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As condições psicogenéticas na aprendizagem da leitura e da escrita: um processo de educação permanente

ARTIGOS DE DEMANDA CONTÍNUA

As condições psicogenéticas na aprendizagem da leitura e da escrita: um processo de educação permanente

Veronica Branco

Professora-Assistente do Depto. de Métodos e Técnicas da Educação na disciplina de Concepções e Métodos de Alfabetização

A maioria das crianças de hoje vivem em áreas urbanas, pertncentes à qualquer das classes sociais, estão constantemente submetidas à inúmeros apelos visuais, gráficos e sonoros. Este ambiente rico de estimulações é suficiente para despertar a atenção e até mais, a observação e indagação nas crianças. E assim que, ao chegar na escola ela já tiveram a oportunidade de elaborar hipóteses sobre o que sejam os sinais que vizualizaram no seu dia a dia através de rótulos de embalagens, placas, cartazes, revistas e jornais.

Diante desta constatação, é ingênuo pensar que se possa continuar a encarar a 1ª série do ensino de 1º Grau como aquela responsável pela iniciação do processo de aprendizagem da leitura e da escrita, com também já não se concebe mais que caiba a esta mesma série concluir este processo. Este é um dos fundamentos téoricos do Ciclo Básico adotado pelo Estado do Paraná, porém sua implementação tem sido dificultada pelo pouco preparo do professor para diagnosticar exatamente o ponto de conhecimento de cada criança ao iniciar sua escolarização, ao mesmo tempo que se choca com a escolha de uma nova metodologia de ensino porque tem que conviver com elementos do ensino tradicional profundamente arraigados na instituição escolar como: papel do professor, métodos de alfabetização, conteúdos e programas de ensino.

A constatação de que o conhecimento humano é construído pela ação do sujeito cognocente em interação com o seu meio em um processo contínuo, que do embrião conduz ao adulto, de forma ininterrupta, estendendo-se por toda a vida, nos leva a considerar esta construção um processo de educação permanente.

O desenvolvimento de conhecimentos é uma das preocupações da escola, e como só se pode falar em conhecimento a partir do sujeito cognocente é necessário colocar-se o sujeito no centro da questão e verificar quais estruturas ele coloca em ação para construir o saber.

Os avanços do conhecimento científico no campo da linguagem e principalmente no da concepção da criança sobre o objeto escrita indicam que a teoria construtivista/interacionista de Piaget pode oferecer um apoio seguro ao trabalho pedagógico.

Na perspectiva genética, a inteligência é construída em períodos evolutivos em que uma fase sucede outra, sem possibilidade de retrocesso, da mesma forma que a fase anterior se incorpora na posterior. As estruturas assim, solidamente construídas, são universais, podendo variar quanto ao ritmo com que são adquiridas, e portanto, possibilitando diferenças nas idades cronológicas em que elas se manifestam.

Devem, também, ser observados como condição básica de aprendizagem, segundo Piaget, citado por MORO (1987), a saber:

I - A maturação biológica. Segundo a qual o organismo humano segue uma seqüência natural e hereditária de maturação dos sistemas nervoso e endócrino, que desencadeiam o processo e a atuação de todo os outros fatores. Assim, não se obtém resultado algum treinando e exercitando um bebê a andar se para tal sua musculatura, sistema nervoso e endócrino não estiverem no nível de maturação adequado.

II - O exercício e a experimentação com o objeto - O organismo tal qual um motor, ao atingir níveis necessários de maturação, é ligado e passa a buscar a exercitação e a manipulação para se desenvolver, o que por sua vez, proporciona condições de atingir maiores níveis de desempenho. A interação do organismo como o objeto de conhecimento em exercitação vai proporcionar as condições de aquisição do conhecimento através da construção das estruturas necessárias.

III - As interações e as transmissões sociais - O desenvolvimento do conhecimento depende também das interferências e das trocas com o meio social, na escola ou fora dela, em qualquer situação de relacionamento entre indivíduos. Na situação pedagógica, o professor deve ser um interventor privilegiado a atuar junto da criança, mas não pode supor que seja o único, pois as trocas entre iguais, as próprias crianças, também são fundamentais para provocar desafios no avanço do conhecimento.

IV - O processo de equilibração. É um mecanismo intrínseco do funcionamento da vida orgânica e mental, que de forma dinâmica e auto regulável compensa as perturbações do meio ambiente, provocando uma ação retroativa e antecipatória. É graças a este mecanismo que as crianças modificam suas estruturas alcançando níveis mais aperfeiçoados sem que tenham feito exercício direto ou obtido informação específica para tal, porque ele congrega e regula a atuação dos demais fatores.

De onde se depreende que para ocorrer aprendizagem a escola deve respeitar os fatores internos de maturação da criança, deve proporcionar oportunidades de exercício e experimentação com o objeto de conhecimento, e aqui convém destacar, que a manipulação e a atividades motora, no início da escolaridade, são fundamentais, e quem estabelece a quantidade de exercitação necessária é a criança e não o professor ou o planejamento escolar, deve considerar as intervenções e as relações sociais que levam a criança a mudanças e avanços no conhecimento. A integração destes quatro fatores garantem a construção das estruturas da inteligência e sem elas não há como se falar em aprendizagem.

Piaget não pesquisou diretamente a construção do objeto escrita, tendo centrado seu trabalho no exame da construção de noções lógico matemáticas como: a permanência do objeto, a conservação física, espacial e numérica, as estruturas de classificação, de relação e do número, porém, fez-se cercar de inúmeros pesquisadores e especialistas que no Centro de Epistemologia em Genebra tomavam parte e desenvolviam suas pesquisas orientados pela mesma perspectiva: a epistemologia do conhecimento.

Emília ferreiro (1985) fez parte do grupo de pesquisadores e seu trabalho desenvolveu-se especificamente sobre as fases psicogênese da língua escrita que passamos a comentar:

1 - Fase Pré-silábica: que é marcada pela diferenciação que a criança estabelece entre o desenho (a representação icônica) e a escrita (representação não icônica). É a fase em que ela passa do uso da garatuja simples pelo simples prazer de marcar a superfície para a reprodução de traços típicos da escrita.

Nesta produção os sinais gráficos estão em estreita relação com o desenho, embora deste se diferencie. Em geral, a maioria das crianças, após desenhar um objeto e colocar sinais próximos ao mesmo, afirmam ser os sinais o nome do objeto. Desta fase são as hipóteses de que escrever é "produzir sinais gráficos" e ler é "interpretar sinais gráficos em relação aos objetos próximos ou do mesmo contexto". Conseqüentemente, elas afirmam que: "para ler é preciso estar escrito". Portanto, a escrita aparece como um rótulo da imagem.

2 - Fase silábica: nesta fase se inicia a fonetização da escrita. A criança descobre que a escrita se relaciona com a fala e faz corresponder um sinal gráfico a uma emissão sonora. Quando lê sua produção gráfica, geralmente, identifica toda a palavra, e ao ser solicitada a apontar os sinais, faz leitura silábica. De onde talvez se origine o equívico de que a criança possa compreender a palavra a partir dos pedaços que a compõe, quando na realidade o processo é inverso, ela só é capaz de separar as emissões sonoras (silabar) depois de compreender o todo.

A interpretação do escrito ou da "leitura" nesta fase pode ser efetuada logo após o ato de escrita e nunca depois de ocorrido muito tempo ou fora do contexto de produção, segundo BRANCO (1989).

As hipóteses características desta fase são marcadas por uma busca de diferenciação qualitativa e quantitativa da escrita, que já se manifestou no final da fase anterior, e que se consolida agora, levando a criança a exigir um número mínimo de caracteres, dois ou três, e também a uma variação dos caracteres para que se possa ler e escrever. Freqüentemente, nesta fase ela passa a escrever usando as vogais que são os sons mais fáceis de discriminar na língua. Esta é outra ação da criança que pode ter originado o equívoco de que se deve iniciar o ensino da escrita a partir das vogais isoladamente, segundo BRANCO (1989).

3 - Fase silábico-alfabética: é a fase que ao observador parece haver progressos e retrocessos devido à instabilidade e reorganização intensa que se opera. É a passagem da hipótese silábica para a hipótese alfabética através da distinção dos fonemas da língua, quando acrescentam mais de um sinal gráfico para uma sílaba já discriminada, porém em outras situações em que os fonemas da sílaba não foram ainda discriminados elas grafam um só sinal. A hipótese característica é a que "escrever é acrescentar grafias" e ler é "discriminar cada fragmento gráfico". As escritas típicas desta fase podem ter originado o equívoco dos professores, que ao efetuar correções "a posteriori", pensam ter a criança esquecido de colocar letras em sua produção.

4 - Fase alfabética: é a fase em que as crianças dominam a escrita fazendo representar tantos caracteres quantos sejam os fonemas. O importante a ser constatado é que elas representam a escrita, em geral, de forma fonética, portanto, se elas falam "avre" (árvore) elas grafarão com quatro caracteres tal como percebem a sua fala. É possível também que elas atinjam esta fase sem que os caracteres usados sejam os convencionais, vez que, o domínio do convencional depende da vivência e compreensão de todos os símbolos utilizados na escrita.

Atingida esta fase de construção, a compreensão do sistema de escrita estará completo, embora nem sempre a produção corresponda ao convencional. A tarefa da escola, aqui é proporcionar situações de passagem da escrita fonética para a escrita ortográfica convencional.

Como reflexões pedagógicas deste processo de construção temos:

- A criança descobre a função da escrita e da leitura contando com seus elementos internos e também com as oportunidades de interagir com o seu meio ambiente.

- O trabalho escolar só pode ser iniciado a partir do diagnóstico da fase evolutiva em que cada criança se encontra para a partir daí planejar suas intervenções.

- O trabalho em grupo entre crianças é fundamental para provocar desafios que levem ao avanço do conhecimento, bem como, para orientar a intervenção do professor.

- Não é suficiente conhecer as fases evolutivas da construção do conhecimento da escrita; é necessário, também, conhecer as hipóteses que sustentam a produção de cada fase para proporcionar atividades que satisfaçam as necessidades de cada uma delas.

- A avaliação da aprendizagem necessita ser revista sob outros critérios, pois as tradicionais formas são insuficientes para dar conta deste processo tão complexo.

- A aprendizagem da leitura e da escrira assume um caráter de educação permanente, vez que, se inicia, para a maioria da crianças, fora da escola, com materiais não convencionais de ensino, na dependência das oportunidades existentes no seu meio ambiente e contando com pessoas não diretamente envolvidas na tarefa de ensinar, sem contudo cair em um auto-didatismo, pois o professor desempenha um papel importante neste processo.

  • BRANCO, Veronica. Pesquisa com crianças da comunidade. Curitiba, 1989. (Texto não publicado)
  • FERREIRO, Emília. Alfabetização em processo. Trad. Maria Antonia Cruz Costa Magalhães, Marisa do Nascimento Paro, Sara Cunha Lima. São Paulo, Cortez, 1986.
  • ______. e TEBEROSKY, Ana. Psicogênese da língua escrita. Trad. Diana Myriam Lichtenstein, Liana Di Marco e Mário Corso. Porto Alegre, Artes Gráficas, 1985.
  • ______. e PALACIO, Margarita. Os processos de leitura e escrita: novas perspectivas. Trad. de Maria Luiza Silveira. Porto Alegre, Artes Médicas, 1987.
  • MORO, Maria Lúcia Faria. Aprendizagem operatória: a integração social da criança. São Paulo: Cortes: Autores Associados; (Curitiba): Scientia et Labor, 1987.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Mar 2015
  • Data do Fascículo
    Dez 1989
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