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M. Jean Piaget e Mlle Valentine Châtenay e a imprecisão da linguagem infantil: releitura dum texto

ARTIGOS DE DEMANDA CONTÍNUA

M. Jean Piaget e Mlle Valentine Châtenay e a imprecisão da linguagem infantil: releitura dum texto

Jair Fonzar

Doutor em Filosofia da Educação. Professor Titular do Departamento de Teoria e Fundamentos da Educação da UFPR

Na IV Parte de sua autobiografia Jean Piaget se refere à particpação que os alunos do antigo Instituto J.-J. Rousseau tiveram nas pesquisas das quais resultaram seus cinco primeiros livros sobre o desenvolvimento psicogenético da criança. Entre esses alunos, escreve, "se encontrava Valentine Châtenay que se tornou minha mulher e minha fiel colaboradora".

"... minha fiel colaboradora". Essa afirmação, que eu já havia lido tempos antes, se reavivou em minha memória no dia 7 de julho de 1983, na capela do Centro Funerário Saint-Georges, Genebra, nos momentos em que, ao som do órgão, estavam sendo realizados os funerais de Mme Jean Piaget, falecida no dia 3 do mesmo mês e ali mesmo cremada, sem oração nem liturgia.

Terminados os funerais, a curiosidade me levou aos Archives Jean Piaget (instituição singular que reúne tudo o que Piaget escreveu e muito do que se escreveu sobre ele e a partir dele) para pesquisar a bibliografia científica deixada pela ilustre desaparecida. Além dos conhecidos capítulos inseridos nas obras de Piaget, nos quais o Autor faz referência à participação da esposa, lé encontrei a que teria sido a primeira pesquisa de Valentine em 1923, no nº 7 de l'Éducateur, revista da Société Pédagogique de la Suisse Romande et de l'Institut J.-J. Rousseau. Título da publicação: Sur un caractère frappant du langage enfantin. Trabalho curto, nada mais de 8 páginas impressas em formato pequeno, logo aproveitado também em capítulo de livro do próprio Piaget.

Passados sessenta anos de seu aparecimento, as circusntâncias me sugeriram fazer uma releitura do trabalho de Valentine, o único que publicou em separado com Piaget e justamente num momento em que o jovem psicólogo começava, com a originalidade de suas pesquisas, a chamar a atenção dos cientistas. Com vocação intelectual já bem definida nessa época, Piaget persegue com faro de perdigueiro toda e qualquer manifestação de inteligência na criança, visando com isto, poder inovar no campo da psicologia genética, especialidade em que se haveria de tornar campeão absoluto.

Observações anteriores já haviam levado o jovem psicólogo a constatar uma particularidade na linguagem das crianças de pouca idade: elas se exprimem freqüentemente num estilo sintético e confuso, às vezes gramaticalmente incompreensível. Em seus relatos se valem de elipses e utilizam pronomes pessoais e relativos mal posicionados, que tornam a frase de significação dúbia...

Qual a explicação mais profunda para essa acentuada imprecisão de estilo da linguagem infantil na faixa que vai dos 6 aos 8 anos de idade?

Na publicação co-assinada com Valentine Châtenay está a resposta desejada.

A EXPERIÊNCIA

Já de posse de dados de pura observação, Jean Piaget e Valentine Châtenay criaram uma técnica de pesquisa. Simples. De fácil aplicação. Escreveram uma estória, com misto de realidade e fantasia. Curta, para facilitar a retenção. Bem ao gosto das crianças dessa idade. Ilustraram a estória, desenhando duas torneiras iguais; uma, porém aberta, vertendo água; a outra, fechada. Desenharam também duas seringas: uma vazia, a outra cheia de líquido. Os desenhos, suficientemente claros, permitiam às crianças compreenderem como era o funcionamento dos objetos representados, podendo depois, explicá-lo com facilidade.

Basicamente a experiência consiste em levar uma criança a contar uma estória e a explicar qualquer coisa a outra criança.

Para a aplicação da técnica três elementos se fazem necessários: aplicador (Jean Piaget/Valentine Châtenay); explicador (a criança que ouve a estória e as explicações dos desenhos dadas pelo aplicador); reprodutor (uma segunda criança que ouve da primeira a mesma estória e explicação e que, por sua vez, deve recontá-la ao aplicador).

Numa das escolas primárias de Genebra Jean Piaget e Valentine Châtenay convidaram trinta crianças de 7 a 8 anos, e vinte de 6 a 7 anos de idade, separadas em duplas, para a aplicação do texto que montaram.

Constituídas as duplas, o aplicador lê a um dos seus elementos compontes (explicador) o texto da estória previamente escrita. Enquanto isto, o segundo elemento da dupla (reprodutor) deverá permanecer à distância, ou atrás da porta ou no corredor, de forma a não poder ouvir o aplicador. Repetem-se tantas vezes quantas forem necessárias as passagens mais difíceis, mas sem alterar o texto lido. O aplicador deve esforçar-se para que o explicador entenda o texto e deve insistir para que o explicador o retransmita, depois, com fidelidade. E, para se ter certeza de que o compreendeu, assinala-se por um quociente a' o número de pontos compreendidos sobre o número total de pontos. A compreensão será perfeita quando a' = 1.00.

Tudo bem compreendido pela primeira criança, esta deve contar a estória para a segunda, na presença do aplicador que anota com fedelidade o relato feito. Ou então, a primeira criança pode também fazer um primeiro relato ao aplicador para, só depois, fazer o mesmo relato à segunda criança da dupla, estando o aplicador distante desta vez.

Ouvida a estória, a segunda criança (reprodutor) deve, por sua vez, reproduzí-la para o aplicador que procede como antes, isto é, que anota tudo por extenso, para depois poder comparar a fidelidade ou não dos textos dos diversos relatos.

A mesma coisa deve ser feita, mas de forma sucessiva, quanto à explicação dos desenhos.

Para o êxito da pesquisa é necessário que as crianças sejam, antes, preparadas e motivadas, de tal sorte que se evite todo artificialismo na aplicação da técnica. Para isto basta dar-se à experiência forma de jogo ou brincadeira.

Esta técnica, variando-se apenas a estória e os objetos desenhados, foi aplicada quatro vezes a cada dupla (2 vezes as estórias e 2 vezes os desenhos), num total de 100 aplicações.

OS RESULTADOS

Os resultados da experiência se manifestaram suficientemente ricos para que Jean Piaget e Valentine Châtenay pudessem tirar deles conclusões, sem dúvida, importantes. Aos dados fornecidos pela experiência feita, os autores da pesquisa compararam outros dados obtidos anteriormente pela pura observação do linguajar espontâneo da criança que se exprime fora de qualquer quadro previamente preparado. E puderam constatar ter havido acordo nos dois casos, isto é, uma certa identidade entre os resultados nas duas circunstâncias assinaladas. Os autores da pesquisa puderam verificar que, tanto, no momento de recontar a estória ouvida, quanto na hora de explicar ao coleguinha o modo de operar da torneira e da seringa desenhadas, o linguajar da criança se revelou sumamente sintético. Freqüentemente confuso. Às vezes gramaticalmente ininteligível.

Por que a criança dessa faixa etária é de tal forma sintética e confusa no modo de se exprimir?

A EXPLICAÇÃO PSICOLÓGICA

Aqui entra na parte mais importante da experiência, que é a interpretação dos dados obtidos e a conseqüênte explicação do fenômeno. Piaget manifestou sempre uma singular aptidão para interpretar o interior da criança, a partir de dados periféricos, tais como os oferecidos pelo meio social e pela linguagem, para chegar a conclusões que têm raízes na estrutura mais íntima do comportamento e da inteligência humana.

Se a criança, particularmente a de 6 a 7 anos de idade, se exprime num estilo demasiadamente sintético, confuso e até mesmo gramaticalmente incompreensível para que a ouve, não é necessariamente porque ela não compreendeu bem o que lhe foi contado ou explicado. Os quocientes de compreensão aí estão para provar que ela freqüentemente entende tudo muito bem. Ela é levada a adotar esse estilo confuso e incompreensível pelo caráter egocêntrico que domina nessa idade. Na idade que vai dos 6 aos 8 anos, o interlocutor interessa pouco à criança; razão por que ela não se esforça por ser entendida. Ela compreende e isto lhe basta.

A linguagem infantil só vai se tornar gramaticalmente menos obscura e menos imprecisa à medida que a criança for se socializando e sentido real necessidade de um interlocutor que a escute e compreenda, que dialogue com ela, enfim. Ainda então ela evitará no seu diálogo, observam Piaget/Châtenay, as relações causais e lógicas (explicativas). Explicar muito e demonstrar não é característica do discurso infantil, pelo menos até a idade mais ou menos de 7 anos e meio.

Se as crianças se entendem mal entre si, é porque elas pensam que se entendem, concluem os autores da pesquisa. Acostumadas a ser interpretadas com facilidade pelos adultos que as rodeiam e a ter até adivinhados, com antecipação, seus pensamentos e desejos, elas crêem que todo interlocutor está lendo o pensamento delas. Para que, então se esforçar por exprimi-lo de forma clara? Ou mesmo, para que exprimi-lo? O interlocutor sabe tudo, até mais que elas, segundo são induzidas a crer pela convivência que têm com os adultos.

Esta atitude do pensamento infantil, que, à primeira vista poderia parecer despretenciosa no modo como se manifesta, está bem viciada em suas raízes. Tanto quanto a mentalidade egocêntrica que faz da criança o mais importante ponto de referência no meio em que vive, o seu estilo de linguagem, sintético e desleixado, é o resultado da convicção que tem de que é o centro do mundo.

E nota-se que a característa de egocentrismo no modo de falar se manifesta mais acentuada nas crianças de menos idade, isto é, nas que têm de 6 a 7 anos; o que prova que o fenômeno não é devido, como se poderia pensar, à influência do verbalismo de certo tipo de escola. Entre os 6 e 7 anos de idade, mesmo na escola, a criança ainda mais brinca do que estuda. O que quer dizer que o verbalismo escolar não dispôs ainda de tempo suficiente para criar hábitos na criança.

A verdadeira causa dessa acentuada imprecisão de estilo, própria do linguajar das crianças de pouca idade, se encontra, de fato, nos seus egocêntricos hábitos de pensar. Hábitos esses que excluem, porque desnecessário, todo e qualquer interlocutor.

Uma criança que faz o papel de explicador, ordinariamente fala mais para si própria do que para o seu interlocutor. Uma vez que ela conhece o assunto, para que explicá-lo mais?...

Eis mais uma preciosa contribuição da Psicologia para a Pedagogia, contida na pesquisa assinada, há mais de sessenta anos, pelo então jovem psicólogo Jean Piaget e por uma aluna do conhecido Instituto J.-J. Rousseau, Mlle Valentine Châtenay, aquela que haveria de se tornar, naquele mesmo ano de 1923, Mme Jean Piaget, esposa e fiel colaboradora do mais recente gênio de Genebra.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Mar 2015
  • Data do Fascículo
    Dez 1985
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