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Os processos de avaliação na Educação Infantil: a produção da criança e da infância em risco

RESUMO

O objetivo deste artigo é analisar como, nos processos de avaliação na Educação Infantil, os pareceres pedagógicos, que compõem a documentação pedagógica das instituições, operam certos saberes e normas que legitimam um determinado modo e tipo de infância e a criança produzida como sujeito em risco e a ser ajustado. Ocupando-se de um arquivo de dados composto por fragmentos de pareceres pedagógicos opera-se uma análise inspirada nas noções - ferramentas, saber e norma, a partir dos estudos foucaultianos, para mostrar como os usos desse instrumento de avaliação pode estar (re)produzindo saberes e matrizes normativas que produzem sujeitos - crianças e uma posição para certas infâncias serem rotuladas e identificadas como em risco e necessidade de ajustamento. Com a análise, busca-se mostrar os processos de avaliação que podem naturalizar um modo de ser criança em risco e a ser ajustada. Conclui-se apontando o limite que o conjunto de saberes e regras colocados em funcionamento, através dos processos de avaliação, nas instituições de Educação Infantil, ao identificar e rotular as crianças, podem estar limitando a percepção e a atuação das instituições e dos docentes no sentido de compreender a diversidade e multiplicidade de criança(s) e de infância(s) na contemporaneidade.

Palavras-chave:
Educação Infantil; Processos de Avaliação; Produção da criança

ABSTRACT

This article aims to analyze how, in Early Childhood Education evaluation process, teachers’ reports, which comprise the pedagogical documentation of institutions, operate certain forms of knowledge and regulations, that legitimize a given way and type of childhood and child produced as a subject at risk and to be adjusted. Taking a data file comprised of fragments of pedagogical reports, we conducted an analysis inspired by knowledge and norms as notions - tools, based on studies of Foucault, to show how the uses of this evaluation instrument may be (re)producing forms of knowledge and normative frameworks that produce child - subjects and a position that labels and identifies certain childhoods as subjects at risk and in need of adjustment. Through our analysis, we aimed to show evaluation processes that can naturalize a way of being a child at risk and in need of adjustment. We conclude by pointing out the limit that the set of knowledge and rules put into operation, through evaluation processes, in Early Childhood Education institutions, to identify and label children, may be restricting the perception and work of institutions and teachers, in the sense of understanding the diversity and multiplicity of children and childhoods in contemporary times.

Keywords:
Early Childhood Education; Processes of evaluation; Child production

A experiência como professoras e pesquisadoras da Educação Básica e Superior tem nos levado a destacar, analisar e evidenciar inúmeras situações em que as práticas educativas, nos diferentes espaços e tempos formativos e institucionais, possibilitam-nos problematizar e tensionar regimes de verdades em que tais práticas, espaços e tempos constituem-se. Neste artigo, buscamos problematizar a atuação profissional de forma ampla e, em específico, pensar sobre como os pareceres pedagógicos, através do ato de escrita - de produção das professoras - têm como resultado um documento dos processos de avaliação das crianças na Educação Infantil e como podem ser entendidos e assim produzidos modos de dizer e de nomear a infância e as crianças: produzindo sujeitos infantis.

O desenvolvimento de pesquisa que envolve os mecanismos, as estratégias e as políticas de produção dos sujeitos, nas práticas educativas, é o foco temático deste artigo, mais especificamente, as estratégias que utilizamos em nossas experiências docentes (as nossas e das professoras) no que se refere à produção da avaliação dos desempenhos das crianças/estudantes e, no caso da Educação Infantil, dos pareceres pedagógicos. Tomamos a ideia de experiência docente com a avaliação identificada epistemicamente no que Foucault (2010FOUCAULT, Michel. O governo de si e dos outros. São Paulo: Martins Fontes, 2010.) caracteriza como focos de experiências, ou seja, aquilo que nos atravessa e que nos inventa como professoras e, ao mesmo tempo, inventa os sujeitos-crianças em um regime de verdade.

É a história do presente e a filosofia contemporânea que nos possibilitam pensar essa produção e constituição de sujeitos a partir de três eixos: o primeiro, que são os saberes em que é possível dizer sobre o sujeito; segundo, as matrizes normativas em que os comportamentos dos indivíduos devem ser inscritos para serem considerados/representados como sujeitos; e terceiro, a projeção que os saberes e as matrizes normativas oferecem como modos de existência para que os outros, através da mediação, e os próprios indivíduos possam produzir-se como sujeitos (FOUCAULT, 2010FOUCAULT, Michel. O governo de si e dos outros. São Paulo: Martins Fontes, 2010.).

Nesses eixos, percebemos uma ordem para o governo da experiência em um regime de verdade, do qual é possível dizer da produção e constituição das professoras da Educação Infantil, que, por efeito, pelos saberes e pela matriz normativa utilizadas para a atuação educacional-pedagógica e avaliativa do desenvolvimento, comportamentos e aprendizagem das crianças, atuam para a produção, identificação e constituição da criança e da infância, regida e legitimada por saberes agenciados e operados pelas políticas e instituições de Educação Infantil que atuam.

Para pensar sobre os processos de avaliação nas instituições de Educação Infantil com os pareceres pedagógicos escritos por professoras e analisar como eles relacionam a instituição e as opções docentes de registro sobre as crianças a certos saberes e normas (de comportamento, de valores estruturais e de valores morais) que legitimam um determinado modo de ser e tipo de infância e criança, é que estruturamos este artigo.

Estão agenciados, nas instituição de Educação Infantil e nos pareceres pedagógicos, modos de dizer, de ser da infância e de se constituir criança e, através deles, podemos analisar e compreender, pelo acionamento dos conceitos-ferramentas norma e gradiente de normalidade/normalização, como as práticas enunciativas e os saberes na instituição da Educação Infantil estão funcionando para fabricar o sujeito-criança (a criança normal, a criança que se desvia, a criança em risco, a criança que precisa ser ajustada).

Metodologicamente, inspiradas nos estudos foucaultianos, três unidades de análise foram construídas; são elas: os saberes que movimentam a atuação das instituições e professoras de Educação Infantil; as matrizes normativas de comportamento para os indivíduos em relação ao poder de inventar a criança e a infância; e os gradientes de normalidade derivados da matriz normativa que operam a classificação e a produção das crianças (individualmente).

As unidades de análise foram construídas a partir dos modos como as professoras enunciam, por avaliação, julgamento pela verdade e a escrita, as crianças nos pareceres pedagógicos, que foram tomados como documentos1 1 Entendemos que os pareceres pedagógicos fazem parte do que se tem chamado de documentação pedagógica e podem estar associados a outras formas de registro, como relatos de vivências, fotografias, produções das crianças, planejamentos, que situam a seleção, organização, elaboração de registros e de avaliação tanto da criança como da escola. que podem determinar os lugares dos sujeitos-crianças no mundo. Os processos de avaliação que, registrados em pareceres pedagógicos, promovem uma posição do sujeito em relação aos determinantes normativos que são inventados pelas práticas discursivas e saberes pedagógicos, ou seja, a invenção de espaços e tempos que a criança vai ocupar na organização da família, da escola e da comunidade, sendo essa posição legitimada pelo discurso produzido pela avaliação. Os pareceres pedagógicos que constituem o material analítico, neste texto, serão referidos com a letra P e o número que os ordenam no conjunto de dados utilizado na investigação. Cabe informar que foram reunidos 179 pareceres pedagógicos produzidos entre 2015 a 2017, em uma Escola Municipal de Educação Infantil (EMEI) do interior do Estado do Rio Grande do Sul. Esses pareceres eram produzidos semestralmente e individualmente pelas professoras e, para manter as características éticas e nosso comprometimento com a pesquisa, optamos por não mencionar qualquer elemento que possa identificar as crianças ou as professoras, mesmo tendo autorização da instituição e da Secretaria Municipal de Educação à qual estava submetida para a utilização dos dados desses pareceres para a pesquisa.

Com a utilização dos pareceres pedagógicos, como fonte de dado analítico da pesquisa, ainda é importante considerar que a produção dos pareceres, tomados como material de onde levantamos e produzimos os dados de análise, foram feitos por mulheres-professoras, de uma instituição de Educação Infantil e, nesse contexto, aparecem no conjunto de saberes de um regime de verdade sobre as crianças e infâncias, a questão de gênero e a feminização do magistério, que será superficialmente considerada.

Os trechos dos pareceres que são trazidos para discussão neste artigo se constituem, portanto, em conjunto de fragmentos retirados do arquivo de dados produzidos como materialidade analítica para a pesquisa maior que pretendeu, como objeto de investigação, analisar a produção das infâncias e das crianças tomando como referência as práticas discursivas registradas em pareceres pedagógicos produzidos por professoras na instituição de Educação Infantil. Tal pesquisa apontou a multiplicidade de saberes e, mesmo, outros modos de pensar e produzir as infâncias na contemporaneidade; assim, optamos por trazer neste artigo um recorte que busca identificar analiticamente como, nos pareceres pedagógicos, aparecem parâmetros normativos que regulam um modo de narrar e enunciar as crianças e as infâncias em risco, sendo o risco, ou a determinação do risco que cada um pode ser e/ou desempenhar, uma das estratégias de uma sociedade do controle (controle da vida da população e do indivíduo) que coloca em funcionamento saberes normativos sobre a infância e a criança nas instituições educativas, considerando que

[...] prevenir é primeiro vigiar, quer dizer, se colocar em posição de antecipar a emergência de acontecimentos indesejáveis (doenças, anomalias, comportamentos de desvio, atos de delinqüência etc.) no seio de populações estatísticas, assinaladas como portadoras de riscos. Mas o modo de vigilância promovido por essas políticas preventivas é totalmente novo em relação ao das técnicas disciplinares tradicionais (CASTEL, 1987CASTEL, Robert. A gestão dos riscos: da antipsiquiatria à pós psicanálise. Tradução de Celina Luz. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1987., p. 125-126).

Neste sentido, não vamos apresentar um modelo analítico de contrapontos, de lados, ou do contraditório, o que também leva ao esclarecimento de que não teríamos páginas suficientes, neste artigo, para problematizar o contexto de produção dos pareceres, bem como para discutir a circulação deles e contexto de influência na família, comunidade, sociedade, para a produção das crianças e infâncias.

Depois dos esclarecimentos sobre os dados e o que pretendemos analisar, retomamos o conteúdo ou as práticas de dizer sobre a criança nos processos avaliativos. Como ponto de partida, esclarecemos que, para nós, a instituição de Educação Infantil e as professoras, objetivamente formadas e subjetivamente constituídas para ali atuarem, produzem espaço, tempo e relações em que é possível fabricar um lugar-mundo para uma posição-criança. Essa fabricação é possível a partir de saberes sobre a infância, das relações de poder que movimentam as instituições de Educação Infantil (suas práticas de ensino, aprendizagem e de avaliação), que, conduzidas por uma matriz de normalidade, estabelecem um gradiente, um grau de variação, para que diferentes crianças possam ocupar diferentes posições ao serem nomeadas e produzidas a partir da avaliação e do exame de seus modos de ser e de se comportar.

Temos clareza que os saberes e, por efeito, a posição-sujeito não estão nos textos descritos nos pareceres pedagógicos, mas na análise dos sentidos históricos, sociais, culturais e econômicos que fazem com que esses registros escritos impactem direta e indiretamente nas práticas de produção da infância e da criança, nos modos como se organizam as instituições educacionais da infância e nos modos como atuam os professores nos processos pedagógicos.

Consideramos que os pareceres são sínteses públicas das práticas de avaliação das crianças e de suas infâncias na Educação Infantil, são construídos pelas professoras a partir de um processo de decisão institucional e constituem-se em uma responsabilidade funcional das docentes. Sobretudo, os pareceres, como parte da documentação pedagógica, ao descreverem, inventam e produzem sentidos e, por isso, são carregados de identidades, objetos e objetivos, o que, também, determina uma direção, ou para quem são destinados.

Os pareceres pedagógicos como um tipo de documento produzido nas instituições de Educação Infantil têm como objetos: - falar sobre a criança, seu processo de desenvolvimento, seus comportamentos e sua conduta; - traçar uma memória do desenvolvimento, de seus comportamentos e de sua conduta para que, em um arquivo, possamos ir ordenando um lugar e uma identidade de seu modo de ser criança, tanto para que possa ser identificada por outros, como para que ela própria possa ir se reconhecendo e constituindo a partir do que especialistas na Educação Infantil dizem sobre ela; - comunicar a narrativa da escola sobre a criança aos seus pais ou responsáveis apresentando, por fim, um destinatário efetivo para que se construa um modo de ser presente, que alerta como um dossiê as perspectivas de futuro que podem ser de um “bom” cidadão, ou podem representar o risco e, para, o que seria necessário fazer, de imediato, para ajustar esse sujeito-criança.

É, pois, neste sentido que os modos como são narradas as crianças nos pareceres indicam o sentido de uma posição-sujeito e lugares para ocuparem no mundo. Um dos lugares que nos tem preocupado, como professoras-formadoras-pesquisadoras, é o lugar de risco e em necessidade de ajustamento, como se pode observar nos registros dos pareceres a seguir:

P41 - “[...] algumas vezes em suas brincadeiras acaba machucando seus colegas [...] egocentrismo, [...] não quer dividir os brinquedos com os colegas, as vezes resolve tomando da mão do colega, se não consegue apela para a mordida.”

P51 - “[...] observo dificuldade de controlar as emoções, tanto positivas quanto negativas.”

P102 - “[...] tem demonstrado algumas reações inapropriadas na hora de dividir brinquedos, por isso frequentemente ele tem se envolvido em conflitos com seus colegas.”

P112 - “Não gosta de ser contrariado e quando isso acontece reage negativamente demonstrando sua insatisfação com o que está acontecendo, em alguns momentos apresentou agressividade com os colegas e educadores.”

P116 - “[...] expressa emoções negativas [...] quando algo não é de seu agrado [...] trava briga com seus colegas e chora, [...] não aceita cumprir os combinados da turma [...]”

P135 - “[...] não concentra-se por muito tempo em uma mesma atividade e tem preferência por brincadeiras mais agitadas, [...]”

P150 - “as vezes entra em conflito com os colegas quando disputa brinquedos, se fazendo necessário a intervenção das professoras para resolver, quando acontece ele chora e bate nos colegas...” (Arquivo de dados produzidos para a Pesquisa, 2017).

Saberes e normas: modelo de identificação do risco e do ajustamento de crianças na Educação Infantil

As instituições de Educação Infantil, através das práticas de registro em pareceres pedagógicos, assumem o papel de marcar o desenvolvimento dos sujeitos-crianças, operando com um conjunto de saberes e normas que agenciam um modelo e um processo de investimento na infância a partir das expectativas políticas, sociais, culturais e econômicas. É, pois, sob a perspectiva institucional de uma posição sujeito-professor estabelecida nas relações de saber e de poder (produzidas na qualidade de experts na educação de crianças) que se pode falar em produção de sujeitos-crianças, assim compreendido esse conjunto de saberes que produz infâncias e crianças.

Antes de entrar nessa analítica, precisamos apontar como entendemos a noção de saber. Para tanto, recorremos aos escritos de Foucault quando afirma:

Um saber é aquilo de que podemos falar em uma prática discursiva que se encontra assim especificada: o domínio constituído pelos diferentes objetos que irão adquirir ou não um status científico [...]; um saber é, também, o espaço em que o sujeito pode tomar posição para falar dos objetos de que ocupa em seu discurso [...]; finalmente, um saber se define por possibilidades de utilização e de apropriação oferecidas pelo discurso [...]. Há saberes que são independentes das ciências [...]; mas não há saber sem uma prática discursiva definida, e toda prática discursiva pode definir-se pelo saber que ela forma (FOUCAULT, 2015FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015., p. 219-220).

A partir desta passagem, passamos a entender os saberes colocados em movimento nos pareceres pedagógicos que dizem das crianças e constituem-se em práticas discursivas que, recorrentes, criam uma imagem normativa do desenvolvimento e da conduta infantil. Mais que isso, esses saberes: objetivam o desenvolvimento infantil e suas condutas; produzem escalas para essa etapa da vida humana; operam a formação e atuação das professoras, que são legitimadas na posição de experts e, finalmente, designam, representam, avaliam e interpretam cada um dos sujeitos-crianças nas instituições de Educação Infantil. Por isso, mais que um conhecimento científico do desenvolvimento e da aprendizagem infantil, esses saberes constituem as práticas, ao mesmo tempo em que as práticas e registros nos pareceres pedagógicos constituem os saberes que o conjunto dos docentes da Educação Infantil produz, através dos pareceres, para dizer da criança e da infância.

Os saberes que legitimam um modo de dizer - classificar, nomear, identificar - sobre a criança puderam ser identificados, no desenvolvimento da análise dos arquivos de dados da pesquisa, em três tipos que, juntos ou em separado, constituem os saberes que operam e agenciam, na instituição de Educação Infantil, formas de avaliação registrada pelas professoras e, por conseguinte, a (re)produção, pela avaliação, da criança normal e da criança (em risco) que precisa ser ajustada e ajustar-se.

Na perspectiva dos saberes, o primeiro que identificamos em operação nos pareceres pedagógicos foi o que denominamos saber biológico, ou seja, um modelo biológico do desenvolvimento que está modelado pela estatística e, também, reforçado por modos de dizer tais como: P38 - “está [...] adequado à sua faixa etária”.

Para esse modelo biológico, o indivíduo

[...] aparece como ser [...] que recebe estímulos, que responde a eles, que se adapta, evolui, submete-se às exigências do meio, harmoniza-se com as modificações que ele impõe, busca apagar os desequilíbrios, age segundo regularidades, tem, em suma, condições de existência e a possibilidade de encontrar normas, médias de ajustamento que lhe permitem exercer suas funções (FOUCAULT, 2007FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2007., p. 493-494).

Esse tipo de saber biológico constitui a norma e a média para os indivíduos constituírem-se crianças, opera nas instituições um modo de dizer sobre, agenciando o que é divulgado em massa, por exemplo, pelas cadernetas de vacinação. Uma certa popularização de uma norma e de uma média que diz a verdade sobre o que cada criança deve ser/fazer em cada fase etária. Ele apresenta idade e crescimento, idade e desenvolvimento para que cada criança possa ser avaliada em tabelas predeterminadas por curvas de normalidade.

Trata-se de um modelo biológico estatístico que é compreendido como verdade, pois “é na ordem do saber que objetiva a vida no organismo, no crescimento, nas etapas, enfim na regra de normalidade da vida e da vida de cada um” (POSSA, 2013POSSA, Leandra Bôer. Formação em educação especial na UFSM: estratégias e modos de constituir-se professor. 2013. 240 p. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade Federal de Santa Maria. Santa Maria, RS, 2013., p. 97), o que também pode ser considerado como biopolítica, o poder sobre a vida e, neste sentido, o poder sobre determinar uma forma/identidade de vida para cada uma e todas as crianças, que podem ser inventadas/produzidas e constituídas quando fora dessa norma, como em risco ou a ser ajustada.

O segundo saber que identificamos, chamamos de saber social-cultural, ou seja, o plano social-cultural que, na ordem de um conhecimento produzido sobre a história, a sociedade e sobre os modos de pensar a infância, e faz com que a instituição e os docentes relacionem-se com as crianças e as infâncias. São saberes acionados pelos docentes e que objetivamente movimentam seus processos de objetivação coletiva e de subjetivação individual, saberes com os quais atuam e dominam um dizer verdadeiro sobre criança produzindo lugares sociais e culturais que ocupam tanto as professoras como as crianças. Como exemplo deste saber em ação nos pareceres, identificamos a leitura da docência quanto aos traços individuais de uma criança que desafiam a noção de autoridade do adulto e as regras coletivas:

estamos enfrentando algumas dificuldades com o J. no cumprimento de algumas regras na sala de aula, no refeitório e no parquinho. [...] Gosta de desafiar as ordens dadas pelas professoras, agindo contrariamente ao que lhe foi pedido e em alguns momentos envolve-se em conflitos pela disputa de brinquedos (P123).

Cabe ressaltar, mesmo não sendo este um tema de análise neste artigo, que no saber social-cultural está a noção de gênero como substrato para explicar as relações sociais, econômicas, políticas baseadas na diferença entre os sexos e a relação de poder que histórica, social e culturalmente inventam o lugar da mulher na sociedade ocidental (SCOTT, 1995SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil para análise histórica. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 20, n. 2, p. 71-99, jul./dez. 1995. Disponível em:Disponível em:https://seer.ufrgs.br/educacaoerealidade/article/view/71721/40667 . Acesso em: 5 ago. 2020.
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). Culturalmente, a mulher (e as crianças) tem um lado na história e, em diferentes tempos, papéis e simbolismos ligados ao sexo cria “sistemas de significado, [..] aos modos pelos quais as sociedades representam o gênero, servem-se dele para articular as regras de relações sociais ou para construir o significado da experiência” (SCOTT, 1995, p. 82). A relação entre o significado e experiência do feminino constitui uma unidade histórica de análise sobre a educação das crianças que coloca a maternidade como papel e simbolismo que caracterizaria a docência na Educação Infantil. A feminização da docência na Educação Infantil se explicita na perspectiva de que a autoridade das mulheres-professoras parece ser natural para o domínio das condições maternais e valorativas e, por isso, legitima a habilidade docente de avaliar, pensar e ajustar a infância.

O terceiro saber que é agenciado pela instituição de Educação Infantil, vislumbrado nos pareceres, foi o saber psicopedagógico. Uma junção de saberes relacionada à área da psicologia e da pedagogia, considerando que a primeira torna-se matriz para a segunda. Trata-se de um modelo psico-normativo para o desenvolvimento linguístico, psicomotor, cognitivo, social e emocional que é referência para a descrição, comparação, classificação, avaliação e identificação de cada uma das crianças e de todas em uma grade de normalidade. Esse modelo permite à Educação Infantil as condições de possibilidade para identificar a criança normal; a criança que se desvia; a criança em risco; a criança que precisa ser ajustada e/ou identificada em outros padrões que tornam o anormal em normal, como é o caso das deficiências e transtornos do desenvolvimento e comportamento; a criança que ocupa uma ou mais posições no modelo. Isso pode ser identificado nos fragmentos que seguem:

P03 - [...] bom relacionamento com seus colegas e professoras. É uma menina alegre, carinhosa, inteligente e ativa, gosta de participar das atividades realizadas na sala e de brincar no pátio, interagindo com todos os coleguinhas, porém não gosta de compartilhar os brinquedos, utilizando-se do choro e gritos [...] (grifos nossos).

P16 - Considerando a faixa etária dos alunos, a qual limita-se entre três e quatro anos de idade e consequentemente a etapa do desenvolvimento [...] linguagem oral está bem desenvolvida, mas fala somente o necessário. Compreendeu as normas e regras elaboradas pela turma, porém nem sempre as cumpre. [...] Gosta de ouvir músicas, porém não canta acompanhando as demais colegas com palmas, e fazendo os gestos. [...] seu desenvolvimento motor é bom (grifos nossos).

P30 - Demonstra gostar de ouvir música [...], porém quando se faz gestos e dança, apresenta timidez e não realiza (grifos nossos).

P04 - [...] uma bebê calma, [...] demonstra ser uma criança ativa e esperta, [...] gosta de brinquedos que lhe agradam, é curiosa e tem interesse por tudo aquilo que está ao seu redor, [... ] resiste um pouco para tomar água, sempre vamos oferecendo até que ela tome, [...] necessita ser ‘nanada’ no carrinho, possui um pouco de resistência para pegar no sono (grifos nossos).

Existe um modelo de enunciação sobre a criança, agenciado na instituição de Educação Infantil, que parece estar atravessado por um aparato de controle e vigilância e, nos registros, parece que as professoras assumem uma posição de saber para registrarem na perspectiva do indivíduo a distinção entre a criança normal, a criança da falta, a criança em risco e a criança a ser ajustada (posições-criança).

P22 - [...] é um menino querido, esperto, curioso, ativo e por vezes travesso; [...] demonstra-se um pouco disperso e se distrai com facilidade [...], sendo que a falta de atenção às vezes reflete de forma negativa na sua concentração [...] possui um emocional oscilatório com suas corriqueiras travessuras, em algumas situações tem dificuldades para compreender e cumprir limites estabelecidos em sala de aula” (grifos nossos).

P36 - [...] criança querida e amável, porém bastante nervoso e inseguro”

P51 - [...] dificuldade de controlar as emoções, tanto positivas quanto negativas, [...] tem noções de espaço e tempo, lateralidade, reconhece cores e formas conseguindo agrupá-las por semelhança (grifos nossos).

P74 - [...] consegue expressar-se quanto às suas necessidades e desejo apesar de apresentar dificuldades de linguagem, por isso acreditamos ser essencial o acompanhamento fonoaudiológico [...] para poder superar suas dificuldades... (grifos nossos).

P153 - [...] está realizando acompanhamento com a fonoaudióloga para auxiliá-lo em conjunto com a escola e a família em seu processo de construção e ampliação da linguagem oral (grifos nossos).

Dentre as palavras grifadas nas passagens anteriores dos fragmentos/arquivo de dados, podemos identificar: porém; resiste; necessita; falta; oscilatório; tem dificuldades; dificuldade; apesar de e acompanhamento. Essas palavras mostram o registro do controle, da vigilância e da necessidade de correção e, ao mesmo tempo, a posição de criança em risco e a ser ajustada. O processo de avaliação com a enunciação da criança estabelece e movimenta, colocando em jogo o gradiente de normalidades, em que os “[...] usos mais abrangentes e previstos em uma curva com gradientes diferenciados de normalidade. [...] criados a partir do estabelecimento do normal, apontam o anormal e a necessidade [...]” (LOPES, 2009LOPES, Maura Corcini. Políticas de Inclusão e Governamentalidade. Educação e Realidade, Porto Alegre, v. 34, n. 2, p. 153-169, maio/ago. 2009. Disponível em:https://seer.ufrgs.br/educacaoerealidade/article/download/8297/5536. Acesso em: 17 jun. 2019.
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, p. 158). Aí, parece-nos, está um dos objetivos do processo de avaliação na Educação Infantil, o de dizer e produzir as crianças e, como grande ressalva, identificar as crianças a serem ajustadas, reclassificando-as continuamente durante o processo educativo.

Enfim, os saberes estabelecem relações de poder, colocando em funcionamento, na instituição de Educação Infantil e na atuação das professoras, um sistema de regularidade, em que é possível identificar o normal e o anormal, mas, sobretudo, identificar as diferentes curvas de normalidade em que a instituição, professores e famílias deverão atuar para que a criança se adeque a uma dessas curvas, ou seja, uma operação de normalização, pois,

[...] vai consistir em “fazer essas diferentes distribuições de normalidade funcionarem umas em relação às outras [...]. A norma está em jogo no interior das normalidades diferenciais. O normal é que é o primeiro, e a norma se deduz dele [...]” (Foucault, 2008a, p. 83). Nas operações de normalização - que implicam tanto trazer os desviantes para a área da normalidade, quanto naturalizar a presença de tais desviantes no contexto social onde circulam - devem ser minimizadas certas marcas, certos traços e certos impedimentos de distintas ordens. Para isso, vê-se a criação, por parte do Estado, de estratégias políticas que visam à normalização das irregularidades presentes na população. Entre as estratégias criadas para que a normalidade se estabeleça dentro de quadros nos quais surge a ameaça do perigo, é possível citar a criação de políticas de assistência e de políticas de inclusão social e educacional, entre outras. Ambas, ao fim e ao cabo, podem ser vistas como ações inclusivas que visam a trazer para a normalidade partes da população ameaçadas pela miséria, pela doença, pela deficiência, pela falta da previdência, pela falta da escola etc. (LOPES, 2009LOPES, Maura Corcini. Políticas de Inclusão e Governamentalidade. Educação e Realidade, Porto Alegre, v. 34, n. 2, p. 153-169, maio/ago. 2009. Disponível em:https://seer.ufrgs.br/educacaoerealidade/article/download/8297/5536. Acesso em: 17 jun. 2019.
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, p.160).

A operação de normalização toma a normalidade “como um campo móvel ou zona de instabilidade [...] se impõem como convites para sermos constantemente outros ou para sermos diferentes do que éramos” (FABRIS; LOPES, 2013FABRIS, Elí Teresinha Henn; LOPES, Maura Corcini. Inclusão & Educação. Minas Gerais: Autêntica, 2013., p. 45). É assim que operam, por efeito, os saberes que tramam um modo de ser criança e de infância nas instituições e pelas professoras, pois a normalidade é também normação - a normalidade de normatização.

Diante da necessidade de normalização, os processos de avaliação na Educação Infantil podem, portanto, em função dos gradientes e das regularidades, criar certos deslocamentos em que os saberes (biológico, social-cultural e psicopedagógicos) “[...] não parte[m] da norma, mas, ao contrário, faz[em] dela um gradiente, ou melhor, uma possibilidade de expandir a norma e torná-la flexível para outros enquadramentos” (RECH, 2010RECH, Tatiana Luiza. A emergência da inclusão escolar no governo FHC: movimentos que a tornaram uma “verdade” que permanece. 2010. 186 p. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Novo Hamburgo, RS, 2010., p. 75) e, dentro desses enquadramentos, encontramos as crianças em risco e as que necessitam ser ajustadas.

Por isso, além de avaliar e classificar, os processos de avaliação na Educação Infantil também podem ter como objetivo normalizar crianças, mesmo aquelas desajustadas, naturalizando sua presença, compondo um gradiente social para estar e participar na instituição da Educação Infantil, pois, cada indivíduo nomeado e identificado como criança, além de ser ‘tratado’ a partir do referencial de normalidade oriundo da norma (normação), pode ser avaliado, qualificado e mostrado (para família e para a comunidade) como mais um que está enquadrado em uma zona de normalidade determinada e instável que possibilite gerar práticas de maior controle e ajustamento.

Essa possibilidade dá-se porque a instituição de Educação Infantil, seus professores e os modos como são avaliadas e descritas as crianças nos pareceres pedagógicos agenciam saberes que parecem estar fixados em um modo romantizado e normatizado (romantinormatizado) da infância, que está concebida como um período mágico, de alegrias e despreocupações ou de desvios que podem ser ajustados e controlados como no caso do fragmento a seguir:

P116 - [...] expressa suas emoções negativas quando algo que é de seu desagrado acontece [...] fica brava briga com seus colegas e chora, nestes momentos com diálogo e respeito estamos buscando proporcionar a ela conviver, aceitar e entender as situações do dia a dia, também a controlar suas emoções e sentimentos durante as disputas de brinquedos e objetos, também em aceitar e cumprir os combinados da turma, ampliando assim sua noção de mundo e sua sensibilidade em relação aos outros e consigo mesma (grifos nossos).

Os efeitos do processo de avaliação como na descrição deste parecer e em outros que poderíamos utilizar como exemplo apontam uma forma de invenção da criança que indica alguns saberes em ação, o que torna possível determinar a criança que expressa emoções negativas, mas, também, como mostrado em outros fragmentos ao longo deste texto, crianças birrentas, teimosas, agressivas, violentas, dispersas, desatentas, não cooperativas, desconcentradas, entre outras formas de classificar.

A descrição das condutas e o modo como essa descrição é feita nos processos de avaliação, seja em pareceres pedagógicos, ou, ainda, em qualquer ato de fala, conversa entre professores, diálogo com a família, ou os modos como se organizam as relações de professores com a criança e dela com as outras crianças, ou a forma de escrita e imagem em qualquer outra documentação pedagógica, inventam, nomeiam e produzem identidades por processos de objetivação e subjetivação - processos que dizem do modo como o indivíduo torna-se objeto de conhecimento e como, nisso, o próprio indivíduo percebe e constitui a si mesmo. Ao dizer das crianças, por meio de saberes e normatividades construídos por regimes de verdades psicopedagógicos e socioculturais, as instituições de Educação Infantil e suas professoras (re)produzem como um modo de ser sujeito legítimo de determinado tipo de conhecimento e, ao mesmo tempo, um modo como a criança percebe e pode constituir-se a si mesma; sobre como as famílias, a comunidade ou mesmo a professora do próximo ano vai construir suas relações com a criança.

Se processos de objetivação dizem dos modos como o sujeito pôde tornar-se um objeto para o conhecimento, os processos de avaliação na Educação Infantil podem, portanto, dizer da invenção das crianças. Nessa esteira, podemos entender que processos de objetivação e de subjetivação são processos complementares que se relacionam por meio do que Foucault (2010FOUCAULT, Michel. O governo de si e dos outros. São Paulo: Martins Fontes, 2010.) chamou de jogos de verdade, quando os saberes e as regras legitimadas e compartilhadas regulam social e culturalmente um modo de produção do discurso e uma prática representativa dos sujeitos nesses discursos. Isso significa que as verdades atribuídas às crianças nos processos de avaliação na Educação Infantil são, “[...] em última instância, efeitos de verdade produzidos por mecanismos estratégicos de poder que imputam ao sujeito determinadas normas, classificando-os, sujeitando-os e adestrando-os” (IBRAHIM; VILHENA, 2014IBRAHIM, Elza; VILHENA, Junia. Jogos de linguagem/jogos de verdade: de Wittgenstein a Foucault. Arq. bras. psicol., Rio de Janeiro, v. 66, n. 2, p. 114-127, 2014. Disponível em: Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-52672014000200009&lng=en&nrm=iso . Acesso em 10 ago. 2020.
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?scr...
, p. 122-123).

É com essa análise que entendemos ser necessário pensar as instituições de Educação Infantil e a atuação docente nos processos de avaliação e produção das crianças e, por conseguinte, de uma infância que tem fronteira delimitada nos saberes biológicos, psicopedagógicos e socioculturais restritos àquilo que naturaliza e torna cotidiano, acostumadamente, o que temos chamado e representado como criança-infância em risco e/ou em necessidade de ajustamento.

Por fim, e não querendo colocar um ponto final no desenvolvimento desta análise, retomamos o objetivo desta escrita que foi pensar sobre os processos de avaliação nas instituições de Educação Infantil tomando, como objeto de análise, fragmentos de pareceres pedagógicos escritos por professoras e que, como arquivo de dados, possibilitam-nos analisar como as instituições e as opções docentes de registro sobre as crianças estão por efeito de certos saberes e normas (de comportamento, de valores estruturais e de valores morais) legitimando um determinado modo de ser e tipo de infância e criança. A contribuição que esperamos dar com esta análise é a de que possamos estudar junto com as professoras e as instituições de Educação Infantil, e entendermos o limite que o conjunto de saberes e regras operados pelos jogos de verdade que colocamos em funcionamento, na contemporaneidade, podem dizer, nomear, identificar e rotular as crianças, podem estar limitando a atuação docente para entendermos as múltiplas e diversas criança(s) e as infância(s) que estão nas instituições de Educação Infantil.

Para não concluir… um convite para continuar pensando...

Movidas pela necessidade de continuar pensando e, às vezes, de continuar pensando o mesmo de outros modos, propomo-nos a analisar os processos de avaliação que são realizados nas instituições de Educação Infantil, através da escrita, pelas professoras, dos pareceres pedagógicos. Esse documento em que a criança passa a existir na descrição e, por efeito, da avaliação e julgamento de seus comportamentos, ações e condutas. Ademais, esse documento que é produzido a partir de saberes sobre o biológico e de saberes psicopedagógicos e socioculturais constitui a identificação das crianças que poderão representar um risco, sendo elas, preventivamente, colocadas na posição de sujeito em risco, de sujeito a ser ajustado.

A análise aponta que a instituição de Educação Infantil, nos processos de avaliação, tende a representar o desvio como “marca, uma forma de ser e de agir desses sujeitos” (RECH, 2011RECH, Tatiana Luiza. A emergência da inclusão escolar no Brasil. In: THOMA, Adriana da Silva; HILLESCHEIM, Betina. Políticas de inclusão: gerenciando riscos e governando as diferenças. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2011. p. 19-34., p. 39) e, para que possam ser ajustados a uma norma ou gradiente, é necessário descrever o que, pelos jogos de verdade, naturaliza-se como desvio.

Ao que pareceu, ao longo do estudo que realizamos, é que a instituição de Educação Infantil e seus professores têm atuado para que, através de saberes e matrizes normativas, a avaliação cumpra com a função de dar existência ao risco e à necessidade de ajustamento para que se possa moldar as condutas e forçar uma volta do desenvolvimento e ao percurso que possa universalizar um modo de ser criança e de infância.

Expresso em outros termos, os processos de avaliação parecem indicar a necessidade do ajustamento da criança em risco, dizendo sobre o desenvolvimento, comportamento e os modos de se relacionar no mundo, a partir de uma grade de normalidade, ou seja, na possibilidade de dar visibilidade à normalidade e às fronteiras entre a anormalidade, ou ainda de dizer sobre o aluno que transita pela curva de normalidade com características e comportamentos que se deslocam, mas que estão sendo normalizados em posições e lugares da criança e da infância que vão marcar e rotular vidas e experiências de sujeitos-crianças.

O lugar que queremos ocupar com este artigo é o de colocar em suspensão e em suspeição os saberes que legitimam determinado tipo de infância e criança. Parece-nos que os processos de avaliação na Educação Infantil precisam ser problematizados naquilo que professoras, no papel de experts, vigilantes das crianças, e as instituições têm naturalizado ao fazerem circular verdades que têm constituído as crianças e suas infâncias por comparação, produção e identificação, “[...] a vigilância que permite classificar, ordenar, hierarquizar, recuperar, enfim, posicionar” (SARDAGNA, 2008SARDAGNA, Helena Venites. Práticas normalizadoras na educação especial: um estudo a partir da rede municipal de ensino de Novo Hamburgo -RS (1950-2007). 2008. 227 p. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Novo Hamburgo, RS, 2008., p. 145) e, por fim, promover o apagamento das diferenças e da(s) infância(s).

Suspensão e suspeição é o que nos propomos a pensar aqui e mais além. Suspender e suspeitar dos saberes e regras universalizadas, generalistas e naturalizadas que utilizamos para inventar as crianças e a infância na contemporaneidade, bem como o limite que esses processos de avaliação, pelos jogos de verdade, impedem-nos, seja como formadoras e ou professoras para a Educação Infantil, de perceber e considerar as múltiplas e diversas crianças(s) e as infâncias que chegam e estão nas instituições de Educação Infantil.

Com isso, retomamos o primeiro parágrafo deste texto para afirmar que a experiência como professoras e pesquisadoras da Educação Básica e Superior tem nos mostrado que problematizar e tensionar regimes de verdades que colocam em funcionamento as práticas e, dentre elas, os processos de avaliação na Educação Infantil, configura-se como uma possibilidade de caminho a ser construído coletivamente, porque temos, pelo menos, uma certeza: ninguém é capaz de oferecer ou transformar os espaços e modos de atuação sem entender como e por que chegaram a atuar e a fazer de uma ou de outra maneira. O que fazemos e como colocamos em funcionamento e de que nos ocupamos quando produzimos processos de avaliação que inventam ou, pelo menos, marcam a existência de crianças e infâncias em risco e em ajustamento.

REFERÊNCIAS

  • CASTEL, Robert. A gestão dos riscos: da antipsiquiatria à pós psicanálise. Tradução de Celina Luz. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1987.
  • FABRIS, Elí Teresinha Henn; LOPES, Maura Corcini. Inclusão & Educação Minas Gerais: Autêntica, 2013.
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  • FOUCAULT, Michel. O governo de si e dos outros São Paulo: Martins Fontes, 2010.
  • FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015.
  • IBRAHIM, Elza; VILHENA, Junia. Jogos de linguagem/jogos de verdade: de Wittgenstein a Foucault. Arq. bras. psicol, Rio de Janeiro, v. 66, n. 2, p. 114-127, 2014. Disponível em: Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-52672014000200009&lng=en&nrm=iso Acesso em 10 ago. 2020.
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  • LOPES, Maura Corcini. Políticas de Inclusão e Governamentalidade. Educação e Realidade, Porto Alegre, v. 34, n. 2, p. 153-169, maio/ago. 2009. Disponível em:https://seer.ufrgs.br/educacaoerealidade/article/download/8297/5536 Acesso em: 17 jun. 2019.
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  • POSSA, Leandra Bôer. Formação em educação especial na UFSM: estratégias e modos de constituir-se professor. 2013. 240 p. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade Federal de Santa Maria. Santa Maria, RS, 2013.
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  • RECH, Tatiana Luiza. A emergência da inclusão escolar no Brasil. In: THOMA, Adriana da Silva; HILLESCHEIM, Betina. Políticas de inclusão: gerenciando riscos e governando as diferenças. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2011. p. 19-34.
  • SARDAGNA, Helena Venites. Práticas normalizadoras na educação especial: um estudo a partir da rede municipal de ensino de Novo Hamburgo -RS (1950-2007). 2008. 227 p. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Novo Hamburgo, RS, 2008.
  • SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil para análise histórica. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 20, n. 2, p. 71-99, jul./dez. 1995. Disponível em:Disponível em:https://seer.ufrgs.br/educacaoerealidade/article/view/71721/40667 Acesso em: 5 ago. 2020.
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  • 1
    Entendemos que os pareceres pedagógicos fazem parte do que se tem chamado de documentação pedagógica e podem estar associados a outras formas de registro, como relatos de vivências, fotografias, produções das crianças, planejamentos, que situam a seleção, organização, elaboração de registros e de avaliação tanto da criança como da escola.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Nov 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    21 Out 2020
  • Aceito
    01 Jun 2021
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