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Um corpo estranho: ensaios sobre sexualidade e a teoria Queer

RESENHAS

Um corpo estranho: ensaios sobre sexualidade e a teoria Queer

Arilda Ines Miranda Ribeiro

Doutora e Livre-Docente em Educação pela Universidade Estadual de Campinas/Universidade Estadual Paulista (UNICAMP/UNESP); Professora Titular da Pós-Graduação e do Departamento de Educação da Faculdade de Ciência e Tecnologia da Universidade Paulista (FCT/UNESP) de Presidente Prudente. Coordenadora do NUDISE - Núcleo de Diversidade, Brasil. E-mail: arilda@fct.unesp.br

LOURO, Guacira Lopes. Um corpo estranho: ensaios sobre sexualidade e a teoria Queer. Belo Horizonte: Autêntica, 2008

No Brasil, de acordo com alguns autores das ciências sociais, pelo menos até 2004, não se institucionalizou uma área de estudos gays e lésbicos e mais do que isso, nem uma linha de teoria e pesquisa que poderíamos denominar de queer, na forma que tem acontecido nos EUA e na Europa.

Raríssimas exceções estão contidas no campo dos estudos literários e na educação. Indiscutivelmente os trabalhos de Guacira Lopes Louro na problematização de uma pedagogia queer contribuem para desestabilizar os grupos acadêmicos conservadores ao evidenciar as chamadas minorias sexuais, que hoje, felizmente, são muito mais visíveis do que antes.

Licenciada em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Mestre em Educação pela mesma Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas, é atualmente professora titular aposentada da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Colaboradora convidada desta mesma universidade atua no Programa de Pós Graduação em Educação, na Linha de Pesquisa Educação, Sexualidade e Relações de Gênero. Foi fundadora do GEERGE (Grupo de Estudos de Educação e Relações de Gênero) e participa deste grupo de pesquisa desde 1990. Suas atividades de pesquisa e de orientação de dissertações e teses se voltam para o campo da Educação, com ênfase nas questões de gênero, sexualidade, e teoria queer.

A obra é irreverente e incita a transgressão do discurso complexo da Academia. Disposta em um livrinho anatômico, costurado em folhas amareladas e escrito em letras garrafais, de cara dá ao leitor a sensação de que encontrará liberdade, prazer e pertubação na leitura de novas descobertas.

Composto por quatro textos (Viajantes pós-modernos, uma política pós-identitária para a educação, "Estranhar" o currículo e Marcas do corpo, marcas do poder) oriundos de palestras, mesas-redondas e como afirma Louro, "lidos por um punhado de amigos e amigas, colegas e estudantes" têm em comum o dom teórico da provocação, do embaraço, da desestabilização das certezas, acrescentado de pitadas de traços literários.

Mas o que é ser queer? Do que tratam os estudos queer?

A autora nos pega pela mão, para enveredar pelas inúmeras traduções que a palavra inglesa queer pode sugerir na língua portuguesa. Não há tradução para essa palavra. Há sim, entendimentos sobre seu sentido. Queer durante muitos anos funcionou como insulto, xingamento para sujeitos não heterossexuais: gays, lésbicas, transgêneros, travestis, entre outros. O interessante nessa história é que foram esses mesmos sujeitos que assumiram a palavra queer para identificá-los como bizarros, estranhos, esquisitos, mas fundamentalmente para representar "a diferença que não quer ser assimilada ou tolerada". Ou seja, pertubar, transgredir, desestabilizar é o mote dos sujeitos que se sentem queer.

Guacira mergulha fundo no seu diálogo com teóricos norte-americanos da corrente dos Estudos Culturais com o pós-estruturalismo francês, onde é possível afirmar que o sujeito é sempre visto como provisório, circunstancial e cindido.

A base para os estudos sobre a teoria queer está contida nas obras clássicas de Michel Foucault, Jacques Derrida, Deleuze, Judith Butler, nos livros dos brasileiros Tomaz Tadeu da Silva e João Silvério Trevisan, entre outros de importância equivalente, citados ao transcorrer dos artigos de Guacira.

Por exemplo, no primeiro texto "Viajantes pós-modernos" a autora resgata o filme de Cacá Diegues, Deus é brasileiro para afirmar que nossa vida, desde o nascimento até a morte, é uma viagem. Imagem sempre evocada na Literatura e na Educação. Não há lugar de chegar, não há destino pré-fixado. Nesse sentido, o que importa é o trajeto, o movimento, as mudanças, os atalhos que traçamos. Remete a James Clifford para pensar as culturas como lugares de passagem.

Ao evocar a frase de Butler: "É um menino! É uma menina" argumenta em seu ensaio que o ato da nomeação supõe o sexo como um "dado" anterior à cultura e lhe atribue um caráter imutável, a-histórico e binário. Diante disso, afirma que não se pode fugir da ordem prevista pela sociedade: querendo ou não, os sujeitos ficam acorrentados a essa nomeação.

Não se sabe porque alguns sujeitos desobedecerão a essa normatividade social, rompendo regras. Deliciosamente transgredirão o que estava pré-determinado. Tal como umas viagens imprevisíveis, sairão da rota, subverterão atrevidamente o que lhes estava determinado realizar, cruzarão as fronteiras. Esses sujeitos queer serão os alvos preferidos das pedagogias corretivas que tentarão recuperá-los ou se for o caso, puní-los, baní-los. Um trabalho pedagógico contínuo e repetitivo será acionado para que marquem nos corpos, sobretudo os mais frágeis, para inscrever "o gênero e a sexualidade "legítimos"!!

Como nômades, entretanto, os queer viverão perigosamente suas identidades transitórias, escancarando a construtividade dos gêneros. Como exemplo, Louro cita a drag queen, em sua imitação do feminino.

O segundo texto, "Uma política pós-identitária para a Educação" trás uma contribuição importante para aqueles que se interessam pelo percurso histórico e teórico da homossexualidade, sua criação discursivamente produzida e transformada em questão social relevante, basicamente no seu sentido moral. Em pinceladas históricas, a autora gaúcha cita os discursos de organização dos grupos homossexuais da década de 1970, o Movimento de Libertação Homossexual no Brasil no ano de 1975, a inserção da temática como questão acadêmica em idos de 1980, atropelada pelo aparecimento da Aids e da concentração nos discursos da prática do "sexo seguro".

Quando a política da identidade homossexual estava em crise, na década de 1990, surgiam proposições teóricas pós-identitárias e a teoria queer. Parafraseando Louro, "queer pode ser vinculada às vertentes do pensamento ocidental contemporâneo que, ao longo do século XX, problematizou noções clássicas de sujeito, identidade, de agência, identificação". Evoca Foucault e Butler como alavancadores de um novo foco nas estratégias de análise, advindas de outra perspectiva epistemológica, voltada para estruturas lingüísticas ou discursivas e seus contextos institucionais. Uma pedagogia queer, nesse sentido, se distinguiria de programas multiculturais bem-intencionados, tolerantes com as diferenças de gênero, sexuais e étnicas. A educação precisaria questionar a polarização hetero/homo, além do avanço no combate a homofobia.

"Estranhar o currículo" é um artigo que remete a trajetória acadêmica da autora, quase uma autobiografia, onde divide com o leitor a necessidade do espaço escolar ser local de reflexão sobre as diversas formas de viver a sexualidade, formas de ser, formas de experimentação do prazer e do desejo. Também lhe interessa compreender como ocorre a oposição binária heterossexualidade e homossexualidade nas instâncias pedagógicas. Estranhar seria como desconfiar do currículo que está posto, olhar de mau jeito o que está dado.

Finalmente no artigo "Marcas do corpo, marcas do poder" louro evoca Butler, Laqueur, Vencato, Nicholson para nos lembrar que os corpos vem sendo "lidos" de formas distintas em diferentes culturas. O modo como o binarismo masculino/feminino vem sendo entendido diverge e se modifica histórica e culturalmente (p.76) Resgata historicamente que até o início do século XIX, persistira o modelo sexual que hierarquizava os sujeitos ao longo de um único eixo (o masculino). Nas décadas finais do século XIX, médicos, filósofos, moralistas e pensadores fazem suas "descobertas" e a partir dos seus preceitos "autorizam" e "estabelecem" práticas sexuais. Produzem discursos, classificam, disciplinam, através de suas autoridades, os corpos. Nesse sentido, se transformam em marcas de poder, em relação de poder. Exemplifica a drag como aquele corpo que transgride e subverte o feminino, salientando os códigos culturais que marcam esse gênero. Ao brincar com esses códigos, através de sua forma estranha (queer) e bizarra, ajuda-nos a lembrar que nossas marcas no corpo foram inventadas e culturalmente sancionadas em nossa sociedade.

Ler Um corpo estranho sem sombra de dúvida incomoda nossos parâmetros, atiça a dúvida, as práticas sociais cotidianas, o conhecimento e as relações entre os sujeitos. Guacira Louro, para essa resenhista, foi muito queer ao escrever seus quatro artigos: estranhos, bizarros, excêntricos, libertos das amarras acadêmicas.

Texto recebido em novembro de 2009.

Texto aprovado em junho de 2010.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Jun 2011
  • Data do Fascículo
    Abr 2011
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