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Apresentação

O patrimônio tem mobilizado indivíduos, grupos, instituições e nações de modo crescente a partir da segunda metade do século XX. Considerado como um modo singular da humanidade lidar com o transcurso inexorável do tempo, elegendo traços e vestígios da memória para fugir à destruição e ao desaparecimento, a invenção dos patrimônios adquire uma multiplicidade de formas - do material ao intangível - capaz de colocar sob suspeição sua própria razão de ser. Afinal, tudo pode ser patrimônio! Se, por um lado, avança-se na tarefa hercúlea de tentar parar o tempo e preservar o máximo possível, por outro, as retóricas da perda insistem na crise da memória e nas lacunas advindas da destruição dos remanescentes do passado.

A humanidade atônita assiste em tempo real a destruição do patrimônio milenar sírio pelo Estado Islâmico, enquanto os profissionais da UNESCO tentam conter o tráfico ilícito desses bens no mercado internacional. Comunidades mobilizam-se pela preservação de parcos traços de seu patrimônio local. Os patrimônios intangíveis passam a fazer parte das políticas públicas nacionais e internacionais no final do século XX, quando até então apenas se falava em patrimônio material. Indivíduos e suas memórias ganham a cena para além dos pareceres técnicos especializados. Desloca-se o foco do objeto patrimonial para a relação que os sujeitos estabelecem com esses bens. São incomensuráveis os problemas e as questões colocadas pelo patrimônio no século XXI.

A multiplicidade de problemáticas envolvendo o patrimônio complexifica-se e cresce também o número de pesquisadores que se debruçam sobre esse fenômeno. Neste dossiê, reunimos uma miríade diversa de abordagens de modo a vislumbrar a pujança dos estudos em curso nessa temática. Abrimos o dossiê com as problematizações sobre o patrimônio imaterial e as narrativas de memória dos sujeitos, seja em contextos urbanos ou ribeirinhos, em estudos que apontam para a necessária incorporação de novas abordagens teórico-metodológicas para identificação e estudo. Avançamos em questões relacionadas à educação e ao ensino de História tendo como foco a relação entre os museus e as escolas. Finalmente, fechamos com estudos que abordam especificamente o patrimônio educativo e os museus de educação, no sentido de mostrar que a problemática da preservação também incursiona no universo educativo, mobilizando sujeitos, instituições escolares e pesquisadores da História da Educação.

Os estudos aqui reunidos, além disso, apresentam representatividade nacional e internacional. Desse modo, há artigos de autoria proveniente da Espanha, Canadá, Itália e França, que possibilitam o contato com as produções acadêmicas nesses países. Os textos de autores brasileiros contemplam objetos empíricos que percorrem especialmente a região nordeste, demonstrando a inserção de um território com rico patrimônio, mas ainda relativamente pouco estudado e visibilizado nos estudos acadêmicos nesse campo. Assim, passamos a apresentar cada um dos artigos que compõem este dossiê que denominamos "Patrimônio, Educação e Museus: história, memória e sociedade".

Joël Candau (Université Nice Sophia Antipolis, França) e Maria Leticia Mazzucchi Ferreira (Universidade Federal de Pelotas, Brasil), em "Mémoire et patrimoine: des récits et des affordances du patrimoine ", instigam o leitor a refletir sobre a capacidade de patrimonialização de determinados bens culturais, a partir da noção de affordance patrimonial. Ao examinar especificamente os saberes-fazeres olfativos (perfume, gastronomia, vinho), analisam a potencialidade de construção de narrativas de si e do grupo de pertencimento como modo de ancoragem desses bens como patrimônio nas memórias familiares e no contato com a mãe. Segundo os autores, a maior ou menor capacidade de compartilhamento coletivo dessas narrativas instituem os patrimônios imateriais, ao passo que os patrimônios materiais encontram sua expressão no aspecto físico.

Antonio Gilberto Ramos Nogueira (Universidade Federal do Ceará, Brasil), no artigo "Inventários, espaço, memória e sensibilidades urbanas", busca refletir sobre sensibilidades urbanas e inventários do patrimônio, a partir da identificação e documentação de práticas, usos, apropriações e sentidos atribuídos por distintos sujeitos ligados ao bairro Benfica, situado na cidade de Fortaleza, estado do Ceará. Para o autor, os inventários como instrumentos forjados historicamente com a noção de patrimônio podem ser, na atualidade, procedimentos pertinentes para a elaboração de uma caligrafia dos sentidos atribuídos pelos sujeitos ao vivenciarem a cidade, suas memórias e seus patrimônios. Além disso, o inventário pode ser laboratório de aprendizado no qual o dever da história e o lugar da memória, consubstanciados ao ensino da história, contribuem para desnaturalizar os usos do passado e o patrimônio da cidade, aportando olhares diferenciados do especialista.

Áurea da Paz Pinheiro (Universidade Federal do Piauí, Brasil), em "Patrimônio cultural e museus: por uma educação dos sentidos", problematiza as relações entre patrimônio, museologia e educação, tendo como foco pesquisa e ação-cultural em curso nas Ilhas Canárias, no Delta do Parnaíba, Piauí. A partir dos pressupostos da Nova Museologia, um espaço participativo tem sido constituído através de diversas ações como rodas de conversa e oficinas no sentido de aproximar acadêmicos e pescadores das Ilhas em prol do conhecimento e valorização do patrimônio ambiental e cultural daquela região.

Ivo Mattozzi (Università di Bologna), no artigo "Il museo nel curricolo di storia: una questione di trasposizione didattica ", propõe um diálogo entre escola e museu, no qual são feitas sugestões de modo a incorporar o museu e suas coleções ao currículo de História em diversos níveis do ensino. Partindo da especificidade do ensino italiano e da tipologia museológica do museu de arqueologia e história, oferece algumas pistas de como utilizar o museu para ensinar aspectos contidos no currículo escolar. Sugere, desse modo, a elaboração de percursos e materiais relacionados aos conteúdos curriculares a serem trabalhados pelo professor com seus alunos. O autor avança em relação à tão criticada "escolarização dos museus" e ao propor aos professores e educadores museais alternativas para um melhor aproveitamento do potencial cognitivo dos museus, das exposições e dos objetos para ensinar e aprender história, bem como sensibilizar para o patrimônio cultural.

Pedro L. Moreno Martínez (Universidad de Murcia, Espanha), no artigo "La historiografía del patrimonio educativo en España: un balance crítico ", analisa a renovação e a difusão dos estudos historiográficos sobre patrimônio educativo na Espanha. Ao traçar um mapeamento da produção na temática nos últimos 15 anos, destaca o incremento das exposições e das museologias pedagógicas; a grande efervescência acadêmica, com a criação de grupos de investigação nas universidades e com o desenvolvimento de projetos de pesquisa e publicações; a constituição de sociedades científicas, redes nacionais e internacionais, bem como a organização de eventos científicos diversos em nível nacional ou internacional. O autor destaca, entre esses vários aspectos, a criação do Museu Pedagógico Nacional (1882-1941) e o movimento recente de museus pedagógicos estabelecidos por universidades, unidades autônomas ou associações, que vêm fomentando a valorização do patrimônio educativo e a memória escolar no país. Além disso, a partir de levantamento dos estudos presentes nas jornadas da Sociedad Española para el Estudio del Patrimonio Educativo (SEPHE), o autor observou que a cultura material das escolas e a museologia pedagógica são as principais linhas de investigação do patrimônio educativo entre os pesquisadores.

Em diálogo com o texto anterior, Zita Rosane Possamai (Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil), em "Exposição, Coleção, Museu Escolar: ideias preliminares de um museu imaginado", examina as permanências, apropriações e alterações relativas às práticas e às representações presentes no processo de concepção do Museu Pedagógico da França, no século XIX. O texto ressalta uma tipologia específica de museus, reunidos na categoria de "museus de educação", e insere-os em um movimento internacional em prol de uma modernidade pedagógica. Segundo a autora, o estudo do museu pedagógico em questão evidenciou noções produzidas e postas em circulação pelos agentes envolvidos no processo com maior preocupação em relação ao progresso da educação primária em detrimento da valorização e conservação dos traços do passado, prerrogativa da criação dos museus tradicionais até então.

Anik Meunier e Virginie Soulier (ambas da Université du Québec à Montréal, Canadá) fecham a proposta deste dossiê com a versão em português feita por Cláudio de Sá Machado Júnior (Universidade Federal do Paraná, Brasil) para o artigo "Qual a relação entre a cultura e o patrimônio? Uma parceria cultural no contexto museal com o meio escolar de aprendizagem de francês", onde apresentam a avaliação de um projeto museal realizado em parceria entre universidade, escola e museu. Com foco nos estudantes imigrantes do Quebec, provenientes de diversas culturas e frequentando as classes de francês, a avaliação proposta percebe as relações entre cultura e patrimônio, ao passo que o projeto educativo em avaliação busca estabelecer significações entre os objetos de família e o patrimônio museal, com vistas à valorização da identidade cultural de seus participantes.

Por fim, Cláudio de Sá Machado Júnior (Universidade Federal do Paraná) resenha o livro "Museu e Museologia", do historiador francês Dominique Poulot, pesquisador de reconhecimento internacional. O livro, que deriva da tradução do original "Musée et Muséologie ", divide-se em seis capítulos, abordando, com uma linguagem clara e concisa, especialmente aspectos históricos sobre instituições e indivíduos e também propõe reflexões sobre as experiências mais recentes realizadas no âmbito dos museus.

Esta reunião de textos de modo algum visa apresentar um panorama dos assuntos aqui abordados. Ao contrário, busca apenas oferecer uma pequena, mas qualificada, amostra da riqueza de problemáticas em investigação por pesquisadores em diversos países e no Brasil. Desejamos, ainda, inspirar os leitores, seja para a pesquisa acadêmica, seja para a mobilização em prol da valorização dos nossos patrimônios, especialmente os vinculados à educação. Boa leitura!

Curitiba/Porto Alegre, dezembro de 2015.

Cláudio de Sá Machado JúniorZita Rosane Possamai

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2015
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