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Integrar cultura e humanismo: desafio pedagógico da Filosofia no Ensino Superior

Integrating culture and humanism: the challenge of teaching Philosophy in High Education

Resumos

O ensaio visa debater a relevância e a necessidade da Filosofia nos currículos de todos os cursos universitários, mostrando que a presença desse componente formativo é imprescindível como mediação pedagógica no Ensino Superior, tendo em vista a finalidade intrínseca da formação universitária. Parte da premissa de que essa formação, além de garantir aos profissionais preparo científico e técnico, deve lhes assegurar maturidade e sensibilidade intelectuais que gerem referências conceituais e valorativas para a intencionalização de suas práticas no mundo do trabalho, no universo social e na esfera cultural. Defende então que a Filosofia pode exercer esse papel formativo ao explicitar e discutir os problemas do conhecimento, da ação e da existência e, assim, contribuir significativamente para tornar mais consistente a qualificação dos profissionais.

Filosofia na universidade; formação cultural; formação universitária; profissionalidade; humanismo


This essay aims to discuss the relevance and need for Philosophy in the curriculum of all university courses, showing that the presence of this component is essential as formative mediation in University Education, in view of its intrinsic purpose. It assumes that such formation, in addition to ensure scientific and technical preparation to the professional, it must assure them intellectual maturity and sensitivity that generate conceptual and evaluative references to orientate their practices in the workplace, in the social universe and in the cultural sphere. It then argues that Philosophy can play this formative role explaining and discussing the problems of knowledge, action and existence and thus contributing significantly to make professional qualification more consistent.

Philosophy at universities; cultural formation; university formation; professionalism; humanism


DOSSIÊ FILOSOFIA E ENSINO

Integrar cultura e humanismo: desafio pedagógico da Filosofia no Ensino Superior

Integrating culture and humanism: the challenge of teaching Philosophy in High Education

Antônio Joaquim Severino

Doutor em Filosofia pela Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Professor titular, aposentado, de Filosofia da Educação na Faculdade de Educação da Universidade Estadual de São Paulo (Feusp), ora atuando como docente colaborador. Atualmente é docente do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Nove de Julho (Uninove). E-mail: ajsev@uol.com.br

RESUMO

O ensaio visa debater a relevância e a necessidade da Filosofia nos currículos de todos os cursos universitários, mostrando que a presença desse componente formativo é imprescindível como mediação pedagógica no Ensino Superior, tendo em vista a finalidade intrínseca da formação universitária. Parte da premissa de que essa formação, além de garantir aos profissionais preparo científico e técnico, deve lhes assegurar maturidade e sensibilidade intelectuais que gerem referências conceituais e valorativas para a intencionalização de suas práticas no mundo do trabalho, no universo social e na esfera cultural. Defende então que a Filosofia pode exercer esse papel formativo ao explicitar e discutir os problemas do conhecimento, da ação e da existência e, assim, contribuir significativamente para tornar mais consistente a qualificação dos profissionais.

Palavras-chave: Filosofia na universidade; formação cultural; formação universitária; profissionalidade; humanismo.

ABSTRACT

This essay aims to discuss the relevance and need for Philosophy in the curriculum of all university courses, showing that the presence of this component is essential as formative mediation in University Education, in view of its intrinsic purpose. It assumes that such formation, in addition to ensure scientific and technical preparation to the professional, it must assure them intellectual maturity and sensitivity that generate conceptual and evaluative references to orientate their practices in the workplace, in the social universe and in the cultural sphere. It then argues that Philosophy can play this formative role explaining and discussing the problems of knowledge, action and existence and thus contributing significantly to make professional qualification more consistent.

Keywords: Philosophy at universities; cultural formation; university formation; professionalism; humanism.

Introdução

Tendo como objetivo demonstrar a imprescindibilidade da presença de componentes filosóficos como mediações curriculares para a formação profissional no Ensino Superior, desenvolvo um raciocínio que parte então da constatação de que a atual universidade brasileira vem exercendo uma prática marcada por um exacerbado pragmatismo (formar mão de obra técnica para o mercado de trabalho), concebendo sua função pedagógica como mero treinamento para o desempenho de tarefas tecno-operacionais, dentro de uma visão muito estreita da profissionalidade, descuidando de uma formação humanística necessária para todo profissional. Posicionando-me contra essa visão, insisto em que a formação profissional a se esperar do Ensino Superior vai muito além dessa habilitação técnica e sustento a ideia de que toda profissão, da astronomia à arte, é sempre uma mediação para cuidarmos de nossa existência, buscando torná-la cada vez mais adequada, assegurando às pessoas mais qualidade de vida. Procuro mostrar que a contribuição da Filosofia é fundamental para se garantir uma formação integral aos futuros profissionais, ressaltando a incumbência humanista da educação superior. Para além do preparo epistêmico e técnico, a formação universitária, tendo em vista garantir a formação integral do homem, precisa assegurar o desenvolvimento das sensibilidades política, ética e estética das pessoas. Entendo que cabe atribuir então à Filosofia um papel pedagógico imprescindível, papel que lhe cabe desempenhar, mediante três percursos investigativos e reflexivos: explicitar as condições de existência dos homens, em sua condição ambígua de ser encarnado e transcendente; explicitar os valores que norteiem a ação histórica dos homens, valores esses vinculados ao valor máximo que é a dignidade das pessoas; e elucidar criticamente a ferramenta que usamos, que é o conhecimento, inclusive desmascarando as ideologias. Daí a universidade não poder descartar o desenvolvimento da racionalidade filosófica dos estudantes, condição indispensável para a formação integral dos mesmos.

A nossa é uma universidade pragmática

Que a universidade brasileira se caracteriza por adotar um modelo de ensino em que predominam uma concepção e uma prática profissionalizantes é uma constatação amplamente conhecida. Sua origem e seu desenvolvimento histórico se deram sob essa destinação, decorrente que é do assim chamado modelo napoleônico. Surgiu a partir das pragmáticas faculdades de Direito, de Medicina e de Engenharia, com a instalação do Império, nos inícios de 1800, faculdades criadas para preparar profissionais aptos a atender as demandas bem concretas de preparação de quadros para o funcionalismo do Império, de preparação de médicos para o enfrentamento das doenças tropicais e de engenheiros para a superação dos obstáculos da natureza hostil (CUNHA, 1996; 1998; COELHO, 2006; DIAS SOBRINHO, 2002; GOERGEN, 2010; PEREIRA, 2007; 2010). Como bem o sintetiza Goergen, essa visão é plenamente internalizada não só pelos gestores do sistema, mas também pelos próprios jovens que demandam a Universidade, pois aí se encontra a única alternativa que consideram pertinente e promissora:

A principal expectativa daqueles que entram na universidade é a formação profissional. Os jovens desejam adquirir na universidade conhecimentos e habilidades para conseguirem uma boa colocação no mercado de trabalho. Tal expectativa é plenamente justificável num contexto social em que a carência de postos de trabalho estimula a competitividade que só pode ser enfrentada na perspectiva de sucesso por pessoas com preparo intelectual adequado. O conhecimento técnico, focado na especialização escolhida, é tido como a chave do futuro sucesso profissional (2010, p. 18).

Ainda segundo esse autor, cria-se uma relação de dependência entre o sistema e o indivíduo, que é submetido a essa lei do mercado

que se impõe aos jovens e é por eles incorporada, ora de forma latente e silenciosa, ora de maneira consciente, desde os primeiros anos de suas vidas no ambiente familiar, nos círculos de parentes e amigos, na escola. Muito cedo as pessoas habituam-se a imaginar sua realização enquanto seres humanos em função dos interesses e das necessidades do sistema. Esta ideia passou a fazer parte do imaginário social e subjetivo como algo natural (GOERGEN, 2010, p. 19).

Essa concepção tecnicista do Ensino Superior, que ao longo do tempo foi se tornando igualmente tecnocrática, tende a reduzir a educação universitária ao espaço/tempo de mera habilitação profissionalizante, destinada a preparar mão de obra técnica para o processo produtivo responsável pela condução do mercado de trabalho. Sem dúvida, soam indiscutíveis a necessidade e a relevância não só da profissionalização, como também da inserção de todos os indivíduos no mundo do trabalho. A profissionalização, no nível universitário, se justifica pela intervenção do conhecimento, representado pela modalidade científica, na produção das transformações de natureza técnica que a condução da existência histórica da sociedade humana demanda.

Mas esta não pode ser a única destinação da formação universitária. Se em todos os seus níveis a educação é processo imprescindível para a redistribuição dos bens culturais, no Ensino Superior essa finalidade se amplia, se aprofunda e se qualifica pela reelaboração crítica que lhe cabe fazer. Como relembra ainda Goergen, com toda pertinência,

a questão não diz respeito à formação profissional em si, que é boa e necessária, mas ao peso exclusivo que essa preparação assume no processo formativo dos estudantes. Na verdade, o que os estudantes, pelo menos na sua grande maioria, buscam na universidade, é sua formação profissional e nada mais. Nessa lógica, tudo o que ultrapassa os limites da profissão ou não está diretamente a ela relacionado, é considerado supérfluo e desnecessário (2010, p. 19).

Na mesma linha de pensamento vão a análise e a crítica de Ildeu Coelho, ao afirmar que:

Compreendida e realizada, nos últimos 40 anos, como espaço de profissionalização dos alunos, de preparação para o mercado de trabalho, o mundo da produção, dos serviços e do consumo, a universidade tem se preocupado, sobretudo, em formar funcionários para o Estado, peritos em saber-fazer, profissionais, técnicos e especialistas nas várias áreas da atividade humana, incluindo a filosofia, as letras, as artes e a educação. E, então, ela se nega como instituição acadêmica e se transforma em organização que transmite saberes instituídos, em supermercado do conhecimento, que oferece aos alunos saberes reduzidos a informações e banalizados, estereótipos, preconceitos, repetição do já dito e do já feito, produtos, disciplinas, conteúdos curriculares, como se fossem certezas de uma nova religião, verdades prontas e acabadas, resultados alcançados, pontos de chegada, enfim, imposição de esquemas de poder, de formas de ação e de reação (2006, p. 43, grifos do autor).

Para Coelho, privilegiar a profissionalização dos alunos no Ensino Superior, além da submissão que isso representa a determinações da lógica do capitalismo internacional, é "ainda limitar, banalizar e empobrecer a educação, a escola, a universidade e a formação dos estudantes, circunscrevendo-as ao mundo da prática, da operação, do funcionamento ágil, eficiente e seguro". (2006, p. 43).

Das profissões como cuidado com a vida

Ainda que pareça óbvio, o sentido fundamental da profissão como trabalho aplicado não é claramente percebido e internalizado pelos profissionais e pela própria sociedade. Não se percebe que as atividades exercidas no seio da sociedade estão profundamente vinculadas com a vida concreta das pessoas. Disso decorre que a finalidade de toda formação encontra-se na vida social, na condução da existência concreta dos homens. A formação universitária está intimamente vinculada a essa destinação, mesmo naquelas áreas em que isso não transparece claramente. Por mais que o cientista apareça como um indivíduo isolado do mundo, que vive fechado num laboratório ou que então vive fechado num universo teórico, mergulhado em abstrações, essa não é sua real condição. Ao contrário, tudo que se relaciona com a formação universitária tem a ver, e muito radicalmente, com o existir histórico das pessoas.

Nossa vida precisa de cuidados permanentes. A esse respeito, retomo aqui passagem de escrito anterior sobre a condição vital do nosso existir:

Nossa existência é permanentemente dependente de um frágil equilíbrio de nossas relações com a natureza material, com os nossos parceiros nesse destino e com os elementos culturais que sustentam nossa experiência subjetiva. Vale dizer que a vida humana se desdobra num tríplice processo: sobrevivência, convivência e consciência. Está em pauta assegurar, da melhor maneira possível, o máximo de equilíbrio e harmonia em nossas relações com a natureza, com a sociedade e com a cultura. Mas nada disso é fácil. Trata-se de uma condição extremamente contraditória, pois as forças que nos tornam mais humanizados são as mesmas que podem nos desumanizar, nos degradando, nos oprimindo e nos alienando. Tal condição de ambiguidade pode se expressar pelo fato de estarmos dilacerados entre o ser e o não-ser, entre o prazer e a dor. A vida, em sua plenitude de ser, é marcada pela experiência do prazer, do bem-estar, da felicidade, formas de expressarmos a experiência pela qual sentimos subjetivamente a vida; já quando ela é vivida sob o efeito de alguma carência ou agressão, ela se marca pela experiência da dor, do sofrimento, do mal-estar, da infelicidade e, no limite, pela morte. Eis o que significam a guerra, a violência e tantas outras formas concretas de perdas. (SEVERINO, 2011).

Dessas considerações relacionadas à condição do existir humano, pode-se constatar que todas as profissões e todos os conhecimentos, técnicas e valores nelas implicados têm a ver com o cuidado com a vida humana. Não sem razão se afirma hoje que o conhecimento é estratégia da vida e que nasce embutido na ação (SEVERINO, 1994. p. 19). Elas implicam também que a formação dos profissionais leve em conta essa destinação da prática profissional no seio da sociedade.

Assim, o conhecimento integral da condição existencial e histórica do homem é uma necessidade para a formação do profissional. E esse conhecimento é obra da análise científica e da síntese filosófica, as duas modalidades do saber a serem sistematicamente cultivadas no processo formativo na Universidade.

A formação integral do profissional

A qualificação a ser viabilizada ao futuro profissional precisa realizar-se sob três dimensões: em primeiro lugar, está em pauta uma sólida formação científica, entendida esta como o domínio das ferramentas investigativas de construção do conhecimento. No processo universitário de ensino e aprendizagem, a pesquisa científica torna-se princípio pedagógico fundamental (SEVERINO, 2010). Esta e a perspectiva epistemológica, diretamente vinculada à competência do conhecer, do lidar metódico e sistemático com as regras do saber, com os requisitos da ciência, instância que, além de sua própria consistência teórica, responde pelo embasamento da tecnologia, lugar dos recursos fundamentais para o manejo da realidade natural e das condições da existência concreta dos homens. Dimensão mais visível da nossa tradição universitária, ela impõe exigências de qualidade epistêmica, de logicidade e de rigor.

Mas é igualmente intrínseco à natureza do Ensino Superior o desenvolvimento da formação cultural das novas gerações, que possa situá-las no contexto mais amplo da vida social. Daí a necessária caracterização da pedagogia universitária como sendo uma pedagogia cultural que perpasse todas as atividades acadêmicas de ensino, de pesquisa e de extensão. Reporto-me aqui às posições defendidas por Nogueira (2006, p. 89-106), ainda que ampliando um pouco a abrangência de seu conceito de formação cultural que ela entende "como a própria cultura subjetivada, [...] como processo pelo qual o indivíduo se conecta ao mundo da cultura, mundo esse entendido como um espaço de diferentes leituras e interpretações do real, concretizado nas artes (música, teatro, dança, cinema, artes visuais) e na literatura" (2006, p. 94). O referido texto mostra, de forma mais concreta, a dimensão formativa da cultura no trabalho universitário.

Formação cultural é entendida aqui sob um sentido abrangente. Essa formação deve ser concebida como a própria humanização do homem, a ser pensado como um ente que não nasce pronto, que tem necessidade de cuidar de si mesmo como que buscando um estágio de maior humanidade, uma condição de maior perfeição em seu modo de ser humano. Portanto, a formação é processo do devir humano como devir humanizador, mediante o qual o indivíduo natural devém em um ser cultural, uma pessoa (SEVERINO, 2006). Por isso, a educação "não é apenas um processo institucional e instrucional, seu lado visível, mas fundamentalmente um investimento formativo do humano, seja na particularidade da relação pedagógica pessoal, seja no âmbito da relação social coletiva" (SEVERINO, 2006).

Assim, nesse contexto, o sentido da formação cultural não denota apenas sua significação de ilustração, de erudição literária, de performance artística etc., mas envolve todas essas dimensões desde que elas estejam articuladas na experiência vivenciada da autorreflexão crítica, na autonomia do sujeito humano como praticante do exercício público da racionalidade, uma vez superados os limites da liberdade impostos pela semicultura (PUCCI, 1995), ou seja, é culturalmente formado, portanto educado, o homem que dispõe do esclarecimento, com o qual se identifica, pois, a própria educação.

Estamos, assim, diante de uma concepção diferenciada da educação, que não se expressaria mais nem puramente como formação restritamente ética do sujeito pessoal nem como formação apenas política do sujeito coletivo, mas como formação cultural, conceituada como realização antropológica tout court, sem qualquer adjetivação de qualquer natureza.

Nunca é demais insistir em que a contribuição que cabe à formação universitária é gestar uma nova consciência social que seja garantia da inserção das novas gerações na sociedade sob a perspectiva da cidadania.

O Ensino Superior é mediação intencional e sistemática de uma educação voltada para a qualificação científica e técnica, com vistas à preparação de profissionais dos diversos campos da atividade humana. Espera-se então que ele prepare os cientistas, os técnicos, os especialistas, todos direcionados para atuar no universo da produção material, no âmbito da vida social e na esfera da cultura simbólica, os três grandes espaços em que se dão as práticas fundantes do existir humano. É pela sua prática real que os homens conduzem sua existência histórica, direcionando-a rumo a fins que eles mesmos devem estabelecer a partir de valores que vão balizar suas opções.

Em sendo o conhecimento, como atividade geral da subjetividade, a única ferramenta de que a espécie dispõe para conduzir sua existência, norteando sua prática real, as finalidades das instituições educacionais se constituem fundamentalmente pelo desenvolvimento do próprio conhecimento. Desse modo, o que se espera da educação universitária é, em primeiro lugar, que desenvolva ao máximo o conhecimento científico e tecnológico em todos os campos e dimensões que contribuem para a superação do amadorismo e a apropriação da ciência e da tecnologia disponíveis para alicerçar o trabalho de intervenção na realidade natural e social. Aqui está em pauta subsidiar os futuros profissionais para se apossarem dos conhecimentos científicos e técnicos, bem como dos processos metodológicos da produção desses conhecimentos. Também o domínio de habilidades técnicas, relacionadas com seu campo de atuação profissional, é exigência insuperável, seja para a adequada eficácia no âmbito de sua prática produtiva, seja para resgatar a essencial significação do trabalho como atividade básica do ser humano.

Mas esta finalidade não esgota o sentido e a responsabilidade da educação universitária, pois, além dessa formação técnico-científica, a formação do homem como ser cultural pressupõe ainda o desenvolvimento ao máximo da sensibilidade política, ética e estética das pessoas, com vistas ao delineamento do telos da vida e da própria educação, o que só pode ser feito graças a uma profunda percepção da condição humana (SEVERINO, 2006). Trata-se de sentir a razão de ser da existência e a pulsão da vida. Esta exigência decorre da condição social e cultural do nosso existir histórico. Não estamos apenas lançados frente às necessidades da sobrevivência junto ao mundo material, nossa subsistência tem a ver com o existir no seio de uma sociedade e de uma cultura simbólica, por nós mesmos criadas, em decorrência do exercício de nossa subjetividade. Nossa situação existencial nos insere numa malha complexa de elementos pertinentes à convivência social, com sua trama de relações de poder, bem como pertinentes ao universo simbólico de nossa subjetividade.

Uma densa compreensão dessa nossa condição de seres pessoais, dotados de subjetividade, radicalmente inseridos numa determinada sociedade histórica, bem como integrados à espécie humana, é, sem dúvida, objetivo intrínseco de toda educação, em qualquer momento de nossa formação e sob qualquer modalidade e nível sob os quais ela é praticada. Mas, essa finalidade se eleva a um grau máximo na educação superior. Nenhum profissional será, efetivamente, em sua prática histórica, apenas um técnico; ele será necessariamente um sujeito interpelado pela história, pela sociedade, pela cultura e pela humanidade, devendo dar-lhes respostas que vão muito além de seu desempenho puramente operacional no âmbito da produção. É por isso mesmo que a concretude objetiva da vida humana é tão marcada por conflitos, violências e barbárie.

Sem dúvida, a Universidade tem que formar o profissional. E por profissional deve ser entendida a pessoa que intervém no processo de vida da sociedade mediante a aplicação de seus conhecimentos científicos e de suas habilidades técnicas. A ciência opera diagnósticos sobre a natureza e a sociedade, levando a invenções técnicas que viabilizam meios para a ação interventiva eficaz, apta a manejar o mundo com vistas à condução mais adequada de nossas existências históricas, subsidiando assim as decisões e escolhas políticas por parte dos gestores da sociedade.

E a ferramenta posta ao nosso alcance é o conhecimento, cabendo-lhe então uma dupla tarefa. Primeiro, explicitar o que somos nós, os humanos, o nosso mundo, as nossas condições concretas de existência, como vivemos. É o estágio próprio da ciência.

Segundo, descobrir e articular os modos de ação que viabilizam a condução dessa existência. É a tarefa própria da técnica, responsável pela aplicação dos resultados do conhecimento científico na condução da existência concreta dos homens.

A Universidade ocupa um lugar fundamental nesse processo, dada sua condição de produtora de conhecimento e geradora de tecnologia. Fornece então aos gestores da sociedade esses instrumentos para que eles, através da gestão e da indústria, garantam a melhor condução da vida social, sempre com vistas a tornar a existência concreta das pessoas mais confortável, com melhor qualidade de vida.

Assim, a formação universitária, em todas as modalidades de profissionalização, precisa incluir em suas grades curriculares componentes constituídos por conteúdos responsáveis pelo fornecimento ao futuro profissional daquelas informações e dados relativos aos objetos e fenômenos da área em estudo. É a esfera específica da ciência.

Do mesmo modo, precisa implementar atividades curriculares que assegurem o domínio das habilidades técnicas que fornecem ao futuro profissional instrumentos e recursos para "manejar" esses objetos e fenômenos, submetendo-os assim a alguma forma de transformação. Essa é a esfera da técnica, possibilidade pela qual o homem manipula e transforma a natureza, adaptando-a a suas necessidades.

A contribuição filosófica à formação do profissional

Mas a formação universitária implica ainda uma terceira esfera, aquela da cultura simbólica, ou seja, cabe-lhe ainda fornecer ao futuro profissional a capacidade de inserir-se na dinâmica da sociedade em que vai atuar. Esta esfera envolve desde o domínio das diferentes linguagens até a postura ética, passando pela hermenêutica da vida social, bem como pelo cultivo da sensibilidade estética. Aliás, é nesta esfera que se insere o próprio investimento na formação filosófica dos estudantes.

Desse modo, do profissional que se forma na Universidade espera-se que:

1) se aproprie do acervo de conhecimentos científicos relativos a seu campo de trabalho;

2) domine um conjunto de habilidades técnicas adequadas a sua ação interventiva sobre a natureza e sobre a própria sociedade;

3) desenvolva uma sensibilidade a valores culturais necessários para compreender-se como ser corpóreo que se insere ética e politicamente em sua sociedade histórica.

É de se observar que essas três esferas correspondem às três modalidades de práticas mediante as quais os homens realizam sua existência histórica (SEVERINO, 2001). O modo de ser humano, que é um vir a ser, uma construção histórica, é tecido pela ação. Ação que põe o homem em relação com o mundo natural, com a natureza, da qual ele é parte integrante como qualquer outro ser vivo. Interpelado a adaptar essa natureza a suas necessidades básicas, o homem é impelido a intervir nela, transformando-a, retirando dela tudo de que necessita para produzir e reproduzir sua existência. Eis aí o âmbito do trabalho.

Mas para intervir na natureza, portanto, para trabalhar, o homem precisa conhecê-la. Daí ser o conhecimento sua primeira ferramenta, uma ferramenta universal, básica. É desvendando as "leis" do comportamento do mundo natural que o homem pode interferir nele, mediante uma ação cujos resultados fazem com que a natureza se adapte às suas necessidades. A prática do conhecimento é o próprio exercício da subjetividade, fonte da cultura simbólica. Essa prática simbolizadora, pela qual o sujeito entra em relação com os elementos culturais, seus e dos outros. É outra mediação prática de sua existência histórica. Trata-se de uma prática... teórica...

Mas nenhuma ação humana se realiza fora de um contexto social, o homem não existe como indivíduo isolado. Todo seu agir se dá na trama de relações sociais, ele está sempre inserido num grupo. Daí a dimensão político-social do agir e do existir humanos, que torna necessário para todos o desenvolvimento de uma sensibilidade valorativa, ao mesmo tempo que epistemológica.

Desse modo, a formação profissional envolve, necessariamente, essa tríplice dimensão. A dimensão epistemológica, abrangendo o conhecimento dos objetos que constituem o universo de sua ação, a dimensão técnica, que fornece os instrumentos para tornar eficaz essa ação, e a dimensão ético-política, que insere essa ação num contexto sociocultural.

Visto assim o agir humano, nessa sua complexidade, entende-se que a formação profissional demanda igualmente um complexo investimento, já que o profissional precisa dispor de um sólido e consistente acervo de conhecimentos científicos, dominar um amplo conjunto de habilidades técnicas e de se apropriar de sensibilidade a um amplo espectro de elementos e valores culturais. Assim, sua formação precisa ser não apenas uma formação técnico-científica, mas igualmente uma formação cultural, entendendo-se com isso uma formação abrangente, com múltiplos enfoques, abordando aquelas referências elucidativas dos aspectos epistemológicos, axiológicos e antropológicos que estão envolvidos nas práticas humanas, em geral, e nas suas práticas profissionais específicas de sua profissão, em particular.

Esta visão do papel da formação universitária tem se explicitado nos estudos e debates relacionados à presença da cultura geral ao lado da cultura especializada nos currículos universitários, como bem o expressa Pereira (2007, p. 9), ao comentar o desenho curricular configurado por maioria de componentes de caráter técnico especializado: "A formação especializada e profissionalizante apenas o treina para executar tarefas específicas, com a habilidade e a competência necessárias a uma sociedade mercantil, ou para um estreito mercado de trabalho".

Desse modo, ao se apropriar, através das mediações curriculares, dos conteúdos científicos e dos instrumentos tecnológicos, o profissional precisa se esclarecer sobre:

1) A natureza dos processos do conhecer implicados na produção do saber que adquire e vai aplicar. O que vem a ser conhecimento, em geral, e o conhecimento científico em particular? Quais os processos psicoepistêmicos envolvidos? O que sustenta a validade do conhecimento? Quais os procedimentos lógicos e metodológicos a serem adotados? Como se dá a pesquisa científica e qual o alcance e o valor de seus resultados?;

2) Os fundamentos e as justificativas do agir profissional, sendo de duas naturezas as principais preocupações relacionadas ao sentido da atuação dos profissionais: ética e política. Ambas as dimensões têm a ver com o existir em sociedade, pois se relacionam com o respeito que cada ser humano precisa ter por si mesmo e pelo outro. Ocorre que o valor básico de referência da ética e da política é a dignidade da pessoa humana. Assim, a questão ética que o profissional tem que colocar por ocasião de cada ato concreto é como esse ato se reconstitui frente à dignidade das pessoas, até que ponto ele contribui para a construção da cidadania e da democracia;

3) Além disso, o profissional precisa se esclarecer sobre o sentido do existir humano, o homem concebido agora sob a perspectiva ontológica, que é o homem como ser pessoal e como ser social. Isso porque tanto o conhecimento como a ação se realizam plena e intensamente imersos na trama das relações sociais. A prática cultural e o universo simbólico só se manifestam num ambiente social.

Para concluir este ensaio, retomo outra contribuição de Coelho (2006, p. 53):

O sentido da formação universitária, [...] é contribuir efetivamente para que os estudantes aprendam a superar, a transcender o mundo sensível, o mundo da aparência, da imagem, do mutável, da opinião, da crença, das paixões, das emoções, da ideologia, bem como os limites estreitos e ingênuos do positivismo, da razão instrumental. Ensiná-los a cultivar a dúvida, a interrogação, o pensamento, a compreensão e a expressão rigorosa e crítica do que realmente são as coisas e os processos, de seu sentido. Essa formação deve contribuir para a compreensão racional da existência humana e sua transformação no sentido de realizar a autonomia, a liberdade, a igualdade, a justiça, a excelência, a vida perfeita e feliz de homens e mulheres que, tendo a razão como guia e critério, sejam capazes de reconhecer e julgar a validade das teorias, a excelência das ações.

Cabe registrar também a contribuição de Dias Sobrinho para reforçar o vínculo da formação com a construção da cidadania (2007, p. 158): "A formação enlaça a episteme, a epistemologia e a ética - articulando conhecimento e ação, saberes e valores, reflexões e atitudes, teorias e práticas -, marca o percurso de idas e vindas da construção do sujeito social, que pode ser outra maneira de referir a cidadania".

Pode-se considerar então que o papel fundamental da educação universitária, ao formar seus profissionais relacionando sua formação às condições da existência humana, histórica e socialmente situada, ao mesmo tempo que interpeladas pelos valores da sua dignidade, é mesmo o de integrar cultura e humanismo. E, para o cumprimento dessa tarefa, não pode eximir-se dos recursos da reflexão filosófica.

À guisa de conclusão

Essa discussão sobre a necessidade e a relevância da presença de componentes curriculares de natureza filosófica ao longo da formação universitária precisaria se complementar com indicações mais concretas sobre as possibilidades de se encontrar mediações didáticas que tornem pedagogicamente fecunda a dimensão filosófica. Mas este não é um objetivo do momento e nem caberia neste breve ensaio. Cabe apenas uma breve referência aos investimentos que vêm sendo feitos nessa direção. Com efeito, a questão da transposição didática de conteúdos filosóficos para situações de ensino tem sido objeto de preocupações de vários estudiosos, nos diferentes níveis de ensino. Destaco alguns dentre os autores já citados neste ensaio: Coelho, 2006; Freire, 2002; Ghedin, 2008; Horn, 2009; Favaretto, 1993; Gallo e Aspis, 2009; Muchail, 1996; Rodrigo, 2009. Mesmo quando voltados para o papel da Filosofia na formação dos estudantes, esses trabalhos aduzem considerações e subsídios para o trabalho didático de seu ensino.

Texto recebido em 10 de fevereiro de 2012

Texto aprovado 22 de junho de 2012

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Jan 2013
  • Data do Fascículo
    Dez 2012

Histórico

  • Recebido
    10 Fev 2012
  • Aceito
    22 Jun 2012
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