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A educação infantil como um projeto da comunidade: crianças, educadores e pais nos novos serviços para a infância e a família. A experiência de San Miniato

RESENHA

A educação infantil como um projeto da comunidade: crianças, educadores e pais nos novos serviços para a infância e a família. A experiência de San Miniato

Marisa Zanoni Fernandes

Doutora em Educação pela Universidade Federal do Paraná. Professora da Universidade do Vale do Itajaí - UNIVALI, Santa Catarina, Brasil. E-mail: marisazf@hotmail.com.

FORTUNATI, Aldo. A educação infantil como um projeto da comunidade: crianças, educadores e pais nos novos serviços para a infância e a família. A experiência de San Miniato. Tradução Ernani Rosa. Porto Alegre: Artmed, 2009. 200 p.

A profunda transformação ocorrida nos últimos 30 anos nos serviços educativos para as crianças de zero a 3 anos de idade, da comunidade de San Miniato - Itália, tem como pano de fundo uma longa trajetória de atenção, reflexão, trabalho, intervenção e pesquisa sobre a infância. San Miniato, sob este ponto de vista, se tornou uma referência importante devido ao comprometimento na construção de uma nova imagem de criança, que foi capaz de provocar uma intensa mudança no modo de pensar e organizar os serviços educativos.

Esta experiência é relatada com muita sensibilidade pelo professor Aldo Fortunati, que, como inspirador, coordenador e partícipe ativo deste projeto educativo, é capaz de elucidar nesta obra os múltiplos atores envolvidos, entre os quais os educadores, as crianças, as famílias, os arquitetos, a administração municipal, referenciando o próprio nome do livro: A educação infantil como um projeto de comunidade: crianças, educadores e pais nos novos serviços para a infância e a família. Este é um fato que me parece importante, pois um projeto de tal envergadura só pode ser possível porque é coletivo, dinâmico e, sobretudo, porque estimula cotidianamente todos os envolvidos a reconstruir a ideia dos serviços destinados à primeira infância como um lugar de diálogo, de relações e trocas abertas e plurais. O conceito de coletividade relatado na obra caracteriza a identidade e a especificidade do projeto sanminiatense, o que o torna único e singular.

A capacidade de interconexão e de discussão coletiva abre espaço para uma imagem de criança rica, capaz, curiosa competente e protagonista. No entanto, esse conceito não é apenas um dado teórico ou uma afirmação, mas, sobretudo, uma construção marcada por uma história de compromisso e dedicação com as crianças pequenas como sujeitos sociais, fato este apontado no capítulo introdutório - "Quando a política olha para o futuro através dos olhos das crianças"-, de autoria do prefeito e secretário de cultura de San Miniato.

O reconhecimento - não retórico - dos direitos das crianças é apontado, portanto, como uma das grandes responsabilidades da comunidade, capaz de sustentar a cidadania de todas as crianças e das suas famílias. Essa nova consciência dos direitos das crianças e das suas famílias, bem como a valorização da potencialidade e do protagonismo das crianças, provocaram também uma revisão radical da função educativa do adulto, particularmente da capacidade de oferecer políticas, contextos e experiências ricas e variadas para responder melhor ao substancial potencial, social e cognitivo, das crianças pequenas.

Aldo Fortunati chama a atenção, ainda na introdução da obra, que o primeiro elemento para poder falar da educação das crianças é identificar o esboço de sua imagem e refletir sobre as consequências que derivam desta imagem no discurso e nas práticas educacionais. Portanto, o projeto educativo de San Miniato, ao assumir uma imagem de criança forte, capaz, rica e competente, busca uma correspondente transformação do papel dos educadores que lidam com essa criança. Esta transformação organiza-se em uma direção em que sua ação requer uma profissionalidade e competências comunicativas, relacionais, de observação e de reflexão capazes de oferecer desafios, oportunidades, presença e, acima de tudo, de ser um ponto de referência para o desenvolvimento das crianças.

O autor, ao abordar o papel do educador na educação dos pequenos, estimula, de forma provocadora, a refletir sobre a necessidade premente da construção de uma profissionalidade capaz de se libertar da expectativa de resultados e objetivos predeterminados. Essa postura não diretiva cria possibilidades para enxergar as múltiplas capacidades das crianças - reflexão focada em "O contexto como centro da gravidade para planejar". A dimensão deste novo papel representa saberes conexos com um percurso de formação, de diálogo e de documentação da experiência educativa, focado em "a memória como reflexo e elemento da experiência". Fortunati fala também de um comportamento que envolve ações cotidianas de organização do espaço, de escolha dos materiais - "a organização das oportunidades educacionais"; de documentação para manter viva a discussão e alimentar a aventura da constante busca; de relações entre as famílias e os serviços, relações essas sempre capazes de sustentar o projeto educativo e de promover o protagonismo infantil.

Na primeira parte do livro - "Os pensamentos e as ações que sustentam a ação educacional" -, com o subtema "As familias (crianças, pais e serviços) a construção social das identidades em uma ecologia educacional diferenciada e participativa", o autor aborda essa importante dimensão da qualidade dos serviços destinados à primeira infância e destaca três aspectos que, segundo ele, são de particular riqueza quando se trata da relação entre as famílias (crianças e pais) e os serviços educativos. O primeiro é o processo de adaptação, ou, utilizando a própria expressão italiana: "o ambientamento" - entendido como sentir-se parte do novo contexto. Esse tema é tratado com muita seriedade e importância, pois leva em consideração que esta é uma experiência que mexe com todos os envolvidos e não somente com as crianças. Esta postura se confronta diretamente com o que costumeiramente acreditamos que as crianças pequenas são capazes e com a demasiada simplificação dos processos de transição da familia para a escola infantil. O ambientamento, na experiência relatada, começa muito antes de a criança entrar na escola infantil: os pais participam de colóquios individuais e coletivos para tratar desta transição que têm o objetivo de preparar e debater sobre os tempos, os modos, os lugares, as condições necessárias para concretizar o apoio às crianças e à família na nova e singular experiência - a extrafamiliar. O segundo aspecto refere-se à experiência - "o fazer" - das crianças no espaço coletivo e como isso potencializa a construção, por parte dos pais, da imagem da criança, das suas capacidades e competências e, sobretudo, da construção das identidades parentais. O terceiro aspecto destacado por Fortunati, mas intimamente conectado aos dois aspectos anteriormente citados, volta-se "à troca, [a]o compartilhamento e elaboração de estratégias e de modelos entre adultos" - onde alerta que os serviços educativos destinados às crianças devem ter espaço constante e diferenciado aos pais, auxiliando-os na construção da sua paternidade/maternidade. O tema evoca questões de extrema importância e aponta estratégias para o diálogo entre pais e entre pais e professores, entendendo que "se deve ser pais competentes, mas não se é competente por ser pai". Nesta lógica, San Miniato, além de estratégias para o vínculo constante com as famílias, organiza encontros entre pais e casais que estão à espera de um filho, sempre com a participação e mediação de profissionais. Estes encontros se constituem em uma importante fonte de sugestões para poder melhor lidar com a tarefa de educar e partilhar a educação de um filho.

Ao tratar do tema - "Espaço e decoração: os fundamentos contextuais do planejamento educacional" -, o autor revela o que poderíamos chamar de grande destaque do projeto educativo de San Miniato: o contexto e o espaço educativo. Esses elementos marcam profundamente os serviços e dão suporte e visibilidade à competência das crianças. O ambiente é organizado de forma racional e criativa, aberto e fechado, amplo e pequeno, para atividade de pequeno e grande grupo, para o jogo simbólico, para as trocas sociais, para encontrar-se com a vida real, com a fantasia, com os conflitos e os desafios, mas, sobretudo, com uma liberdade que encontra limite na relação com o outro e que é capaz de sustentar o desenvolvimento de uma socialidade complexa. O ambiente é, portanto, promotor de experiências ricas e sensíveis às particularidades das crianças, à sua autonomia por meio da brincadeira prioritariamente livre e espontânea - questões que estão muito claras e pontuadas na "Relação e fazer: as experiências das crianças no contexto educacional".

O tema do contexto e sua imensa capacidade de influenciar na ideia de criança e, é claro, pelo seu valor no projeto educativo, é retomado no subtema da primeira parte da obra - "Experiência e memória: planejar e documentar as experiências - entre a memória do passado e a saudade do futuro". Fortunati retoma premissas fundamentais do projeto sanminiatense, particularmente porque indica que: o contexto adequadamente organizado é capaz de sustentar a ideia de criança competente, ou seja, a representação da criança capaz nasce a partir do momento que essa competência pôde se manifestar em um contexto organizado para permitir que isso acontecesse; o contexto, neste sentido, também provocou mudanças profundas na forma de planejar e documentar as experiências - fugindo das armadilhas das certezas, do adultocentrismo, do planejamento, pois observar, documentar no sentido atribuído na obra, serve para partilhar, refletir (com educadores, pais, crianças) sobre hipóteses, experiências e as constantes inter-relações do cotidiano e não para reduzir cada ato de registro a uma simples função de controle. Portanto, para a experiência relatada, a atuação estratégica do planejamento e da documentação é "a arte de utilizar as informações produzidas na ação [...]" (p. 84) - deve substituir os "programas" construídos por sequências preestabelecidas que são incapazes de abrir-se à imprevisibilidade, ao acaso, fato que empobrece as ricas experiências vividas com as crianças pequenas.

No tema "Gestão - programar e organizar serviços de qualidade", Fortunati discute a necessidade de uma forma diferenciada de gestão que garanta a efetiva qualidade dos serviços educativos. Para tanto, relata a experiência sanminiatense do sistema integrado de serviços para a infância. A perspectiva da integração é entendida como a ampliação e diversificação do sistema da oferta, o que possibilita uma proximidade às diferentes necessidades das famílias. Neste sentido, a racionalidade e a capacidade de gestão equilibrada dos recursos são destacadas como elementos centrais da política educacional para que os serviços possam se expandir e ter qualidade. Na prática, a oferta de serviços e horários diferentes como: creche de tempo parcial, integral, espaço de jogo e brincadeiras; espaços para crianças e famílias; serviços domiciliares; são apresentados como uma experiência que, além de ser eficaz do ponto de vista da qualidade pedagógica, possibilita incluir mais crianças e famílias no sistema educativo sem onerar em excesso os investimentos públicos. Para esse último caso, (investimento), o autor destaca, no subtema "O controle da iniciativa privada e a regulação do sistema integrado de serviços", a crescente participação, nos últimos 20 anos, da iniciativa privada e das cooperativas sociais nos serviços destinados aos pequenos. Para tanto, dois pontos são destacados como fundamentais na relação público/privado na gestão dos serviços: o primeiro é a formação dos professores - gerida e autorizada por órgão público - e o segundo, a regularidade de tempo e presença nos serviços dos educadores e das próprias crianças. Este último aspecto julgo importante porque retoma o conceito básico dos relacionamentos, ou seja, que as crianças nos primeiros anos de vida têm a necessidade de estarem inseridas em contextos sociais e relações estáveis e prolongadas, tanto do ponto de vista dos parceiros das crianças quanto dos educadores.

Na mesma linha de argumentação, na segunda parte do livro, "Um sistema diferenciado de oportunidades para as crianças e as famílias radicado na comunidade: um empenho constante na pesquisa, no desenvolvimento e na inovação", Fortunati mostra como a comunidade de San Miniato, com sua cultura, arquitetura que remonta ao século XVIII, economia girando em torno do curtume calçadista, sede episcopal e forte referência católica, com taxa de empregabilidade feminina acima da média nacional (40%), organiza e faz a gestão dos serviços educativos. Entre os principais aspectos da gestão da educação de zero a 3 anos, é possivel verificar: o cuidado na relação com a qualificação profissional com critérios mínimos de experiência - coordenados pelo município (mesmo que sejam da iniciativa privada ou de cooperativas); a relação número de crianças para cada educador (6 a 8 crianças para cada professor); definição do trabalho do professor como frontal (direto com as crianças) e não frontal (para documentação, atualização contínua). É importante observar que, no trabalho não frontal (quando acontece no horário normal de trabalho sem o contato com as crianças), é mantida a mesma relação criança/educador com a entrada de um professor da cooperativa social. Essa parceria na gestão representa uma tendência de racionalidade na gestão dos custos e na diversificação dos atores envolvidos (público e privado).

Ao caracterizar a rede dos serviços educativos, a obra retrata a ampliação significativa da oferta de vagas e de modalidades de serviços nos últimos anos, fato que representa um índice acima da média da região e do próprio país; no entanto, a cobertura chega em torno de 50% da demanda de 0-3 anos, o que acarreta uma lista de espera.

Ao nos aproximarmos da parte final do livro, o professor Aldo nos brinda com uma belíssima demonstração das 10 escolas infantis de San Miniato, mostrando a história e as características arquitetônicas de cada espaço em ordem cronológica. Vale ressaltar que os nomes destes espaços representam todos os personagens da obra Pinóquio, de Carlo Collodi. A escola de educação infantil "Pinocchio" (Pinóquio), criada no final dos anos 70, foi completamente reformada em 1990 e se caracteriza como a primeira experiência da rede. Com uma arquitetura ampla e racionalmente organizada, com a composição dos grupos por idades mistas, com espaços verdes, laboratórios, áreas de descanso, jogo simbólico, movimento, espaço para trabalho dos professores, recepção de pais, serviu de parâmetro para a construção ou reformas das novas instalações. Assim, a escola de educação infantil "Il Grillo" (O Grilo) foi criada em 1992 e em seguida foi inaugurado, no mesmo local, o espaço de encontro e brincadeira "Il Paese dei Balocchi" (O País dos Brinquedos), em 1993. A escola de educação infantil "Il Gambero Rosso" (O Lagostim Vermelho) foi inaugurada em 1997. Em 1999, abre as portas a escola de educação infantil "Il Gatto e la Volpe" (O Gato e a Raposa). A escola de educação infantil privada "Pollicino" (Pequeno Polegar) foi ativada em 2002 e em seguida vem a ser conveniada ao município. A escola de educação infantil "Lucignolo" (Desengonçado) é inaugurada em 2005. A escola de educação infantil "La Fata Turchina" (A Fada Azul-Turquesa) é inaugurada em 2006, depois de uma grande obra de recuperação de um prédio antigo, que permitiu também a abertura de uma pré-escola no mesmo local. Em 2008, é aberta uma nova escola de educação infantil, "Mastro Ciliegia" (Mestre Cereja).

O autor mostra que, paralelo ao percurso de ampliação da rede de serviços, há um projeto educativo dinâmico e em ação. Por isso também, além de acolher o trabalho de pesquisa e as reflexões desenvolvidas a partir da experiência das escolas, foi criado, no final dos anos 90, o Centro de Pesquisas e de Documentações sobre a Infância "La Bottega di Geppetto" (A Oficina de Geppetto). O centro promove e realiza atividades de pesquisa e documentação relativas às escolas de educação infantil do município de San Miniato, publica livros e revistas sobre as experiências realizadas, promove a formação contínua dos profissionais e, nesse movimento, deixa clara a ideia de que toda experiência que se torna história pode ser qualificada a partir das marcas da própria memória.

A terceira e última parte do livro, "Temas e documentos da exposição - por uma ideia de criança", é caracterizada como uma retomada dos principais conceitos e fatos narrados ao longo da obra. A escolha do autor em marcar esse espaço com fotografias do cotidiano das crianças, dos professores, dos pais, dos momentos de brincadeira, conflitos, sono, da alimentação, do cuidado pessoal, das interações, do jogo simbólico, entre outros, foi a meu ver perfeita, pois mostra acima de tudo o lugar claro e visível do protagonismo que as crianças exercem. Assim, a ideia de criança competente e ativa, indicada no início da obra como balizadora do projeto educativo, é representada com muita sensibilidade e estética, que, aliás, é capaz de provocar um desejo enorme de olhar e reolhar tantas vezes as mesmas imagens com a mesma fascinação da primeira vez. Digo isso porque nesse incansável exercício descubro novos significados, novas possibilidades que me fazem admirar ainda mais essa encantadora experiência.

Fica o convite à leitura, mas com uma ressalva: o livro do professor Aldo Fortunati não é uma obra para uma leitura tradicional. É uma obra rica, para ser lentamente apropriada e experimentada. Talvez assim a experiência relatada de uma educação infantil como um projeto de comunidade possa nos inspirar na construção de caminhos próprios, mas respeitosos com as crianças pequenas e as suas famílias, e se tornar realidade em vários lugares, a exemplo do que é realizado na pequena cidade de San Miniato, na Itália.

Texto recebido em 24 de agosto de 2011.

Texto aprovado em 28 de outubro de 2011.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Abr 2012
  • Data do Fascículo
    Mar 2012
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