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A cosmovisão antroposófica: educação e individualismo ético

The anthroposophic worldview: education and ethical individualism

Resumos

Este artigo trata de um recorte de uma pesquisa maior sobre Antroposofia e Pedagogia Waldorf, que situa esta como uma contribuição para o paradigma educacional atual. O referencial teórico utilizado traz estudos epistemológicos de Rudolf Steiner e Marcelo da Veiga, compreendidos pela antropologia do imaginário de Gilbert Durand e pela antropologia da complexidade do conhecimento de Edgar Morin. O individualismo ético é apresentado como uma decorrência da teoria cognitiva proposta por Steiner e parte fundamental de sua cosmovisão na qual a Pedagogia Waldorf se insere. Traça-se um paralelo entre a revelação, tratada por Durand, na visão de homem tradicional, e o pensamento intuitivo, adquirido pela autorreflexão, proposta por Steiner como caminho de desenvolvimento individual. Ambos os caminhos pretendem conduzir a uma evolução da alma humana, através de um desenvolvimento cognitivo. Steiner descobre, por meio de seus estudos, a maneira de expressar, dentro do paradigma clássico vigente em sua época, como o ser humano pode conduzir seu conhecimento até a revelação espiritual, que ele denomina de pensamento intuitivo. Segundo Veiga (1996), Steiner abre uma possibilidade da ampliação cognitiva humana abordando os aspectos mentais e espirituais, pertencentes à noosfera, que podem vir a se revelar caso o homem desenvolva intencionalmente uma observação ampliada. Esta capacidade de observação amplia-se através de procedimentos e exercícios internos que partem do pensar racional.

Antroposofia; cognição; individualismo ético; imaginário e complexidade


This article is a fragment of a larger study on anthroposophy and Waldorf education, which places itself as a contribution to the current educational paradigm. The theoretical framework brings epistemological studies of Rudolf Steiner and Marcelo da Veiga, in the light of anthropology of imaginary by Gilbert Durand and the anthropology of knowledge complexity by Edgar Morin. The ethical individualism is presented as a result of the cognitive theory proposed by Steiner as a fundamental part of his worldview in which Waldorf education falls. It draws a parallel between the revelation, treated by Durand, in the traditional man's view, and intuitive thinking acquired by self-reflection, proposed by Steiner as path of individual development. Both ways lead to claim evolution of the human soul through a cognitive development. Steiner discovers through his studies, the way to express, within the classical paradigm prevailing in his time, how humans can lead their knowledge to spiritual revelation, which he called intuitive thinking. According to Veiga (1996), Steiner opens a possibility of human cognitive expansion addressing mental and spiritual aspects, belonging to the noosphere, which may ultimately be proved if man intentionally develops enlarged viewing. This observation capacity expands through internal procedures and exercises that depart from rational thinking.

Anthroposophy; cognition; ethical individualism; imaginary and complexity


A Antroposofia surgiu como uma forma de observar e entender o mundo e o homem, desenvolvida por Rudolf Steiner a partir de 1886 até 1925. Foi em 1904 que ele passou a chamar essa cosmovisão de Antroposofia. Outros filósofos já usavam o termo, porém designando concepções diferentes.

A realidade descrita por essa visão de mundo é apresentada em vários planos, sendo que o mundo físico, observado pelos sentidos humanos, é apenas um deles, de acordo com Steiner (passim). Além desses fenômenos físicos, esta realidade engloba entidades e processos mentais e psíquicos que são tão possíveis de serem captados quanto é possível captar a realidade física circundante. Dessa forma, a observação comum cotidiana conhece apenas o plano material, de acordo com o nível de consciência desenvolvido pelo homem comum. Um desenvolvimento mais acurado da consciência humana permite ao homem perceber outras realidades além da material, através do alcance de outros níveis de consciência.

De acordo com o referencial teórico desenvolvido por Gilbert Durand (1998DURAND, Gilbert. O Imaginário - ensaio acerca das ciências e da filosofia da imagem. Tradução de: Renée Eve Levié. Rio de Janeiro: DIFEL, 1998.), fenômenos de representação dos processos mentais e psíquicos, como os níveis de consciência apresentados por Steiner (passim), se referem às experiências de nível simbólico, nem sempre admitidas como científicas, pois a vivência autêntica das mesmas pertence a outro nível de realidade. Steiner explica essas experiências através de uma visão qualificada por ele mesmo de científica, devido ao uso das ferramentas metodológicas do pensamento acadêmico-filosófico de sua época, aplicado por ele em seus raciocínios. Através de Morin (1998MORIN, Edgar. Ciência com Consciência. Rio de Janeiro: Ed. Bertrand Brasil, 1998.), entende-se que ciência e filosofia não são idênticas, mas podem ser complementares.

Steiner (1985STEINER, Rudolf. Verdade e Ciência. São Paulo: Ed. Antroposófica, 1985.) acredita ser possível atingir a visão da realidade espiritual através do conhecimento. Sua teoria cognitiva é uma proposta de superar "a cisão da realidade em existência dada e conceito no sujeito do conhecimento, [...] no processo cognitivo do sujeito". (Steiner, 1985STEINER, Rudolf. Verdade e Ciência. São Paulo: Ed. Antroposófica, 1985., p. 130). Na introdução à sua Verdade e Ciência 1 1 Tese de doutorado de Rudolf Steiner defendida em 1882, em Rostock. , Steiner também afirma que o caminho percorrido por ele nessa teoria do conhecimento vai além do que Goethe fizera elaborando seu próprio caminho cognitivo.

Steiner busca encontrar o ponto de partida, onde, livre de premissas, o sujeito cognitivo possa iniciar a atividade do conhecimento. Refutando Kant, que afirmava não ser possível chegar ao conhecimento dos fundamentos primordiais do suprassensível, Steiner (1985STEINER, Rudolf. Verdade e Ciência. São Paulo: Ed. Antroposófica, 1985.) prefaciou no livro supracitado:

Qual foi o resultado alcançado por Kant? Ele mostrou que a nossa capacidade cognitiva não pode penetrar no fundamento das coisas situadas além do nosso mundo sensorial e racional, fundamento que seus precursores tinham procurado por meio de moldes conceituais mal compreendidos. Disso ele concluiu que nosso pensador científico devia permanecer dentro do que pode ser alcançado pela experiência, não podendo chegar a conhecer o fundamento primordial suprassensível, a "coisa em si". Mas o que seria se essa "coisa em si", com todo o fundamento transcendente dos objetos, fosse apenas um fantasma? É fácil perceber que a realidade é mesmo essa. Pesquisar o âmago mais profundo das coisas, desvendar os seus princípios primordiais, é um impulso inseparável da natureza humana. É o fundamento de toda atividade científica. (Steiner, 1985, p. 9).

Segundo Steiner (passim), a atividade cognitiva surge de um impulso interno do ser humano, que consiste no próprio fundamento da pesquisa científica, como base da construção do conhecimento humano. Steiner usa o discurso científico e filosófico de sua época para se fazer entender. Além do doutorado em filosofia, ele se graduou na Escola Técnica de Viena. É compreensível que seu pensamento seja bastante influenciado pela visão positivista da ciência do final do século, pois ele buscava ser reconhecido por ela. No entanto, Steiner vai além desta visão.

Para Steiner (1985STEINER, Rudolf. Verdade e Ciência. São Paulo: Ed. Antroposófica, 1985.), a ciência tem por meta final a elevação do valor da existência humana, que consiste na exposição filosófica do significado humano de seus resultados, mesmo afirmando não saber se a ciência de seu tempo buscava essa justificativa filosófica. (Steiner, 1985STEINER, Rudolf. Verdade e Ciência. São Paulo: Ed. Antroposófica, 1985., p. 11). Neste ponto recorre-se a Morin, em seu livro Ciência com Consciência (1998MORIN, Edgar. Ciência com Consciência. Rio de Janeiro: Ed. Bertrand Brasil, 1998.), que demonstra a preocupação com os meios de reflexividade científica, ou seja, a possibilidade da atividade científica ser acompanhada por uma capacidade de autointerrogação. Para ele, seria necessário existir uma ciência das coisas do espírito, ou noologia, "capaz de conceber como e em que condições culturais as ideias se agrupam, se encadeiam, se ajustam, constituem sistemas que se autorregulam, se autodefendem, se automultiplicam, se autopropagam". (Morin, 1998MORIN, Edgar. Ciência com Consciência. Rio de Janeiro: Ed. Bertrand Brasil, 1998., p. 25-26).

Embora não seja possível precisar se a atividade reflexiva que Steiner desenvolve é do mesmo tipo que Morin está propondo, ao retomar o caminho steineriano, percebe-se que o ponto de partida livre de premissas considerado por ele inclui aquilo que Durand (1979) aponta como pertencente ao universo simbólico:

Nesse conteúdo imediatamente dado do mundo inclui-se tudo que, no sentido mais lato, possa surgir dentro do horizonte das nossas vivências: sensações, percepções, sentimentos, atos de vontade, visões de sonhos e de fantasia, representações, conceitos e ideias. Também as ilusões e alucinações estão em pé de igualdade com as demais partes do conteúdo do mundo, pois só a contemplação cognitiva nos dirá qual a sua relação com as outras percepções. (Steiner, 1985, p. 32).

Para Durand (1998DURAND, Gilbert. O Imaginário - ensaio acerca das ciências e da filosofia da imagem. Tradução de: Renée Eve Levié. Rio de Janeiro: DIFEL, 1998.), visões de sonho e fantasia, ilusões e alucinações são pertencentes à imaginação simbólica. Steiner (1985STEINER, Rudolf. Verdade e Ciência. São Paulo: Ed. Antroposófica, 1985.) as considera como alguns dos possíveis pontos de partida para a construção do conhecimento, revalorizando a imaginação, contrariamente ao que vige no pensamento ocidental há séculos. Durand acredita que não exista ruptura entre o racional e o imaginário, considerando o racionalismo como "uma estrutura polarizante particular dentre as muitas outras no campo das imagens". (Teixeira, 1990TEIXEIRA, M. Cecília Sanchez. Antropologia, Cotidiano e Educação. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1990., p. 21). A função simbólica é recuperada, no entanto, de acordo com Durand (1998DURAND, Gilbert. O Imaginário - ensaio acerca das ciências e da filosofia da imagem. Tradução de: Renée Eve Levié. Rio de Janeiro: DIFEL, 1998.), dentro de outra forma de razão, a ratio hermetica. Analisando o pensamento tradicional, o autor procura confirmar sua hipótese de que a crise das ciências humanas acontece devido a um abandono do princípio do hermetismo - princípio da similitude2 2 Gilbert Durand (1998, p. 03) refere-se ao pensamento simbólico, ou raciocínio por similitude ou metafórico como uma forma de pensar que resiste à fragmentação do raciocínio mecanicista ou cartesiano, ou ainda, como também é chamada mais usualmente, pensamento racional. .

Steiner (1985STEINER, Rudolf. Verdade e Ciência. São Paulo: Ed. Antroposófica, 1985.) acredita que o conhecimento só ocorre quando o sujeito cognitivo entra em interação com o objeto dado pelo mundo às suas observações. Conforme já foi dito, ele analisa o ato cognitivo desde suas origens, voltando, para isso, ao ponto de partida livre de premissas. Este limite é traçado artificialmente, segundo ele, sendo um corte cuidadoso no processo pensante, para efeito de determinação do início da atividade cognitiva. Esse momento é aquele em que o sujeito toma contato com o mundo dado.

Para refletir sobre a proposta de Steiner, à luz de Morin (1998MORIN, Edgar. Ciência com Consciência. Rio de Janeiro: Ed. Bertrand Brasil, 1998.), afirma-se que uma das características do pensamento clássico é a separação entre sujeito e objeto:

A separação sujeito/objeto é um dos aspectos essenciais de um paradigma mais geral de separação/redução, pelo qual o pensamento científico ou distingue realidades inseparáveis sem poder encarar sua relação, ou identifica-se por redução mais complexa a menos complexa. (Morin, 1998, p. 138).

Steiner (1985STEINER, Rudolf. Verdade e Ciência. São Paulo: Ed. Antroposófica, 1985.) distingue, mas não deixa sem interação, consciência, noção de eu e mundo dado. Ele se questiona sobre qual será o ponto onde se passa da própria consciência para a cognição do que existe no mundo. E afirma:

[...] tanto a consciência como a noção de "eu" são, de início, apenas partes do que nos é dado imediatamente, e só resultará da cognição a relação que possa existir entre esta e aquela. Não desejamos determinar a cognição partindo da consciência, mas vice-versa: definir a consciência e a relação entre subjetividade e objetividade, partindo da cognição. (Steiner, 1985, p. 32).

Steiner (1985STEINER, Rudolf. Verdade e Ciência. São Paulo: Ed. Antroposófica, 1985.) propõe que o sujeito cognitivo busque uma ponte para ligar a imagem dada do mundo com aquela que será desenvolvida a partir da cognição desse mesmo sujeito:

Se tudo nos fosse apenas dado, nunca passaríamos do estado em que fitamos o mundo de fora e, de forma análoga, o mundo interior de nossa individualidade. Poderíamos, nesse caso, apenas descrever as coisas de fora, mas nunca compreendê-las. Nossos conceitos teriam apenas uma relação exterior com aquilo a que se referem, mas nenhuma interior. Para que possa haver verdadeiro conhecimento, tudo depende da possibilidade de encontrarmos em qualquer parte do mundo dado uma região em que a nossa atividade não apenas pressuponha algo dado, mas seja ativa em meio a ele. (Steiner, 1985, p. 33).

Acompanhando o raciocínio de Steiner, este conduz à conclusão de que o sujeito e o objeto do conhecimento estão em constante atividade interativa, ou, então, não existe a possibilidade de construção do conhecimento. Sua separação entre sujeito e objeto, no entanto, parece ser determinada apenas para efeito de entendimento do seu caminho para compreensão da cognição, conforme se pode entender pelo trecho seguinte:

Parece que a representação do "eu", do "sujeito pessoal", tem inconscientemente uma função em nosso raciocínio, e que a usamos no desenvolvimento dos nossos pensamentos sem que tenhamos trazido uma justificação para tal. Isso acontece ao dizermos, por exemplo, que "produzimos conceitos" ou que "formulamos esta ou aquela exigência". Mas em nossas explanações, nada justifica que se veja em tais fórmulas algo mais do que figuras de estilo. Que o ato cognitivo pertença a um "eu" e dele emane, isso só pode ser constatado, conforme já dissemos na fase de ponderações que já implicam em conhecimento. (Steiner, 1985, p. 35).

Steiner (1985STEINER, Rudolf. Verdade e Ciência. São Paulo: Ed. Antroposófica, 1985.) deixa claro, a cada ponto de suas explanações, que as partes em que se divide o processo cognitivo são puramente didáticas. Para ele, pode ser feito até mesmo um corte para descobrir o ponto onde surgiria o "eu" como portador do ato cognitivo, sem considerar ela uma ação necessária para se entender o próprio ato cognitivo. Para Steiner (1985STEINER, Rudolf. Verdade e Ciência. São Paulo: Ed. Antroposófica, 1985.), os conceitos e ideias tanto surgem como algo dado, como são condutores para se chegar além do dado inicial. Após esclarecer todo o caminho inicial, estabelecendo divisões entre as partes que compõem, para ele, o ato cognitivo, novamente sugere que a divisão é fictícia:

Devemos ter consciência de que rasgamos artificialmente a unidade da imagem do mundo. Precisamos convencer-nos de que o segmento por nós separado do mundo dado está numa interdependência necessária com o conteúdo do mundo, salvo no que se refere à nossa exigência e fora dela. (Steiner, 1985, p. 36).

Steiner (1985STEINER, Rudolf. Verdade e Ciência. São Paulo: Ed. Antroposófica, 1985.) afirma então que o passo seguinte na teoria do conhecimento só pode ser dado uma vez que se restabeleça a unidade rompida. A forma estabelecida por ele para que isso ocorra é o próprio pensar sobre o mundo dado. Ele segue, então, descrevendo a atividade do pensamento dentro do ato cognitivo. O pensar não é exatamente o ato cognitivo, mas o ato pelo qual é possível exercer a atividade do conhecimento. A descrição do que é pensar é para ele a ciência do pensar. A lógica, por sua vez, exerce uma função descritiva das formas do pensamento, sendo que essa demonstração se torna possível pela ocorrência de uma síntese do conteúdo pensado com outras partes do conteúdo do mundo. Só o pensamento, através da relação entre os elementos da realidade e da interação que daí resulta, possibilita ao ser humano a oportunidade da cognição. O ato cognitivo separa esses elementos, na tentativa de conhecer. O pensar os reúne novamente para forjar o conhecimento da realidade circundante. O pensar é o elemento que introduz a ordem necessária a um entendimento e que fornece, na visão steineriana, a complementação transformadora que constitui o mundo dado numa totalidade. A partir dessa conclusão, Steiner (1985) afirma:

[...] se queremos conhecer algo além do nosso pensar, só o podemos com o auxílio do pensar, ou seja, o pensar tem de abordar algo dado e transformar a relação caótica deste com a imagem do mundo numa relação sistemática. O pensar aborda, pois, o conteúdo dado do mundo como princípio formador. (Steiner, 1985, p. 37).

Steiner (1985) acredita que o pensamento isola alguns detalhes do mundo, primeiramente, com intuito de conhecê-los. O mesmo pensar estabelece a relação entre esses detalhes, construindo o conhecimento sobre os mesmos. Após obter o resultado desse conhecimento, novamente o pensar incorpora os elementos arbitrariamente isolados ao seu todo original. Em linhas gerais, essa é a visão de Steiner de como se constrói o conhecimento. Segundo ele, sem efetuar cada passo desse processo, o ato cognitivo não ocorre. Mas o que surge, para ele, como parte importante nesse caminho, é a conclusão de que a realidade só se completa a partir do processo cognitivo percorrido pelo ser humano, estabelecendo uma forma para entender o ato cognitivo como possibilidade de ato criador/criativo. Essa ideia é bastante utilizada por Steiner, tanto no âmbito da educação quanto no da autoeducação.

Resta compreender qual o paradigma em que se pode classificar o pensamento steineriano. Conforme Durand (1979), a ciência hermética considera que existe apenas uma ordem, um cosmos, do qual microcosmos e macrocosmos são apenas pontos de vista. Os textos de Steiner refletem a influência que ele recebeu dessa corrente, especialmente em decorrência dos estudos da obra de Goethe, feitos durante longos anos. O paradigma clássico, no entanto, surge como classificação ao se considerar a maneira como ele adapta sua visão de mundo à visão científica de sua época, numa atitude desmistificadora em vários momentos. A própria abordagem que explica fatos da espiritualidade demonstrando-os através dos efeitos que eles causam pode ser resultante de uma hermenêutica redutora. Ao mesmo tempo há passagens em seus livros em que ele próprio admite que a linguagem usada não seja adequada para a descrição feita, justificando que buscou o termo, ou a imagem usada mais próxima possível, para obter o máximo de clareza. (Steiner, 1982STEINER, Rudolf. A Ciência oculta. São Paulo: Ed. Antroposófica, 1982., p. 44).

Para Steiner (1988), no processo cognitivo reside a possibilidade de uma evolução do conhecimento humano, individual e coletivamente, a um patamar que permita a realização da liberdade. O desenvolvimento da teoria do conhecimento só faz sentido para ele se a continuidade de sua evolução se fizer de maneira a conduzir ao que ele chama de individualismo ético, o qual só pode ser atingido pelo ser humano autônomo.

A sequência dada por Steiner à teoria cognitiva, introduzida anteriormente, através de uma breve análise de seu livro Verdade e Ciência, foi a obra A Filosofia da Liberdade. Conforme foi dito, Steiner vê uma possibilidade de evolução espiritual através do conhecimento, e propõe o desenvolvimento cognitivo como caminho evolutivo. Segundo Veiga (1996VEIGA, Marcelo da. Antroposofia: Ciência ou Crença? Revista Chão & Gente, Botucatu, SP: ELO - Instituto de Economia Associativa, n. 19, p. 16-17, set. 1996.), o questionamento steineriano sobre a possibilidade da ampliação cognitiva humana aborda os aspectos mentais e espirituais, pertencentes à noosfera, que podem vir a se revelar caso o homem desenvolva intencionalmente uma observação ampliada. A intenção de ampliar a capacidade de observação efetua-se através de procedimentos e exercícios internos que têm seu ponto de partida no pensar racional. De acordo com Veiga (1996VEIGA, Marcelo da. Antroposofia: Ciência ou Crença? Revista Chão & Gente, Botucatu, SP: ELO - Instituto de Economia Associativa, n. 19, p. 16-17, set. 1996.):

A observação ampliada é simplesmente uma continuação daquela capacidade de observação da qual o homem dispõe quando percebe cores, tons, etc. a seu redor, mediante os sentidos comuns. Como a observação comum pode evoluir para diferentes formas de ciências sistemáticas no mundo (física, química, biologia) quando acompanhadas de raciocínios lógicos e de metodologia experimental, assim também a observação ampliada pode resultar numa ciência espiritual (noologia). Esse conhecimento noológico, preconizado pela Antroposofia, não é um conhecimento que sobrevém de repente, assim que se ultrapassem os limites comuns da observação. O progresso é aqui semelhante ao conhecimento referente ao mundo dos sentidos, onde cada passo é um passo e exige minuciosa investigação. (Veiga, 1996, p. 16).

A Antroposofia refere-se ao aspecto físico da realidade ampliada pela visão espiritual, sem invalidação destes e sim, com a ampliação do seu significado, pois o plano físico aparece permeado de forças organizadoras e estruturadoras que plasmam suas formas. Embora não se possa visualizar esse conjunto de forças, elas formam o corpo etérico do homem, do animal e da planta. A mesma observação ampliada permite a constatação da existência de outras forças superiores e mais sutis que formam no ser o corpo astral, responsável pela presença da consciência no homem e do EU, cuja existência permite a percepção da individualidade alheia. Toda essa constatação pode ser feita através da cosmovisão antroposófica, pela qual a realidade material deixa de ser a única possível para ser parte integrante de realidades mais amplas, numa visão que passa então a ser sistêmica, holística, conforme afirmação de Veiga (1996VEIGA, Marcelo da. Antroposofia: Ciência ou Crença? Revista Chão & Gente, Botucatu, SP: ELO - Instituto de Economia Associativa, n. 19, p. 16-17, set. 1996.), abarcando o físico e o suprafisico ou, como dizia Steiner (passim), o sensível e o suprassensível.

Buscando integrar essas polaridades, a Cosmovisão Antroposófica vai além da simples admissão da existência de fatores espirituais na realidade circundante, propondo o desenvolvimento das faculdades cognitivas, que Steiner afirma estarem latentes em todo ser humano, tornando-o capaz de visualizar estes fatores. Há, assim, a superação do materialismo da vida atual, através de um ato da vontade, trazendo respostas para questões cruciais para o ser humano, para o enigma de sua existência, pelo esforço e o exercício contínuo que conduzem ao aprimoramento do mental cognitivo. Essa transição do pensar material para o pensar espiritual ocorre no campo de experiências internas, através de uma vivência de conceitos e pensamentos livres. Esse é o campo do pensar intuitivo. Veiga (1996VEIGA, Marcelo da. Antroposofia: Ciência ou Crença? Revista Chão & Gente, Botucatu, SP: ELO - Instituto de Economia Associativa, n. 19, p. 16-17, set. 1996.) afirma que: "A descoberta da capacidade de percepção ativa de um conteúdo ordenado em si mesmo no âmbito do pensar intuitivo é a experiência espiritual básica, que dá início a um caminho que conduz à cognição espiritualmente ampliada". (Veiga, 1996VEIGA, Marcelo da. Antroposofia: Ciência ou Crença? Revista Chão & Gente, Botucatu, SP: ELO - Instituto de Economia Associativa, n. 19, p. 16-17, set. 1996., p. 17).

Para a Antroposofia, aquele que adote ensinamentos espirituais sem desenvolver sua cognição espiritual não pode senão aceitar o mundo espiritual como crença ou como mera superstição, pois seu pensar ainda funciona apenas no âmbito material sem que ele possa por si próprio conduzir-se à referida cognição espiritualmente ampliada. A sugestão antroposófica é uma tarefa muito radical, pois contraria as tradições vigentes. Segundo Veiga (1996VEIGA, Marcelo da. Antroposofia: Ciência ou Crença? Revista Chão & Gente, Botucatu, SP: ELO - Instituto de Economia Associativa, n. 19, p. 16-17, set. 1996.), entrando no âmbito das questões rejeitadas pela ciência e deixadas ao cargo das religiões, a Antroposofia adentra nele para enfocá-lo através da ampliação da atitude científica. Essa atitude, que Steiner (passim) denomina científica, busca clareza no campo do conhecimento espiritual. Steiner usa a linguagem da ciência para atingir uma transparência de raciocínio com a qual possa ser entendido pelos intelectuais de sua época. Veiga (1996VEIGA, Marcelo da. Antroposofia: Ciência ou Crença? Revista Chão & Gente, Botucatu, SP: ELO - Instituto de Economia Associativa, n. 19, p. 16-17, set. 1996.) afirma que o caminho seguido por Steiner requer o abandono dos paradigmas materialistas no âmbito científico, enquanto no religioso é preciso rejeitar dogmas e autoridades, inclusive qualquer tipo de guru, nas questões espirituais, conforme ocorre nas religiões orientais. A capacidade de desenvolvimento e autocondução embasam-se no pensamento próprio.

A Antroposofia se define como um conhecimento espiritual conquistado pelo homem, não revelado e respaldado por uma tradição autoritária, mas sim elaborado pelas forças cognitivas do ser humano individual. Para que isso seja atingido, Steiner (1985, grifo do autor) procura objetivar o ato de pensar, qualificado por ele como pensar sobre o pensar, tendo o "eu" como sujeito desse ato. Ele fundamenta seu conceito de liberdade sobre este ponto, sustentando que o ser humano só é livre quando conhece as leis que regem suas próprias ações, incluindo nelas o pensar, afirmando que:

A Teoria do Conhecimento deve ser uma investigação científica daquilo que todas as outras ciências pressupõem sem examiná-lo: o próprio conhecer. [...] o sucesso de muitas pesquisas científicas depende essencialmente da capacidade de se colocarem problemas corretamente. [...] a Teoria do Conhecimento [...] só chegará a bom termo se as perguntas básicas forem adequadamente formuladas. (Steiner, 1985, p. 14-15).

Então, através de suas obras iniciais, de cunho filosófico, Steiner constitui uma fundamentação de seu trabalho futuro. Seus textos filosóficos mostram como a consciência intelectual confinada à compreensão do mundo material e quantificável pode descobrir em si o ponto de conversão para a investigação da realidade espiritual. (Veiga, 1994VEIGA, Marcelo da. A Obra de Rudolf Steiner. São Paulo: Ed. Antroposófica, 1994., p. 8). Nestes textos não há ainda o uso do termo Antroposofia, mas os temas tratados conduzem à sua essência. São eles: Conhecimento e Realidade, A Ética da Liberdade e Estética e Arte.

Conhecimento e Realidade, o primeiro tema, surge com as investigações feitas por Steiner ao método científico de Goethe. Adotando uma abordagem fenomenológica ele procura esclarecer e explicar o processo através do qual o homem obtém o conhecimento do mundo conscientizando-se, por meio da observação pensante, sobre suas características encontráveis na própria experiência. (Veiga, 1994VEIGA, Marcelo da. A Obra de Rudolf Steiner. São Paulo: Ed. Antroposófica, 1994., p. 10). O tema do conhecimento é desenvolvido nos livros A Obra Científica de Goethe, Linhas Básicas para uma Teoria do Conhecimento pela Cosmovisão de Goethe, Verdade e Ciência e A Filosofia da Liberdade.

Steiner (1985) descreve um caminho de conscientização sobre sua própria vivência cognitiva, sendo que o pensar sobre o pensar é para ele a observação pensante do processo e sobre isso ele diz:

[...] a Teoria do Conhecimento só pode ser uma ciência crítica, pois seu objetivo é o conhecer, isto é, um ato eminentemente subjetivo do homem; o que procura expor é a regularidade da cognição. Dessa ciência deve ser banida toda a ingenuidade. Ela deve encontrar sua força na realização daquilo que muitos espíritos caracterizados por um pensar prático se vangloriam de nunca haverem realizado, ou seja, o pensar sobre o pensar. (Steiner, 1985, p. 28).

Através do método gnosiológico, Steiner mostra um caminho que conduz à avaliação da relação pensar-realidade sob um ângulo novo. A fenomenologia utilizada por ele procura esclarecer sobre o processo de conscientização que ocorre ao se buscar o conhecimento do mundo através da observação pensante, obtido pela experiência própria do sujeito. Segundo Veiga (1994VEIGA, Marcelo da. A Obra de Rudolf Steiner. São Paulo: Ed. Antroposófica, 1994.), o sujeito deve perguntar-se "o que é percepção? Ou seja, a experiência, e o que é a ideia? Ou seja, como o pensar e como esses elementos contribuem para o conhecimento como um todo?". (Veiga, 1994VEIGA, Marcelo da. A Obra de Rudolf Steiner. São Paulo: Ed. Antroposófica, 1994., p. 10).

Inicialmente, trata-se de descobrir qual é o primeiro passo descritivo do caminho de conscientização desse processo cognitivo. Pensar sobre o pensar pede o reconhecimento da percepção como um elemento que aborda o sujeito vindo de fora, sempre que ele expuser seus sentidos ao mundo. Caso o sujeito não produza sensações neste momento, ele apenas constata sua existência, renunciando a qualquer contribuição própria. Essa ausência de atividade conduz ao mundo manifesto dos dados empíricos. A conscientização dessas características da percepção requer um exercício de observação num esforço constante de desenvolvimento de faculdades que vão além da simples consciência cotidiana. Assim,

a verdade é [...] produto livre do espírito humano, não podendo existir de forma alguma e em nenhum lugar se nós mesmos não a produzíssemos. A tarefa da cognição não é repetir, sob forma conceitual, algo que já existia alhures, mas, sim, criar um campo inteiramente novo que apenas constitua a plena realização em combinação com o mundo sensorial dado. Com isso a atividade suprema do homem, seu ato criador espiritual, acha-se organicamente integrada ao decurso geral dos fatos do mundo. Sem essa atividade nem poderíamos pensar nesse decurso dos acontecimentos como uma totalidade definida em si. Frente à sequência dos fatos, o homem não é um espectador ocioso que reproduz em sua mente, sob forma de imagens, aquilo que ocorre no cosmo sem sua intervenção, mas sim o co-criador ativo do processo cósmico; e a cognição é o membro mais perfeito no organismo do Universo. (Steiner, 1985, p. 10).

O pensar é colocado como instrumento humano para compreensão das coisas, da realidade. Para compreendê-lo é preciso pensar sobre ele como sobre qualquer outro objeto. Conceitos e ideias são caracterizados por serem correlações em si. Qualquer conteúdo do pensar é uma relação que se manifesta à consciência de forma diferente do que surgem as percepções. Estas são recebidas prontas enquanto conceitos e ideias são elaborados pela própria atividade pensante. Conceitos e ideias não podem ser acolhidos prontos. Eles precisam ser produzidos e o êxito da produção consiste em se visualizar a ordem intrínseca do conteúdo pensado. Seguindo-se essa ordem, própria ao conceito intuído, segundo Steiner (1985), alcança-se o pensar lógico.

Na realidade sensível, e, portanto, incompleta, dados isolados e sem nexo apresentam-se. Ao serem complementados por uma conceituação elaborada pelo pensar humano, eles tornam-se a realidade total, através da participação ativa do homem com sua produção cognitiva. À medida que isso ocorre, o homem percebe a si mesmo como um ser que faz parte da realidade que produz, e que, ao mesmo tempo, elabora sua dimensão espiritual. A consciência humana é vista como o palco onde percepção e conceito atuam complementarmente constituindo a realidade. Isso acontece dessa forma, conforme Steiner (1985) escreve em sua tese de doutoramento em Filosofia:

O que, porém, sabemos é que conceitos e ideias só penetram na esfera do que é imediatamente dado durante o ato cognitivo e por meio dele. Por isso ninguém se engana a respeito desse caráter dos conceitos e pensamentos. [...] todo o resto da nossa imagem do mundo deve ser dado para que o possamos vivenciar; só nos conceitos e ideias ocorre ainda o inverso: temos de produzi-los para poder vivenciá-los. Só os conceitos e ideias nos são dados da forma que foi denominada contemplação intelectual. Na contemplação intelectual o conteúdo deve ser dado simultaneamente à forma do pensamento. (Steiner, 1985, p. 34).

Steiner (1985) afirma que com o ato cognitivo revelando-se como participação autoconsciente da realidade, o indivíduo pensante aprende a intuir, ao longo da vida, quais são os elementos ordenadores subjacentes à realidade externa, superando assim as desconexões das impressões sensórias. O desafio que vem dessa multiplicidade de dados desconexos desenvolve a capacidade intuitiva, na medida em que exige um esforço de captação de ideias e conceitos que expliquem a realidade circundante. O homem que assumir esse desafio cresce em sua capacidade cognitiva.

A partir desse crescimento cognitivo, a liberdade surge, na visão steineriana, sob a forma de uma autonomia que o sujeito pensante adquire praticando os passos de desenvolvimento do conhecimento aqui proposto. A ação humana, visando à realização do que ainda está em potência, modifica aquilo que é dado pela realidade circundante através da percepção. Essa ação verte do agente para o mundo a partir de impulsos nascidos em seu interior. Mas o que o impulsiona? De onde nasce essa ação? O homem é livre em seu agir? O que ele quer com suas ações? Qual é sua meta? A estas questões Steiner (1985) responde:

[...] é consequência importante, para as normas do nosso agir e para os nossos ideais morais, o fato de estes tampouco poderem ser considerados como a imagem de algo exterior a nós, mas como algo existente somente dentro de nós. Com isto é igualmente negada a existência de uma potência cujos mandamentos deveriam ser as nossas leis morais. Desconhecemos um imperativo categórico como que uma voz do além a nos prescrever o que deveríamos ou não fazer. Os nossos ideais morais são livremente produzidos por nós próprios. Só devemos executar o que nós mesmos nos impomos como norma para nossa atuação. A visão da verdade como sendo um ato de liberdade fundamenta, pois, também uma ética cuja base é a personalidade totalmente livre. (Steiner, 1985, p. 10).

Para Steiner (1985), isso só se aplica àquela parte do atuar humano cujas leis são compreendidas pelo agente em seu conteúdo ideal, isto é, em sua essência, através de um conhecimento perfeito. Enquanto essas leis são aceitas apenas como motivos naturais ou conceitualmente confusos, há margem para que alguém, tido como espiritualmente superior, reconheça a necessidade da aplicação de tais leis sobre esse agente individual. Este então tem a sensação de que alguma coisa agiu de fora sobre ele, coagindo-o. Se, ao contrário, o homem consegue penetrar o motivo de sua ação, reconhecendo-o claramente, realiza uma conquista no campo da liberdade.

Acredita-se que o homem seria sujeito a impulsos animalescos e inferiores, antissociais, etc., que devem ser combatidos pela submissão dele à ética normativa de Deus, do Estado, da Civilização, da Família e da consciência (esta por sua vez submetida ao jugo das instâncias anteriores, obviamente). Dessa forma, todo homem que siga seus impulsos pode ser antiético; só renunciando à sua própria vontade pessoal e obedecendo ao princípio universal pode viver em sociedade. Steiner (1988) acredita na existência de uma linha tênue que diferencia o indivíduo que atua sob a repressão de seus instintos e aquele que deixa de fazê-lo por uma moralidade intrínseca ao seu entendimento. O ser realmente ético é livre, pois está agindo a partir de impulsos determinados de instâncias autoconscientes. Somente um impulso produzido pelo próprio indivíduo produz um desenvolvimento processual capaz de torná-lo livre de coações. Isso ocorre através do caminho cognitivo proposto n'A Filosofia da Liberdade que, segundo seu autor, ocorre pela intuição consciente. Esta é a intuição que nasce da ordenação das percepções desconexas captadas pelos sentidos. Por ser uma produção autenticamente individual, deve, por isso, ser conquistada no contexto existencial de cada um. A existência humana é admitida como um caminho de conquista da própria individualidade. Segundo Veiga (1994VEIGA, Marcelo da. A Obra de Rudolf Steiner. São Paulo: Ed. Antroposófica, 1994.):

O individualismo baseado na intuição é ético porque se baseia num princípio segundo o qual o indivíduo coincide com o elemento universal ordenador que se manifesta no pensar sob forma autoconsciente. O homem que segue suas intuições conscientes segue os impulsos e as metas que são próprias da ordem do Universo. Ele segue a vontade de Deus; como dizem as Escrituras, contudo não retornando ao estado inicial, mas incorporando ao Universo um elemento novo: o homem livre! (Veiga, 1994, p. 13).

A concepção de homem admitida por Steiner (1982STEINER, Rudolf. A Ciência oculta. São Paulo: Ed. Antroposófica, 1982.) é um ponto fundamental para o entendimento de seu princípio sobre a ética. Para ele, o ser humano é trimembrado, formado por corpo, alma e espírito. O corpo permite a vida no mundo físico, conforme a cosmovisão antroposófica. A alma é a portadora dos impulsos anímicos e sentimentos. O espírito é a conexão com o mundo divino-espiritual. Isso significa que o homem não é apenas um ser corpóreo que desenvolve, a partir dessa corporalidade, certas capacidades mentais transmitidas pela hereditariedade. Ele é um ente que participa de dois mundos: um mundo material e corpóreo e, outro, divino-espiritual. (Lievegoed, 1994LIEVEGOED, Bernard. Desvendando o Crescimento - as fases evolutivas da infância e da adolescência. São Paulo: Ed. Antroposófica, 1994., p. 11). Conforme essa definição de homem, a alma humana atua como mediadora entre a vivência corpórea e a vivência espiritual. Pressupõe-se, também, que as evoluções corporal e espiritual do indivíduo estão atuando numa potencialidade genética e, dentro dela, numa potencialidade biográfica. A potencialidade biográfica refere-se à manifestação do "eu" na consciência do indivíduo. Em termos mais genéricos fala-se aqui da manifestação da personalidade individual. Do âmbito corporal ascendem os impulsos e paixões que, buscando satisfação, são vivenciados na alma humana. Como mediadora dos dois mundos, essa alma humana está recebendo impulsos que partem do mundo físico, vindos do corpo e do mundo espiritual, através do "eu".

É esse homem trimembrado, descrito pela Antroposofia, que seria capaz de trilhar o caminho d'A Filosofia da Liberdade. Essa imagem de homem, adotada por Steiner (passim), corresponde à figura do homem tradicional descrito por Durand em Ciência do Homem e Tradição (1979). Nesta obra, já citada anteriormente, o autor desenvolve seu raciocínio sobre a crise das ciências humanas. A causa básica apontada por Durand é a ruptura, dentro do pensamento ocidental, da mediação entre corpo e espírito, feita pela alma, devido aos esforços eclesiásticos de eliminar a gnose, durante os primeiros séculos da era cristã. A adoção, pelo Ocidente, do modelo averroísta, cortou a possibilidade de reflexão do homem sobre si mesmo - o Conhece-te a ti mesmo da tradição órphica e platoniana - que dava acesso direto à transcendência. Também a oposição aos ensinamentos do filósofo persa Avicena conduziram ao fracasso do caminho individual à transcendência. Contra essa visão tradicional de homem, triunfou, segundo Durand (1979), o que ele qualifica de dogmatismo do averroísmo tomista, e os recursos redutores originários das ambições e do imperialismo temporal do papado do século XIII.

A revelação, admitida no mundo islâmico, e cujo representante seria o Anjo Gabriel, anjo do Conhecimento e da Revelação, não era mais aceita pela Igreja Católica. Aqueles que, ao longo da história, ousaram crer serem seus portadores foram destruídos como hereges. Casos exemplares, citados por Durand (1979), são os Cátaros e os Templários. Considerando a visão de Steiner (1982STEINER, Rudolf. A Ciência oculta. São Paulo: Ed. Antroposófica, 1982.) acerca do desenvolvimento da alma humana, e seu desdobramento em alma da sensação, alma do intelecto, ou da razão, e alma da consciência, sabe-se que, para ele, a alma da sensação detém as funções da memória, enquanto à alma da razão cabe ocupar-se do pensamento intelectual-científico. A alma da consciência é a parcela da alma humana que se responsabiliza pela autorreflexão.

Traça-se um paralelo entre a revelação, tratada por Durand, na visão do homem tradicional, e o pensamento intuitivo, adquirido pela autorreflexão, proposta por Steiner como caminho de desenvolvimento individual. Ambos os caminhos pretendem conduzir a uma evolução da alma humana, através de um desenvolvimento cognitivo. Steiner descobre, através de seus estudos, a maneira de expressar, dentro do paradigma clássico vigente em sua época, como o ser humano pode conduzir seu conhecimento até a revelação espiritual, que ele denomina de pensamento intuitivo. A alma humana, mediadora entre o físico e o espiritual, desde as tradições pré-cristãs, cumpre sua função ao exercer a atividade autorreflexiva que conduz ao conhecimento. Dessa forma, conhecimento e evolução espiritual tornam-se conceitos idênticos. Steiner inclui assim ciência e espiritualidade no âmbito do conhecimento e, torna possível a aceitação do mundo espiritual, pela intelectualidade de sua época. Tentar situá-lo dentro de uma corrente de pensamento específica ou de um paradigma parece uma tarefa grande demais para as pretensões deste artigo. O que ocorre é que Steiner sofre influências variadas e busca entre todas elas uma maneira de expressar aquilo que acredita ser a verdade. Sua honestidade nessa busca se reflete nas palavras que ele mesmo escreve n'A Filosofia da Liberdade: "Esta obra não pretende oferecer o único caminho possível para a verdade, mas descreve aquele escolhido por alguém que aspira à verdade". (Steiner, 1988, p. 150).

É nesse sentido que se dá importância para a educação estética, pois, para Steiner, o homem atinge o auge de seu ser através da arte, uma vez que "confere a si mesmo a liberdade como forma de sua existência e transforma o mundo em beleza, ou seja, em expressão imediata da verdade e da liberdade que conseguiu individualizar". (Veiga, 1994VEIGA, Marcelo da. A Obra de Rudolf Steiner. São Paulo: Ed. Antroposófica, 1994., p. 14).

A Cosmovisão Antroposófica surge da busca steineriana em apontar o caminho que o homem pode percorrer através de sua vivência interna fazendo com que esta reflita no exterior. Este reflexo, para Steiner, significa a diferença entre a heteronomia e a autonomia do ser humano, ambas representadas pela aquisição da liberdade permeada pela ética e pela moral. O caminho trilhado por ele incluía a vivência religiosa e o conhecimento científico, que ele transmitiu aos outros por meio de sua teoria cognitiva baseada na cosmovisão goethiana. Seus estudos científicos e filosóficos cumprem essa tarefa e a ampliam até transformá-la num sistema teórico passível de aplicação no âmbito social e educacional, bem como em outros em que ele se aprofundou.

Em seu empenho em fazer-se entender ele lança mão do discurso científico de sua época, mesmo diante da dificuldade de adequação ao tema desenvolvido. O paradigma clássico envolve seu conteúdo de origem hermética ao longo de extensa obra. Na atuação cotidiana, entretanto, a vitalidade do conteúdo refaz o caminho do homem, sem negar a imagem e o sentimento. Assim, através da cognição o homem, sob a perspectiva antroposófica, torna-se criador e criativo. Seu ato cognitivo transforma-se em atuação artística ordenadora da realidade à qual ele pertence. Ecologia profunda, nas palavras de Veiga (1998VEIGA, Marcelo da. Experiência, pensar e intuição - Introdução à Fenomenologia Estrutural. São Paulo, SP: Ed. Cone Sul; Ed. UNIUBE, 1998.). A verdade surge como produto livre do espírito humano. A liberdade é fruto da autoeducação, permitindo educar outros seres humanos, sob o mesmo signo. O trabalho do artista social, sob o ponto de vista ético e moral. Educação e autoeducação conduzem à observação ampliada.

Ao admitir o homem como cocriador ativo do processo cósmico, e a cognição como o membro mais perfeito no organismo do universo, Steiner (1988STEINER, Rudolf. A Filosofia da Liberdade. 2. ed. São Paulo: Ed. Antroposófica, 1988.) entende o ser humano produtor de seus ideais morais sem a necessidade de uma ética normativa. Sua imagem humana trimembrada, em corpo, alma e espírito, semelhante ao homem tradicional durandiano, traz a alma de volta ao seu papel mediador original. A revelação do homem tradicional é o pensamento intuitivo, a autorreflexão que Steiner propõe através do desenvolvimento cognitivo ampliado. A Pedagogia Waldorf procura efetivar a mediação da alma humana entre corpo e espírito através do respeito aos ritmos, possibilitando que o ser humano em formação adquira a criatividade pelo desenvolvimento de seu potencial artístico, caminho para a cognição ampliada.

  • DURAND, Gilbert. O Imaginário - ensaio acerca das ciências e da filosofia da imagem. Tradução de: Renée Eve Levié. Rio de Janeiro: DIFEL, 1998.
  • DURAND, Gilbert. Science de l'homme et tradition - le nouvel esprit antrhopologique. Paris: Berg Internacional Éditeurs, 1979.
  • LIEVEGOED, Bernard. Desvendando o Crescimento - as fases evolutivas da infância e da adolescência. São Paulo: Ed. Antroposófica, 1994.
  • MORIN, Edgar. Ciência com Consciência. Rio de Janeiro: Ed. Bertrand Brasil, 1998.
  • STEINER, Rudolf. A Ciência oculta. São Paulo: Ed. Antroposófica, 1982.
  • STEINER, Rudolf. A Filosofia da Liberdade. 2. ed. São Paulo: Ed. Antroposófica, 1988.
  • STEINER, Rudolf. Education as a Social Problem. New York: Anthroposophic Press INC, 1969.
  • STEINER, Rudolf. Verdade e Ciência. São Paulo: Ed. Antroposófica, 1985.
  • TEIXEIRA, M. Cecília Sanchez. Antropologia, Cotidiano e Educação. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1990.
  • VEIGA, Marcelo da. A Obra de Rudolf Steiner. São Paulo: Ed. Antroposófica, 1994.
  • VEIGA, Marcelo da. Antroposofia: Ciência ou Crença? Revista Chão & Gente, Botucatu, SP: ELO - Instituto de Economia Associativa, n. 19, p. 16-17, set. 1996.
  • VEIGA, Marcelo da. Experiência, pensar e intuição - Introdução à Fenomenologia Estrutural. São Paulo, SP: Ed. Cone Sul; Ed. UNIUBE, 1998.
  • 1
    Tese de doutorado de Rudolf Steiner defendida em 1882, em Rostock.
  • 2
    Gilbert Durand (1998, p. 03) refere-se ao pensamento simbólico, ou raciocínio por similitude ou metafórico como uma forma de pensar que resiste à fragmentação do raciocínio mecanicista ou cartesiano, ou ainda, como também é chamada mais usualmente, pensamento racional.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2015

Histórico

  • Recebido
    16 Abr 2015
  • Aceito
    18 Maio 2015
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