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“Introduzir-se como observador da educação rural”: o itinerário, o calendário e o mapa de Lourenço Filho no México (1947 - 1951)

RESUMO

Este texto tem por objetivo compreender a agenda de trabalho e o itinerário de Manoel Bergstrom Lourenço Filho no México, no período de 1947 e 1951. A porta de entrada para o desenvolvimento deste texto foram as duas viagens deste educador brasileiro inserido em um movimento de ideias e de sujeitos em congressos, impressos, recomendações e documentos norteadores das políticas educacionais, levados a cabo pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). Trata-se, portanto, de uma investigação acerca da circulação de ideias que nortearam a educação rural no Brasil, em tempos em que o México se colocava como referência exitosa de educação rural para toda a América Latina. Em relação às opções teórico-metodológicas, trata-se de um trabalho histórico com metodologia da História Conectada, centrada na pesquisa documental e bibliográfica. Toma-se como fontes: relatórios, jornais, revistas, fotografias e correspondências. Por fim, pode-se concluir que as duas viagens de Lourenço Filho ao México cumpriram um plano de trabalho institucional, especialmente por ocasião da II Conferência Geral da Unesco e da I reunião do Conselho Interamericano Cultural, além de percorrer o país em busca de observar as experiências de educação rural.

Palavras-chave:
Educação Rural; Unesco; Lourenço Filho; México; Brasil

ABSTRACT

This text aims to understand Manoel Bergstrom Lourenço Filho work agenda and itinerary in Mexico, between 1947 and 1951. The gateway to the development of this text was the two trips of this Brazilian educator inserted in a movement of ideas and subjects in congresses, printed matter, recommendations, and documents guiding educational policies, carried out by the United Nations Educational Organization, Science and Culture (UNESCO). It is, therefore, an investigation about the circulation of ideas that guided rural education in Brazil, at a time when Mexico was placing itself as a successful reference in rural education in all Latin America. Regarding the theoretical-methodological options, it is a historical work with the methodology of Connected History, centred on documentary and bibliographic research. Reports, newspapers, magazines, photographs, and correspondence are taken as sources. Finally, it can be concluded that Lourenço Filho two trips to Mexico fulfilled an institutional work plan, especially on the occasion of the Second UNESCO General Conference and the I meeting of the Inter-American Cultural Council, in addition to touring the country in search of observing rural education experiences.

Keywords:
Rural Education; UNESCO; Lourenço Filho; Mexico; Brazil

Introdução

Muy estimado y fino amigo,

La señorita Isabel de Prado tuvo a bien entregarme, junto con la atenta carta que se sirviera ustede confiarle el 2 de julio, un ejemplar de su excelente trabajo ‘La educación Rural en México’, que he leído con vivo interés y encontró diversas referencias - sumamente generosas - a mi actuación como Secretario de Educación Pública en mi país y a la obra que pude entonces desarrollar en lo que concierne a la organización de la campaña nacional contra el analfabetismo. Por todo ello quiero expresarle mi más cordial reconocimiento.

Me ha interesado mucho la inteligente manera en que su monografía proyecta luz sobre el verdadero sentido de que lo hace la Unesco entiende por educación fundamental y la claridad con que muestra cómo México - según usted mismo indica en su carta - hizo este género de educación ‘avant la lettre...’

Estoy seguro de que su estudio suscitará un positivo interés entre quienes se han percatado yo de la importancia de la educación fundamental en un mundo en que todavía más de la mitad de la humanidad es analfabeta. Y abrigo de la certidumbre de que su presencia al frente del Instituto Brasileño de Educación, Ciencia y Cultura permitirá reforzar, en ésta y en otras materias, los vínculos que existen entre su grande y noble país y la Organización que tengo la honra de dirigir en la actualidad.

Jaime Torres Bodet

(BODET, 1952BODET, Jaime Torres. [Correspondência]. Destinatário: Manuel Bergström Lourenço Filho. Paris, 22 jul. 1952. 1 cartão pessoal., p. 1).

A carta, que abre este texto, atravessou o Atlântico. Escrita em Paris, pelo mexicano Jaime Torres Bodet, em 22 de julho 1952BODET, Jaime Torres. [Correspondência]. Destinatário: Manuel Bergström Lourenço Filho. Paris, 22 jul. 1952. 1 cartão pessoal., que à época era diretor-geral da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), foi endereçada a Manoel Bergstrom Lourenço Filho. No conteúdo da carta, o remetente fez comentários elogiosos ao relatório “A Educação Rural no México”, construído pelo destinatário, por ocasião de sua viagem ao México em 1951. Nas 27 linhas datilografadas transparece o tom diplomático e cordial, na medida em que o autor faz menção aos vínculos estabelecidos, entre o trabalho desenvolvido pelo professor brasileiro, junto ao Instituto Brasileiro de Educação Ciência e Cultura (IBECC) e os propósitos lançados pela Unesco. Neste sentido, essa carta é emblemática para o desdobramento de uma complexa trama histórica, marcada pela circulação de ideias, sujeitos, práticas, citações, referências, apropriações, traduções e viagens circunscritas no espaço Brasil/México.

Este texto deriva da tese “Radiaciones continentales”: circulação de modelos educacionais para a educação rural no espaço Brasil-México (1940-1950) e do Projeto Nacional Formação e Trabalho de Professoras e Professores Rurais no Brasil: RS, PR, SP, MG, RJ, MS, MT, MA, PE, PI, SE, PB, RO (décadas de 40 a 70 do século XX), com o objetivo compreender a agenda de trabalho e o itinerário de Lourenço Filho no México, inserido em um intercâmbio de políticas e ideias promovido, sobretudo, pelo Conselho Interamericano Cultural e pela Unesco. As duas viagens cumpriram um plano de trabalho institucional, respectivamente por ocasião da II Conferência Geral da Unesco (1947) e da I reunião do Conselho Interamericano Cultural (1951).

Em relação às opções teórico-metodológicas, este texto se pauta nos pressupostos da História Conectada. Essa referência historiográfica consiste em teoria/método que estabelece conexões pela abertura do diálogo. Neste sentido, assumimos a tarefa do historiador encarregado de “[...] exumar as ligações históricas ou, antes, para ser mais exato, a de explorar as connected histories.” (GRUZINSKI, 2003GRUZINSKI, Serge. O historiador, o macaco e a centaura: a “história cultural” no novo milênio. Estudos Avançados, São Paulo, v. 17, n. 49, p. 321, set./dez. 2003. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ea/a/BJNxbpzhPKCfRSYFmNHq5hg/?lang=pt. Acesso em: 7 jun. 2022.
https://www.scielo.br/j/ea/a/BJNxbpzhPKC...
, p. 19). Para tanto, tivemos que nos converter em uma: “[...] espécie de eletricista encarregado de restabelecer as conexões internacionais e intercontinentais.” (GRUZINSKI, 2003, p. 19). A metáfora do eletricista, encarregado de restabelecer as conexões internacionais e intercontinentais, oferecida pelo historiador francês Serge Gruzinski, é utilizada para conectar uma trama de relações sobre a educação rural no espaço Brasil/México. A partir disso, formulamos alguns questionamentos: O que significou a ida Lourenço Filho ao México? Qual caminho ele fez? Quais os vestígios de sua passagem?

“Maestro de las américas”: as rotas de Lourenço Filho no México

O “Maestro de las Américas” (MONARCHA, 2018MONARCHA, Carlos. Lourenço Filho: a obra de uma vida, a vida numa obra. In: BATISTA, Eraldo Leme; ORSO, Paulino José; COSTA, Bruno Botelho. (org.). Os intelectuais e a defesa da educação brasileira. 1 ed. Uberlândia: Navegando Publicações, v. 1, p. 13-26, 2018., p. 19) é o título que foi conferido a Lourenço Filho pelo seu conhecimento dos sistemas de ensino nos países da América Latina, pela sua projeção nas mais diversas áreas de produção intelectual e nos mais distintos órgãos governamentais, nos idos dos anos de 1920 e 1960. Certamente, tempo expressivo da carreira desse professor, especialmente quando esteve à frente da Campanha de Educação de Adolescentes e Adultos (CEAA), desenvolvida entre os anos de 1947 e 1963. Foi um dos expoentes intelectuais liberais a determinar os rumos da educação rural brasileira no século XX, sobretudo pela atuação junto aos organismos multilaterais, com o objetivo de compreender e formular políticas educacionais no âmbito da América Latina. Ao difundir no Brasil as ideias e práticas de educação vigentes no México, o intelectual brasileiro agia como um mediador da modernização educacional. Ele dava a conhecer ao público brasileiro princípios e concepções educacionais que serviam de orientação para organismos internacionais, como a Unesco e Organização dos Estados Americanos (OEA).

Segundo Celeste Filho (2019, p. 7): “Constata-se, portanto, que Lourenço Filho tinha bom trânsito nos organismos vinculados à OEA com sede no México, pois na década de 1950 fora o representante brasileiro em seu Conselho Interamericano Cultural”. As duas viagens pedagógicas realizadas por ele (1947 e 1951) são entendidas aqui enquanto um movimento que atravessa a história. Isso auxilia no entendimento de que variadas lógicas e motivações se devem à circulação, mobilidades, que vão mudando ao longo da história, pois se constantes são as viagens, é necessário acrescentar que seus sentidos não são unívocos: “[...] que muitas e múltiplas são as práticas e os significados do ato de viajar e o que confere sentido a esses deslocamentos também muda historicamente” (CHAMON; FARIA FILHO, 2007CHAMON, Carla Simone; FARIA FILHO, Luciano. A educação como problema, a América como destino: a experiência de Maria Guilhermina. In: MIGNOT, Ana Chrystina Venâncio; GONDRA, José (org.). Viagens pedagógicas. São Paulo: Cortez, 2007. p. 39-64., p. 40). Com estes aspectos, analisamos o itinerário e a agenda de trabalho de Lourenço Filho no México.

A primeira viagem foi por ocasião da II Conferência Geral da Unesco, realizada no Palácio de Belas Artes da Cidade do México e na Escuela Nacional de Maestros, em 1947. Nessa ida, ele aproveitou o ensejo para conhecer escolas rurais dos estados de Guerrero, Morelos, México e Michoacán, onde encontrou: “[...] algumas classes de admirável dinamismo, onde ensaios verdadeiramente criadores se realizavam. Em outras, no entanto, o trabalho não havia ainda perdido a feição tradicional.” (LOURENÇO FILHO, 1952LOURENÇO FILHO, Manoel Bergström. A educação rural no México. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Brasília, v. 17, n. 45, p. 108-198, jan/mar. 1952., p. 148). Na fotografia abaixo está Lourenço Filho e demais delegados da II Conferência Geral da Unesco, realizada no México, em 1947:

A participação do México, enquanto anfitrião da II Conferência Geral da Unesco, foi decisiva na divulgação do Projeto de Educação Fundamental na América Latina. A Unesco, e consequentemente o governo mexicano, aprovava a ideia de difundir os pressupostos da Educação Fundamental no mundo: “[...] de tal manera que la participación y actividades de México en la creación y difusión de este tipo de educación en nuestro propio país y América Latina fue de gran relevancia en el periodo 1945-1951.” (MIRANDA, 2014MIRANDA, Federico Lazarín. México, la UNESCO y el Proyecto de Educación Fundamental para América Latina, 1945-1951. Signos Históricos, n. 31, p. 88-115, enero-junio, 2014. Disponível em: http://www.scielo.org.mx/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1665-44202014000100003. Acesso em: 6 jun. 2022.
http://www.scielo.org.mx/scielo.php?scri...
, p. 91). O México participou nesse período de vários fóruns internacionais de ensino, além de propor projetos de Educação Fundamental para grupos étnicos que não falavam espanhol. A participação desse país tem como contexto a situação mundial do final da Segunda Guerra e a nova configuração Geopolítica global sob as lideranças dos Estados Unidos e da União das Repúblicas Socialistas Soviéticos (URSS), em que países latino-americanos lutaram por não cair em uma posição secundária em assuntos políticos e econômicos em âmbito internacional.

Neste contexto, o exemplo mexicano, com: “[...] las Escuelas Rurales, los Núcleos Escolares, Las Misiones Culturales, las Normales Rurales y Escuelas Prácticas de Agricultura” (CREFAL, 1952, p. 27), oferecia interesse também pelo ponto de vista técnico, isto é, pela experiência da concepção de Educação Fundamental ou Educação de Base, sobretudo pela criação do Centro Regional de Educación Fundamental para la América Latina (Crefal)1 1 Esse centro passou por diversas mudanças de paradigma e nomenclatura, de Centro Regional de Educación Fundamental para la América Latina (Crefal) passou a ser denominado de Centro de Cooperación Regional para la Educación de Adultos en América Latina y el Caribe (Crefal), a partir de outubro de 1990 até os dias atuais. , em Pátzcuaro, Michoacán. No início do Centro, os objetivos eram basicamente ajudar os governos latino-americanos a atender a duas necessidades urgentes: fornecer treinamento a professores e líderes de Educação Fundamental e a preparação de materiais adaptados às necessidades, recursos e níveis culturais das comunidades, especialmente rurais. Há evidências de que Lourenço Filho, junto com outros educadores, contribuiu para a construção do conceito de Educação Fundamental, nesses termos, foi concebida enquanto o mínimo necessário, segundo Cerecedo (2015CERECEDO, Alicia Civera. Entre lo local y lo global. La Unesco y el proyecto educativo piloto de México 1947-1951. Annali di storia dell’educazione e delle istituzioni scolastiche, v. 22, p. 166-179, 2015. Disponível em: https://www.torrossa.com/en/resources/an/4923927. Acesso em: 7 jun. 2022.
https://www.torrossa.com/en/resources/an...
): “A ese mínimo, aún sin clarificar a qué se refería, comenzó a llamarse fundamental education (educación fundamental)”. (CERECEDO, 2015CERECEDO, Alicia Civera. Entre lo local y lo global. La Unesco y el proyecto educativo piloto de México 1947-1951. Annali di storia dell’educazione e delle istituzioni scolastiche, v. 22, p. 166-179, 2015. Disponível em: https://www.torrossa.com/en/resources/an/4923927. Acesso em: 7 jun. 2022.
https://www.torrossa.com/en/resources/an...
, p. 169).

FIGURA 1
Lourenço Filho no canto esquerdo e demais delegados da II Conferência Geral da Unesco, no México, em 1947

O educador brasileiro, antes de chegar ao México, recebeu uma agenda de trabalho do comitê, que previa reuniões da comissão do Conselho Interamericano Cultural, a que se referiu em uma das cartas como “agradable Comité” (LOURENÇO FILHO, 1951LOURENÇO FILHO, Manuel Bergström. [Correspondência]. Destinatário: Murilo Braga. Washington, 4 out. 1951. 1 cartão pessoal., p. 1). Uma das pautas mais importantes dessa reunião incluía a criação de novos centros de preparação de pessoal para a Educação Fundamental, com caráter internacional. Nesta perspectiva, a experiência pioneira do Crefal se constituía enquanto basilar para o desenvolvimento de novas experiências de Educação Fundamental em todo o mundo.

Por ocasião da segunda viagem, o “maestro de las américas” deixou a direção do Departamento Nacional de Educação e foi indicado presidente da Comissão Nacional Executiva do Centro de Formação de Pessoal para Educação Fundamental da América Latina, passando a representar o Brasil no Conselho Interamericano Cultural, no México. Seu plano de trabalho estava sujeito à intervenção de John B. Bowers (Chefe da Divisão de Educação Fundamental da Unesco), pois por se tratar de uma visita institucional deveria cumprir os objetivos e deliberações da Unesco, OEA e Crefal, dentre eles: estudar os métodos, técnicas e arquitetura de locais de ensino, escrever relatórios, além de remeter os materiais e objetos pertinentes para o ensino rural no Brasil. Segundo Mignot e Silva (2011MIGNOT, Ana Chrystina Venancio; SILVA, Alexandra Lima da. Tão longe, tão perto: escrita de si em relatórios de viagens. Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 27, n. 01, p. 435-458, abr. 2011. Disponível em: https://www.scielo.br/j/edur/a/gWyWvVn9HttWpTFTCf3XsJj/abstract/?lang=pt. Acesso em: 7 jun. 2022.
https://www.scielo.br/j/edur/a/gWyWvVn9H...
):

Tais atribuições sugerem pensar a viagem em missão oficial como parte de uma troca entre os envolvidos, no sentido de dom e contradom, uma vez que, se, por um lado, recebia-se financiamento e custeio de hospedagem e deslocamentos, por outro, havia uma série de obrigações e encargos, no sentido de retribuir aqueles que financiavam a viagem. (MIGNOT; SILVA, 2011MIGNOT, Ana Chrystina Venancio; SILVA, Alexandra Lima da. Tão longe, tão perto: escrita de si em relatórios de viagens. Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 27, n. 01, p. 435-458, abr. 2011. Disponível em: https://www.scielo.br/j/edur/a/gWyWvVn9HttWpTFTCf3XsJj/abstract/?lang=pt. Acesso em: 7 jun. 2022.
https://www.scielo.br/j/edur/a/gWyWvVn9H...
, p. 437).

Essa visita fazia parte das iniciativas que vinham sendo empreendidas pelo governo brasileiro em prol da educação rural, considerada, na época, um dos maiores problemas educacionais do país. Essas iniciativas estavam articuladas com as propostas em circulação em âmbito internacional, mediante acordos assinados entre Brasil e Estados Unidos. O jornal mexicano El Nacional publicou larga matéria sobre a chegada de 21 educadores de cada República Americana que integra a OEA: “[...] enviará de los más granado de su intelectualidad a la Primera Reunión del Consejo Interamericano Cultural, que se efectuará en esta capital del 10 al 25 de septiembre próximo.” (EL NACIONAL, 1951, p. 12). A pauta da reunião incluía problemas educacionais referentes à educação rural, conforme o plano de ação publicado no jornal El Nacional, sendo os temas sugeridos em matéria de educação:

1- Aspectos interamericanos de educación primaria para hacerla universal, gratuita y obligatoria; 2- Soluciones para problemas de analfabetismo y educación rural; 3- Problemas relacionados de educación vocacional; 4- Problemas relacionados a educación secundaria; 5- Promoción de programas de educación fundamental, adaptados a las necesidades de la población; 6- Problemas de la educación de las poblaciones indígenas 7- Consideración de los problemas relacionados con la revalidación de los estudios universitarios y tecnológicos; 8- Intensificación del intercambio de profesores, estudiantes y técnicos. (EL NACIONAL, 1951, p. 5).

A pauta educacional dessa reunião revela a preocupação com temas que faziam parte da agenda política internacional, a exemplo da universalização da educação primária, combate ao analfabetismo adulto, educação rural e programas de Educação Fundamental. A reunião do conselho: “[...] tendría su sede en México. Lo integrarían representantes del Brasil, los Estados Unidos, Haití, México y Uruguay” (BODET, 1971BODET, Jaime Torres. El desierto internacional. México: Porrúa, 1971., p. 12). As atividades aconteceram entre os dias 10 e 25 de setembro de 1951. Nessa ocasião estavam presentes Alberto Lleras Camargo (Secretário-Geral da OEA), Manuel Gual Vidal (Secretário de Educação Pública), Manuel Tello Macías (Secretário de Relações Exteriores), Miguel Alemán (Presidente da República), Jaime Torres Bodet (Diretor-geral da Unesco), entre outros. A imagem abaixo mostra Lourenço Filho por ocasião dessa reunião:

A fotografia mostra que o educador brasileiro estava acompanhado de Antônio Camilo de Oliveira, embaixador do Brasil no México, no período entre 1949 e 1951. Seu processo de circulação e atuação deve ser entendido conforme explica Schriewer (2000SCHRIEWER, Jürgen. Estados-modelo e sociedade de referência: externalização em processos de modernização. In: NÓVOA, António; SCHRIEWER, Jürgen. A difusão mundial da escola. Lisboa: Educa, 2000, p. 103-120, (Educa História, 4).). No entender do autor, as referências a exemplos estrangeiros são algo mais que histórias contemporâneas em outros países, pois “[...] espera-se que tais referências sirvam como ‘lições’, que forneçam ‘ideias estimulantes’ e novos impulsos para a definição de políticas ou para delinear um quadro de referência para a especificação das opções de reforma.” (SCHRIEWER, 2000SCHRIEWER, Jürgen. Estados-modelo e sociedade de referência: externalização em processos de modernização. In: NÓVOA, António; SCHRIEWER, Jürgen. A difusão mundial da escola. Lisboa: Educa, 2000, p. 103-120, (Educa História, 4)., p. 114). Ao tratar desses sujeitos, Carvalho (2000CARVALHO, Marta Maria Chagas de. Reformas da instrução pública. In: FARIA FILHO, Luciano Mendes de; LOPES, Eliane Marta Teixeira; VEIGA, Cynthia Greive (org.). 500 anos de educação no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. p. 225-251.) considerou que se constituíam enquanto assíduos:

[...] viajantes e ávidos leitores, esses mediadores do moderno muito frequentemente se legitimavam reivindicando a sua condição de conhecedores do que se passava no outro hemisfério. Dessas viagens colhiam, geralmente, certo deslumbramento e uma alta dose de espanto pelas condições materiais vigentes nas instituições escolares estrangeiras, pela cultura pedagógica inscrita nas práticas da sala de aula, pelos valores políticos impregnados nos modos de organizar e facultar o acesso popular à escola. (CARVALHO, 2000CARVALHO, Marta Maria Chagas de. Reformas da instrução pública. In: FARIA FILHO, Luciano Mendes de; LOPES, Eliane Marta Teixeira; VEIGA, Cynthia Greive (org.). 500 anos de educação no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. p. 225-251., p. 241).

FIGURA 2
Lourenço Filho e Antônio Camilo de Oliveira na reunião do Conselho Interamericano Cultural, Cidade do México, 25 de setembro de 1951

A autora indica que a historiografia educacional brasileira vem mapeando uma espécie de cartografia dos circuitos internacionais em que se difundiu, na segunda metade do século XIX, uma pluralidade de informações e de materiais pedagógicos que tiveram função modelar no processo de configuração da instituição escolar. Deste modo, no Brasil, como também em outros países da América Latina, houve uma busca por realizar mudanças na educação nacional, tendo em vista as referências internacionais. A hipótese de que a busca por modelos educacionais considerados mais desenvolvidos parece que garantiria certa legitimidade respeitável ao país que implantava determinado modelo. No caso da experiência mexicana enquanto referência para o Brasil, concomitante à intervenção da Unesco, foi analisada por Souza (2013SOUZA, Rosa Fátima de. A “Educação Rural no México” como referência para o Brasil. Revista Educação em Questão, Natal, v. 45, n. 31, p. 61-81, jan./abr. 2013. Disponível em: https://periodicos.ufrn.br/educacaoemquestao/article/view/5103. Acesso em: 7 jun. 2022.
https://periodicos.ufrn.br/educacaoemque...
) no texto A “Educação Rural no México” como referência para o Brasil. O quadro abaixo e o mapa sintetizam a agenda e os lugares visitados por Lourenço Filho no México, em setembro de 1951LOURENÇO FILHO, Manuel Bergström. [Correspondência]. Destinatário: Murilo Braga. Washington, 4 out. 1951. 1 cartão pessoal.:

QUADRO 1
Agenda de Lourenço Filho, entre setembro e outubro de 1951LOURENÇO FILHO, Manuel Bergström. [Correspondência]. Destinatário: Murilo Braga. Washington, 4 out. 1951. 1 cartão pessoal.

FIGURA 3
Mapa do trajeto de Lourenço Filho no México

FONTE: O autor (2020)

FIGURA 4
Lourenço Filho e Lucas Ortiz, Michoacán, 1951LOURENÇO FILHO, Manuel Bergström. [Correspondência]. Destinatário: Murilo Braga. Washington, 4 out. 1951. 1 cartão pessoal.

A agenda e o mapa remontam, guardados os limites deste texto, o itinerário de Lourenço Filho no México. Sua agenda especialmente voltada para a participação de reuniões e encontros com seus pares - homens de Estado -, no sentido mais amplo do termo, que se reuniam e divulgavam suas ideias sobre educação rural em espaços públicos: “[...] seja como objeto e conteúdo das discussões e das disputas, seja como condição mesma de sua conformação e expansão.” (FARIA FILHO; CARVALHO, 2016FARIA FILHO, Luciano Mendes de; CARVALHO, Rosana Areal de. A educação nos projetos de Brasil: espaço público, modernização e pensamento histórico e social brasileiro nos séculos XIX e XX. Programa de Pesquisa apresentado ao CNPq para solicitação de Auxílio à Pesquisa, Belo Horizonte, 2016., p. 7-8). Essas ideias circulavam em congressos, viagens, cartas, revistas, jornais, entre outros veículos construídos como fruto desta rede de relações. A imagem abaixo registrou Lourenço Filho com Lucas Ortiz no Crefal, em Pátzcuaro.

Lourenço Filho se constituiu enquanto o principal intelectual brasileiro diante da Unesco a estabelecer relações com o México, nesse período. No tocante aos políticos, educadores e intelectuais que integraram sua rede de sociabilidade, foram identificados diversos nomes, como: Jaime Torres Bodet, Mario Aguilera Dorantes, Isidro Castillo Pérez, Guillermo Nannetti, Lucas Ortiz Benítez, John B. Bowers e Santiago Hernández Ruiz. Para Sirinelli (2003SIRINELLI, Jean-François. Os intelectuais. In: RÉMOND, René (org.). Por uma história política. 2. ed. Trad. Dora Rocha. São Paulo: FGV, 2003. p. 231-269., p. 26), o historiador dos intelectuais não tem como tarefa nem construir um panteão, nem cavar uma fossa comum. Há coisa melhor a ser feita. Sobretudo, tentar destrinchar a questão das relações entre as ideologias produzidas ou veiculadas pelos intelectuais e a cultura política de sua época. Neste sentido, este sujeito estava inserido em um tempo em que: “[...] inúmeros sujeitos convertem-se em homens de doutrina; imersos em redes de sociabilidade, atuam no sentido de reintroduzir na cena nacional um saber flutuante, porém vivamente associado à ideia de pesquisa e inovação.” (MONARCHA, 2009MONARCHA, Carlos. Brasil arcaico, escola nova: ciência, técnica & utopia nos anos 1920-1930. São Paulo: Ed. Unesp, 2009., p. 173). Aqui, resta interrogar: o que chamou a atenção de Lourenço Filho nessa viagem? Quais aspectos da educação rural mexicana foram relatados por ele?

“Certos problemas são muito similares aos nossos”: os relatos sobre a Educação Rural mexicana

Aqui estou, nesta sua terra bem conhecida, depois de quase um mês no México. Além dos trabalhos do Conselho Interamericano Cultural, que foram bem interessantes, realizei uma viagem pelo interior, conforme já lhe escrevi, para observar in loco, as questões de ensino Rural, dando assim desempenho: a honrosa comissão que me confiou o Sr. Ministro.

Percorri boa parte do Estado de Mitchoacan, vendo na intimidade pequenas povoações de mestiços e de indígenas. Observei ação do professorado, realmente notável, pelo aspecto social. Por outro lado, estive vendo, não só no Centro de Preparação de Pessoal para a Educação Fundamental na América Latina, (O CREFAL, mantido pela Unesco e pela OEA) a grande experiência e aí se realiza, destinada a preparação de promotores, ou líderes de educação fundamental.

Pude de colher assim material muito abundante, para um relatório em que possa descrever a ação real da escola rural mexicana, seus planos, processos e objetivos, ligados hoje a uma ação mais ampla da educação estra-escolar e ao trabalho das missões culturais. Esse relatório, que espero que possa apresentar pouco depois da minha chegada, talvez possa ser publicado pelo INEP.

É evidente afirmei muitas convicções, como, por outro lado, retifiquei outras. O processo do problema, ou das soluções do problema, no México, realmente foi grande, de 1947 para cá.

O Estado de Michoacán, foi bem escolhido, pois que se trata de uma região fértil, algumas zonas de início de industrialização (muito ao contrário do que a no norte do país, na zona de Taxco, e também conheço). Certos problemas são muito similares aos nossos, nessas zonas.

Escrevo da União Pan Americana, onde estou para exame dos problemas de cooperação. Conforme já escrevi, estuda-se agora, em maiores minucias, o plano das escolas normais inter Americanas, gostaria imenso, se possível, de receber aqui quais as intenções do nosso governo a este respeito (projeto n. 26). Por outro lado, antes de deixar o Washington, eu lhe escreverei sobre os resultados do estudo já hoje aqui iniciado, com os técnicos da OEA.

Minha demora ah que será até o dia 10. Penso estar, de 11 a 19, em Nova York. Meus planos são os de embarcar em navio, a 20, para, na viagem, rascunhar o relatório. Assim, se puder, escreva-me para aqui, ou então para Nova York.

Como sempre ocorre, quando viajamos, ficamos sem notícias do Brasil. Mande-me dizer algo, também, sobre os problemas gerais, Inclusive da marcha do projeto da fundação de S. S. Rural, Relativamente a esse assunto, como a de outros, o Marcio tem estado numa grande atividade. Ainda ontem, segundo vi, mandou-lhe, pelo Correio aéreo, um grande envelope, com pequeno relatório, artigo resumo e uns trabalhos de um congresso, que se realizou no México, nos dias em que lá estivemos, e onde ele conseguiu introduzir-se como ‘observador’.

Cumprimento ao Sr. Ministro e Dr. Pericles.

Recomende-me aos seus. Receba um forte abraço. (LOURENÇO FILHO, 1951LOURENÇO FILHO, Manuel Bergström. [Correspondência]. Destinatário: Murilo Braga. Washington, 4 out. 1951. 1 cartão pessoal., p. 1).

Esta carta atravessou o continente americano, escrita em Washington, Estados Unidos, em 4 de outubro de 1951, foi destinada a Murilo Braga, então presidente do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), cargo do qual esteve à frente entre 13 de fevereiro de 1946 e 28 de abril de 1952. Nesta correspondência, o autor relata as experiências vividas durante um mês no México, aproximadamente entre o dia 7 de setembro e 1º de outubro de 1951, em que diz ter conhecido na intimidade pequenas povoações de mestiços e de indígenas, além de conhecer as missões culturais e a rural mexicana, com ênfase em seus planos, processos e objetivos. A mirada comparativa de Lourenço Filho se percebe quando considerou que “certos problemas [mexicanos] são muito similares aos nossos [brasileiros]” (LOURENÇO FILHO, 1951LOURENÇO FILHO, Manuel Bergström. [Correspondência]. Destinatário: Murilo Braga. Washington, 4 out. 1951. 1 cartão pessoal., p. 1).

Como fruto dessa viagem foi elaborado um relatório, intitulado “Educação Rural no México”, de 90 páginas, publicado pela Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, entre janeiro e março de 1952 e, em 1961, compôs um dos capítulos do livro Educação Comparada (LOURENÇO FILHO, 1961). Segundo Mignot e Silva (2011MIGNOT, Ana Chrystina Venancio; SILVA, Alexandra Lima da. Tão longe, tão perto: escrita de si em relatórios de viagens. Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 27, n. 01, p. 435-458, abr. 2011. Disponível em: https://www.scielo.br/j/edur/a/gWyWvVn9HttWpTFTCf3XsJj/abstract/?lang=pt. Acesso em: 7 jun. 2022.
https://www.scielo.br/j/edur/a/gWyWvVn9H...
), os relatórios de viagens: “[...] em princípio escritos para cumprir obrigações, fogem dos padrões de neutralidade e objetividade que predominam em documentos produzidos com a finalidade de prestar contas. Transbordam da escrita desses viajantes suas escolhas e também suas tensões e emoções.” (MIGNOT; SILVA, 2011MIGNOT, Ana Chrystina Venancio; SILVA, Alexandra Lima da. Tão longe, tão perto: escrita de si em relatórios de viagens. Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 27, n. 01, p. 435-458, abr. 2011. Disponível em: https://www.scielo.br/j/edur/a/gWyWvVn9HttWpTFTCf3XsJj/abstract/?lang=pt. Acesso em: 7 jun. 2022.
https://www.scielo.br/j/edur/a/gWyWvVn9H...
, p. 447).

Consideramos aqui que esse relatório é simultaneamente técnico-profissional e acadêmico, expressando uma tentativa contínua de inovação, mediante abordagem e estudo de questões concernentes à educação rural mexicana. O autor cultivava interesses intelectuais múltiplos e diversificados, assim, escreveu e publicou estudos sobre assuntos diversos, a exemplo da formação de professores rurais e escolas primárias rurais no Brasil, sem perder de vista sua mirada comparativa.

A Unesco promoveria projetos educativos pilotos, os quais seriam realizados pelos países membros e a Organização seria responsável por fornecer informações entre eles, gerar documentos para disseminação e convencer os governos a realizar experiências educacionais para os propósitos da Organização, produzir materiais de apoio e traduzi-los em vários idiomas. Para Cerecedo (2013CERECEDO, Alicia Civera. Los proyectos educativos piloto de la Unesco y la definición de la educación fundamental, 1945-1951. In: CONGRESO NACIONAL DE INVESTIGACIÓN EDUCATIVA. 12. 2013. Guanajuato Anais..., 2013. Disponível em: http://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:3hF2ue_aObwJ:www.comie.org.mx/congreso/memoriaelectronica/v12/doc/0772.pdf+&cd=3&hl=pt-BR&ct=clnk≷=mx&client=firefox-b-d. Acesso em: 20 set. 2019.
http://webcache.googleusercontent.com/se...
), tais projetos foram experimentos, não apenas de experiências educacionais propriamente ditas, mas de maneiras de relacionar, coordenar, apoiar ou dirigir as ações da Unesco.

Esse relatório estava em consonância com estudos comparados desenvolvidos nessa época e que, por sua vez, consistiam em relatos que eram fruto de viagens. A experiência de educação rural mexicana foi transmitida para o exterior de diferentes maneiras, como exposições universais, revistas e congressos e visitas de educadores comissionados. Lourenço Filho dominava os temas tratados, portanto, sua percepção dos processos educacionais brasileiros ainda demostra pertinência e pode ser relevante atualmente nos debates sobre educação rural em nosso país. Em suas palavras, o México:

[...] estendeu suas funções, até assumir as de natureza política para auxílio mútuo na solução de problemas sociais fundamentais, entre os quais os de saúde e educação. Com a reforma aprovada na Conferência do México, em 1945 (coincidente, assim, com a criação da Unesco), alargou suas tarefas de estudo comparativo. Desde essa época vem, de fato, por si ou em cooperação com a Unesco, empreendendo levantamentos da situação cultural, da legislação do ensino, de programas e métodos, e realizando reuniões de estudo sobre importantes questões da educação nos países americanos. (LOURENÇO FILHO, 2004LOURENÇO FILHO, Manoel Bergström. O ensino no México. In: LOURENÇO FILHO, Ruy; MONARCHA, Carlos (org.). Educação comparada. 3. ed. Brasília: MEC/Inep, 2004., p. 30).

Nessa viagem, ele participou de reuniões, visitou escolas, examinou documentos oficiais e manteve contato com autoridades educacionais. Como observador experiente na administração do ensino público, avaliou o movimento educacional com arguto olhar comparatista. Esse retorno em 1951 tinha um objetivo político bem específico. Tratava-se de compreender as práticas de educação rural desenvolvidas no México, aprender bem as lições e, posteriormente, implementar políticas semelhantes no Brasil.

O relatório está dividido em quatro seções. Na primeira, intitulada “Origens do movimento do ensino rural”, o autor analisou a emblemática revolução de 1910 e a reforma agrária, pela tônica “Tierra y escuelas!”; além de situar o problema das populações indígenas no contexto mexicano e a afirmação de uma pedagogia social enquanto base ideológica. O autor também considerou o papel histórico desempenhando pelo educador mexicano José Vasconcelos, à frente da Secretaría de Educación Pública (SEP), e a relação estabelecida entre o ensino rural mexicano e o conceito de Educação Fundamental - recém-criado, à época, pela Unesco.

Na segunda seção, “Organização e desenvolvimento de um sistema”, o educador detalhou a política geral mexicana e a política educacional, atentando para a formação dos ejidos2 2 Para o México, o ejido é uma propriedade rural de uso coletivo de grande importância na vida agrícola do país. . Em seguida, descreveu as dificuldades do México em recrutar professores rurais e o importante papel desempenhado pelos chamados “professores missionários”, além de avaliar a evolução das primeiras missões culturais. Lourenço Filho analisou com atenção o processo de criação e evolução das escolas normais regionais e os planos governamentais para preparação de professores rurais. Além disso, o autor também inseriu impressões sobre os prédios e aparelhamento escolar do professorado rural, bem como a administração geral e serviços de inspeção escolar. Por meio de quadros estatísticos, comparou o crescimento geral do sistema de ensino, entre as décadas de 1920 e 1950.

Na terceira seção, intitulada “Situação atual da educação rural”, Lourenço Filho lançou um olhar geral sobre o sistema de escolas primárias federais3 3 a) Administração Geral; b) Os Diretores Federais; c) Serviços de Inspeção Escolar; d) Corpo Técnico e Consultivo da Direção Geral; e) Direção das escolas rurais; f) Organização do ensino e programas; g) Anexos escolares; e h) Ação Social. . Por conseguinte, ele observou o sistema atual das missões culturais, analisando seus diferentes tipos e resultados, junto às comunidades rurais, nas áreas de comunicação, saúde, organização econômica, civismo e vida familiar e comunitária. Nesta perspectiva, o autor também ressaltou a administração, orientações técnicas, financiamento e os resultados da Campanha contra o Analfabetismo levada a cabo no México. O educador analisou, ainda, os serviços da Diretoria Geral de Assuntos Indígenas, bem como os da Diretoria Geral de Ensino Agrícola e os internatos de ensino primário. Deste modo, ao analisar os serviços de extensão cultural e as populações rurais, Lourenço Filho considerou a importância da administração, serviço de rádio, teatro popular, música, dança, cinema educativo, bibliotecas; e, por último, situou a educação rural como sistema de Educação Fundamental.

Por fim, na quarta seção, denominada “Tendências, resultados gerais e perspectivas”, o pedagogista escreveu sobre a evolução do pensamento de reforma social mexicana e, em seguida, considerou os aspectos normativos e constitucionais da educação rural, especialmente com a Constituição de 1917. Ademais, também avaliou evolução do pensamento pedagógico-social e a relação com os resultados gerais da política educativa. Neste sentido, Lourenço Filho considerou a doutrina atual da educação rural, pautada em princípios da reforma agrária e, enfim, teceu suas considerações finais.

Esse relatório, em sua densidade e riqueza, revela a imersão do autor na história, educação e na cultura mexicana. Segundo a compilação feita pela Unesco de obras sobre educação rural em todo o mundo, intitulada Educação Rural, esse relatório é analisado enquanto um estudo:

[...] redigido para o Ministério Brasileiro de Educação e da Saúde, faz o histórico da educação rural no México, desde as origens até 1910, qual autor define o sistema mexicano de educação rural como sistema de ‘pedagogia social’. O ensino escolar não constitui senão aspectos completando diversas formas de educação popular, e, ao mesmo tempo, é diretamente inspirado nos princípios da ‘Educação de base’.

Um capítulo é consagrado a um exame da concepção à atual educação rural; o autor cita declarações oficiais expondo os objetivos, os princípios gerais e as teorias desta educação, assim como recomendações gerais referentes à organização do sistema. Cada uma das quatro partes do estudo (origens, organização e desenvolvimento, situação atual, tendências) compreende uma bibliografia. Diagramas põem em relêvo a organização dos serviços de educação rural e das seções competentes do Ministério da Educação (UNESCO, 1965, p. 30).

Uma característica importante nos estudos comparativos realizados por Lourenço Filho consiste em uma instrumentalização do que se comparara com finalidades privilegiadamente pedagógicas, em detrimento das características políticas originais que resultaram nos arranjos educacionais a serem comparados. Ou seja, a experiência de “Educação Rural” mexicana marcada fortemente pela formação política e revolução social (formação de sindicatos, cooperativismo e luta pela terra) foi desfocada no relatório, mesmo que tenha considerado aspectos sobre esse tema em seus escritos. Ao observar o sistema educativo do México, pôde considerar que:

[...] a intenção educativa, de forte predomínio social, não excluía a difusão da leitura e da escrita, antes a salientava como benéfica e necessária (20). Nos objetivos assinalados pela Unesco para todo e qualquer trabalho de ‘educação fundamental’, figura, aliás, em primeiro lugar, este item, claramente expresso: ‘A arte de pensar e de comunicar o pensamento (ler, escrever, falar, escutar, calcular)’ (21). (LOURENÇO FILHO, 1952LOURENÇO FILHO, Manoel Bergström. A educação rural no México. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Brasília, v. 17, n. 45, p. 108-198, jan/mar. 1952., p. 161).

Com a tônica do social o México levou a cabo uma experiência de alfabetização sem precedentes na história, que aliava o ensino da leitura e escrita e o projeto de redistribuição das terras, inclusive para os falantes das línguas maya, tarasco, otomi náhuatl, náhuatl4 4 Foram elaboradas, com o apoio do Departamento de Assuntos Indígenas e do Instituto Nacional do Índio, em quatro idiomas indígenas diferentes: náhuatl-español, otomí-español, maya-español, tarasco-español; e tinham três objetivos: ensinar os indígenas monolíngues a ler em sua própria língua; ensiná-los espanhol quando alfabetizados em sua língua materna; e alfabetizá-los em espanhol. . Com isso, se construiu no México um modelo de escola rural, com características especialmente revolucionárias, o que fez dessa experiência pioneira e original uma referência de impacto continental. O movimento reclamava reforma agrária, controle nacional dos recursos minerais, separação entre a Igreja e o Estado e extensão da educação para as massas.

Neste processo, dois professores altamente experientes na educação rural mexicana foram os que promoveram, projetaram e dirigiram o projeto-piloto mexicano: Mario Aguilera Dorantes e Isidro Castillo. Para eles, esse projeto significava uma oportunidade de mostrar ao mundo que os métodos da escola rural mexicana eram eficazes e baratos, numa época em que a escola rural no México já era ofuscada pela inércia gerada por um currículo uniforme para todo o país, uma educação encerrada na sala de aula, uma escola enclausurada em horários fixos, e um ensino, disseram, desmotivado, rotinizado e burocratizado.

O novo projeto teve que recuperar todo o bem que a experiência educacional da revolução mexicana de 1910 trouxera, mas excluindo “seus erros”. Isso era possível com o abrigo da Unesco, já que contava com o apoio dos governos federal, estadual e municipal. Sendo assim, dispunha de recursos suficientes, cuja utilização seria concentrada em uma região, sem desassociar a escola rural de outras escolas públicas e privadas, bem como de diferentes graus acadêmicos e orientações. Deste modo, para que todos se apoiassem mutuamente e todos colaborassem no trabalho direto com a comunidade.

Lourenço Filho “[...] extraiu mais os elementos técnico-pedagógicos que convinham à realidade brasileira.” (SOUZA, 2013SOUZA, Rosa Fátima de. A “Educação Rural no México” como referência para o Brasil. Revista Educação em Questão, Natal, v. 45, n. 31, p. 61-81, jan./abr. 2013. Disponível em: https://periodicos.ufrn.br/educacaoemquestao/article/view/5103. Acesso em: 7 jun. 2022.
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, p. 76). No relatório, o entusiasmo político da luta dos camponeses pela posse terra, orientado pela máxima “La tierra es de quien la trabaja”, foi suavizado, enquanto foram enfatizadas as experiências de educação rural, especialmente as missões rurais, concebidas enquanto eficientes estratégias de intervenção na vida das populações rurais. Desta maneira, a referência às bases revolucionárias que fomentaram a pedagogia social presente nas práticas de educação rural mexicanas foi concebida apenas como um elemento da trajetória histórica do movimento, pois interessava mais ao autor assinalar a reconfiguração do movimento no contexto democrático.

Considerações Finais

As duas viagens de Lourenço Filho ao México cumpriram um plano de trabalho institucional, especialmente por ocasião da II Conferência Geral da Unesco e da I reunião do Conselho Interamericano Cultural. A referência mexicana foi utilizada enquanto um modelo de experiência exitosa no exterior. Desta maneira, a referência às bases revolucionárias que animaram a pedagogia social, presente nas práticas de educação rural mexicanas, foi concebida apenas como um elemento da trajetória histórica do movimento, uma vez que interessava mais a Lourenço Filho situar a reconfiguração do movimento no contexto liberal brasileiro.

Nas informações sobre a educação rural no México, se sobressaem os aspectos técnicos em detrimento do conteúdo político. Esta omissão à revolução foi, sobretudo, motivada por motivos ideológicos. Por isso, consideramos ser uma apropriação “à brasileira”, compreendida enquanto um modo próprio de implementar o modelo de educação rural mexicano, tendo em vista as condições materiais, os interesses políticos e as características culturais em curso no Brasil. Neste sentido, mais que uma cópia ou simples adaptação, esse movimento consistiu em um redimensionamento de um exemplo original nos moldes conjunturais presentes no Brasil. Neste caso, as iniciativas desenvolvidas no México foram “abrasileiradas” por Lourenço Filho, que, por sua vez, estava inserido em um período histórico marcado por relações multilaterais mediadas pelas Unesco.

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  • UNESCO. A Educação Rural. Instituto Brasileiro de Educação, Ciência e Cultura (IBECC). Rio de Janeiro, 1965.
  • 1
    Esse centro passou por diversas mudanças de paradigma e nomenclatura, de Centro Regional de Educación Fundamental para la América Latina (Crefal) passou a ser denominado de Centro de Cooperación Regional para la Educación de Adultos en América Latina y el Caribe (Crefal), a partir de outubro de 1990 até os dias atuais.
  • 2
    Para o México, o ejido é uma propriedade rural de uso coletivo de grande importância na vida agrícola do país.
  • 3
    a) Administração Geral; b) Os Diretores Federais; c) Serviços de Inspeção Escolar; d) Corpo Técnico e Consultivo da Direção Geral; e) Direção das escolas rurais; f) Organização do ensino e programas; g) Anexos escolares; e h) Ação Social.
  • 4
    Foram elaboradas, com o apoio do Departamento de Assuntos Indígenas e do Instituto Nacional do Índio, em quatro idiomas indígenas diferentes: náhuatl-español, otomí-español, maya-español, tarasco-español; e tinham três objetivos: ensinar os indígenas monolíngues a ler em sua própria língua; ensiná-los espanhol quando alfabetizados em sua língua materna; e alfabetizá-los em espanhol.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    18 Jan 2021
  • Aceito
    02 Abr 2022
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