de ser abarcável e, mais, que essa meta é e será sempre algo inatingível.

Inicialmente, é importante ressaltar que, para alguns estudiosos do assunto, as Ciências denominadas atualmente de humanas e/ou científicas tinham a pretensão de um saber transdisciplinar desde o século XII. Com o advento e instauração dos princípios da ciência clássica e da Revolução Industrial e a partir da organização moderna do pensamento científico constitui-se, porém, um conceito de ciência pautado pela disciplinaridade dos saberes, pela especialização de áreas específicas e pela fragmentação dos conhecimentos. Esse modelo de racionalidade produziu o que Morin (2000b)MORIN, Edgar; LE MOIGNE, Jean-Louis. A inteligência da complexidade. Tradução de Nurimar Maria Falci. São Paulo: Peirópolis, 2000. denomina de “paradigma da simplificação”.2 2 Ao comentar os princípios que comandam a inteligibilidade clássica Morin escreve: “Chamo paradigma de simplificação ao conjunto dos princípios de inteligibilidade próprios da cientificidade clássica, e que, ligados uns aos outros, produzem uma concepção simplificadora do universo (físico, biológico, antropossocial)” (MORIN, 2000b, p. 330). O homem pretendeu compreender a complexidade do mundo biofísico e cultural pela via da simplificação, ignorando seu caráter complexo. Somente com as descobertas da Física Quântica, já no final do século XIX, ao introduzir o princípio da não separabilidade e, sobretudo, com o Colóquio de Veneza, em 1986, o termo transdisciplinaridade começa a ser delineado dentro de uma concepção complexa de entender o mundo, o homem e a sociedade. Muitos pensadores, desde então, têm trabalhado e disseminado o pensamento transdisciplinar. Entre eles destacam-se pensadores como Edgar Morin, Basarab Nicolescu, Lima de Freitas, Ubiratan D’Ambrosio e Maria Cândida Moraes que, a partir dos novos influxos da ciência, pesquisam e incorporam o princípio da transdisciplinaridade.

A transdisciplinaridade encontra na teoria da complexidade um dos seus principais pilares de sustentação. Isso ocorre, sem dúvida, porque nos últimos anos, “A Teoria da Complexidade é um dos campos mais férteis pelos quais avança a ciência contemporânea. É uma teoria que se volta à compreensão, explicação e, quando possível e de forma aproximada, previsão do funcionamento de sistemas complexos” (FOLLONI, 2016FOLLONI, André. Introdução à teoria da complexidade. Curitiba: Juruá, 2016., p. 113).

A percepção da importância do avanço dos estudos sobre a complexidade levou Maria Cândida Moraes (2008, p. 95)MORAES, Maria Cândida. Ecologia dos saberes: complexidade, transdisciplinaridade e educação: novos fundamentos para iluminar novas práticas educacionais. São Paulo: Willis Harman House/Instituto Antakarana, 2008. a afirmar que “[...] a ciência vem sinalizando o surgimento de uma estrutura paradigmática de natureza complexa ou ecossistêmica para explicar o funcionamento do mundo e da vida” e a teoria da complexidade, portanto, apresenta-se como “uma maneira de pensar e de compreender a dinâmica da realidade” (MORAES, 2008MORAES, Maria Cândida. Ecologia dos saberes: complexidade, transdisciplinaridade e educação: novos fundamentos para iluminar novas práticas educacionais. São Paulo: Willis Harman House/Instituto Antakarana, 2008. , p. 125). De qualquer forma, o cérebro humano e o campo do conhecimento são ainda matéria de grande especulação e, até o presente, considerados indecifráveis e, por esta razão, num futuro próximo, ainda veremos muitos avanços.

A dificuldade em operarmos com um pensamento complexo e transdisciplinar, no entendimento de Morin (2012)MORIN, Edgar. O método 3: o conhecimento do conhecimento. Tradução de Juremir Machado da Silva. 4. ed. Porto Alegre: Sulina , 2012., é consequência de um total desconhecimento do conhecimento e das formas como conhecemos. O percurso do conhecimento é marcado pela pluralidade de interpretações com avanços e recuos ao longo da História. As epistemologias surgem e se fortalecem na intenção de indicar caminhos que levem a certezas e verdades incontestáveis. O filósofo Descartes é o pensador que dá grande impulso a essas promessas e, ao criar o seu método, o descrevia como um caminho seguro para chegar à verdade. As certezas e verdades, no entanto, nunca serão ou poderão ser totalmente postas, uma vez que elas são superáveis e contrastáveis no tempo e a recorrência a elas revela o quanto elas têm a marca da historicidade e da hermenêutica atual. A incerteza, a desordem, a ambivalência, a contradição, a ambiguidade e a subjetividade raramente foram contempladas pelas principais correntes do pensamento tendo em vista seu caráter desviante.

Os modelos ocidentais de pensar, por muitos séculos, operaram no sentido de simplificar o que, por natureza, é complexo. A via privilegiada para acessar e produzir o conhecimento foi, muitas vezes, pela redução daquilo que é complexo em algo simples. A ciência moderna, com base no método científico, promoveu e continua a promover enormes avanços tecnológicos a partir da fragmentação, da hiperespecialização do conhecimento e da redução da complexidade. Por esta razão, mesmo que represente um grande avanço em relação a outras formas tradicionais de conhecimento, esse modelo simplificador e disciplinar é responsável por produzir as bases epistemológicas de uma forma de conhecer que não contempla a todas as pretensões do saber e, portanto, já não corresponde aos reais desafios que se apresentam para pensar os contextos socioeducacionais e planetários da humanidade.

Os resultados e produtos do modelo de conhecimento científico e simplificador, reconhecidamente, não deixam dúvida quanto à sua eficiência. Por outro lado, ele apresenta inúmeras limitações e restrições quando se trata de fornecer explicações plausíveis sobre determinados contextos e realidades complexas. Por consequência, esse paradigma tem sido objeto de críticas em razão de sua insuficiência epistemológica ao explicar fenômenos complexos.

Se a teoria da complexidade apresenta-se como um campo relativamente novo, o princípio da transdisciplinaridade é algo ainda mais recente e emergente. Na Apresentação da obra Educação e transdisciplinaridade3 3 Este livro registra a organização e funcionamento do Centro de Estudos da Transdisciplinaridade (Cetrans) e reúne os trabalhos e textos mais importantes do seminário organizado pelos pesquisadores do Cetrans em 1999. os autores escrevem: “Quando falamos de transdisciplinaridade estamos colocando em evidência uma visão emergente, que é uma nova atitude perante o saber, um novo modo de ser” (NICOLESCU et al., 2000NICOLESCU, Basarab et al. Educação e transdiciplinaridade . São Paulo: Editora USP ; Brasília, DF: Unesco, 2000. Apresentação. Disponível em: https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000127511. Acesso em: 05 abr. 2020.
https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf...
, p. 5). Este modo de pensar é compartilhado também por Moraes e Navas (2015)MORAES, Maria Cândida; NAVAS, Juan Miguel B. (colab.). Transdisciplinaridade, criatividade e educação: Fundamentos ontológicos e epistemológicos. Campinas, SP: Papirus, 2015. tendo em vista que, segundo esses autores, a transdisciplinaridade abre muitas possibilidades e perspectivas no âmbito da educação escolar, tanto no sentido de lidar com a questão do conhecimento quanto para o despertar de uma consciência planetária.

O pensamento transdisciplinar como compreensão e consciência do real

A abordagem da transdisciplinaridade, por ser algo recente e de difícil assimilação, remete-nos a muitas dúvidas e, sobretudo, a interrogações. Isto porque, nessa sua breve trajetória de pouco mais de 20 anos, a temática da transdisciplinaridade ainda vive uma fase de esclarecimentos e consolidação e, portanto, suscita muitas questões que ainda não foram ou que não puderam ser respondidas de maneira convincente.

Random (2000, p. 17)RANDOM, Michel. O pensamento transdisciplinar e o real. Tradução de Lucia Pereira de Souza. São Paulo: Triom, 2000. formulou algumas dessas perguntas da seguinte forma: “Por que o pensamento transdisciplinar ainda é tão pouco percebido pelo público? Seria ele uma ciência, uma filosofia, uma metafísica, uma poética, uma arte, uma metodologia, uma disciplina em si mesma, uma ferramenta ou tudo isso ao mesmo tempo?”. Em nossa concepção, no entanto, essas perguntas precisam ser precedidas por outra, de caráter ainda mais abrangente e que pode ser assim formulada: Como nós, seres humanos, podemos compreender a complexidade do real, como uma intrincada teia de relações e interconexões e, por consequência, enfrentar os desafios que se apresentam no mundo contemporâneo? Antecipando uma possível resposta, diríamos que é pela via da transdisciplinaridade, assentada nos princípios da complexidade, que podemos nos aproximar da complexidade do real e nos habilitar a dialogar com este mundo complexo.

A compreensão complexa, pela via transdisciplinar, requer que saibamos referenciar a dimensão bio-ontológica do real. Referenciar o real não é algo forjado a partir de dados fictícios, pois, como observam Morin e Le Moigne (2000)MORIN, Edgar; LE MOIGNE, Jean-Louis. A inteligência da complexidade. Tradução de Nurimar Maria Falci. São Paulo: Peirópolis, 2000., a complexidade não está na espuma fenomenal e, sim, é uma dimensão inerente a toda a realidade revelada em teorias científicas mais recentes.

Para demonstrar o paradoxo entre o ser e o pensar e, portanto, o quanto a complexidade deve ser traduzida em equações e modelos compatíveis com o real, vale lembrar a pergunta elaborada por Nicolescu (1999a, p. 41)NICOLESCU, Basarab. O manifesto da transdisciplinaridade. Tradução de Lucia Pereira de Souza. São Paulo: Triom, 1999.: “Teria a complexidade sido criada por nossa cabeça ou se encontra na própria natureza das coisas e dos seres?”. Por tais razões, parece-nos óbvio que, doravante, para viver e sobreviver neste mundo dependemos cada vez mais de uma compreensão e consciência do real. Em relação a esse dilema cognitivo, Demo (2002, p. 185)DEMO, Pedro. Complexidade e aprendizagem: a dinâmica não linear do conhecimento. São Paulo: Atlas, 2002. é enfático ao afirmar que “Se não sei bem o que seria o real ontologicamente falando, muito menos sei bem como seria possível reconstruí-lo da maneira mais inteligente, epistemologicamente falando”. A frase nos coloca diante do impasse criado pelas diferentes epistemologias, ao longo de toda a História da humanidade, na tentativa de dialogar com o real.

A percepção e consciência do real são, portanto, uma pré-condição para estabelecer uma compreensão transdisciplinar. Morin, no livro Ciência com consciência, faz um comparativo entre a velha e a nova transdisciplinaridade. Escreve:

Precisamos, portanto, para promover uma nova transdisciplinaridade, de um paradigma que, decerto, permite distinguir, separar, opor, e, portanto, dividir relativamente esses domínios científicos, mas que possa fazê-los se comunicarem sem operar a redução. O paradigma que denomino simplificação (redução/separação) é insuficiente e mutilante. É preciso um paradigma de complexidade, que, ao mesmo tempo, separe e associe, que conceba os níveis de emergência da realidade sem os reduzir às unidades elementares e às leis gerais (MORIN, 2000bMORIN, Edgar; LE MOIGNE, Jean-Louis. A inteligência da complexidade. Tradução de Nurimar Maria Falci. São Paulo: Peirópolis, 2000., p. 138).

A velha transdisciplinaridade está implícita em diferentes correntes históricas do pensamento que de uma forma ou de outra buscaram realizar uma leitura do real. Ela também se confunde com tentativas de enfoques inter/pluri/multidisciplinares e que são construídas sobre princípios simplificadores da realidade. A nova transdisciplinaridade, por sua vez, é um convite para colocar o pensamento na esteira dos princípios cognitivos da complexidade através da religação de diferentes domínios de saberes e níveis da realidade. É nova, portanto, porque a transdisciplinaridade adquire um novo sentido a partir do avanço dos estudos da teoria da complexidade.

Ainda segundo Morin (2002a, p. 79)MORIN, Edgar. Articular os saberes. In: ALVES, Nilda; GARCIA, Regina L. (org.). O sentido da escola. 3. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2002a. p. 65-80., “a transdisciplinaridade caracteriza-se muitas vezes por esquemas cognitivos que atravessam as disciplinas, às vezes com tal virulência que as colocam em sobressalto”. Esta afirmação é ampliada e enriquecida por Nicolescu (1999)NICOLESCU, Basarab. O manifesto da transdisciplinaridade. Tradução de Lucia Pereira de Souza. São Paulo: Triom, 1999. ao explicar que a transdisciplinaridade nos remete ao que está entre as disciplinas, através das diferentes disciplinas e além de toda e qualquer disciplina, ou seja, ao próprio homem: homem, na condição de sujeito transdisciplinar que cria, imagina, reflete na condição de agente indispensável à afirmação do método transdisciplinar. A complexidade revela-se na pesquisa disciplinar e esta nutre-se da complexidade, ou seja, em um conhecimento disciplinar pertinente há uma redução e não anulação da complexidade.

A transdisciplinaridade tem a pretensão de buscar a superação do universo fechado produzido pela ciência ao trazer à tona a multiplicidade dos modos de produção do conhecimento e ao reconhecer a importância da reintegração do sujeito no processo de observação científica, uma vez que existe uma forte interdependência entre observador, processo de observação e objeto observado. Logo, pensar a transdisciplinaridade pressupõe que se reafirme o valor de cada sujeito como portador e produtor de um pensamento contextual e complexo, organizado a partir de uma reforma do pensamento que viabiliza o uso adequado da inteligência para um pensar transdisciplinar, uma vez que, “[...] a transdisciplinaridade só representa uma solução quando se liga a uma reforma do pensamento. Faz-se necessário substituir um pensamento que está separado por outro que está ligado” (MORIN, 2004aMORIN, Edgar. Educação e complexidade: os sete saberes e outros ensaios. Tradução de Edgard de Assis Carvalho. São Paulo: Cortez , 2004a., p. 20).

A transdisciplinaridade é produto de uma percepção do real, cujos princípios são extraídos de diferentes Ciências contemporâneas, sobretudo da Biologia, da Cibernética e da Física. Na compreensão de Nicolescu (1999, p. 47)NICOLESCU, Basarab. O manifesto da transdisciplinaridade. Tradução de Lucia Pereira de Souza. São Paulo: Triom, 1999., “Os três pilares da transdisciplinaridade - os níveis de Realidade, a lógica do terceiro incluso e a complexidade - determinam a metodologia da pesquisa transdisciplinar”. Esses são considerados os três pilares4 4 Devido às características próprias deste artigo, vamos nos limitar a fazer uma breve explicação sobre cada um desses três pilares. Na impossibilidade de analisar em profundidade e tecer maiores comentários sobre cada um dos pilares recomendamos a leitura completa das obras citadas e que constam nas referências. básicos que dão suporte e sustentação ao princípio epistemometodológico da transdisciplinaridade e eles representam um duro golpe na visão clássica do mundo. É um pressuposto óbvio que para a compreensão de algo que se apresenta como complexo é obrigatório dispor de uma epistemologia complexa e transdisciplinar.

O primeiro pilar da transdisciplinaridade indica-nos que a realidade é constituída por diferentes níveis, como o nível material e o nível virtual. Isso pressupõe que precisamos levar em conta que a realidade biofísica e cultural é multidimensional e que é um erro considerá-la de forma simples e linear com base em uma percepção unidimensional. A realidade é multidimensional em sua constituição. Desta forma, “A dicotomia clássica real-imaginário desaparece assim na visão transdisciplinar. Um nível de Realidade é uma dobra do conjunto dos níveis de percepção e um nível de percepção é uma dobra do conjunto dos níveis de Realidade. O real é uma dobra do imaginário e o imaginário é uma dobra do real” (NICOLESCU, 1999NICOLESCU, Basarab. O manifesto da transdisciplinaridade. Tradução de Lucia Pereira de Souza. São Paulo: Triom, 1999., p. 73). E essa percepção dos diferentes níveis de realidade produz e possibilita diferentes níveis de compreensão.

O segundo pilar, a lógica do terceiro incluso, manifesta-se na compreensão transdisciplinar que está vinculada diretamente à percepção dos diferentes níveis de realidade oportunizada pela mecânica quântica e que nos permite superar a lógica clássica do terceiro excluído. Para Nicolescu

A transdisciplinaridade é a transgressão da dualidade que opõe os pares binários: sujeito - objeto, subjetividade - objetividade, matéria - consciência, natureza - divino, simplicidade - complexidade, reducionismo - holismo, diversidade - unidade. Esta dualidade é transgredida pela unidade aberta que engloba tanto o Universo como o ser humano (NICOLESCU, 1999NICOLESCU, Basarab. O manifesto da transdisciplinaridade. Tradução de Lucia Pereira de Souza. São Paulo: Triom, 1999., p. 57).

Na leitura da lógica clássica o axioma da identidade e o princípio da não contradição não permitem a possibilidade de um terceiro incluído. Tudo é explicado e funciona na forma binária ou/ou e não na percepção conectiva e/e. Daí, segundo Nicolescu (1999, p, 30, grifos do autor)NICOLESCU, Basarab. O manifesto da transdisciplinaridade. Tradução de Lucia Pereira de Souza. São Paulo: Triom, 1999.: “A perplexidade produzida por esta situação é bem compreensível: podemos afirmar se formos sãos de espírito que a noite é o dia, o preto é o branco, o homem é a mulher, a vida é a morte?”.

O terceiro pilar, o da complexidade é, sem dúvida, o mais amplo e o que revela, com maior vigor, a necessidade de uma visão transdisciplinar para que possamos dialogar com o real. Sem a percepção e visão transdisciplinar não há conhecimento complexo, pois o complexo significa que tudo tem a ver com tudo, tudo está tecido junto, entretecido e interligado (MORIN, 2006MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Tradução de Eliane Lisboa. Porto Alegre: Sulina, 2006.). Os caminhos que levam a uma compreensão do mundo presente, biofísico e cultural pressupõem uma percepção e compreensão a partir dos princípios cognitivos da teoria da complexidade. Morin, sempre muito cauteloso quando se trata de definições e nomenclatura, escreve: “Chamo paradigma da complexidade ao conjunto dos princípios de inteligibilidade que, ligados uns aos outros, poderiam determinar as condições de uma visão complexa do universo (físico, biológico, antropossocial)” (MORIN, 2000b, p. 330, grifos do autor). Ora, se a realidade é complexa e multidimensional, precisamos fazer uso de princípios cognitivos que nos permitam produzir conhecimentos pertinentes, ou seja, possibilitem acessar e compreender a complexidade e multidimensionalidade dessa realidade. Não se pode excluir a ideia do simples com a complexidade e nem se pode excluir a ideia do complexo com o simples, pois a complexidade é a união do simples com o complexo.

Esses são os princípios básicos que abrem o horizonte para uma percepção complexa e transdisciplinar.5 5 Segundo Nicolescu (1999), existem diferentes graus de transdisciplinaridade que podem ser expressos em diferentes enfoques: disciplinar, pluridisciplinar, interdisciplinar e transdisciplinar. Os graus de transdisciplinaridade são definidos a partir de uma maior fidelidade ou um maior distanciamento dos pilares da transdisciplinaridade. A transdisciplinaridade, entretanto, além de se apoiar nesses pilares que ultrapassam e superam alguns dos princípios da ciência clássica que produz a fragmentação do conhecimento, recoloca no cenário científico outros modelos de saberes que provêm da tradição, da emoção, da sensibilidade e do imaginário, destacando a sua importância e o seu papel na construção dos conhecimentos. Critica os avanços de um saber cada vez mais enciclopédico, cumulativo, produzido à custa do crescente empobrecimento do ser e do aumento da desigualdade entre os que o possuem e os que dele são e estão desprovidos. E Morin, ao realizar esta crítica, coloca como imperativo a formação de “[...] espíritos capazes de organizar seus conhecimentos em vez de armazená-los por uma acumulação de saberes” (2002b, p. 18), o que abre as portas para a constituição de um conhecimento complexo capaz de situar qualquer informação em seu contexto.

É importante esclarecer a sutil diferença entre pensamento e prática transdisciplinar. Morin, o arquiteto da teoria da complexidade, escreveu em diferentes momentos de sua vasta obra que a teoria da complexidade pode ser compreendida de acordo com o contexto, como filosofia, epistemologia, fenômeno, lógica, princípio, prática, paradigma e outras denominações. Em Ciência com consciência (MORIN, 2000bMORIN, Edgar; LE MOIGNE, Jean-Louis. A inteligência da complexidade. Tradução de Nurimar Maria Falci. São Paulo: Peirópolis, 2000., p. 335), ao escrever um capítulo com o título Teoria e método, Morin esclarece que “Uma teoria não é o conhecimento; ela permite o conhecimento. Uma teoria não é uma chegada: é a possibilidade de uma partida. Uma teoria não é uma solução; é a possibilidade de tratar um problema”. Desta forma, uma teoria, pela atividade mental do sujeito, pode desempenhar uma função tanto teórica quanto prática.

A educação escolar transdisciplinar e os desafios educacionais e planetários

O conhecimento escolar, de um modo geral, não é pertinente porque é transmitido aos alunos em forma de conteúdos fragmentados e enclausurados, em espaço disciplinar, sem a necessária contextualização. Sem a contextualização e religação dos saberes o aluno não consegue perceber os vínculos entre as partes e o sentido do todo. O que significa dizer que ao estudar as partes (disciplina) não se pode descuidar do todo e que ao estudar o todo (complexo/transdisciplinar) não se pode perder de vista as partes. Para Morin (2000a)MORIN, Edgar; LE MOIGNE, Jean-Louis. A inteligência da complexidade. Tradução de Nurimar Maria Falci. São Paulo: Peirópolis, 2000., o conhecimento pertinente deve promover a inteligência geral apta a se referir ao complexo, ao contexto, de modo multidimensional e dentro da concepção global, posto que a complexidade implica a união entre a unidade e a multiplicidade.

Se o conhecimento é algo múltiplo, complexo e transdisciplinar por natureza (PETRÁGLIA, 2015PETRÁGLIA, Izabel. O processo de produção do conhecimento: complexidade e transdisciplinaridade. In: BEHRENS, Marilda Aparecida; ENS, Romilda Teodora. Complexidade e transdisciplinaridade: novas perspectivas teóricas e práticas para a formação de professores. Curitiba: Appris, 2015. p. 75-106.), entendemos que é tarefa urgente e inadiável da escola repensar as concepções, o estilo de pensamento, a problematização da realidade, as relações humanas e com a vida, bem como as estratégias, dentre outros, utilizados e veiculados no processo de ensino-aprendizagem. Quanto a isso, Nicolescu é enfático ao escrever: “O advento de uma cultura transdisciplinar, que poderá contribuir para a eliminação das tensões que ameaçam a vida em nosso planeta, é impossível sem um novo tipo de educação, que leve em contatodasas dimensões do ser humano” (NICOLESCU, 1999NICOLESCU, Basarab. O manifesto da transdisciplinaridade. Tradução de Lucia Pereira de Souza. São Paulo: Triom, 1999., p. 131, grifo do autor). Uma cultura transdisciplinar só pode medrar onde e quando a educação escolar estiver apta a operar a partir dos princípios da transdisciplinaridade com foco na formação de um sujeito transdisciplinar.

A transdisciplinaridade, requerida e resultante de um olhar complexo, desperta para a consciência do real e indica que “Devemos tomar consciência de que partilhamos de um mesmo destino planetário” (HESSEL; MORIN, 2012HESSEL, Stéphane; MORIN, Edgar. O caminho da esperança. Tradução de Edgard de Assis Carvalho e Mariza Perassi Bosco. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012., p. 7). A ambivalência dos fatos e fenômenos revela, conforme os autores, que se o fenômeno da mundialização e da globalização pode representar o melhor dos mundos ele, ao mesmo tempo, carrega um potencial de se traduzir naquilo que pode ocorrer de pior à humanidade. É por esse potencial inerente ao processo educativo que a transdisciplinaridade, como concepção e princípio metodológico, é vista como uma preocupação constante no campo epistemológico e nas práticas escolares.

Segundo Folloni (2016, p. 101)FOLLONI, André. Introdução à teoria da complexidade. Curitiba: Juruá, 2016., essa atitude se traduz em um paradoxo epistêmico: “para conhecer é preciso reduzir, mas reduzir inviabiliza o conhecer. Daí a complexidade ser compreendida, sobretudo, como um desafio”.

As operações cognitivas com viés transdisciplinar pressupõem ainda desconforto, incerteza e, principalmente, confronto. É do confronto entre as disciplinas que obtemos, por exemplo, dados novos que, articulados entre si, resultam numa visão ampliada de ecologia, sistema e realidade. A visão transdisciplinar estrutura-se por sobre o diálogo, por sobre a discussão que possibilita a compreensão partilhada, o respeito à alteridade do outro e a convivência num mesmo planeta Terra. Em momento algum a transdisciplinaridade preocupa-se com a acumulação dos conhecimentos. Ela busca, na verdade, a constante transformação das ideias, a contínua reorganização dos saberes, de forma que é necessário instituir “um modo de conhecimento capaz de apreender os objetos em seu contexto, sua complexidade, seu conjunto” (MORIN, 2000aMORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. Tradução de Catarina Eleonora F. da Silva e Jeanne Sawaya. 3. ed. São Paulo: Cortez; Brasília, DF: Unesco, 2000a. , p.14).

A promoção da transdisciplinaridade, conforme Morin (2002b)MORIN, Edgar. A religação dos saberes: o desafio do século XXI. Tradução e notas de Flávia Nascimento. 3. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil , 2002b. , está sempre na dependência da comunicação entre os saberes sem que se opere, no entanto, redução e fragmentação. Toda redução é mutilante e vai na contramão de tudo aquilo que propõe o pensamento complexo e transdisciplinar, que ao estudar o todo não perde de vista as partes e ao estudar as partes não descuida do todo; e que ao mesmo tempo em que separa, associa. É necessário ter o devido cuidado, no entanto, para que o movimento transdisciplinar não anule, negue ou apague o enfoque disciplinar, até porque, nas palavras de Morin (2004b, p. 115)MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Tradução de Eloá Jacobina. 9. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil , 2004b. , “Não se pode demolir o que as disciplinas criaram; não se pode romper todo o fechamento; há o problema da disciplina, o problema da ciência, bem como o problema da vida; é preciso que uma disciplina seja, ao mesmo tempo, aberta e fechada”.

Da mesma forma, o conhecimento transdisciplinar não objetiva encontrar o princípio unitário de todos os acontecimentos, pois isto acabaria com toda a diversidade e multiplicidade de faces do real, ignoraria os vazios, as incertezas, aniquilaria o princípio da comunicação. Tampouco a transdisciplinaridade objetiva a totalidade, a completude das informações sobre um fenômeno estudado. O que ela busca é o respeito às diferentes dimensões do objeto estudado, pois só assim consegue manter em seu interior um princípio de incompletude e incerteza. Assim

embora a transdisciplinaridade não seja uma nova disciplina, nem uma nova hiperdisciplina, alimenta-se da pesquisa disciplinar que, por sua vez, é iluminada de maneira nova e fecunda pelo conhecimento transdisciplinar. Neste sentido, as pesquisas disciplinares e transdisciplinares não são antagonistas, mas complementares (NICOLESCU, 2000NICOLESCU, Basarab et al. Educação e transdiciplinaridade . São Paulo: Editora USP ; Brasília, DF: Unesco, 2000. Apresentação. Disponível em: https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000127511. Acesso em: 05 abr. 2020.
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, p. 12).

No entendimento de Morin (2006, p. 50)MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Tradução de Eliane Lisboa. Porto Alegre: Sulina, 2006., para os parâmetros da transdisciplinaridade, o “[...] quadro atual onde miríades de dados se acumulam nos alvéolos disciplinares cada vez mais estreitos e fechados” é algo inaceitável e, para tanto, busca promover a reflexão a respeito da importância das relações entre os conteúdos de uma disciplina e de outra, a superação das fronteiras entre as ciências, em prol da construção de um saber plural, global, multidimensional, integrado e integrador.6 6 Para Mariotti (2010), a expressão “pensamento integrador” é equivalente ao pensamento complexo. Ele utiliza de forma preferencial a expressão pensamento integrador a pensamento complexo na formação de recursos humanos e líderes empresariais na escola de negócios em Pós-Graduação (Business School São Paulo - BSP). A escola mantém parceria com um grupo da Universidade de Toronto (Canadá), que também prepara executivos por meio de MBA e que criou um centro de pensamento integrador que se utiliza do pensamento complexo aplicado aos negócios. Da mesma forma, entende Nicolescu (2000, p. 11)NICOLESCU, Basarab. Um novo tipo de conhecimento - Transdisciplinaridade. In: Educação e transdiciplinaridade. São Paulo: Editora USP; Brasília, DF: Unesco, 2000. p. 09-25. Disponível em: https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000127511. Acesso em: 05 abr. 2020.
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que “Para o pensamento clássico, a transdisciplinaridade é um absurdo porque não tem objeto. Para a transdisciplinaridade, por sua vez, o pensamento clássico não é absurdo, mas seu campo de aplicação é considerado como restrito”. De acordo com o pensamento complexo e transdisciplinar, são os problemas, os desafios, as emergências novas e inéditas que induzem as ciências a estudá-los, permitindo a abertura e o fluxo entre as diferentes áreas do saber e com as ligações, interações e implicações que possam ocorrer entre uma e outra área, rompendo com o estigma de que certas disciplinas possam ser fundamento de outras ou mais importantes que outras.

No seu mais recente livro, Ensinar a viver: manifesto para mudar a educação (2015), como de resto em muitas das suas publicações, Morin retoma, aprofunda e amplia, com novos matizes, alguns dos seus principais conceitos. Nesta obra, para ficar apenas em um exemplo, ele utiliza, pela primeira vez, o termo antropocena7 7 O termo antropocena foi criado por Paul Crutzen, ganhador do Prêmio Nobel de Química, e recebeu grande força a partir de 2008 para indicar a era mais recente da História do planeta Terra. para caracterizar a efervescência da história atual que nos situa como membros de uma civilização planetária. Segundo ele, estamos vivendo em uma “[...] era simultaneamente antropocena, do ponto de vista da história da Terra, e planetária, do ponto de vista da história das sociedades humanas” (MORIN, 2015MORIN, Edgar. Ensinar a viver: manifesto para mudar a educação. Tradução de Edgard de Assis Carvalho e Mariza Perassi Bosco. Porto Alegre: Sulina , 2015., p. 10).

Pela via da transdisciplinaridade abre-se o caminho para a compreensão de nossa condição de mundialização planetária cujo objetivo é despertar para a consciência de nosso destino planetário. De qualquer forma, o propósito da educação planetária, ao nos colocar no rumo da compreensão de que somos parte de um mesmo planeta, é fazer-nos despertar para uma sociedade-mundo, tendo em vista que “[...] percebemos que estamos perdidos em uma história repleta de ruídos e de horrores, expostos ao futuro incerto da humanidade. O planeta mundializado não produziu a ‘sociedade mundo’, solidária e fraternal” (MORIN, 2013bMORIN, Edgar. Meus filósofos. Tradução de Edgard de Assis Carvalho e Mariza Perassi Bosco. Porto Alegre: Sulina , 2013b., p. 174).

Após anos de dedicação, estudo e pesquisa sobre a ciência e a teoria da complexidade aplicadas a diferentes contextos, Morin, assim como outros autores que se debruçam sobre esta temática, defende que: “A missão da educação para a era planetária é fortalecer as condições de possibilidade da emergência de uma sociedade-mundo composta por cidadãos protagonistas, consciente e criticamente comprometidos com a construção de uma civilização planetária” (MORIN; CIURANA; MOTTA, 2003MORIN, Edgar; CIURANA, Emilio-Roger; MOTTA, Raúl D. Educar na era planetária. O pensamento complexo como método de aprendizagem pelo erro e incerteza humana. Tradução de Sandra T. Valenzuela. São Paulo: Cortez ; Brasília DF: Unesco, 2003., p. 98). E, portanto, ratificam esses autores, que, sendo a humanidade uma entidade planetária, o principal objetivo da educação “é educar para o despertar de uma sociedade-mundo” (2003, p. 63).

Se a comunidade educativa levar a sério esta missão, a escola pode coordenar um projeto pedagógico de viés transdisciplinar que promova uma mediação estruturante do processo pedagógico, adotando estratégias que favoreçam o desenvolvimento transpessoal, transcultural e transnacional. O desafio da educação escolar é propiciar às novas gerações uma compreensão da totalidade humana tendo em vista fazer deste mundo uma Terra-Pátria de todos com a perspectiva de uma civilização planetária. Para que isso ocorra, é necessário compreender o processo da gênese e do desenvolvimento da História humana desde os primórdios até a atual era antropocena e planetária. Conhecer a identidade terrena, cósmica e planetária é indispensável ao ser humano para se compreender e compreender a humanidade à qual pertence. Esta especificidade do sujeito humano exige da escola “ensinar a condição humana” (MORIN, 2000aMORIN, Edgar; LE MOIGNE, Jean-Louis. A inteligência da complexidade. Tradução de Nurimar Maria Falci. São Paulo: Peirópolis, 2000.) como um dos saberes imprescindíveis à educação do futuro.

Eis os grandes desafios para a educação escolar na era planetária: propiciar a compreensão das múltiplas identidades que integram não só a identidade do povo brasileiro, mas de toda a humanidade que habita o planeta Terra por meio de um currículo que leve o aluno a conhecer e a valorizar suas origens étnicas e a se reconhecer como cidadão de uma Terra-Pátria de todos. Essa visão global e essa consciência planetária, segundo D’Ambrósio (1997), dificilmente podem ser obtidas fora do âmbito da transdisciplinaridade, pois o conhecimento transdisciplinar é transcultural, transreligioso, transpolítico e transnacional em sua essência. É importante ter presente que “[...] racionalidade fechada produz irracionalidade. Ela é evidentemente incapaz de enfrentar o desafio dos problemas planetários” (MORIN; KERN, 1995MORIN, Edgar; KERN, Anne B. Terra-Pátria. Tradução de Paulo Neves. Porto Alegre: Sulina , 1995., p. 95). A aventura descontrolada da tecnociência e os avanços de civilização nacionalista podem estar na raiz do agravamento da barbárie.

A condição humana no mundo, a partir da história recente, descobre-se e torna-se condição da era planetária. A consciência desta nova era é fundamental e está exigindo um novo modelo de pensamento para despertar a consciência antropológica, a consciência ecológica, a consciência cívica, a consciência espiritual da condição humana como unidade e diversidade representada no trinômio indivíduo/espécie/sociedade.

O planeta exige um pensamento policêntrico capaz de apontar o universalismo, não abstrato, mas consciente da unidade/diversidade da condição humana; um pensamento policêntrico nutrido das culturas do mundo. Educar para este pensamento é a finalidade da educação do futuro, que deve trabalhar na era planetária, para a identidade e a consciência terrenas (MORIN, 2000aMORIN, Edgar; LE MOIGNE, Jean-Louis. A inteligência da complexidade. Tradução de Nurimar Maria Falci. São Paulo: Peirópolis, 2000., p. 64-65, grifo do autor).

A construção de uma cidadania planetária é também uma pauta constante nas obras e conferências do filósofo e teólogo brasileiro Leonardo Boff (2003)BOFF, Leonardo. Civilização planetária: desafios à sociedade e ao cristianismo. Rio de Janeiro: Sextante, 2003. . Suas obras fazem a apologia em apoio a uma mundialização e globalização mais cooperativa e solidária, que contemple e defenda todas as formas de vida existentes no planeta; dos interesses dos povos, que respeite suas tradições no sentido de promover a integração da diversidade cultural da humanidade, e de uma economia solidária como forma de colaborar para diminuir os efeitos perversos das diferenças socioeconômicas.

Considerações finais

Segundo Nicolescu (1999, p. 40)NICOLESCU, Basarab. O manifesto da transdisciplinaridade. Tradução de Lucia Pereira de Souza. São Paulo: Triom, 1999., “Edgar Morin tem razão quando assinala a todo momento que o conhecimento do complexo condiciona uma política de civilização”.8 8 Edgar Morin, ao completar 80 anos, foi homenageado pela Unesco com o título de um humanista planetário em reconhecimento à grande obra desse filósofo francês contemporâneo em prol de uma civilização planetária. E um grande desafio que se apresenta à educação atual é, sem dúvida, criar, pela via da transdisciplinaridade, uma civilização de alcance planetário que, com base no diálogo intercultural, se aproxime da individualidade de cada um, daquilo que diz respeito à inteireza do ser. A grande finalidade da percepção e do trabalho transdisciplinar é garantir a formação de um sujeito portador de uma identidade individual, cultural, social, cósmica e futura, ou seja, de um cidadão planetário que reconheça a Terra como Pátria e, por conseguinte, se reconheça como concidadão de todos os outros povos.

A Carta da Transdisciplinaridade, elaborada em 1994, entre outras considerações, em seu artigo 8º, pondera que:

O reconhecimento da Terra como pátria é um dos imperativos da transdisciplinaridade. Todo ser humano tem direito a uma nacionalidade, mas com o título de habitante da Terra, ele é ao mesmo tempo um ser transnacional. O reconhecimento, pelo direito internacional, dessa dupla condição - pertencer a uma nação e à Terra - constitui um dos objetivos da pesquisa interdisciplinar (CARTA DA TRANSDISCIPLINARIDADE, 1994CARTA DA TRANSDISCIPLINARIDADE. In: TORRE, Saturnino de La; PUJOL, Maria Antônia; MORAES, Maria Cândida (coord.). Documentos para Transformar a educação: um olhar complexo e transdisciplinar. Rio de Janeiro: Wak Editora, 2013. p. 23-27.).

É da natureza da percepção transdisciplinar uma postura de democracia cognitiva que leve em conta os diferentes tipos de conhecimento sem cultivar preconceitos e hierarquização em relação aos saberes. A sobrevalorização da área das Ciências Exatas, em detrimento das Ciências Humanas e outros tipos de conhecimento, já foi objeto de crítica por parte de Morin (2000b)MORIN, Edgar; LE MOIGNE, Jean-Louis. A inteligência da complexidade. Tradução de Nurimar Maria Falci. São Paulo: Peirópolis, 2000. e de muitos outros pensadores.

Pela via do princípio epistemometodológico da transdisciplinaridade é possível dar um novo rumo pedagógico ao processo de educação escolar que leve em conta a nossa identidade planetária. Os saberes fragmentados impedem que se tenha uma consciência cósmica e planetária. E não mais podemos ignorar que “O mundo torna-se cada vez mais um todo. Cada parte do mundo faz, mais e mais, parte do mundo e o mundo, como um todo, está cada vez mais presente em cada uma de suas partes” (MORIN, 2000aMORIN, Edgar; LE MOIGNE, Jean-Louis. A inteligência da complexidade. Tradução de Nurimar Maria Falci. São Paulo: Peirópolis, 2000., p. 67), e isso, na concepção de Random (2000, p. 42-43)RANDOM, Michel. O pensamento transdisciplinar e o real. Tradução de Lucia Pereira de Souza. São Paulo: Triom, 2000. significa que “ao menos no nível conceitual, há um só Todo, uma só árvore do Conhecimento, um só Oriente-Ocidente”.

A compreensão, visão e abordagem transdisciplinar representam um desafio, mas, igualmente, podem significar um grande avanço em relação ao processo de conhecimento com reflexos na ação de ensinar e aprender e, por consequência, no processo educacional. Na compreensão de Nicolescu (1999, p. 76)NICOLESCU, Basarab. O manifesto da transdisciplinaridade. Tradução de Lucia Pereira de Souza. São Paulo: Triom, 1999., “A transdisciplinaridade é uma transgressão generalizada que abre um espaço ilimitado de liberdade, de conhecimento, de tolerância e de amor”.

Ao concluirmos, é importante registrar o que Morin escreve em tom de alerta: “Nosso modo de conhecimento fragmentado produz ignorâncias globais. Nosso modo de pensamento mutilado conduz a ações mutilantes” (MORIN, 2013aMORIN, Edgar. A via para o futuro da humanidade. Tradução de Edgard de Assis Carvalho e Mariza Perassi Bosco. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil , 2013a., p. 183). A compreensão epistemológica transdisciplinar, portanto, apresenta-se como um pressuposto teórico-prático para pensar e viabilizar uma comunidade de destino comum, uma sociedade-mundo, uma concidadania planetária ou mesmo uma Terra-Pátria de todos. A transdisciplinaridade, produto de uma cabeça bem-feita, é requerida como (pré)condição e alicerce para uma consciência do real e, por consequência, para constituir os saberes que podem salvaguardar o planeta Terra e promover uma civilização planetária.

  • 1
    O 1º Congresso Internacional da Transdisciplinaridade foi realizado no Convento de Arrábida, na cidade de Setúbal, em Portugal, de 3 a 7 de novembro de 1994 e reuniu os principais estudiosos dessa temática, entre eles Edgar Morin, Michel Random, Basarab Nicolescu, Lima de Freitas e Ubiratan D’Ambrósio. A disseminação do termo transdisciplinaridade começou a se universalizar e teve grande repercussão nos meios acadêmicos, tendo em vista que o evento recebeu apoio da Unesco.
  • 2
    Ao comentar os princípios que comandam a inteligibilidade clássica Morin escreve: “Chamo paradigma de simplificação ao conjunto dos princípios de inteligibilidade próprios da cientificidade clássica, e que, ligados uns aos outros, produzem uma concepção simplificadora do universo (físico, biológico, antropossocial)” (MORIN, 2000bMORIN, Edgar. Ciência com consciência. Tradução de Maria D. Alexandre e Maria Alice S. Dória. 4. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil , 2000b., p. 330).
  • 3
    Este livro registra a organização e funcionamento do Centro de Estudos da Transdisciplinaridade (Cetrans) e reúne os trabalhos e textos mais importantes do seminário organizado pelos pesquisadores do Cetrans em 1999.
  • 4
    Devido às características próprias deste artigo, vamos nos limitar a fazer uma breve explicação sobre cada um desses três pilares. Na impossibilidade de analisar em profundidade e tecer maiores comentários sobre cada um dos pilares recomendamos a leitura completa das obras citadas e que constam nas referências.
  • 5
    Segundo Nicolescu (1999), existem diferentes graus de transdisciplinaridade que podem ser expressos em diferentes enfoques: disciplinar, pluridisciplinar, interdisciplinar e transdisciplinar. Os graus de transdisciplinaridade são definidos a partir de uma maior fidelidade ou um maior distanciamento dos pilares da transdisciplinaridade.
  • 6
    Para Mariotti (2010)MARIOTTI, Humberto. Pensamento complexo: suas aplicações à liderança, à aprendizagem e ao desenvolvimento sustentável. São Paulo: Atlas , 2010., a expressão “pensamento integrador” é equivalente ao pensamento complexo. Ele utiliza de forma preferencial a expressão pensamento integrador a pensamento complexo na formação de recursos humanos e líderes empresariais na escola de negócios em Pós-Graduação (Business School São Paulo - BSP). A escola mantém parceria com um grupo da Universidade de Toronto (Canadá), que também prepara executivos por meio de MBA e que criou um centro de pensamento integrador que se utiliza do pensamento complexo aplicado aos negócios.
  • 7
    O termo antropocena foi criado por Paul Crutzen, ganhador do Prêmio Nobel de Química, e recebeu grande força a partir de 2008 para indicar a era mais recente da História do planeta Terra.
  • 8
    Edgar Morin, ao completar 80 anos, foi homenageado pela Unesco com o título de um humanista planetário em reconhecimento à grande obra desse filósofo francês contemporâneo em prol de uma civilização planetária.

REFERÊNCIAS

  • BOFF, Leonardo. Civilização planetária: desafios à sociedade e ao cristianismo. Rio de Janeiro: Sextante, 2003.
  • CARTA DA TRANSDISCIPLINARIDADE. In: TORRE, Saturnino de La; PUJOL, Maria Antônia; MORAES, Maria Cândida (coord.). Documentos para Transformar a educação: um olhar complexo e transdisciplinar. Rio de Janeiro: Wak Editora, 2013. p. 23-27.
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  • FOLLONI, André. Introdução à teoria da complexidade Curitiba: Juruá, 2016.
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  • MARIOTTI, Humberto. Pensamento complexo: suas aplicações à liderança, à aprendizagem e ao desenvolvimento sustentável. São Paulo: Atlas , 2010.
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  • MORAES, Maria Cândida; NAVAS, Juan Miguel B. (colab.). Transdisciplinaridade, criatividade e educação: Fundamentos ontológicos e epistemológicos. Campinas, SP: Papirus, 2015.
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  • MORIN, Edgar. Ciência com consciência Tradução de Maria D. Alexandre e Maria Alice S. Dória. 4. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil , 2000b.
  • MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Tradução de Eloá Jacobina. 9. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil , 2004b.
  • MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo Tradução de Eliane Lisboa. Porto Alegre: Sulina, 2006.
  • MORIN, Edgar. O método 3: o conhecimento do conhecimento. Tradução de Juremir Machado da Silva. 4. ed. Porto Alegre: Sulina , 2012.
  • MORIN, Edgar. A via para o futuro da humanidade Tradução de Edgard de Assis Carvalho e Mariza Perassi Bosco. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil , 2013a.
  • MORIN, Edgar. Meus filósofos Tradução de Edgard de Assis Carvalho e Mariza Perassi Bosco. Porto Alegre: Sulina , 2013b.
  • MORIN, Edgar. Educação e complexidade: os sete saberes e outros ensaios. Tradução de Edgard de Assis Carvalho. São Paulo: Cortez , 2004a.
  • MORIN, Edgar. A religação dos saberes: o desafio do século XXI. Tradução e notas de Flávia Nascimento. 3. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil , 2002b.
  • MORIN, Edgar. Ensinar a viver: manifesto para mudar a educação. Tradução de Edgard de Assis Carvalho e Mariza Perassi Bosco. Porto Alegre: Sulina , 2015.
  • MORIN, Edgar. Articular os saberes. In: ALVES, Nilda; GARCIA, Regina L. (org.). O sentido da escola 3. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2002a. p. 65-80.
  • MORIN, Edgar; CIURANA, Emilio-Roger; MOTTA, Raúl D. Educar na era planetária O pensamento complexo como método de aprendizagem pelo erro e incerteza humana. Tradução de Sandra T. Valenzuela. São Paulo: Cortez ; Brasília DF: Unesco, 2003.
  • MORIN, Edgar; KERN, Anne B. Terra-Pátria Tradução de Paulo Neves. Porto Alegre: Sulina , 1995.
  • MORIN, Edgar; LE MOIGNE, Jean-Louis. A inteligência da complexidade Tradução de Nurimar Maria Falci. São Paulo: Peirópolis, 2000.
  • NICOLESCU, Basarab. O manifesto da transdisciplinaridade Tradução de Lucia Pereira de Souza. São Paulo: Triom, 1999.
  • NICOLESCU, Basarab. Um novo tipo de conhecimento - Transdisciplinaridade. In: Educação e transdiciplinaridade São Paulo: Editora USP; Brasília, DF: Unesco, 2000. p. 09-25. Disponível em: https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000127511 Acesso em: 05 abr. 2020.
    » https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000127511
  • NICOLESCU, Basarab et al Educação e transdiciplinaridade . São Paulo: Editora USP ; Brasília, DF: Unesco, 2000. Apresentação. Disponível em: https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000127511 Acesso em: 05 abr. 2020.
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  • PETRÁGLIA, Izabel. O processo de produção do conhecimento: complexidade e transdisciplinaridade. In: BEHRENS, Marilda Aparecida; ENS, Romilda Teodora. Complexidade e transdisciplinaridade: novas perspectivas teóricas e práticas para a formação de professores. Curitiba: Appris, 2015. p. 75-106.
  • RANDOM, Michel. O pensamento transdisciplinar e o real Tradução de Lucia Pereira de Souza. São Paulo: Triom, 2000.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Nov 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    15 Abr 2019
  • Aceito
    07 Abr 2020
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