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Ética e genética

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Ética e genética

Salmo Raskin

Especialista em Genética Clínica, doutorando em Genética, Universidade Federal do Paraná

A ousadia da ciência chegou à produção de seres humanos. O mundo e o Brasil discutem a necessidade de se criar códigos de ética para acompanhar o desenvolvimento da ciência no que diz respeito à reprodução humana e manipulação genética. A diversidade da espécie poderá ser comprometida?

A manipulação genética tornou real a possibilidade do homem entrar em um laboratório e interferir na natureza. Deixou de ser hipóteses futurista a clonagem de crianças (produzir uma célula ou um organismo assexuadamente a partir de outra célula geneticamente idêntica) - já é feita em animais - e a intervenção no código genético humano. Escolher o sexo, a raça, engravidar mulheres mais velhas, determinar características antes do nascimento não são temas de filmes de terror ou ficção científica. Às portas do século 21, fertilização in vitro, gravidez pós-menopausa, determinação de sexo e de doenças genéticas e implante de óvulos de fetos abortados são assuntos que geram discussões científicas e éticas sobre os limites e conseqüências da interferêcia da medicina na, até há pouco, natural reprodução humana.

Quanto mais a engenharia genética progredir, mais se terá condições de manipular a espécie humana. Assim, o avanço nas pesquisas em direção à manipulação do nascimento e das características do homem tem dois lados; sob um aspecto, poderá trazer benefícios fantásticos, como a cura das doenças genéticas - desde 1992 já se pode detectar em um embrião de três dias a presença ou ausência de várias doenças genéticas. Mas, como todas as técnicas, ela corre o risco de ter seus usos indevidos - como o uso indevido da energia atômica. Basta imaginar que o método serviria para ditadores como Hitler criarem exércitos de filhos de proveta - totalmente adaptados a um admirável mundo novo. Sem falar no medo da disseminação descontrolada das clínicas de terapia gênicas e do aparecimento de um mercado negro na fabricação de embriões.

Aqui no Brasil, a fertilização in vitro e a manipulação genética já caminham no sentido de previnir as doenças genéticas. Mas o futuro desta técnica, acreditam os especialistas em reprodução humana e genética médica, será - além do diagnóstico - a prevenção e a cura destas enfermidades. Quando se puder manipular os genes, reconhecer em que posição gênica nos cromossomos estão as doenças e se conseguir utilizar isso em adultos e em fetos, terá chegado o futuro da verdadeira profilaxia e terapêutica genética.

A biologia molecular (área da genética que se dedica ao estudo da molécula, do DNA) tem feito progressos significativos, principalmente na detecção de doenças genéticas no começo da gravidez o que torna real a possibilidade de se saber se a criança nascerá com problemas. Alguns laboratórios de genética médica no Brasil já realizam rotineiramente o diagnóstico e prevenção de doenças genéticas, trabalhando no sentido de orientar os casais quanto ao possível nascimento de fetos com problemas genéticos - já que a maioria das doenças genéticas ainda não tem tratamento. Através do diagnóstico pré-natal no início da gravidez (estudando os cromossomos ou o DNA do feto em risco), detectam-se casais com risco de ter filhos portadores de doenças genéticas.

Quanto menor for a prevalência de doenças infecciosas e parasitárias, e menor a desigualdade social, mais importância terão as doenças genéticas em termos de saúde pública. Nos Estados Unidos, no começo do século, de cada mil crianças que nasciam, 150 morriam no primeiro ano de vida. Destas, cinco eram por causas genéticas, ou seja, 3%. Hoje de cada mil crianças americanas, nove morrem no primeiro ano de vida, e, destas, cinco continuam sendo por causas genéticas. A morte por causas genéticas no primeiro ano de vida passou de 3 a 5%, porque todas as outras doenças estão sendo controladas.

No Brasil, apesar do elevado índice de mortalidade infantil, por causas diversas nos primeiros anos de vida, os avanços das pesquisas no setor genético são significativos: só no Centro de Aconselhamento e Laboratório de Genética, em Curitiba, que trabalha na prevenção de doenças genéticas, diversos casos de diagnóstico pré-natal já foram realizados.

Um trabalho realizado no Canadá mostrou que 1/3 das crianças que são internadas em hospitais pediátricos o são por causa genética, 10% das doenças crônicas de adultos têm um componente genético. E mais: hoje em dia se sabe que certos tipos de câncer têm origem genética e que certos indivíduos HIV positivos porém sem AIDS, possuem uma resistência genética.

A procura da mulher brasileira pela técnica da fertilização in vitro e pelo Aconselhamento Genético acentuou-se a partir dos anos 90. O domínio e o avanço de novas técnicas no país, o aumento do número de clínicas de reprodução humana e o crescimento da doação de óvulos contribuíram para esse processo. Estima-se hoje que há entre 10 e 15 clínicas brasileiras de médio e grande porte, que produzem um total de 120 a 150 fertilizações in vitro por mês. A mulher brasileira que procura os centros de reprodução humana tem como perfil um período de esterelidade em torno de seis anos e idade média de 35 anos.

Há mais de 20 anos são realizadas pesquisas em fertilização in vitro. De acordo com levantamento de 1991, acima de 10 mil crianças foram geradas através desta técnica. Hoje, no Brasil, mais de 1.000 pessoas por mês recorrem ao processo de bebê de proveta. Avanços aumentam consideravelmente as chances de sucesso do método. No final da década de 70, o sucesso era alcançado em torno de 8% das tentativas. Hoje o percentual de sucesso dá uma média de 30 a 35%.

Um dos progressos representativos da tecnologia médica da fertilização in vitro é a possibilidade de se detectar doenças genéticas nos embriões. Mas estamos longe da determinação de todas as doenças no reconhecimento genético. Quando chegarmos neste estágio, poderemos tratar muitos indivíduos ainda na fase de embriões. Enfim, poderá ser trocado o gene defeituoso que causa o diabetes, por exemplo, por um gene saudável.

Entre as novidades, com a utilização do ultra-som, não se fazem mais cirurgias para a retirada dos óvulos. Um método, descrito há poucos anos atrás, sobre transporte de gametas à distância, possibilita uma redução nos custos de fertilização in vitro. Até o ano pasado, o mundo inteiro pensava que era necessário um laboratório de US$ 600 mil em cada local que se quisesse fazer um bebê de proveta. Foi provado que é possível pegar o óvulo em distâncias longínquas, trazer para um centro especializado, e fazer o bebê se desenvolver lá. Assim, com um laboratório, é possível atender muitas comunidades. No Brasil, já é possível fazer a determinação de sexo do embrião. Está se instalando neste momento no país a tecnologia para se tirar um blastócisto e efetuar um exame genético nele. Existem certas doenças genéticas que justificam este procedimento. Do ponto de vista ético é complicado, mas é preciso levar em conta sua aplicação adequada. Será que devemos discutir este ou aquele procedimento técnico ou teríamos que atender pessoas em busca de felicidade, sempre tendo em mente o respeito ao ser humano?

A seleção de sexos já é possível, a partir das microbiópsias sobre as células. Depois da união dos núcleos do óvulo e do espermatozóide, forma-se a célula de 46 cromossomos, que começa a se dividir até formar um embrião. Daí vão se formando um número variado de células. Uma das técnicas de se saber o sexo ou se existe alguma anomalia genética (do tipo anemia calciforme, que é um defeito de formação nos glóbulos vermelhos, ou fibrose cística do pâncreas, que é uma doença pulmonar e pancreática fatal) segue este procedimento: separa-se uma célula das outras sete células, faz-se a análise e congela-se as outras sete células (que são o embrião). Se a célula analisada for sadia, implanta-se no embrião. Se for anormal, joga-se fora o embrião. Ou se esse embrião for do sexo masculino e se quer menino, deixa seguir. A pré-determinação de sexo ajudaria bastante em alguns casos específicos, como por exemplo, nas doenças que só afetam o sexo masculino (como a Distrofia muscular de Duchenne ou a hemofilia). Se detectadas, obviamente que os casais em risco iriam preferir ter crianças do sexo feminino e portanto sadias. Isso para eliminar a necessidade de uma interrupção da gestação. É preocupante, principalmente em países subdesenvolvidos, dar a um casal a opção de escolher o sexo dos filhos. Pode gerar um desbalanceamento grande.

A reprodução assistida está regulamentada no Brasil desde novembro de 1992, embora sua prática tenha sido iniciada quase dez anos antes. Determinadas pelo Conselho Federal de Medicina, as normas éticas foram inspiradas nas de outros países - Estados Unidos, França e Itália. Mas como nestes países, os avanços nas pesquisas médicas tornaram os códigos de ética muito ultrapassados.

A possibilidade da gravides pós-menopausa e o uso de óvulos de fetos abortados são os exemplos mais gritantes. Na Itália, médicos como Severino Antinori satisfazem caprichos de mulheres que querem ser mães aos 60 anos. Proibida no Reino Unido (que atualmente concentra suas atenções no debate sobre o uso de fetos) e na França, a gravidez tardia é permitida pela lei brasileira. Mas ainda não há um consenso mundial que estabeleça regras sobre o assunto, uma entidade que controle está prática. Em contrapartida à total falta de normas na Itália, Alemanha e Suécia também fazem suas restrições.

Após a menopausa, a mulher deixa de produzir óvulos e alguns hormônios, e seu útero diminiu. Basta realizar um curto tratamento com estrógenos (três meses) para o útero voltar ao normal e poder receber um embrião. Hoje já não existe dificuldade em fazer uma mulher pós-menopausa engravidar, mesmo no Brasil. O assunto esbarra em uma questão ética e moral: quais são as perspectivas que uma mulher de 60 anos oferece para uma criança? O limite para a mulher gerar filhos é dado pela natureza. Talvez seja ético fazer uma mulher na menopausa engravidar, mas o que será da criança aos 20 anos, quando a mãe estará numa idade bem avançada? O ginecologista italiano Severino Antinori, pioneiro da gravidez pós-menopausa, disse em entrevista publicada na Folha de São Paulo, que o amor compensa o fato de uma criança ter uma mãe velha.

Talvez uma opção fosse a paciente ter uma avaliação médica completa - do ponto de vista cardíaco, renal, emocional, endócrino - de todos os órgãos que são comprometidos e sobrecarregados na gestação, para saber se ela suporta uma gravidez ou estaria apta para gerar um filho. Não é o médico quem deve decidir por ela. Se a mulher tiver alguma contra-indicação, tiver algum senão clínico, ela não deve correr esse risco. Viver 20 anos com um filho quando não se tem juízo pode ser muito pior que não viver. O médico tem que estar ciente de que ele não é Deus, e sim um técnico que atende pessoas que buscam felicidade completa, analisando que não há como negar este direito a uma mulher que tenha plenas condições de saúde.

Tem se observado que mulheres que engravidam tardiamente são inundadas por fatores de crescimento que as deixam muito mais jovens. Existe um tratamento à base de hormônio do crescimento para tratar casos de senilidade ou degeneração do sistema nervoso central. Estudos mundiais neste setor têm conseguido resultados impressionantes, e é muito provável que isso ocorra na gravidez tardia. Por outro lado, já está provado que estes hormônios de crescimento aumentam o risco de câncer de mama. O uso de óvulos de fetos abortados ou de mulheres mortas para implantação em mulheres inférteis é outro item da reprodução humana que tem gerado polêmicas. A técnica pode acabar com a escassez de óvulos para tratamento de fertilidade, mas produz situações inéditas na história da humanidade, como uma pessoa ser filho de outra que nunca nasceu.

É uma questão complicada, porque 50% dos fetos que são abortados espontaneamente têm alguma anormalidade cromossômica visível. A natureza é sábia: se está abortando é porque traz algum problema. Seria extremamente arriscado utilizar um óvulo de feto abortado, a não ser que fosse um aborto provocado. Sem dúvida é necessário aguardar o desenvolvimento das técnicas para saber quais benefícios, utilidades e vantagens o processo trará. É um tema que está em estudo em pouquíssimos laboratórios do mundo.

No Reino Unido, os argumentos contra a utilização destes óvulos são de natureza ética ou moral: o ser humano tem o direito de criar vida a partir de uma mulher que já morreu ou que nunca chegou a ter nascido? Caso ocorra a fertilização de um desses óvulos, o que impediria que a futura criança sofra de complicações psicológicas desastrosas?

O novo conhecimento genético tornará possível o teste pré-natal para uma ampla variedade de características genéticas fetais. Uma conseqüência será uma expansão de razões potenciais para aborto seletivo após teste pré-natal. Provavelmente, será possível aos pais requererem teste pré-natal e aborto não somente para doenças graves, mas também para doenças relativamente leves, doenças de início tardio, doenças tratáveis, em casos de riscos elevados para doenças comuns e, eventualmente, características que não sejam de doença, tais como altura e constituição corporal. Duas principais visões éticas em relação ao teste pré-natal existem: (1) o teste pré-natal deve ser restrito aos distúrbios mais graves, envolvendo retardo profundo, deficiências físicas graves ou sofrimento físico prolongado e (2) os pedidos das pacientes para testes pré-natais devem ser acatados, com exceção daqueles para doenças consideradas muito menores. No mínimo, duas visões adicionais podem ser identificadas: (3) os médicos devem acatar os pedidos de teste pré-natais para doenças, incluindo as relativamente menores, mas não pedidos relacionados a características que não sejam de doenças, e (4) todos os pedidos de teste pré-natais devem ser acatados. Uma dificuldade com a primeira e a segunda visões é que elas desviam do princípio de não direcionamento no teste e aconselhamento pré-natal. Os problemas com a quarta visão são que ela leva a abortos por razões moralmente triviais e que tentativas de planejar nossos filhos poderiam afetar de modo adverso as relações pais-filhos e exacerbar desigualdades sociais atuais. Estas considerações apoiam a terceira visão, que sustenta que o papel futuro do teste e acoselhamento reprodutivo genético deve ser baseado na distinção imperfeita mas útil entre doença e não doença.

Todas estas considerações sugerem que não devem existir restrições legais além daquelas que já existem. O diálogo ético ao invés de restrições legais, é o melhor caminho para abordar tais questões. Espera-se que através do debate, cheguemos a uma abordagem que seja racional para nós mesmos e para as gerações futuras.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Mar 2015
  • Data do Fascículo
    Dez 1995
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