Open-access Culturas digitais e tecnologias móveis na educação1

Digital cultures and mobile technologies in education

Resumo

O século XX foi marcado pela inserção das tecnologias da informação e comunicação (TIC) conectadas em rede, em diferentes setores sociais. Agora, no século XXI, vivenciamos, de forma mais intensa, o uso das tecnologias móveis e de redes sociodigitais que nos colocam em constante interação com (ciber)espaços sociotécnicos. Nesses espaços, a comunicação ocorre em lugares não fixos, registrando fatos e informações no instante em que eles acontecem. Os jovens são os que mais utilizam esta forma de comunicação, tornando-a uma marca, umhabitus dessa geração que se caracteriza, dentre outros fatores, pela intensa imersão nas culturas digitais. São jovens que já não aceitam mais formas convencionais de ensinar e aprender, pois aprenderam, com as tecnologias e as redes, a interagir, a produzir e a publicar. Estes são alguns dos desafios que temos para a educação, principalmente para a formação inicial dos docentes, futuros professores, que realizam estágio supervisionado nas escolas do Ensino Fundamental. Para compreender estes desafios e encontrar possíveis caminhos, o Grupo de Pesquisa em Educação e Culturas Digitais (ECult) / Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), vinculado à Universidade Federal de Sergipe (UFS), tem desenvolvido pesquisas que discutem esta temática. Porém, torna-se necessário ampliar a realização de pesquisas com este tema em outros Programas de Pós-Graduação em Educação.

Palavras-chave: educação; culturas digitais; pesquisa.

Abstract

The twentieth century was marked by the integration of information and communication technologies (ICT) networked in different social sectors. Now, in the twenty-first century, we've been experiencing, more intensely, the use of mobile technologies and sociodigital networks that put us into constant interaction with (cyber) socio-technical spaces. Those are spaces where communication occurs in non-fixed places, recording facts and information at the very moment they happen. Young people are the ones who use this form of communication more frequently, turning it into a brand, ahabitus of this generation that is characterized, among other factors, by the great immersion in digital cultures. They are young people who no longer accept conventional ways of teaching and learning, because they have been learning, from the technologies and networks, how to interact, produce and publish. These are some of the challenges that education has to face nowadays, mainly as for the initial training of future teachers who are involved in internship programs in Elementary schools. To understand these challenges and find possible ways of improving education, the Research Group in Education and Digital Cultures (ECult) / Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), linked to Universidade Federal de Sergipe (UFS), has been developing research related to the theme of this study. However, it is paramount to increase the practice of research on topics such as education and digital cultures in other Postgraduate Education Programs.

Keywords: education; digital culture; research.

O cenário atual das tecnologias na educação

Muito se escreveu, no passado, de modo tão sutil como estéril, sobre a questão de saber se a fotografia era ou não uma arte, sem que se colocasse sequer a questão prévia de saber se a invenção da fotografia não havia alterado a própria natureza da arte.

Walter Benjamin (1987, p. 176).

O Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br) tem desenvolvido, no Brasil, pesquisas anuais sobre o uso das tecnologias da informação e comunicação (TIC) em domicílios e na educação. A pesquisa realizada em 2014 e publicada no final de 2015 com o título "TIC Educação" apresenta alguns dados importantes para pensarmos sobre a educação no Brasil no século XXI, quando a disseminação e o uso dessas tecnologias aumentam cotidianamente, de forma significativa, criando novas formas culturais, principalmente entre os jovens que estão presentes nas escolas e nas universidades. Assim, percebe-se que a cada novo desenvolvimento de meios de comunicação, novas formas culturais são criadas pelos praticantes que deles se apropriam, recriando seus usos. Ao longo da história, isso vem acontecendo desde o desenvolvimento do rádio e da televisão, que potencializaram a cultura de massa, até a internet, com os dispositivos móveis.

Nas últimas décadas do século XX, vivenciamos de forma intensiva a inserção das TIC em diferentes setores sociais. Estas tecnologias potencializaram novas formas de comunicação, de aprendizagem, de disseminação de conteúdos e de culturas digitais. A primeira década do século XXI é marcada por outra transformação tecnológica causada pela frequente utilização das tecnologias móveis conectadas em redes. Ostablets, notebooks, smartphones e outros dispositivos móveis têm possibilitado uma comunicação desprendida de lugares fixos e que utiliza diferentes linguagens e novos processos sociotécnicos próprios deste novo ambiente informacional e da cultura da mobilidade. Esta comunicação móvel materializa o sentido da expressão "tudo ao mesmo tempo agora o tempo todo".

No espaço escolar, a inserção das TIC foi intensificada a partir de 1997, principalmente por conta de políticas públicas que têm priorizado a criação de "laboratórios de informática" nas escolas, uso de notebooks, tablets e lousas digitais. Desta forma, poderíamos imaginar que o problema da inserção de equipamentos tecnológicos nas escolas públicas já estaria superado. Contudo, contrariando as expectativas governamentais, o investimento despendido na compra dessas tecnologias não tem sortido o efeito esperado na melhoria da qualidade da educação, pois a utilização das TIC na educação está além da aquisição de tecnologias. Falta, dentre outras coisas, adequação da infraestrutura da escola, tanto no aspecto físico como também de melhoria da rede elétrica e da disponibilidade de conexão com a internet. Além disso, é preciso pensar na formação de professores, no currículo e na gestão da escola, que precisará desenvolver outras formas de interagir com os alunos frente ao uso das TIC.

Para conceber esta escola, hoje permeada pelas tecnologias e por jovens que, fora dela, vivenciam outras formas de produzir e consumir conteúdos, sendo considerados praticantes culturais (Certeau, 2011), atuantes nas mídias e redes sociais, é necessário o desenvolvimento de pesquisas que possibilitem a compreensão da sociedade contemporânea, dos sujeitos que nela atuam e dos espaços formais e não formais de educação.

Após a descrição desse cenário atual, é preciso analisar o que dizem os autores, as cenas e os atores que produzem as culturas digitais e as utilizam em seus cotidianos, criando táticas próprias na construção de saberes e culturas socializadas colaborativamente em redes. Estas reflexões nos ajudarão a pensar em cenários futuros para a educação com as TIC e com as novas formas culturais advindas dos usos destes dispositivos.

Da cultura de massa à cultura da mobilidade

Antes de iniciar a análise sobre as formas socioculturais potencilizadas pelos meios de comunicação, é preciso deixar claro que não acreditamos no determinismo tecnológico, pois concordamos com Castells (1999), quando ele afirma que as tecnologias não determinam os rumos da sociedade, mas a forma como os sujeitos, praticantes culturais, apropriam-se destes meios, passando, a partir deles, a produzir linguagens que fazem a diferença. Por estes meios ou mídias circulam signos, informações e comunicação que possibilitam a construção de novas formas de pensar, de conceber o mundo, a política, a sociedade, a economia, a cultura e a educação.

O advento dos meios de comunicação de massa surgiu no início do século XX com a popularização da radiodifusão. Embora as primeiras pesquisas e experiências com radiodifusão tenham sido iniciadas no século XIX, é somente nas primeiras décadas do século XX que a sociedade passa a utilizar o rádio como meio de comunicação para obter informações. Ouvir o rádio, seja individualmente ou coletivamente, passou a ser um hábito desenvolvido por grupos e famílias que muitas vezes compartilhavam o mesmo equipamento de comunicação.

Do rádio para a televisão não passou muito tempo. Estas duas mídias foram praticamente desenvolvidas concomitantemente. Porém, a difusão do aparelho televisivo levou um pouco mais de tempo para chegar à maioria dos lares, pois o custo do equipamento era mais elevado que o rádio. Contudo, vale ressaltar que o desenvolvimento desse meio de comunicação causou grande impacto na sociedade, mudando a relação das pessoas com o mundo que as cercam, criando novas formas de pensar. Isso porque, a partir das informações veiculadas pela televisão, novos sentidos e significados passaram a ser construídos por cada um. O que percebemos desse período é que, com

[...] a expansão do sistema econômico capitalista aliada ao desenvolvimento tecnológico industrial, que se iniciou na Inglaterra no século XVIII, e se expandiu pelo mundo no século XIX, imprimiu nas sociedades um novo ritmo, mais acelerado, fazendo com que os deslocamentos fossem mais rápidos (transportes) e as comunicações fossem transmitidas cada vez mais a longa distância entre o emissor e o receptor (telégrafo e telefone). Essa revolução tecnológica, aliada a uma economia de mercado, oportunizou o desenvolvimento de uma sociedade de consumo e de uma cultura de massa que se consolidou no século XX. (Lucena, 2012, p. 42-43).

O termo cultura de massa começou a ser empregado a partir do desenvolvimento das tecnologias de comunicação, que passaram a produzir e disseminar conteúdos e informações padronizados a uma grande quantidade de pessoas de diferentes e distantes regiões, ou seja, a massa.

Nesse caso, os indivíduos constituem-se como massa não por estarem ligados pela presença em um mesmo local físico, mas por adquirirem experiências similares através dos meios de comunicação sem que compartilhem contextos similares de vida. (Santaella, 2007, p. 124).

A difusão da cultura de massa não foi iniciada apenas com o rádio e com a televisão. Essas tecnologias apenas ampliaram o público que antes já utilizava outros meios de comunicação de massa, baseados na linguagem escrita e impressa, como: o jornal, a revista, os cartazes e outros veículos utilizados pela publicidade e pela propaganda. Para Lemos (2012), as mídias massivas são mídias de informação que emitem dados de um polo centralizado para uma massa de receptores. Essas mídias têm a preocupação de informar o público e de criar agendas de discussão sobre temas por elas eleitos, de acordo com seus interesses e com suas lógicas de produção.

A partir da década de 1980, surgiram outras tecnologias que possibilitaram aquilo queSantaella (2007) classificou como cultura do disponível e do transitório, passando a permitir que cada pessoa tivesse a possibilidade de escolher e de selecionar o que ler, ouvir e ver no seu próprio tempo, não mais no tempo estabelecido pelo produtor da informação. As tecnologias que oportunizaram estas possibilidades foram: o controle remoto, a televisão a cabo, o videocassete, a fotocopiadora, a câmera filmadora, o walkman e owalktalk.

Flâneur por entre os mais diversos canais da TV a cabo, filmar seus próprios acontecimentos e eventos, escolher filmes e músicas para ver e ouvir, passaram a ser atividades desenvolvidas com a cultura das mídias (Santaella, 1992, 2003, 2007), a qual se difere da cultura de massa, mas que ainda assim consome seus produtos, pois sua principal característica é o consumo personalizado da informação. Foi através da cultura das mídias que se desenvolveu a linguagem em forma de mosaico, uma linguagem fragmentada e não linear utilizada nos videoclips. Esta linguagem pode ser considerada como precursora da linguagem hipertextual, que se desenvolve mais tarde. Santaella (2007) classifica a cultura das mídias como uma cultura intermediária entre a cultura de massa e a cultura digital.

Embora as discussões sobre cultura digital tenham se intensificado neste século, esta forma cultural surge com o desenvolvimento da microinformática, na década de 1970, interferindo na cultura de massa e na cultura das mídias. Isso porque, embora estejamos conceituando separadamente estas culturas, elas não foram extintas; uma não substituiu a outra. Elas continuam, mesclando-se, atualizando-se e interpenetrando-se.

O que estamos denominando aqui de cultura digital ou cibercultura são as formas de usos e apropriações dos espaços virtuais feitos pelos sujeitos culturais. Para Lévy (1999, p. 17), a cibercultura "[...] é o conjunto de técnicas (materiais e intelectuais), de práticas, de atitudes, de modos de pensamento e de valores que se desenvolvem juntamente com o crescimento do ciberespaço." Nesse sentido, Lemos (2009, p. 139) ressalta que a cibercultura não surge apenas por conta do desenvolvimento das tecnologias, mas "[...] por uma confluência entre uma sociabilidade que emergia na década de 1960 e uma posição contrária a alguns discursos hegemônicos da era moderna, a razão, a ciência, a técnica." Este movimento criou uma cultura alternativa, underground, que questionava os valores vigentes das elites e buscava a liberdade de expressão.

A microinformática nasceu inspirada nessa outra forma de pensar e de conceber o mundo. "Com a microinformática é tirar o poder da informação da mão de uma elite, na época militar e industrial, e transformar isso paulatinamente". (Lemos, 2009, p. 139). Vale lembrar que a informática teve seu início na década de 1940, quando os primeiros computadores foram produzidos para usos militares. O desenvolvimento da microinformática ocorreu de forma diferente por jovens hackers que desejavam que cada pessoa passasse, com o computador pessoal ou Personal Computer (PC), a ter seu próprio meio de produção da informação.

Esta forma de produção foi ampliada com a internet, na década de 1990, possibilitando que as produções começassem a ser distribuídas em rede. Entretanto, até o início dos anos 2000, a internet ainda funcionava na mesma perspectiva das mídias de massa, pois as grandes agências de notícias disseminavam, em seus portais, as informações "organizadas" para que os receptores pudessem acessá-las. A crítica feita àquela época por Pretto (2000) e Lemos (2002) "[...] concentrava-se no fato de que aqueles primeiros equipamentos continham, basicamente, a funcionalidade de recebimento de informações, constituindo-se, junto com a própria internet, em verdadeiros 'portais-currais'". (Pretto, 2010, não paginado). A mudança na internet só aconteceu a partir do momento que a

[...] juventude apropriou-se das tecnologias e as transformou completamente, de um meio meramente receptor de informações para um meio de expressão de ideias e de manifestação da pluralidade e de cidadania. (Pretto, 2010, não paginado).

Dessa forma, passamos a ter o computador conectado (CC), possibilitando outra forma de comunicação e de produção descentralizada, coletiva e colaborativa. Isso muda tudo, principalmente com a criação dos softwares sociais, como:blogs, Orkut, Twitter, Flick, Myspace, Facebook, Instagramentre outros, que têm como principal objetivo interligar pessoas de diferentes lugares do planeta, com os mais diversos fins.

Esta fase da internet mais colaborativa é conhecida como Web 2.0. O desenvolvimento da Web 2.0 inicia-se a partir de 2004, quando a empresa americana O'Reilly Media passou a empregar este termo para se referir a uma segunda geração desoftware e aplicativos da internet, possibilitando maior interação entre seus usuários. A Web 2.0 é marcada não apenas pelos novos programas e interfaces disponíveis na internet, mas principalmente por uma nova forma de pensar e de interagir entre os praticantes culturais, que estão cada vez mais voltados para produzir e publicar do que apenas para consumir informações.

Atualmente, além da cultura digital e da cibercultura, vivenciamos a cultura da mobilidade, que se desenvolveu com o constante uso das tecnologias móveis conectadas em redes do tipo Wi-fi, WiMax e peer-to-peer. Tecnologias tais como: tablets, smartphones, netbooks e demais dispositivos cabem na palma da mão e podem ser carregados para qualquer lugar, criando redes móveis de pessoas e tecnologias nômades localizadas em diferentes espaços geográficos do planeta. Esta mistura de espaços físicos e ciberespaço cria o que Santaella (2007, 2010) chamou de "espaços intersticiais" potencializados pelo uso dos dispositivos móveis conectados em redes. Neste sentido, a autora chama a atenção para o fato de que com as mídias móveis temos uma convergência de lugar, espaço e mobilidade, não podendo mais pensá-los separadamente. Ao utilizar o telefone celular uma pessoa passa a ter

[...] o dom da ubiquidade, podendo estar em dois lugares ao mesmo tempo, e ambos vão para um segundo plano para favorecer um terceiro lugar, o espaço comunicacional que, nesse caso, coloca as pessoas em uma situação de presença ausente significando que elas estão presentes e, ao mesmo tempo, não estão. (Santaella, 2010, p. 102).

O uso de tecnologias móveis, principalmente do telefone celular, tem aumentado consideravelmente no mundo. No Brasil, segundo dados da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel)2, em 2015, o número de acesso ao Serviço Móvel Pessoal (SMP) chegou a 273,1 milhões. Dados de outra pesquisa anteriormente mencionada, realizada pelo Cetic.br3, apontou que, em 2014, 84% dos brasileiros possuíam aparelho celular, e que metade deste percentual, 47%, acessavam ainternet utilizando este tipo de dispositivo móvel. Nas classes D e E, uso de celular é de 64%, mas apenas 18% acessavam ainternet. No que se refere às atividades desenvolvidas com este dispositivo, a pesquisa revelou que 47% dos usuários de telefone celular acessam redes sociais; 44% compartilham fotos, vídeos ou textos; 35% acessame-mails; e 39% baixam aplicativos. O público que mais utiliza esta tecnologia são os mais jovens (93%), com faixa etária entre 16 e 24 anos.

O crescimento acelerado do uso dos aparelhos celulares fez com que o desenvolvimento de aplicativos para essa mídia também aumentasse bastante nos últimos tempos, possibilitando que, cada vez mais, as pessoas possam interagir utilizando diferentes linguagens: escrita, oral e hipermídia. Esta outra forma de se expressar, de comunicar e de produzir que mistura e remixa diferentes linguagens é a maneira utilizada pela atual geração de pessoas nascidas na era das tecnologias digitais.

Serres (2013) denomina esses jovens de polegarzinha e polegarzinho, pelo fato de usarem os dedos polegares para digitarem mensagens no celular. Mas este não é o único diferencial apontado pelo autor para falar dessa geração. Para ele, essa juventude cria novos hábitos, pois,

[...] por celular, tem acesso a todas as pessoas; por GPS, a todos os lugares; pela internet, a todo o saber: circulam, então, por um espaço topológico de aproximações, enquanto nós vivemos em um espaço métrico, referido por distâncias.

Não habitam mais o mesmo espaço. (Serres, 2013, p. 19).

As reflexões de Serres nos fazem pensar que: se a geração atual, a qual está imersa nas tecnologias digitais e hiperconectada, tem hoje acesso a toda informação, comunica-se e produz conteúdos, o que, então, a escola pode oferecer a esses jovens? O que ensinar? Como ensinar?

Não pretendemos aqui responder a essas questões com modelos, exemplos ou fórmulas, até porque eles não existem. Nossa intenção, ao levantar essas questões, é pensar possibilidades para a educação com as culturas digitais e com a mobilidade, bem como sinalizar para a necessidade de ampliar o desenvolvimento de pesquisas nessa área.

Culturas digitais na educação: as cenas e os atores

A inserção das TIC no cenário educacional e na formação do professor ocorreu inicialmente por meio de projetos governamentais, principalmente a partir da década de 1990, quando os seguintes programas foram implantados: TV Escola, Salto para o Futuro e Programa Nacional de Tecnologia Educacional (ProInfo). No século XXI, surgiram outros projetos: Programa Um Computador por Aluno (PROUCA) e Tablet Educacional. O que fica evidente nestes programas é que a inserção das tecnologias na escola ocorreu muito mais por uma pressão do mercado de informática para a compra de equipamentos para as escolas do que por uma real necessidade da comunidade escolar. Percebe-se que são incompatíveis os custos empregados na aquisição de equipamentos com o discurso apresentado pelas propagandas sobre essas políticas e os resultados alcançados na educação.

Um dos principais problemas apresentados como fator da não utilização das TIC na escola é a formação de professores. Isso porque, em geral, os programas governamentais resumem a formação continuada de professores em pequenos cursos ou oficinas com carga horária de 40 a 80 horas, insuficientes para a reflexão crítica sobre o uso das TIC. O que se percebe é que as políticas públicas educacionais de formação para o uso das TIC, na maioria das vezes, são pautadas em uma perspectiva de incluir o professor em um modelo instrumental, preparando-o apenas para utilizar aplicativos operacionais sem considerar a sua autoria na produção dos materiais pedagógicos.

Nos cursos de formação inicial de professores, também se percebe que, em geral, as tecnologias não estão inseridas no currículo. De acordo com a pesquisa desenvolvida por Souza (2013), em algumas Instituições de Ensino Superior (IES), há na "grade curricular" dos cursos de licenciatura apenas uma disciplina relacionada ao uso das TIC na educação. No entanto, muitas vezes a disciplina não possui carga horária obrigatória, tratando-se de disciplina optativa ou complementar.

Nos cursos de licenciatura, durante o período de estágio supervisionado, os alunos não são encorajados a criar atividades que utilizem as TIC na sala de aula, mesmo quando o local do estágio possui essas tecnologias. Sendo assim, os professores acabam concluindo a formação inicial sem interagir com as TIC no processo pedagógico.

O que se observa com essa prática é que, historicamente, a construção do conhecimento no ambiente escolar sempre foi realizada por meio da assimilação de conteúdos e informações que, muitas vezes, são transmitidas pelos professores aos alunos de maneira descontextualizada do seu cotidiano e da sua cultura. Esta forma de ensinar já foi criticada por Paulo Freire, que a denominou de "educação bancária", devido ao fato de essa educação fazer do aluno apenas um repositório de conteúdos. Nesta perspectiva, os sujeitos aprendentes não são autônomos e nem incentivados a perceberem a realidade que os cercam, de maneira crítica.

O modelo de currículo utilizado na educação bancária fragmenta o conhecimento em áreas e disciplinas que são colocadas separadas e independentes, sem que haja um elo que possa fazer a sua interconexão. Essa estrutura curricular baseia-se na concepção cartesiana e positivista do conhecimento, a qual preconiza que para se conhecer o todo é preciso dividi-lo em partes. Ou seja, para se adquirir o conhecimento, com vistas à formação do sujeito, é preciso fragmentar esse conhecimento em quantas partes forem necessárias, a fim de se alcançar a formação integral. Segundo Pretto e Serpa (2001), essa forma de educação preocupa-se apenas em fazer com que os alunos tenham acesso à cultura e à ciência, no sentido de nivelar a qualidade da aprendizagem desses conceitos para que, ao final do processo, todos possam alcançar o mesmo conhecimento. Neste sentido, a escola continua sendo um espaço cujo desígnio acaba sendo transformar o diferente em igual; a heterogeneidade em homogeneidade; por meio da separação e hierarquização do conhecimento.

O trabalho com as TIC na educação potencializa a produção de saberes construídos de forma coletiva e colaborativa, utilizando as redes sociodigitais. Essas redes são formadas por sujeitos que se comunicam, interagem, relacionam-se e desenvolvem produções colaborativas nos ambientes virtuais; ou seja, que estão imersos na cultura digital e na cultura da mobilidade. Construir redes sociodigitais (Lucena, 2012) na educação não é um trabalho fácil, pois não basta disponibilizar as TIC na escola para que as coisas aconteçam. As redes sociodigitais interligam pessoas e tecnologias; por isso a presença das TIC conectadas à internet, nas escolas, é apenas um primeiro passo para que essas redes possam ser constituídas na educação.

Em muitas escolas, quando o professor seleciona um livro, um filme ou disponibiliza um conteúdo para o aluno na internet, a lógica das mídias de massa também está sendo seguida, pois é sempre o professor quem escolhe, seleciona e julga o material que quase sempre não foi por ele produzido. O trabalho com as TIC na escola exige um repensar da educação massiva, pois essas tecnologias operam em redes que são móveis, interativas, descentralizadas, sem hierarquia e em constante transformação.

Pesquisadores do Grupo de Pesquisa Educação e Culturas Digitais4 (ECult/CNPq/UFS) analisam práticas pedagógicas desenvolvidas pelos bolsistas do Programa Institucional de Iniciação à Docência (Pibid/UFS), em escolas públicas da cidade de Itabaiana, no estado de Sergipe. Os resultados das investigações têm apontado para o fato de que, apesar da não utilização da internet no ambiente escolar, os alunos estão realizando produções com diferentes linguagens e difundindo suas ideias, descobertas e conteúdos nas redes sociodigitais como Instagram, Facebook ou por meio do aplicativo WhatsApp, por exemplo, no aparelho celular.

As pesquisas também demonstraram que os professores, fora da escola, também estão nas redes, também produzem conteúdos, mas que essa forma de produzir e compartilhar não está presente na escola. As instituições escolares que receberam ostablets no município de Itabaiana-SE, quando os utilizam em atividades pedagógicas, o fazem com a função de bloco de notas, de caderno digital para reproduzir informações. Dessa forma, todo o potencial inovador, interativo e colaborativo que as TIC possibilitam não é considerado, pois elas acabam sendo utilizadas de forma reducionista e reprodutivista.

Pensar novas possibilidades de produção de conhecimento com as mídias na educação é uma das pesquisas que o Grupo ECult tem desenvolvido atualmente, no Pibid, e que conta com o apoio da Capes, CNPq e Fundação de Apoio à Pesquisa e à Inovação Tecnológica do Estado de Sergipe (FAPITEC). Nesta pesquisa, estão envolvidos alunos da Pós-Graduação da Universidade Federal de Sergipe (UFS), dos cursos de mestrado e doutorado, alunos de iniciação científica e alunos de iniciação à docência do Pibid, além das professoras da Educação Básica que atuam no projeto como supervisoras do Pibid e dos pesquisadores do Grupo.

É importante ressaltar a relevância do desenvolvimento de pesquisas na Pós-Graduação, que visem pensar, discutir, propor, analisar temas relacionados às TIC e às culturas digitais na educação. Ainda são poucos os Programas de Pós-Graduação em Educação, principalmente nas regiões Norte e Nordeste do Brasil, que possuem linhas e/ou grupos de pesquisa voltados para a área de educação e tecnologia.

Sabemos que é uma área de investigação recente, se comparada a outras áreas de pesquisas que foram criadas desde o início da Pós-Graduação no Brasil. Entretanto, as tecnologias já fazem parte do cotidiano de muitas pessoas, principalmente dos jovens que estão nas escolas e nas universidades. Ao interagirem com essas tecnologias, eles estão estruturando o pensamento dentro de outra lógica que difere da maneira clássica com que a escola ensina. Precisamos, assim, repensar a educação, a escola e a formação de professores, a partir do desenvolvimento de pesquisas que tratem desses temas.

Cenários futuros

Trabalhar com as culturas digitais e com as tecnologias móveis na escola não é apenas usar uma nova metodologia de aprendizagem para transmitir conteúdos enfadonhos, mas é pensar nesse novo sujeito, praticante cultural que pensa, produz saberes e compartilha opiniões, conteúdos e informações nas redes.

Nesse sentido, ressaltamos que é importante pensar no uso das TIC na educação, não como ferramentas e/ou recursos didáticos, mas como elementos estruturantes (Pretto, 1996) de novas formas de ser, pensar, relacionar-se e agir, contribuindo, de forma crítica, para a formação de cidadãos, não de consumidores (Canclini, 1999) de produtos globalizados. Para que esta perspectiva de uso das TIC possa ser implementada na escola, é necessário que os professores, desde a sua formação inicial, sejam encorajados, desafiados a pensar, a pesquisar e a criar formas de utilizar as TIC nas práticas pedagógicas.

As atividades de estágio supervisionado dos cursos de licenciatura poderão se constituir em uma das possibilidades de formar professores para a utilização das TIC. Isso, como autores de práticas que façam uso das estruturas não lineares das redes sociodigitais. Dessa forma, a prática do estágio supervisionado poderá ser um espaço em que os licenciandos terão a oportunidade de construir e de testar processos de aprendizagem, utilizando as potencialidades das redes interativas para a realização de produções colaborativas e compartilhadas.

Tais práticas apontam para novas formas de interação com o conhecimento, oferecendo outras possibilidades de produção de saberes que ultrapassam a perspectiva da sala de aula convencional. Neste sentido, o professor deverá desenvolver uma grande capacidade de adaptação e de criatividade diante das novas interfaces hipertextuais e interativas disponibilizadas pela cibercultura e pelas tecnologias móveis.

Construir novas práticas com as TIC, repensar a formação inicial de professores e o estágio supervisionado nos cursos de licenciatura de forma a inserir as culturas digitais, leva-nos à necessidade de ampliarmos cada vez mais a pesquisa, a reflexão e o debate sobre estes temas, tanto nas Políticas Educacionais como nos Programas de Pós-Graduação em Educação no Brasil.

Referências

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  • 1
    Este artigo contém algumas análises do relatório do projeto de pesquisa (2013-2015) "As tecnologias da informação e a comunicação na formação inicial de professores: possibilidades de construção de novas práticas pedagógicas para o Ensino Fundamental", que teve apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), por meio do Programa Institucional de Iniciação à Docência (Pibid).
  • 2
    Relatório Anual da Anatel - 2015. Disponível em: <http://www.anatel.gov.br/dados/index.php/component/content/article?id=283>. Acesso em: jan. 2016.
  • 3
    A pesquisa TIC Domicílios 2014 está disponível em: <http://data.cetic.br/cetic/explore>. Acesso em: jan. 2016.
  • 4
    Blog do ECult: <http://grupoecult.blogspot.com.br/>.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2016

Histórico

  • Recebido
    27 Out 2015
  • Aceito
    13 Jan 2016
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