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A mobilização de saberes nas práticas de professores nos anos iniciais: um estudo de caso

The knowledge mobilization in the teachers' practice in the first grades: a case study

Resumos

O presente artigo retrata o desenvolvimento de uma pesquisa sobre como o professor dos anos iniciais mobiliza saberes no exercício da atividade docente. A linha da pesquisa foi a de formação de professores e a abordagem metodológica foi qualitativa, caracterizando-se como um estudo de caso. Os dados foram coletados por meio de questionário, entrevista semi-estruturada, autobiografia e relato oral, microetnografia usando vídeo e observações das práticas pedagógicas de quatro professoras de uma escola com caráter filantrópico do município de Santa Maria, RS, da Pré-Escola à 4ª série do Ensino Fundamental. Na pesquisa, os conceitos de habitus e de saberes foram tomados como elementos conectados, numa inter-relação dialética, em que o primeiro foi compreendido como elemento mediador do processo de mobilização de saberes pelas professoras. Desta inter-relação um habitus professoral constitui-se, dando identidade ao trabalho das docentes nos anos iniciais.

habitus; saberes; habitus professoral


This article portrays the development of a research about the way first years teachers mobilize knowledge in the teaching practice. The research line adopted was the one about teachers formation and the methodological approach was qualitative, being this way a case study. The data were collected through questions, interview half-structured, self-biography and oral report, microetnography using video and pedagogical observations of four teachers from a philanthropic school, in Santa Maria municipal district, RS, from preschool up to 4th grade of elementary school. In the research the concept of habits and knowledge were taken as linked elements, in a dialetic inter-relation, in which, the first was understood as mediator element of the knowledge mobilization process by the teachers. From this inter-relation a teachers habitus is formed giving identity, to the educator's work from the first years.

habitus; knowledge; teacher's habitus


ARTIGOS DE DEMANDA CONTÍNUA

A mobilização de saberes nas práticas de professores nos anos iniciais: um estudo de caso

The knowledge mobilization in the teachers' practice in the first grades: a case study

Cristina Bandeira TownsendI; Elisete Medianeira TomazzetiII

IMestre em Educação - UFMS

IIDoutora em Educação - UFMS

RESUMO

O presente artigo retrata o desenvolvimento de uma pesquisa sobre como o professor dos anos iniciais mobiliza saberes no exercício da atividade docente. A linha da pesquisa foi a de formação de professores e a abordagem metodológica foi qualitativa, caracterizando-se como um estudo de caso. Os dados foram coletados por meio de questionário, entrevista semi-estruturada, autobiografia e relato oral, microetnografia usando vídeo e observações das práticas pedagógicas de quatro professoras de uma escola com caráter filantrópico do município de Santa Maria, RS, da Pré-Escola à 4ª série do Ensino Fundamental. Na pesquisa, os conceitos de habitus e de saberes foram tomados como elementos conectados, numa inter-relação dialética, em que o primeiro foi compreendido como elemento mediador do processo de mobilização de saberes pelas professoras. Desta inter-relação um habitus professoral constitui-se, dando identidade ao trabalho das docentes nos anos iniciais.

Palavras-chave:habitus; saberes; habitus professoral.

ABSTRACT

This article portrays the development of a research about the way first years teachers mobilize knowledge in the teaching practice. The research line adopted was the one about teachers formation and the methodological approach was qualitative, being this way a case study. The data were collected through questions, interview half-structured, self-biography and oral report, microetnography using video and pedagogical observations of four teachers from a philanthropic school, in Santa Maria municipal district, RS, from preschool up to 4th grade of elementary school. In the research the concept of habits and knowledge were taken as linked elements, in a dialetic inter-relation, in which, the first was understood as mediator element of the knowledge mobilization process by the teachers. From this inter-relation a teachers habitus is formed giving identity, to the educator's work from the first years.

Key-words:habitus; knowledge; teacher's habitus.

Introdução

A intenção da execução desta pesquisa surgiu a partir de questionamentos sobre a formação do professor dos anos iniciais. Levando em conta que o professor dos anos iniciais passa por uma formação que o habilita ao trabalho com crianças entre 7 e 10 anos de idade, sentiu-se a necessidade de conhecer mais de perto este docente, entender o porquê de muitas de suas condutas e pensamentos, descobrir o que o torna diferente dos outros professores que trabalham em outras modalidades de ensino Educação Infantil, anos finais, Ensino Médio.

Utilizou-se um aporte teórico, no qual os conceitos de habitus e saberes tornaram-se conexões inseparáveis e passaram a delinear as interpretações a respeito das práticas realizadas pelas professoras pesquisadas. Foi na interpretação e compreensão de tais conceitos que o problema originário deste estudo foi construído – Como ocorre o processo de mobilização de saberes do professor dos anos iniciais ao efetivar sua prática pedagógica – ganhando contornos de uma elucidação pertinente e tornando possível apontar reflexões futuras, na área educacional, sobre este profissional em específico e seu fazer cotidiano.

Foi possível, pela análise e interpretação dos dados coletados, compreender que a prática docente está delineada por múltiplos condicionantes – a organização institucional, as normatizações das políticas educacionais sejam elas federais, estaduais ou municipais, a formação dos professores e suas tarefas como profissionais do ensino, assim como as pressões econômicas e culturais da sociedade vigente.

A importância do professor conseguir mobilizar uma série de saberes durante o exercício da profissão está no fato de a docência alimentar-se, fundamentalmente, dos saberes oriundos da história de vida dos professores, da formação profissional para o magistério e da prática que o professor realiza, fazendo com que o seu trabalho torne-se um espaço e território de aprendizagem.

Este artigo procurará descrever o processo de pesquisa delineado para a compreensão do problema enfocado, partindo de três focos: o processo de pesquisa, apresentando o percurso, os instrumentos e os passos de execução; a constituição de um habitus professoral, definição atribuída às condutas e pensamentos que identificaram o grupo pesquisado enquanto profissionais dos anos iniciais; o processo de mobilização de saberes, em que são identificados os saberes que o professor dos anos iniciais aciona ao efetivar a prática, sua predominância e as situações em que estes (os saberes) são ativados.

O processo de pesquisa

Foram investigadas quatro professoras responsáveis por turmas de 1ª, 2ª, 3ª e 4ª séries que atuavam, desde o início do ano de 2004, numa instituição de caráter filantrópico, conveniada com a Secretaria de Educação do Município de Santa Maria, as quais receberam codinomes, respectivamente de: Negrinha, Neca, Didi e Leli.

A instituição pesquisada, mantida por uma instituição religiosa de caráter filantrópico, destinava educação em tempo integral a 110 meninas, provenientes de famílias carentes do município – empregadas domésticas e biscateiros. As professoras realizavam, no turno da manhã, o seu trabalho. Na parte da tarde, as alunas e familiares dispunham de oficinas com cunho profissionalizante, bem como participavam de projetos envolvendo valores e regras de comportamento ético, moral e religioso.

Utilizou-se na coleta de dados:

  • questionário com questões objetivas, a fim de levantar aspectos referentes ao tempo de atuação das professoras no magistério e relevantes na atuação do professor dos anos iniciais;

  • Observações das práticas desenvolvidas em sala de aula, durante um período de seis meses – abril a setembro de 2004;

  • entrevista semi-estruturada, para detalhamento das características pessoais e profissionais de cada professora, a qual foi concretizada numa conversa gravada. Também uma

    autobiografia, um relato escrito de como se tornaram professoras;

  • busca de informações de outros componentes da instituição, através de conversas informais;

  • filmagem das práticas das professoras em interação com suas turmas, resultando num

    diário interativo, uma espécie de

    dossiê auto-avaliativo, a respeito dos saberes manifestados e da condução das atividades na situação gravada. As filmagens encerraram o trabalho em campo.

Optou-se pela utilização de uma pesquisa de cunho qualitativo, cuja ênfase fosse a interpretação. Neste estudo qualitativo, de caráter etnográfico, houve a busca pelo entendimento de um caso particular levando em conta o seu contexto e sua complexidade (STAKE, 1999). Procurou-se conhecer profundamente uma instância particular em sua totalidade, retratando o dinamismo dos fatos e acontecimentos ali vividos, recorrendo-se, portanto, à opção metodológica do estudo de caso.

A constituição de um habitus professoral

Para explicar o processo de mobilização de saberes do professor dos anos iniciais, buscou-se a compreensão sobre o processo mediador de construção de saberes, que são os esquemas. Conforme Piaget (1971, p.24), esquema é: "Aquilo que é generalizável numa determinada ação (...) aquilo que há de comum nas diversas repetições ou aplicações da mesma ação."

São estes esquemas cognitivos os responsáveis por gerarem as ações e informações do sujeito em diferentes seqüências, levando em consideração as variáveis de uma determinada situação. É por seu intermédio que os saberes são ativados, tornando-se indispensáveis à ação.

Este conjunto de esquemas de percepção e de ação originários das condutas/pensamentos dos sujeitos foi denominado por Pierre Bourdieu (1987) de habitus:

Sistemas de disposições duradouros e transponíveis, estruturas estruturadas dispostas a funcionar como estruturas estruturantes, isto é, como princípios geradores e organizadores de práticas e representações que podem ser objetivamente adaptadas ao seu objetivo sem supor a visada consciente de fins e o controle expresso das operações necessárias para atingi-los, objetivamente "reguladas" e "regulares", sem ser em nada o produto da obediência a regras e sendo tudo isso, coletivamente, orquestrado sem ser o produto da ação organizadora de um maestro. (BORDIEU, 1987, p. 357).

Segundo Bourdieu (1987), o habitus é originário do processo de socialização dos sujeitos, quando estes realizam a aprendizagem das relações sociais, assimilando normas, valores e crenças de uma sociedade ou de uma coletividade ao longo de sua existência. Isto significa que o sujeito, neste processo de socialização, vai constituindo um sistema de disposições – atitudes, inclinações para perceber, sentir, fazer e pensar – as quais são internalizadas, passando a funcionar como princípios inconscientes de ação, percepção e reflexão.

Pode-se afirmar que habitus não são saberes, mas há inter-relação entre eles, pois somente há mobilização de saberes, a ordenação ou orientação de uso destes, porque as disposições que o sujeito constituiu ao longo de seu processo de socialização – em família, na escola, no grupo de amigos, com colegas de profissão – lhe propiciaram, serviram como referenciais mediadores.

Existe uma faceta do habitus que envolve constância, automatismo, denominado nesta pesquisa de habitus rotinizado, porque não envolve a utilização consciente do uso dos esquemas de pensamento/ação, e outra que envolve a necessidade de um trabalho mental a partir da natureza das ações realizadas e dos desafios confrontados em determinado contexto, abrangendo a consciência, isto é, um pensar sobre os motivos da sua ação, a partir do uso de uma sabedoria prudente – phronesis Aristóteles apud Sacristán (1999), o que nesta pesquisa denominou-se habitus reflexivo.

O possível redimensionamento do habitus rotinizado para o habitus reflexivo, portanto, se insere no modo como os sujeitos constituem seus esquemas cognitivos nas relações em família, na escola, no seu grupo social e profissional e os utiliza perante as diversas situações e determinações – políticas, sociais, econômicas, culturais – que os espaços de inserção lhes apresentam.

Nesta pesquisa, utilizou-se a expressão habitus professoral para definir a caracterização identificadora das quatro professoras, que ora atuavam a partir de situações análogas, consolidando um domínio sobre o trabalho desenvolvido (habitus rotinizado), ora mostravam que a permanência freqüente de certas situações e condições lhes provocava desconforto, insatisfação, uma necessidade de busca das razões e motivos que as faziam permanecer num mesmo patamar de ações/pensamentos (habitus reflexivo). Quando isto ocorria, assumiam uma postura racionalizada, em que a consciência lhes propiciava mudanças em suas concepções e em suas propostas concretas de ação.

O questionário mostrou alguns indicativos do habitus professoral das professoras: ao prestarem atendimento individualizado às alunas com dificuldades, fazerem questionamentos orais sobre os conteúdos em estudo, solicitarem atenção às explicações, pedir silêncio, corrigirem cadernos, registrarem as propostas de atividades no quadro, repetirem diversas vezes e de diferentes modos o conteúdo ensinado, se movimentarem pela sala de aula para observarem o trabalho das alunas, autorizarem pedidos de uso do banheiro, responderem às dúvidas levantadas pela turma, proporem atividades avaliativas, selecionarem conhecimentos necessários à série.

Tais condutas geralmente careciam de um pensar sobre o como e o porquê de sua origem e, ainda mais, as professoras socializavam estas estratégias de pensamento e de ação quando se reuniam e trocavam idéias e experiências. Desta forma, se percebia a constituição de um habitus coletivo que se mantinha inconsciente, mas incorporado como conduta internalizada e valorizada como base de generalizações posteriores.

A instituição mantenedora da escola buscava atender as normatizações oriundas das políticas públicas1 1 As políticas públicas dizem respeito às normatizações e regulamentações estabelecidas pelos poderes federal, estadual, municipal, para regras de funcionamento das modalidades de ensino. Por exemplo: período letivo, progressão de alunos, processo avaliativo, parâmetros curriculares, entre outros. , orientadas pela Secretaria de Educação do Estado do RS, cobrando das professoras a priorização dos conhecimentos científicos, muita cópia e memorização dos alunos, pouco considerando seus interesses e vivências. Este fato fez com que as professoras pesquisadas enfatizassem que tais fatores acabavam tornando a atividade docente muitas vezes árdua e desestimulante, um caminho fértil para que se constituísse um habitus rotinizado, norteador de práticas e concepções que se universalizam como verdades absolutas na profissão, as quais, embora representem uma forma de equilíbrio e domínio no trabalho desenvolvido, podem acabar tornando-se empobrecidas quando não problematizadas ou questionadas.

No entanto, mostravam-se dispostas a debater os problemas ali encontrados e construírem, conjuntamente, alternativas de solução. Assim, construíam coletivamente motivos para tornarem-se profissionais mais competentes2 2 Segundo Philippe Perrenoud (2001), um professor competente é aquele que possui conhecimentos, savoir-faire e posturas, mas também ações e atitudes necessárias ao exercício da profissão. e atualizadas, encontrando na Diretora o apoio e o incentivo para a consolidação destas intenções. Havia um ideal de trabalho compartilhado.

As professoras pesquisadas usavam o planejamento como uma ação costumeira. Neste registro, evidenciou-se indicativos de habitus rotinizado, pois eram compostos por momentos seqüenciais da aula e por atividades que geralmente usavam, como referencial, livros didáticos ou evidenciavam respostas reprodutivistas por parte das alunas, isto é, que não ensejavam suas opiniões e elaborações próprias, mas com base nas explicações das professoras.

No entanto, ao se analisar estes registros, a partir das observações das práticas reais de sala de aula, estes ganhavam contornos de redimensionamento reflexivo do uso dos esquemas utilizados pelas professoras. A interação com as colegas, com as alunas, com os condicionantes sócio/econômico/culturais do contexto escolar, lhes permitiam novas compreensões; a constituição de novos esquemas que passavam a compor a especificidade da profissão exercida – professoras dos anos iniciais.

Ao colocarem em prática o plano diário elaborado, as professoras davam contornos pessoais às suas estratégias metodológicas e modos de trabalhar a disciplina da sua turma, demonstrando que habitus rotinizado e habitus reflexivo se inter-relacionam na atividade docente.

As professoras conceberam que a formação inicial no Curso de Pedagogia foi um momento importante em suas trajetórias profissionais; entretanto, em suas colocações, expressaram uma consciência de que o curso deu-lhes a instrumentalização teórica, principalmente com o aporte dos saberes disciplinares que compunham o currículo do curso, citados na entrevista, por ordem de importância – Psicologia da Educação, Sociologia da Educação, Filosofia da Educação, História da Educação, a Didática da Educação e algumas Metodologias de Ensino como a da Alfabetização e a da Matemática –, mas foi a prática, a vivência de sala de aula e de escola, que lhes permitiu tornar a atividade docente melhor organizada e mais proveitosa para os alunos.

Embora fazendo a formação entre os anos 80 e 90 do século XX, as professoras, mesmo usando o slogan3 3 Para Contreras (2002), slogans são todas as palavras com aura, porque utilizadas em excesso provocam uma atração emocional, sem esclarecer nunca o significado que se lhes quer atribuir, são palavras que se desgastam e seus significados se esvaziam pelo uso freqüente. da ruptura teoria e prática, deixaram transparecer, num indicativo de habitus reflexivo, que consideravam necessário o entrelaçamento do pensar e do agir, apontando que a teoria lhes auxiliou na execução da prática, mas que esta também lhes permitiu rever seus referenciais e modificarem suas condutas.

No contato com o campo de investigação, percebeu-se que as situações diárias enfrentadas pelas professoras tornavam-se acontecimentos bastante permanentes, os quais eram administrados com certa espontaneidade, não desencadeando grandes conflitos. Entretanto, nos momentos em que as docentes se encontravam reunidas – nos intervalos do recreio, nas reuniões pedagógicas – o dia-a-dia experienciado tornava-se um foco de debate. Deste modo, as rotinas estabelecidas em sua profissão ganhavam traços de racionalização, isto é, da capacidade do pensarem sobre o porquê das situações estabelecidas. Por este motivo, não é possível se afirmar que, na prática pedagógica do professor dos anos iniciais, prevaleça habitus rotinizado ou habitus reflexivo. Existe, sim, a constituição do habitus professoral derivado da inter-relação habitus rotinizado e habitus reflexivo, porque o contexto escolar, pela dinamicidade das relações ali estabelecidas – professor/alunos, direção/professores, professores/professores, alunos/alunos , permite que as rotinas instaladas transformem-se em elementos de diálogo e de intenções de melhoria do trabalho docente.

O processo de mobilização de saberes do professor dos anos iniciais

As pesquisas que inovam a abordagem sobre a formação do professor vêm alertar sobre uma concepção de profissionalidade docente que necessita ser posta em discussão entre os próprios professores, no âmbito das políticas educacionais e nas instituições formadoras, viabilizando pensar-se num profissional que na especificidade do seu trabalho é alguém que mobiliza saberes e também produz conhecimentos.

No Brasil, entre 1970 e 1980, século XX, não se tinha pesquisas sobre como estavam acontecendo as práticas em sala de aula, mas sobre aspectos políticos e pedagógicos da educação de modo amplo. Não se investigava nem se valorizavam os saberes escolares, os saberes docentes e as crenças epistemológicas na função do ensinar.

Foi somente na segunda metade da década de oitenta que começou, no Brasil, a ser pensada a formação de professores, a qual procurou apontar a necessidade de formação docente, tendo por base curricular um conteúdo disciplinar e um conteúdo pedagógico.

A formação de professores pautou-se tradicionalmente pela concepção de que os conhecimentos, oriundos das Ciências da Educação e das demais ciências, eram fundamentais para uma boa formação e um bom exercício profissional. Os demais saberes que correspondiam ao trabalho realizado pelo professor não eram considerados relevantes, pois não possuíam estatuto científico.

A literatura internacional da área, a partir dos anos 1990, apontou que a formação de professores, até então vigorante, não respondia mais à totalidade das questões relativas à profissão, sendo necessário passar a considerar o professor como um profissional que é pessoa, ser social, que possui vários saberes, oriundos de diversas fontes e cuja prática cotidiana os transforma em saberes experienciais. Este novo enfoque concebe a prática individual e coletiva dos professores como o lugar de aprendizagem dos conhecimentos que personificarão sua existência pessoal, social e profissional.

Em contribuição ao novo enfoque sobre a formação docente, surgiram autores como Tardif (2002) e Gauthier (1998), os quais elaboraram uma "epistemologia dos saberes docentes", ou seja, se detiveram na questão dos saberes do professor, buscando explicar como, no dia-a-dia da sala de aula, este vai elaborando um saber sobre e na profissão.

Para Tardif (2002), afirmar que os professores possuem saberes4 4 Tardif (2002) define "saber" num sentido amplo, em que o mesmo engloba os conhecimentos, as competências, as habilidades (ou aptidões) e as atitudes dos docentes, ou seja, aquilo que foi muitas vezes chamado de saber, de saber-fazer e de saber-ser. Para o autor, "estes saberes provêm de fontes diversas: formação inicial e continuada dos professores, currículo e socialização escolar, conhecimento das disciplinas a serem ensinadas, experiência na profissão, cultura pessoal e profissional, aprendizagem com os pares". implica em vê-los não apenas no âmbito da prática profissional, mas também enquanto pessoas situadas historicamente no mundo, que carregam uma bagagem socio-cultural para além de sua formação acadêmico/profissional. Gauthier (1998) afirma que os saberes dos professores não podem ser identificados num vazio, mas no contexto real e complexo onde ocorre este ensino. É por isto que este autor defende uma outra visão de ensino, a qual se dimensiona a partir da mobilização de vários saberes pelo professor, formando um reservatório5 5 Para Gauthier (1998), ao ensinar o professor mobiliza vários saberes – disciplinares, curriculares, das ciências da educação, da tradição pedagógica, experienciais e da ação pedagógica formando uma espécie de reservatório do qual se abastece para responder às exigências específicas de sua situação concreta de ensino. Já o repertório de saberes diz respeito aos saberes da ação pedagógica, os quais remetem diretamente aos resultados das pesquisas sobre o gerenciamento da classe e o gerenciamento do conteúdo. O repertório representa um subconjunto do reservatório geral de conhecimentos do professor e tem origem nas pesquisas realizadas em sala de aula. que o abastece nas exigências que o ato de ensinar lhe desafia.

Tardif e Gauthier, a partir dos resultados de suas pesquisas, eviden-ciam pontos de congruência: ambos consideram que os professores mobilizam uma pluralidade de saberes durante a realização da atividade educativa, relacionam uma classificação de saberes que são mobilizados pelos professores e que abrangem uma visão de pessoa e profissional; apontam a necessidade dos professores constituírem uma identidade profissional a partir da utilização dos vários saberes elaborados antes, durante e após a formação inicial. A especificidade de suas pesquisas está na defesa, pelo primeiro, da valorização dos saberes experienciais, aqueles relatados durante os processos interativos, socializados com os pares, que representariam a forma de divulgação da especificidade do ofício de ensinar, enquanto o segundo defende que seriam os saberes da ação pedagógica, ou seja, aqueles oriundos e divulgados por pesquisas sobre as práticas docentes que representariam o caminho de consolidação da caracterização do ensino como um ofício de professores possuidores de um repertório de saberes.

As professoras, em suas colocações durante a entrevista, demonstraram que percebiam uma tendência pela utilização dos saberes disciplinares, que Gauthier (1998) descreve como aqueles que são produzidos pelos pesquisadores e pelos cientistas e estão à disposição na sociedade em forma de disciplinas – química, biologia, matemática, português... Também se referiram aos saberes curriculares, apresentados pelo referido autor (GAUTHIER, 1998) como aqueles produzidos pelas ciências e transformados num corpus a ser ensinado nos programas escolares. A professora Leli – 4ª série – comentou: Se a gente se descuida tende a trabalhar mais o português e a matemática.

As professoras, em algumas de suas aulas, evidenciaram que a preferência no uso destes saberes disciplinares e curriculares foi demarcada em suas trajetórias como estudantes, pois recordaram que, ao freqüentarem o Ensino Fundamental, desenvolviam muito mais atividades de português e de matemática do que em outras áreas; portanto, uma idéia culturalmente internalizada e experienciada.

As professoras também demonstraram uma identificação pela mobilização/utilização de saberes da tradição pedagógica (Gauthier, 1998), recorrendo às lembranças da infância sobre os tempos de escolaridade em muitas de suas condutas e, pelos saberes experienciais (GAUTHER, 1998) – em que a constância das situações experienciadas, as rotinas, permitiram a estas professoras construírem estratégias e soluções próprias e dominadas.

Ao realizarem suas práticas, as professoras conseguiam produzir, transformar e mobilizar saberes necessários ao trabalho com os anos iniciais, entre os quais: entender de criança, de aprendizagem, de conhecimento, de currículo, organizar a gestão da classe. Alternavam momentos em que mobilizavam saberes disciplinares e curriculares – quando estavam ensinando as turmas –; noutros momentos vinham à tona os saberes das ciências da educação, pois reconheciam e estabeleciam familiaridade com práticas em vigor na instituição tais como: a gestão das turmas, os prazos para as avaliações, o planejamento de atividades cívicas ou de formação continuada.

Tais saberes não ocorriam isoladamente, mas em alguns momentos destacavam-se em relação aos demais, conforme as situações vivenciadas pelas professoras.

Esta mobilização de saberes argumentada acima não representa uma especificidade deste grupo de professoras, mas pode ser uma idéia generalizada para os demais professores, sejam eles de anos iniciais, anos finais, Ensino Médio, pois todos vão recorrer ao reservatório6 6 Segundo Gauthier (1998), o professor, ao responder às exigências das situações concretas do ensino, mobiliza vários saberes que formam uma espécie de reservatório, de onde se abastece. Estes saberes são: disciplinares (a matéria), curriculares (o programa), das ciências da educação, da tradição pedagógica (o uso), experienciais (a jurisprudência particular) e os da ação pedagógica (o repertório de conhecimentos do ensino ou a jurisprudência pública validada). , dando um caráter identificador da atividade docente.

Observou-se que as professoras costumavam inserir, com certa relevância, as datas comemorativas entre as atividades a serem desenvolvidas no programa selecionado para o ano. Com isto, percebeu-se que os saberes curriculares que culturalmente proliferaram nas escolas nos anos 30 e 40 do século XX, com ênfase no civismo, as chamadas datas cívicas ou comemorativas, ainda são muito valorizados nos currículos escolares e por alguns professores, como as professoras pesquisadas.

As professoras, na instituição escolar, precisavam elencar conhecimentos para compor o currículo das séries para o respectivo ano. Este fato fazia com que estes conhecimentos selecionados se tornassem, em muitos momentos, elementos desencadeadores de conflitos, de insegurança e preocupação por parte das docentes. Demonstravam angústias relatadas sobre a não aprendizagem das alunas e suas muitas dificuldades na aquisição de conceitos trabalhados.

Outro fato que gerava angústia e conflito entre as professoras era a questão da avaliação.

O processo avaliativo realizado pelas professoras mostrou uma ênfase na mobilização/utilização de saberes da tradição pedagógica, pois a concepção de avaliação provavelmente foi oriunda da vivência em seu tempo de estudantes, onde avaliar significava medir, classificar. No entanto, as professoras demonstravam estarem buscando o caminho da compreensão deste processo, trabalhando as concepções ultrapassadas a partir de mais leituras sobre o assunto, tentando conhecer experiências de outras instituições que já tivessem conseguido modificar o processo avaliativo, tornando-o propiciador da evolução do aluno e do trabalho do professor. debatiam suas dificuldades com outros colegas, com pessoas especialistas no tema, a fim de tornarem menos sofrível os momentos deste processo.

O apoio nos livros didáticos para a efetivação das práticas pedagógicas, pelas professoras, também ficou bem caracterizado. Este fato não significou que as professoras empobrecessem suas aulas ou tornassem os desafios rotinizados; ao contrário, possivelmente pelos anos de atuação na profissão, as professoras demonstraram que haviam internalizado elencos e padrões de atividades para caracterizarem o seu ensino, que se mostrava diversificado e flexível.

Considerações finais

Compreender o processo de mobilização de saberes nas práticas dos professores dos anos iniciais, o que foi buscado nesta pesquisa, constituiu-se num desafio instigante, principalmente porque tomou os conceitos de habitus e saberes, considerando-os em sua interação.

A idéia de habitus permitiu se pensar o ser humano como alguém com capacidade permanente de transformação, não apenas nos aspectos físicos, mas principalmente em relação aos seus julgamentos e deliberações, modos de se comportar e de se posicionar diante das situações cotidianas que também são mutáveis. Este entendimento possibilitou analisar-se as professoras e a escola pesquisada, sob o ponto de vista de um processo dinâmico de interação sujeito-meio, em que ora ocorriam momentos de constância de condutas e pensamentos, ora estes mesmos momentos se modificavam gerando outras compreensões, outros procedimentos, outras relações.

Foi possível a compreensão de que os saberes mobilizados pelas professoras decorriam de sua formação inicial e continuada, assim como das situações que permeavam o cotidiano da sala de aula, ou seja, o trabalho com os conhecimentos, o atendimento às alunas, as propostas de atividades, a organização das condutas disciplinares da turma. Entretanto, o diferencial do processo de mobilização de saberes de cada professora se originava no modo como cada uma demonstrava seu modo de pensar e de se comportar – seu habitus –, constituído ao longo de sua trajetória de vida pessoal e profissional.

A partir destes referenciais, as possíveis contribuições desta pesquisa podem ser assim apresentadas:

  • Provocar a reflexão sobre os aspectos constitutivos do

    habitus professoral dos professores dos anos iniciais, gerando elementos impulsionadores de debates entre os formadores e entre os pró-prios docentes, que tornem possível um aperfeiçoamento, uma qualificação do trabalho nesta modalidade de ensino.

  • Constatar o fato de que durante o processo de mobilização de saberes, ao efetivar a prática pedagógica, o professor dos anos iniciais se ampara principalmente nos

    saberes disciplinares construídos no seu tempo de vivência da escola como estudante, ou seja, o professor explica os conteúdos do currículo rememorando o modo como aprendeu em seu tempo de escola, a fim de sistematizar os

    saberes curriculares que são priorizados na instituição escolar. Isto faz com que a preponderância da utilização de

    saberes disciplinares e curriculares seja destacada em sua atuação profissional em relação ao uso dos demais saberes que possui. Esse aspecto deveria ser considerado nos cursos de formação de professores, a fim de prepará-los para vencerem a superficialidade que na maioria das vezes se faz presente no trabalho com os conhecimentos ou evitar o apego em áreas com as quais se identificam mais.

  • Destacar que o profissional dos anos iniciais, se comparado aos professores dos anos finais e/ou Ensino Médio, mantém mais horas em contato com o mesmo grupo de alunos 4 horas diárias , que fazem com que disponha de tempo para criar uma afinidade maior em seu ambiente de trabalho, conhecer mais de perto as particularidades daquele espaço de atuação, envolver-se com mais comprometimento. Os outros professores fragmentam este mesmo tempo entre as diversas turmas em intervalos rápidos nestas trocas, ficando sempre prejudicados na construção de uma visão mais totalizante de seu local de trabalho.

  • Apontar que o processo de mobilização de saberes do professor dos anos iniciais tem estreita relação com a formação inicial vivenciada. Na presente pesquisa, a graduação em Pedagogia propiciou um melhor domínio no trabalho desenvolvido e a possibilidade de encadeamento da teoria com a prática.

  • Resgatar o valor do planejamento diário como um roteiro e referencial organizador, do modo como o professor pensa e age e de suas intenções durante a relação ensino e aprendizagem, propiciador de um processo reflexivo sobre a própria prática e de interações com os colegas de profissão.

  • Mostrar que o professor, ao efetivar a docência, passa a expor os traços de seu processo de socialização. Revela sua origem social e cultural. Situação que se evidenciou entre as professoras desta pesquisa, as quais tinham aspectos muito semelhantes em suas histórias de vida, entre eles: pertencerem a famílias de baixa renda, moradores da zona rural, necessitarem vir para a cidade para estudar e buscar um futuro melhor, iniciarem o exercício da profissão sem passar pela formação específica, o gosto pelo ofício e sua consolidação através do curso de graduação. Estes aspectos permeavam o modo como expressavam suas opiniões, interagiam com suas turmas e com colegas, assim como na organização de suas propostas diárias de trabalho.

Texto recebido em 13 ago. 2006

Texto aprovado em 19 nov. 2006

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  • TARDIF, M. Saberes docentes e formação profissional. Petrópolis: Ed. Vozes, 2002.
  • 1
    As políticas públicas dizem respeito às normatizações e regulamentações estabelecidas pelos poderes federal, estadual, municipal, para regras de funcionamento das modalidades de ensino. Por exemplo: período letivo, progressão de alunos, processo avaliativo, parâmetros curriculares, entre outros.
  • 2
    Segundo Philippe Perrenoud (2001), um professor competente é aquele que possui conhecimentos,
    savoir-faire e posturas, mas também ações e atitudes necessárias ao exercício da profissão.
  • 3
    Para Contreras (2002),
    slogans são todas as palavras com aura, porque utilizadas em excesso provocam uma atração emocional, sem esclarecer nunca o significado que se lhes quer atribuir, são palavras que se desgastam e seus significados se esvaziam pelo uso freqüente.
  • 4
    Tardif (2002) define "saber" num sentido amplo, em que o mesmo engloba os conhecimentos, as competências, as habilidades (ou aptidões) e as atitudes dos docentes, ou seja, aquilo que foi muitas vezes chamado de saber, de saber-fazer e de saber-ser. Para o autor, "estes saberes provêm de fontes diversas: formação inicial e continuada dos professores, currículo e socialização escolar, conhecimento das disciplinas a serem ensinadas, experiência na profissão, cultura pessoal e profissional, aprendizagem com os pares".
  • 5
    Para Gauthier (1998), ao ensinar o professor mobiliza vários saberes – disciplinares, curriculares, das ciências da educação, da tradição pedagógica, experienciais e da ação pedagógica formando uma espécie de reservatório do qual se abastece para responder às exigências específicas de sua situação concreta de ensino. Já o repertório de saberes diz respeito aos saberes da ação pedagógica, os quais remetem diretamente aos resultados das pesquisas sobre o gerenciamento da classe e o gerenciamento do conteúdo. O repertório representa um subconjunto do reservatório geral de conhecimentos do professor e tem origem nas pesquisas realizadas em sala de aula.
  • 6
    Segundo Gauthier (1998), o professor, ao responder às exigências das situações concretas do ensino, mobiliza vários saberes que formam uma espécie de reservatório, de onde se abastece. Estes saberes são: disciplinares (a matéria), curriculares (o programa), das ciências da educação, da tradição pedagógica (o uso), experienciais (a jurisprudência particular) e os da ação pedagógica (o repertório de conhecimentos do ensino ou a jurisprudência pública validada).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      19 Set 2007
    • Data do Fascículo
      2007

    Histórico

    • Recebido
      13 Ago 2006
    • Aceito
      19 Nov 2006
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