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Apresentação

O Dossiê temático "Educação do Campo e Movimentos Sociais: saberes, práticas e políticas" tem por objetivo trazer as contribuições teóricas de autores que vêm se debruçando sobre a pesquisa com os sujeitos do campo. Visa teorizar a prática educativa, política e organizativa da Educação do Campo na sua relação com os movimentos sociais. Além disso, busca refletir sobre as pedagogias construídas pelos(as) trabalhadores(as) do campo na sua luta pela recuperação da humanidade roubada, construída na resistência cotidiana e coletiva aos processos de desterritorialização, provocados pela reprodução ampliada do capital. Busca ainda refletir sobre os avanços e as contradições das políticas públicas que vêm sendo construídas no cenário nacional. Esta reflexão situa o direito à educação, tendo por princípio o enfrentamento das distintas formas de desigualdade social, historicamente construídas. Os artigos também buscam problematizar a relação entre educação e trabalho visando a transformação das práticas educativas nas escolas do campo, em específico nos acampamentos e assentamentos de reforma agrária.

A educação do campo é fruto do protagonismo dos movimentos sociais, a partir das contradições históricas da sociedade de classe. A principal contradição se situa no modelo de organização e desenvolvimento do campo dentro da dinâmica do capitalismo global, que através do processo de acumulação por despossessão (Harvey, 2003HARVEY, David. The New Imperialism. Oxford: Oxford University Press, 2003.) expropria o trabalhador de seus meios de produção e de seu território, subjugando seu trabalho ao capital, gerando resistência e organização de movimentos sociais. O conflito que marca o campo brasileiro e a trajetória da educação do campo caracteriza-se, portanto, como uma reação dos(as) trabalhadores(as) ao processo de exclusão, expropriação, desemprego, e de desigualdades resultantes do desenvolvimento contraditório do capitalismo que se reveste de uma nova roupagem para continuar seu ciclo de reprodução. Isto se evidencia na expansão do agronegócio que, segundo Bernardo Mançano Fernandes (2008FERNANDES, Bernardo M. Questão agrária: conflitualidade e desenvolvimento territorial. In: BUAINAIN, A. M. (Org.). Luta pela terra, reforma agrária e gestão de conflitos no Brasil. Campinas: Unicamp, 2008. p. 173-230.), retrata uma imagem mais moderna da agricultura capitalista, de modo que sua ênfase no caráter produtivista - no aumento da produção, da riqueza e das tecnologias - oculta o seu caráter concentrador e excludente. A expansão do agronegócio tem aumentado a violência no campo, a desterritorialização dos povos tradicionais, a criminalização dos movimentos sociais, a pobreza, com forte impacto sobre as mulheres e, o fechamento das escolas do campo.

É a partir dessa materialidade que podemos compreender a origem e a trajetória da Educação do Campo. A resistência dos camponeses(as), principalmente através da ocupação de terras, que é um desdobramento desta conflitualidade, tem promovido não só a transformação de frações do território do latifúndio em território camponês, mas também trouxe a demanda por e o sentido da educação dos sujeitos do campo. Sendo historicamente excluídos não só do acesso à escolarização, mas, acima de tudo, como produtores de conhecimentos legítimos a serem aprendidos e ensinados nos currículos escolares, os camponeses(as) entram em cena para afirmar a necessidade de políticas públicas que garantam o direito à educação, e o reconhecimento de um saber social, de uma pedagogia produzida na materialidade de seu trabalho e de suas lutas sociais. É este protagonismo dos movimentos sociais, notadamente os de luta pela reforma agrária e, em específico o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, que caracteriza a trajetória da construção da Educação do Campo. Roseli Caldart (2010 CALDART, Roseli. Educação do Campo: notas para uma análise de percurso. In: MOLINA, Mônica (Org.). Educação do Campo e Pesquisa II: questões para reflexão. Brasília: MDA/MEC, 2010.) afirma ser esta a marca mais incômoda da Educação do Campo, e ao mesmo tempo, a sua grande novidade histórica, visto que traz para a cena da história os excluídos do campo, agora como construtores de uma política de educação e de uma reflexão pedagógica.

Alguns processos coletivos marcam essa trajetória: o I Encontro Nacional de Educadoras e Educadores da Reforma Agrária - o I Enera (1997); a implementação do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária - Pronera (1998), através do Ministério do Desenvolvimento Agrário; a I Conferência Nacional por uma Educação Básica do Campo (1998), que ampliava a luta pelo direito à educação para os demais povos do campo; a II Conferência Nacional Por Uma Educação do Campo (2004), que definiu o lema "Educação do Campo: direito nosso, dever do Estado". É a dimensão do direito que traz a Educação do Campo para a esfera da política pública. Embora os sujeitos do campo venham construindo, à margem do sistema, experiências político-pedagógicas com base numa pedagogia crítica, vinculadas à luta pela terra e por um projeto de transformação social, gesta-se uma consciência coletiva de que o direito à educação não se efetiva sem uma política pública de Estado e sem a participação dos povos do campo na sua proposição e implementação.

Ao buscar construir uma política pública para/com/dos povos do campo, das águas e das florestas, o movimento da Educação do Campo instaura uma luta contra-hegemônica, uma vez que disputa frações de um território que historicamente esteve sob a hegemonia do capital. Dentre as conquistas, destacam-se alguns avanços na legislação, em específico, o Decreto nº 7.352 (2010), que dispõe sobre a Política Nacional de Educação do Campo e sobre o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera). Este instrumento jurídico reconhece a obrigatoriedade do Estado em promover intervenções que levem em conta as especificidades da realidade do campo e suas singularidades para que se efetive a universalidade do direito à educação. Este reconhecimento contribui para que os movimentos sociais possam negociar e pressionar os órgãos públicos para a viabilização da educação do e no campo. Por outro lado, com a entrada na política pública, a Educação do Campo corre o risco de ser esvaziada da materialidade de sua origem; as contradições do campo e o protagonismo dos movimentos sociais. Isto se evidencia quando o Estado, através de seus sistemas educacionais, responsáveis pela efetivação das políticas, reduz a Educação do Campo a uma política de educação escolar, desvinculando-a não só das contradições do campo brasileiro, mas também da centralidade dos movimentos sociais na proposição e na implementação do projeto.

Nesse processo, verifica-se a reafirmação da velha e histórica educação rural com uma nova roupagem e um discurso moderno, atualizado pelas novas demandas de reprodução do capital no campo. Disputa-se, assim, não só o conceito da Educação do Campo, mas a lógica e a direção do processo, até porque com o avanço do agronegócio, a reestruturação produtiva está chegando ao campo trazendo a demanda de conhecimentos técnico-científicos mais elevados e, portanto, de políticas públicas de qualificação do trabalhador do campo, dentro da lógica do mercado. Este conceito também é disputado quando entra na academia, até porque no processo de construção do conhecimento, os camponeses, os quilombolas, os povos indígenas, as mulheres tiveram seus saberes deslegitimados, dentro de uma concepção abissal que considera como inexistente ou inferior o que não está nos parâmetros da ciência e do conhecimento moderno, conforme destaca Boaventura de Souza Santos (2007SANTOS, Boaventura de Sousa. Para além do Pensamento Abissal: Das linhas globais a uma ecologia de saberes. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 78, p. 3-46, 2007.).

O Dossiê se compõe de oito artigos, e uma resenha que, de múltiplas formas, analisam as distintas dimensões que configuram essa construção/disputa da Educação do Campo, assim como sua relação com os movimentos sociais e o Estado. Este debate focaliza a educação como formação humana, ora como lugar ampliado, compreendendo os diversos espaços onde os sujeitos se educam, ora relacionada de forma mais explícita com a educação formal. Assume-se aqui que, pelo seu acúmulo teórico-prático e como um conceito em construção, a Educação do Campo já pode ser considerada, nas palavras de Caldart (2012), uma categoria de análise, tanto das práticas como das políticas educacionais.

Para situar o debate do direito à educação dos povos do campo, em um contexto mais amplo, iniciaremos com o artigo "O direito humano à aprendizagem e a aprendizagem dos direitos humanos", de Tristan McCowan, Professor associado em Educação e Desenvolvimento Internacional do Instituto de Educação da Universidade de Londres, traduzido por mim para o Português. Nele, o autor traz presente as justificativas fundamentais e as conceptualizações que têm permeado a educação em direitos humanos, argumentado pela sua inseparabilidade do próprio direito à educação. Com base nas ideias Freirianas sobre o caráter político da educação, defende uma abordagem que ultrapasse o mero ensino dos direitos humanos (sobre) e o desenvolvimento de certas habilidades (para), dando ênfase à vivência dos princípios e de uma cultura de direitos humanos na prática cotidiana, na escola e na política (através). Isto envolve a relação professor-aluno, as formas da pedagogia e o processo de construção do currículo, bem como o cenário mais amplo de tomada de decisões nas instituições e no sistema. Ao invés de justificar o direito à educação apenas na dimensão da socialização e da autonomia, o autor destaca o papel da educação para o processo de compreensão do mundo e de uma ação ética no mundo.

Em "Os Movimentos Sociais e a construção de outros currículos", Miguel G. Arroyo, Professor Titular Emérito da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG, traz a discussão do direito à educação para o contexto do campo e da experiência pedagógica dos movimentos sociais na promoção e luta pelos direitos humanos; conhecimento geralmente ausente, descaracterizado e invisibilizado no currículo escolar. Parte do pressuposto de que a Educação do Campo, indígena, quilombola enquanto proposta pedagógica, somente se efetivará na medida em que ela esteja presente na formação e na prática docente dos educadores e, que o currículo escolar traduza as concepções, os conhecimentos, as culturas e os valores produzidos na diversidade dos movimentos sociais. Ao afirmar o conhecimento como elemento constituinte dos conflitos de classe, não apenas na sua apropriação e segregação, mas na sua produção, destaca a importância de se compreender o papel do conhecimento hegemônico na produção dos diferentes em subalternos. Mostra a necessidade de problematizar como o pensamento moderno, que é abissal, tem legitimado as elites como produtoras e detentoras de conhecimentos válidos a serem aprendidos como conhecimentos universais e, inferiorizado os trabalhadores, os coletivos populares como relegados à ignorância, à irracionalidade, a não verdade, de modo que o saber que produzem na sua prática social não é reconhecido como legítimo para ser ensinado nos currículos escolares, o que contribui para a invisibilização e descaracterização de sua história.

Em "The Landless Voices Database: A Trajectory from Cultural Studies to Pedagogical Impact" (O Banco de Dados Eletrônico Vozes Sem-Terra: uma trajetória dos estudos culturais para o impacto pedagógico), Else R. P. Vieira, Professora Catedrática de Estudos Brasileiros e Latino-Americanos Comparados do Queen Mary College da Universidade de Londres, aborda justamente como uma base de dados, que traz de forma original e incomum a história dos movimentos sociais a partir das vozes de seus protagonistas, pode, por um lado, contribuir para o empoderamento dos mesmos e, por outro, dar visibilidade ao seu conhecimento, sua cultura e o sentido de sua presença histórica. O artigo traz a concepção e os fundamentos da base de dados bilíngue Vozes Sem Terra/ Landless Voices (<http://www.landless-voices.org/>), atualmente hospedada no Queen Mary, University of London, a qual foi compilada no Reino Unido pela própria autora na qualidade de investigadora principal e diretora de pesquisa (Vieira, 2003VIEIRA, Else (Ed). The Sights and Voices of Dispossession: The Fight for the Land and the Emerging Culture of the MST. University of Nottingham, 2003. Disponível em: <http://www.landless-voices.org>. Acesso em: 12 jun. 2014.
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). Na sequência faz uma análise de seu impacto social, da contribuição da pesquisa acadêmica para a sociedade em geral. Os dados revelam que sua introdução nos currículos de formação de professores contribuiu para gerar conhecimento novo, e com isto questionar/modificar atitudes e visões preconceituosas e pejorativas sobre a luta do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e a cultura de seus sujeitos, propagadas, especialmente pela mídia brasileira. Mostram ainda que o uso da base de dados nas escolas de assentamentos de reforma agrária (São Paulo e Paraná) tem possibilitado com que os adolescentes e crianças possam ter maior contato com a sua história e a memória da luta, o que contribui para fortalecer o seu sentimento de pertença a um movimento social, tendo em vista que, muitas vezes, é na escola que eles aprendem a sentir vergonha de serem Sem Terra. A pesquisa de impacto foi desenvolvida através da parceria da Universidade Inglesa com a Universidade Federal do Paraná e da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, respectivamente através dos pesquisadores Sônia Fátima Schwendler e Bernardo Mançano Fernandes.

A seguir, Sônia Fátima Schwendler, Professora associada do Setor de Educação da Universidade Federal do Paraná, nos remete para uma reflexão sobre a educação não formal que ocorre na luta pela terra a partir da intencionalidade pedagógica da luta de gênero, protagonizada pelas mulheres trabalhadoras do campo que constituem o coletivo/setor de gênero dentro da estrutura organizacional do MST. Em seu texto "O processo pedagógico da luta de gênero na luta pela terra: o desafio de transformar práticas e relações sociais" traz análises e sínteses que compõem a sua tese de doutorado (Schwendler, 2013SCHWENDLER, Sônia Fátima. Women's Emancipation through Participation in Land Struggle. Tese (Doutorado) - University of London, London, 2013.), defendida na Universidade de Londres. O artigo evidencia que o movimento social de luta pela terra, em sem processo organizativo, dinamiza experiências sociopolítico-educativas que têm sido fundantes não só para a mutação das relações e identidades de gênero, mas também para a produção de um capital social e político da mulher camponesa, contribuindo para seu empoderamento. Considerando a literatura na área da educação, que tem demonstrado que a luta social carrega uma pedagogia que educa quem dela participa e afirma o movimento social como um sujeito pedagógico, ressalta por um lado, o significado político e pedagógico da participação das mulheres nos espaços estratégicos da luta de classe e, por outro, enfatiza o papel da teoria feminista e da auto-organização das mulheres na alteração das relações de gênero e na (re)construção da sua identidade política. De forma crucial, o artigo chama a atenção para a importância da incorporação do gênero como uma categoria de análise no processo de percepção e transformação das relações sociais; categoria esta ausente de modo geral no trabalho pedagógico escolar, inclusive nas escolas do campo.

Natacha Eugênia Janata, Professora adjunta da Universidade Federal de Santa Catarina, lança seu olhar para o processo formativo omnilateral de outro segmento, os jovens do campo, a quem tem sido negado historicamente o direito à educação. No artigo "A formação de jovens do campo e o vínculo entre conhecimento, trabalho e educação: um estudo do Colégio Estadual do Campo Iraci Salete Strozak", vinculado à sua tese de doutorado em educação (Janata, 2012JANATA, Natacha. "Juventude que ousa lutar!": trabalho, educação e militância de jovens assentados do MST. Tese (Doutorado) - Universidade Federal de Santa Catarina, 2012.), a autora faz uma análise da relação entre trabalho, escolarização e militância da juventude nos assentamentos, tendo como referência os jovens que concluíram o Ensino Médio numa escola de assentamento do MST. Situando-a no interior das relações capitalistas de produção da vida, e no contexto do desmonte da educação pública, em especial na condição específica da oferta da Educação no Campo, negligenciada historicamente em decorrência da expansão do capital que privilegia a educação nas cidades, o artigo identifica os limites da escola no processo de socialização do conhecimento e de sua articulação com a vida. Por outro lado, destaca as suas potencialidades na formação dos jovens, em especial pelo seu vínculo orgânico com o movimento social, o que possibilita a construção de experiências de educação emancipatória, com destaque para a participação dos estudantes na gestão dos processos educativos escolares e seu envolvimento na militância social.

Dando continuidade à reflexão em torno do chão da escola, o artigo "Escola Itinerante: espaço de disputa e contradição", de Marlene Lucia Siebert Sapelli, Professora Adjunta do Departamento de Pedagogia da Universidade Estadual do Centro-Oeste do Paraná, apresenta a experiência de escola desenvolvida pelo MST do Paraná, no território da luta pela terra, os acampamentos. Instituída oficialmente a partir de 2003, como escola itinerante - pois acompanha o itinerário das famílias acampadas em situação de provisoriedade -, e vinculada institucionalmente à rede estadual de educação, através de uma escola base, através do Colégio Estadual do Campo Iraci Salete Strozak, esta proposta se coloca na perspectiva da construção de uma educação contra-hegemônica, a partir da autogestão da classe trabalhadora, e da construção de formas e conteúdos que alterem o modelo de educação vigente. A autora mostra que a escola Itinerante busca a garantia do direito à educação, em um contexto contraditório, onde as formas escolares, e os sujeitos que as constroem carregam as marcas de um modelo de educação hierarquizada, fragmentada, descolada da realidade social e de se seus processos formativos, em especial de seu vínculo com o trabalho, a cultura, a história e as lutas sociais. O artigo analisa também a construção da proposta dos Complexos de Estudo, implementada na Escola Itinerante e na escola base a partir de 2013, no intuito de instituir uma proposta educativa que vincule os conhecimentos socialmente produzidos pela humanidade, com as questões da realidade, o trabalho socialmente necessário e o processo de auto-organização dos estudantes.

A reflexão sobre o trabalho pedagógico nas escolas do campo traz o desafio da formação dos professores. O artigo "Expansão das licenciaturas em Educação no Campo: desafios e potencialidades", de Monica Castagna Molina, Professora Adjunta da Universidade de Brasília, se propõe a problematizar a implementação dos cursos de graduação para professores do Ensino Fundamental (fase II) e Ensino Médio da Educação do Campo, instituídos no âmbito das políticas afirmativas, em decorrência da histórica desigualdade na garantia do direito à educação aos povos do campo. A autora analisa os desafios e as potencialidades desta implementação, situando-a no contexto das tensões e contradições presentes tanto nas políticas de expansão da educação superior no Brasil, bem como na ampliação do modelo de desenvolvimento hegemônico no campo, estruturado a partir do agronegócio. Demonstra que a estratégia do ingresso dos povos do campo na universidade, a participação dos movimentos sociais na execução de políticas públicas por eles conquistadas, o vínculo dos educandos das licenciaturas com a escola do campo, a organização através da alternância entre o período de formação teórica e a vivência da prática pedagógica nas comunidades camponesas e, a formação por áreas de conhecimento se colocam como um grande desafio na medida em que ocorre a institucionalização das Licenciaturas em Educação do Campo, visto que sua proposta contrasta com o modelo hierarquizado, disciplinar e elitizado da educação superior brasileira. Por outro lado, a implementação destas licenciaturas dá visibilidade ao movimento da Educação do Campo, potencializando a conquista de políticas públicas, a consolidação como área de produção de conhecimento e a modificação das condições para o trabalho pedagógico escolar.

Sonia Meire S. Azevedo de Jesus, Professora do Departamento de Educação da Universidade Federal de Sergipe, se propõe a problematizar a Educação do Campo, no contexto das políticas governamentais. O artigo "Educação do campo nos governos FHC e Lula da Silva: potencialidades e limites de acesso à educação no contexto do projeto neoliberal" analisa a conjuntura em que se gestou a política pública de Educação do Campo, tendo com referência os governos de Fernando Henrique Cardoso (1998-2002) e Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010), e suas respectivas ações econômicas e políticas, assim como o papel dos movimentos sociais na construção da educação para os povos do campo. Em sua análise destaca as contradições dos programas governamentais. Demonstra que a implementação do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (1998), pelo Ministério de Desenvolvimento Agrário, através do Instituto de Colonização e Reforma Agrária, por um governo que institui o processo de criminalização dos movimentos sociais que lutam pela terra, retrata, por um lado, a contensão das demandas sociais e, por outro, uma resposta governamental às pressões dos órgãos internacionais de direitos humanos. Embora destaque alguns avanços alcançados no período governamental subsequente, em especial a aprovação de marcos legais, como o Decreto de nº 7.352 de 4 de novembro de 2010, que dispõe sobre a política de Educação do Campo e o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária, ressalta que a desigualdade histórica do acesso à educação dos povos do campo ainda tem sido enfrentada através de programas à margem do sistema educacional. Este artigo reafirma que a mudança governamental não é o suficiente para provocar a transformação da materialidade do aparelho de Estado, como afirma Nicos Poulantzas (1990POULANTZAS, Nicos. O estado, o poder e o socialismo. Rio de Janeiro: Graal, 1990.). A Educação do Campo constitui-se como um exemplo de como ações desenvolvidas a partir do protagonismo dos movimentos sociais, quando institucionalizadas, perdem parte do seu potencial de disputa contra-hegemônica.

Por fim, a resenha de autoria de Cecília Maria Ghedini, professora da Universidade Estadual do Oeste do Paraná, apresenta a obra "Escola em Movimento: Instituto de Josué de Castro", organizada por Roseli Caldart (2013), que se constitui numa grande contribuição para compreender as apropriações teóricas do campo socialista na constituição de uma nova práxis educacional, desenvolvida pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), na trajetória dos 18 anos do Instituto de Educação Josué de Castro (IEJC), fundado em 1995, em Veranópolis (RS). O livro retrata o processo formativo em nível médio e de educação profissional e, posteriormente, de educação superior, de estudantes que se qualificaram não só profissionalmente, mas também desenvolveram uma capacidade político-organizativa para intervir no contexto do campo. Sua formação esteve calcada no trabalho como princípio educativo, na auto-organização dos estudantes e na participação coletiva na escola.

Este dossiê é um convite para quem quiser conhecer ou se aprofundar nos saberes, nas práticas e nas lutas pelas políticas dos sujeitos do campo, construídas a partir de sua organização em movimentos sociais e da proposição de um novo paradigma teórico-prático: a Educação do Campo.

Sônia Fátima Schwendler

Organizadora

  • CALDART, Roseli. Educação do Campo: notas para uma análise de percurso. In: MOLINA, Mônica (Org.). Educação do Campo e Pesquisa II: questões para reflexão. Brasília: MDA/MEC, 2010.
  • CALDART, Roseli. Educação do Campo. In: CALDART, RoseliS. et al. (Orgs.). Dicionário da educação do campo. Rio de Janeiro: IESJV; Fiocruz; Expressão Popular, 2012.
  • FERNANDES, Bernardo M. Questão agrária: conflitualidade e desenvolvimento territorial. In: BUAINAIN, A. M. (Org.). Luta pela terra, reforma agrária e gestão de conflitos no Brasil. Campinas: Unicamp, 2008. p. 173-230.
  • HARVEY, David. The New Imperialism. Oxford: Oxford University Press, 2003.
  • JANATA, Natacha. "Juventude que ousa lutar!": trabalho, educação e militância de jovens assentados do MST. Tese (Doutorado) - Universidade Federal de Santa Catarina, 2012.
  • POULANTZAS, Nicos. O estado, o poder e o socialismo. Rio de Janeiro: Graal, 1990.
  • SANTOS, Boaventura de Sousa. Para além do Pensamento Abissal: Das linhas globais a uma ecologia de saberes. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 78, p. 3-46, 2007.
  • SCHWENDLER, Sônia Fátima. Women's Emancipation through Participation in Land Struggle. Tese (Doutorado) - University of London, London, 2013.
  • VIEIRA, Else (Ed). The Sights and Voices of Dispossession: The Fight for the Land and the Emerging Culture of the MST. University of Nottingham, 2003. Disponível em: <http://www.landless-voices.org>. Acesso em: 12 jun. 2014.
    » http://www.landless-voices.org

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Mar 2015

Histórico

  • Recebido
    15 Fev 2015
  • Aceito
    06 Mar 2015
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