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Decolonialidade e educação infantil: para pensar uma pedagogia da infância

RESUMO

O foco temático desse ensaio teórico, ancorado na linguagem, tematiza a criança e a educação infantil desde um discurso decolonial. Problematizar a perspectiva colonial de educação, criança e educação infantil anuncia-se como sua intencionalidade. A problemática pode ser assim formulada: Quais as implicações de uma postura decolonial na educação das crianças da educação infantil? O percurso da reflexão se organiza em três movimentos. O primeiro centra-se nas discussões conceituais dos termos colonial, descolonizar, pós-colonialismo e decolonialidade. O segundo visita o discurso colonial moderno de criança e o ideário pedagógico que o sustenta. E, por fim, um terceiro movimento que tece considerações acerca do discurso decolonial e suas implicações a uma pedagogia para a educação infantil. O percurso reflexivo permite visualizar que os ideários pedagógicos dominantes na educação das crianças são colonizadores. Assim, sustenta-se que uma ruptura na perspectiva colonizadora requer decolonizar o poder; o saber; o ser; o viver, o olhar e o pensamento predominante da educação das crianças, para pensar uma pedagogia decolonial da/para/com a infância.

Palavras-chave:
Decolonialidade; Educação Infantil; Criança; Infância

ABSTRACT

The thematic focus of this theoretical essay, anchored in language, thematizes the child and early childhood education from a decolonial discourse. Problematizing the colonial perspective of education, children and early childhood education is announced as its intentionality. The problem can be formulated as this: What are the implications of a decolonial attitude in the education of early childhood education children? The path of reflection is organized into three movements. The first focuses on conceptual discussions of colonial terms, decolonization, postcolonialism and decoloniality. The second visits the modern colonial discourse of children and the pedagogical heritage that sustains it. And, finally, a third movement that weaves considerations about the decolonial discourse and its implications for a pedagogy for early childhood education. The reflexive path allows us to visualize that the dominant pedagogical idearies in the education of children are colonizers. Thus, it is maintained that a rupture in the colonizing perspective requires decolonizing power; knowledge; the being; the predominant life, gaze and thought of children’s education, to think about a decolonial pedagogy of/to/with childhood.

Keyword:
Decoloniality; Early Childhood Education; Child; Childhood

Introdução

O foco temático deste ensaio teórico é a concepção decolonial de infância e suas implicações na educação infantil. Supõe que as práticas de educação infantil se pautam por concepções da infância. Na contemporaneidade, essa discussão foi introduzida por Ariès (1981ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Guanabara, 1981.) e Postman (1999POSTMAN, Neil. O desaparecimento da infância. Rio de Janeiro: Graphia, 1999.), criando os conceitos de “sentimento de infância” e “desaparecimento da infância”, respectivamente, referindo-se à concepção moderna de infância, ligada aos segredos e tabus culturais que separaram as crianças modernas dos adultos até a década de 1950. Desde que os meios audiovisuais de comunicação tornaram acessíveis às crianças as informações sobre o mundo adulto e sobre a diversidade das exigências morais que se impõem a elas, os adultos veem-se obrigados a justificar seus pontos de vista. Em quase todas as casas e salas de aula, Mafalda, Armandinho e Maximilien, entre inúmeras crianças resistentes à normalização, estão a formular perguntas, a argumentar e a cobrar explicações e justificativas (Lavado, 2014LAVADO, Joaquín Salvador (Quino). Toda Mafalda. 29. ed. Buenos Aires: Ediciones de la Flor, 2014.; Beck, 2014BECK, Alexandre. Armandinho Um. Guarulhos: Matrix, 2014.; Pennac, 2009PENNAC, Daniel. Mágoas da escola. 2 ed. Lisboa: Porto, 2009.).

Em diferentes condições sociais de vida, as crianças exercem um poder sobre os adultos que não se reduz às exigências de que atendam suas necessidades fisiológicas. Seu conhecimento precoce, em especial, das “[...] ofertas e apelos publicitários do mercado torna-as exigentes com os pais e docentes” (Pennac, 2009PENNAC, Daniel. Mágoas da escola. 2 ed. Lisboa: Porto, 2009., p. 196-197). Ao mesmo tempo, desde cedo, de múltiplas fontes do mundo social adulto, obtêm critérios a partir dos quais se “[...] autorizam a expressar suas necessidades, selecionar modelos de comportamento e reinterpretar as exigências dos adultos” (Charlot, 1983CHARLOT, Bernard. A mistificação pedagógica. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1983., p. 244). Por essa razão, os desejos das crianças devem ser interpretados, não como voz da natureza, mas como sendo ativados e dirigidos por condicionantes econômicos, sociais e culturais (Snyders, 2001SNYDERS, Georges. Para onde vão as pedagogias não-diretivas? 3. ed. São Paulo: Centauro, 2001.). Atualmente, “[...] os mais influentes pedagogos e formuladores de políticas infantis são os produtores empresariais de kindercultura”, na qual a educação é entrelaçada com entretenimento e comércio (Steinberg, 1997STEINBERG, Shirley R. Kindercultura: a construção da infância pelas grandes corporações. In: SILVA, Luiz Heron da; AZEVEDO, José Clóvis; SANTOS, Edimilson Santos dos (Orgs.). Identidade social e a construção do conhecimento. Porto Alegre: Secretaria Municipal de Educação de Porto Alegre - Prefeitura Municipal de Porto Alegre, 1997. p. 98-145., p. 113-114).

O acesso das crianças ao mundo adulto, através dos meios eletrônicos da hiper-realidade, tem subvertido a percepção que elas têm de si próprias, percepção que “não combina com instituições tais como a família tradicional ou a escola autoritária, instituições, ambas, fundadas numa visão das crianças como incapazes de tomar decisões sozinhas” (Steinberg, 1997STEINBERG, Shirley R. Kindercultura: a construção da infância pelas grandes corporações. In: SILVA, Luiz Heron da; AZEVEDO, José Clóvis; SANTOS, Edimilson Santos dos (Orgs.). Identidade social e a construção do conhecimento. Porto Alegre: Secretaria Municipal de Educação de Porto Alegre - Prefeitura Municipal de Porto Alegre, 1997. p. 98-145., p. 125). Explorando a fantasia e o desejo, os funcionários corporativos das corporações empresariais que produzem a kindercultura “criaram uma perspectiva cultural que se funde com ideologias empresariais e com valores de livre mercado” (Steinberg, 1997, p. 103). A Disney, por exemplo, “agora fornece modelos e protótipos para as famílias, escolas e comunidades” (Giroux, 1995GIROUX, Henry Armand. A disneyzação da cultura infantil. In: SILVA, Tomaz Tadeu da; MOREIRA, Antonio Flávio (Orgs.). Territórios contestados: o currículo e os novos mapas políticos e culturais. Petrópolis: Vozes, 1995, p. 49-81., p. 55). Do ponto de vista do currículo, as reformas empresariais do ensino não parecem se distinguir dessa perspectiva cultural, que pode ser considerada como tendo um caráter claramente colonizador das subjetividades infantis.

A discussão crítica da influência da pedagogia empresarial na formação do ambiente simbólico em que nós e nossas crianças vivemos, para a qual nos convoca Giroux (1995GIROUX, Henry Armand. A disneyzação da cultura infantil. In: SILVA, Tomaz Tadeu da; MOREIRA, Antonio Flávio (Orgs.). Territórios contestados: o currículo e os novos mapas políticos e culturais. Petrópolis: Vozes, 1995, p. 49-81. p. 72), remete-nos ao campo de pensamento em que se distinguem e articulam os conceitos de “educação infantil colonizadora”, “descolonizadora”, “pós-colonial” e “decolonial”. A ideia é pensar possibilidades de uma pedagogia decolonial das/para/com as infâncias. Um dos pressupostos é que a perspectiva decolonial não visa apenas às culturas infantis, mas igualmente às culturas docentes dos adultos, responsáveis pela educação infantil. Diante do exposto, cabe perguntar: quais são as implicações de uma postura decolonial para a educação infantil, considerando a diversidade de condições sociais em que vivem as crianças pequenas que acessam as instituições de educação e cuidado?

Do ponto de vista teórico-metodológico, esse ensaio teórico dialoga com o entendimento da criança/infância como produtoras e produzidas pela linguagem. A linguagem anuncia-se como horizonte e possibilidade de entendimento e de constituição do humano. A criança anuncia-se, desse modo, como ser que se constrói como humano pelas múltiplas linguagens, o que não exclui a possibilidade da desumanização.

O percurso da reflexão organiza-se em três movimentos. O primeiro centra-se nas discussões conceituais dos termos colonial, descolonizar, pós-colonialismo e decolonialidade. O segundo visita o discurso colonial de criança e o ideário pedagógico que o produziu e que o sustenta. E, por fim, um terceiro movimento que tece considerações acerca das implicações de uma educação/docência decolonial com as crianças da educação infantil a partir de uma pedagogia da infância alicerçada em uma perspectiva decolonial. Torna-se nítido ao longo do movimento reflexivo que os ideários pedagógicos dominantes na educação das crianças foram construídos a partir de uma perspectiva colonizadora. Sustenta-se que uma ruptura na perspectiva colonizadora requer decolonizar o poder, o saber, o ser, o viver, o olhar e o pensamento predominantes no discurso de educação das crianças.

Colonizar, descolonizar, pós-colonialismo e decolonialidade

A distinção e a articulação entre os termos “colonizar”, “descolonizar”, “pós-colonial” e “decolonialidade” anuncia-se como chave de leitura do fenômeno da dominação política, econômica, cultural e religiosa, característico da modernidade, mas que se estende a uma pluralidade de fenômenos de nosso tempo. A partir desse horizonte terminológico, pode-se pensar a identidade, a diferença e a contradição nas relações de classe, de gênero, de etnias, de gerações, em que se incluem as concepções de infância. Pensar uma pedagogia das infâncias em uma perspectiva decolonial implica posicionar-se lucidamente em relação aos discursos convergentes e dissonantes sobre a identidade, diferença e contradição das condições infantis na atualidade e sobre as implicações disso para a educação das infâncias.

A colonização é um fenômeno inerente à expansão e à conquista territorial e espiritual do processo modernizador (Dussel, 1993DUSSEL, Enrique. 1492 - o encobrimento do outro: a origem do mito da modernidade: Conferências de Frankfurt. Petrópolis: Vozes, 1993.). Diz respeito às múltiplas formas de dominação dos povos colonizados pelas metrópoles. Desde o começo da época moderna, apresenta-se como forma de dominação política, militar e econômica de Estados, e de empresas chanceladas por estes, sobre outras comunidades étnico-culturais, do próprio território e de outros. Mais ou menos predatória, saqueadora e destrutiva em relação aos modos de vida dos povos originários da América, África e Ásia, a colonização constituiu uma condição necessária ao processo civilizador europeu. No que tange ao caráter violento e espoliador, o (neo)colonialismo que remonta ao período pós-revolução industrial só é “novo” porque mais sofisticado. O sistema de acumulação capitalista, respaldado pelos Estados europeus e norte-americano e propenso à crise, só se sustenta mediante “um processo confiscatório contínuo”, mediante a “expropriação de ‘outros’ racializados”, persistentemente entrelaçada com o imperialismo e a opressão racial (Fraser; Jaeggi, 2020FRASER, Nancy; JAEGGI, Rahel. Capitalismo em debate: uma conversa na teoria crítica. São Paulo: Boitempo, 2020., p. 60).

O termo “colonialismo”, portanto, se refere a formas de exercer o poder (e/ou de praticar a violência) por determinado centro que subjuga e instrumentaliza comunidades socioculturais diferentes. Busca-se legitimar com alegações de tipo salvacionista, na pretensão de convencer os povos “atrasados” de que o processo civilizador lhes é ou será econômica, política e culturalmente benéfico. Assim, se compreende o pensamento colonizador e colonizado como uma invenção da modernidade, uma invenção “das classes dominantes europeias, que pretendiam universalizar o etnocentrismo europeu, o eurocentrismo, gerador de relações de colonialidade e subalternização dos povos conquistados” (Koch; Fleuri, 2019KOCH, Simone Riske; FLEURI, Reinaldo Matias. Diversidade e Sociedade. Chapecó: Argos, 2019., p. 42). No caso brasileiro, a colonização se orientava pela intenção de “demarcar e conquistar o território, dominar e explorar seus recursos” (Koch; Fleuri, 2019, p. 51).

No século XVI, o discurso colonizador foi dirigido, sucessiva e cumulativamente, aos povos originários, aos afrodescendentes escravizados, aos mestiços da terra e, por fim, à colônia como um todo. Seja quem for seu destinatário, o discurso colonial classifica e hierarquiza” as populações pelos critérios de raça, com a pretensão de civilizar as raças “inferiores”, no caso, os originários e os pretos (Koch; Fleuri, 2019KOCH, Simone Riske; FLEURI, Reinaldo Matias. Diversidade e Sociedade. Chapecó: Argos, 2019., p. 51). Desse modo, o processo civilizador é entendido em articulação conceitual com o (seu) reverso das identidades colonizadas.

A expressão “identidades colonizadas” exige a distinção terminológica entre “colonialismo” e “colonialidade. O primeiro termo designa uma relação de cunho econômico e político na dominação de um povo sobre o outro”; já o termo “colonialidade” denota relações de dominação estendidas “[...] às relações intersubjetivas do ponto de vista racial entre dominantes e dominados” (Souza; Gouvêa Neto, 2021SOUZA, Andréa Silveira de; GOUVÊA NETO, Ana Luíza. Relações de poder, gênero e religião. Chapecó, Argos, 2021., p. 21); alude a “[...] situações de opressão diversas, definidas a partir de fronteiras de gênero, étnicas ou raciais” (Costa, 2006COSTA, Sergio. Desprovincializando a sociologia: a contribuição pós-colonial. Revista Brasileira de Ciências Sociais [online]. v. 21, n. 60, p. 117-134, 2006. https://doi.org/10.1590/S0102-69092006000100007
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, p. 117); denota que a (des)classificação racial/étnica como critério de dominação “[...] opera em cada um dos planos, âmbitos e dimensões materiais e subjetivas, da existência social cotidiana e da escala social” (Quijano, 2000QUIJANO, Anibal. El fantasma del desarrollo em América Latina. In: ACOSTA, Alberto. El desarrollo en la globalización: el reto de América Latina. Quito: Nueva Sociedad, 2000., p. 342).

Assim, a cosmovisão eurocêntrica estabeleceu-se como parâmetro para subjugar e remediar as demais culturas em todas as suas dimensões e detalhes. Em relação ao que dos outros é declarado “primitivo” ou “atrasado” pelo discurso colonizador, este mesmo se autoproclamando capaz e benevolente para acelerar seu desenvolvimento. A propósito, visando à homogeneização sociocultural, esse discurso aponta como fatores de atraso a miscigenação étnica e a diversidade cultural brasileiras.

Outro componente da constelação de termos em pauta nesta seção é “descolonização”. Esse termo sugere uma superação do colonialismo. Portanto, seu sentido difere do de “decolonialidade” (Walsh, 2009WALSH, Catherine. Interculturalidad, Estado, Sociedad. Luchas (de)coloniales de nuestra época. Quito: Abya-Yala, 2009., p. 14). Descolonizar visa a algo como desfazer ou desmanchar o colonial, ou fazer uma assepsia do processo colonizador. Ora, não parece possível apagar tudo o que a colonização impôs. Como uma das faces obscuras da modernidade, a colonialidade “permanece operando ainda nos dias de hoje em um padrão mundial de poder” (Koch; Fleuri, 2019KOCH, Simone Riske; FLEURI, Reinaldo Matias. Diversidade e Sociedade. Chapecó: Argos, 2019., p. 39). Enquanto tal, a colonialidade não se ausentou.

O adjetivo “decolonial” adere ao conjunto multiforme de esforços para transcender o colonial remanescente e operante. Indica que o que se busca é uma luta constante, uma construção, a busca por alternativas, a fim de traçar um rumo novo para os povos” (Koch; Fleuri, 2019KOCH, Simone Riske; FLEURI, Reinaldo Matias. Diversidade e Sociedade. Chapecó: Argos, 2019., p. 39). Significa reconhecer os estados coloniais e, a partir deles, resistir e transgredir. Assim, o decolonial denota “um caminho contínuo de luta, no qual se pode identificar, visibilizar e encorajar ‘lugares’ de exterioridade e construções alternativas” (Walsh, 2012WALSH, Catherine. Interculturalidad y (de)colonialidad: perspectivas críticas y políticas. In: CONGRESSO DA ASSOCIATION INTERNATIONALE POUR LA RECHERCHE INTERCULTURELLE (ARIC), 12, 2012. Anais... Florianópolis: UFSC, 2012., p. 25).

Um termo que se soma a esses discursos de ruptura epistêmica é o “pós-colonialismo”. Para Santos (2008SANTOS, Boaventura Sousa. Do pós-moderno ao pós-colonial. E para além de um e outro. Travessias, n. 6-7, 2008. https://estudogeral.uc.pt/handle/10316/43227
https://estudogeral.uc.pt/handle/10316/4...
, p. 20), ele expressa uma postura crítica em relação ao universalismo e ao historicismo, colocando sob suspeita o ocidente como centro do mundo e anunciando a ideia da exaustão da modernidade ocidental, o que “[..] facilita a revelação do carácter invasivo e destrutivo da sua imposição no mundo moderno.” Nesse sentido, os estudos pós-coloniais rompem com as bases epistemológicas das disciplinas científicas modernas: acolhendo e amplificando as vozes dos(as) excluídos(as), os(as) outros(as) ausentes dos discursos dominantes, desconstroem as “fronteiras disciplinares, articulando História, Sociologia, Antropologia, Literatura e Arte” (Faria et al., 2015FARIA, Ana Lúcia Goulart de; BARREIRO, Alex; MACEDO, Elina Elias de; SANTIAGO, Flávio; SANTOS, Solange Estanislau dos. Invitações Pós-coloniais. In: FARIA, Ana Lúcia Goulart de; BARREIRO, Alex; MACEDO, Elina Elias de; SANTIAGO, Flávio; SANTOS, Solange Estanislau dos (Orgs.). Infâncias e pós-colonialismo: pesquisas em busca de pedagogias descolonizadoras. Campinas: Leitura Crítica: Associação de Leitura do Brasil - ALB, 2015. p. 11-24., p. 12). O pensamento pós-colonialista “promove a desconstrução dos essencialismos, diluindo as fronteiras culturais e fazendo críticas ao processo de criação do conhecimento científico”; desse modo, os discursos coloniais eurocêntricos e etnocêntricos que submetem e dominam povos, nações e sujeitos. “Busca criar espaços por meio dos quais os sujeitos subalternos possam falar quando desejarem e serem ouvidos”. O enfoque pós-colonial trabalha teoricamente “contra a subalternização, criando espaços nos quais os diferentes sujeitos possam se articular e, como consequência, possam também ser ouvidos” (Faria et al., 2015, p. 13).

Dentre os termos mencionados e definidos, “decolonial” é assumido como basilar para as reflexões a seguir. Esse termo põe em questão os processos de dominação oriundos da economia, da política, da religião, da cultura e busca afirmar o local, as tradições dos povos subjugados por séculos de dominação. Anuncia-se como uma postura crítica. Corroborando este entendimento, Walsh “[...] utiliza o termo ‘decolonial’, pois implica num empenho, numa diligência incessante com o objetivo de resistir e transpor” (apudKoch; Fleuri, 2019KOCH, Simone Riske; FLEURI, Reinaldo Matias. Diversidade e Sociedade. Chapecó: Argos, 2019., p. 39). Entende-se, desse modo, que, na tematização das concepções de infância, não se trata de um descolonizar e tampouco de um pós-colonial, uma vez que ambos os termos apresentam limites de entendimento, e vivemos em uma contemporaneidade profundamente marcada por contextos ainda colonizados, mesmo com a constante presença da crítica, da resistência e de rupturas nos discursos colonizadores.

Crianças e infâncias: ideários pedagógicos colonizadores

A escola que conhecemos é uma invenção da modernidade. Ela foi inventada para fabricar o sujeito projetado pelos idealizadores desse novo tempo; em outras palavras, para transformar os seres humanos “de selvagens em civilizados” (Veiga-Neto, 2007, p. 98-99). A moderna organização do trabalho demandava uma nova cultura do tempo, diversa da medieval e que teria de ser aprendida. Para isso, mostrou-se eficaz a estratégia educacional de submeter as pessoas, desde a infância, a vivências inscritas em grades de horários, vigentes em espaços emparedados. Assim, a escola realizou a “regulamentação social do tempo”, visando “obter certos resultados morais e culturais nas novas gerações” (Petitat, 1994PETITAT, André. Produção da escola, produção da sociedade. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994., p. 91). Moldou as subjetividades corporais para as formas de viver socialmente o espaço e o tempo exigidas pelas formas modernas de organização do trabalho. Ou seja, a escola moderna serviu para ensinar as crianças a ocuparem o tempo de forma simultânea, padronizada e disciplinada, como será preciso em seus futuros postos de trabalho. Especialmente, desse modo, a instituição escolar contribuiu para trazer os novos ao mundo comum da modernidade. A questão que se coloca é: como este processo tem sido conduzido no mundo ocidental?

Diferentes matrizes de pensamento foram e são referência para pensar os processos pedagógicos e educativos das crianças. Neste sentido, como ponderam Faria et al. (2015FARIA, Ana Lúcia Goulart de; BARREIRO, Alex; MACEDO, Elina Elias de; SANTIAGO, Flávio; SANTOS, Solange Estanislau dos. Invitações Pós-coloniais. In: FARIA, Ana Lúcia Goulart de; BARREIRO, Alex; MACEDO, Elina Elias de; SANTIAGO, Flávio; SANTOS, Solange Estanislau dos (Orgs.). Infâncias e pós-colonialismo: pesquisas em busca de pedagogias descolonizadoras. Campinas: Leitura Crítica: Associação de Leitura do Brasil - ALB, 2015. p. 11-24., p. 15), a criança “[...] está sujeitada aos mecanismos e dispositivos que produzem o seu lugar de ser e estar socialmente”. Ou seja, está submetida a ideias, valores, costumes e crenças produzidas e transmitidas pelo mundo adulto. Ela é, portanto, objeto de investimento e não sujeito. Os processos pedagógicos que submetem a criança ao exercício de poder dos adultos, legitimados por discursos sobre a infância, são colocados em questão pela perspectiva decolonial. Esses discursos legitimadores da objetificação das crianças têm sido produzidos a partir das modernas matrizes teóricas, entre elas, a religiosa, a naturalista e a evolucionista.

Na obra de João Amós Comenius (2006COMENIUS, Jan Amos. Didática Magna. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.), entrelaçam-se as matrizes religiosa e naturalista da infância. O patrono da didática moderna atribui à pedagogia e ao educador a tarefa de auxiliar na condução da criança nos caminhos da salvação. Dessa forma, a educação do infante, tal qual uma arvorezinha, requer ser cultivada, aprimorada em suas capacidades racionais e morais que o conduzam a Deus. Tal qual uma planta frutífera que, para produzir bons frutos, requer ser modelada, cultivada, irrigada, podada. O ser humano necessita ser cultivado, ou seja, “[...] este não poderá tornar-se animal racional, sábio, honesto e piedoso se antes não forem nele enxertados os brotos da sabedoria, da honestidade, da piedade” (Comenius, 2006, p. 77).

A compreensão da criança como uma planta a ser cultivada orienta, por sua vez, uma perspectiva psicológica e pedagógica. A cada grau ou etapa (infância, juventude e adulta) do desenvolvimento corresponde uma determinada pedagogia. Comenius (2006COMENIUS, Jan Amos. Didática Magna. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.) sublinha que a atividade educativa necessita ser ordenada, dirigida; não pode permanecer livre, à sorte dos acontecimentos; nem deve ser governada pelo caos, tampouco pelos aprendizes. Para Narodowski (2001NARODOWSKI, Mariano. Comenius & a educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2001., p. 45), Comenius considera a infância a partir da noção de falta e, portanto, como “um lugar que existe porque deve ser completado”; a partir disso, Comenius “instala, na Pedagogia, a imaturidade como inferência necessária e óbvia da existência da maturidade”. E, para além disso, instaura a autoridade do adulto (adultocentrismo) sobre os imaturos.

Deniz A. Nicolay (2011NICOLAY, Deniz Alcione. A moral da infância na Didática Magna. Porto Alegre: Armazém Digital, 2011., p. 11) corrobora que, a partir de Comenius, o corpo infantil foi transformado em matéria pedagogizável, em objeto de instrução. Mediante a escola, a ação pedagógica moderna assume “[...] uma forma de controle das forças instintivas do infantil, um modo de inculcação dos valores morais”, cristãos e/ou laicos. Com efeito, o processo civilizador ocidental e moderno foi concebido com base na noção (platônica) de virtude como controle das paixões pela razão. Este critério de civilidade e de distinção social é validado tanto pela ética racionalista, que acentuou a dignidade do trabalhador útil, quanto pela filosofia romântica, que deu ênfase à sensibilidade da personalidade expressiva. Na obra de Comenius, o corpo “[...] é sempre uma presença incômoda, pois ainda não recebeu os princípios da virtude, da instrução moral cristã” e “os excessos podem ser mais bem suprimidos em idade tenra’” (Comenius apud Nicolay, 2011, p. 116). Anuncia-se assim uma pedagogia do controle, do adestramento, uma pedagogia que domina o corpo e da mesma forma a mente.

Do ponto de vista pedagógico, o educador é a possibilidade de cultivo dessa pequena planta. Como pedagogo, Comenius “[...] criou um espaço de produção da infantilidade, uma vez que desenvolveu uma modalidade de ensino adaptada à faixa etária dos infantis”, colocando “o infantil exatamente numa situação de dependência dos valores adultos” (Nicolay, 2011NICOLAY, Deniz Alcione. A moral da infância na Didática Magna. Porto Alegre: Armazém Digital, 2011., p. 133). Assim, o controle do tempo, do espaço, do conhecimento, do processo de aprender confina o infantil nos muros espaciais e grades temporais das instituições escolares, dominadas pelos adultos. As crianças estão à disposição dos adultos e seus dispositivos de adestramento corporal e inculcação de crenças e normas, de modo que o aprender se reduz a assimilar os modos de pensar e agir dos adultos.

Pôr em ordem se constitui o fundamento sobre o qual se constrói toda a didática de Comenius. Cultivar as plantinhas humanas equivale a inseri-las na ordem natural do mundo. Assim, a didática de Comenius propõe que a escola seja regida “pela ordem, pela uniformidade dos métodos, pela sincronização dos tempos, pela gradação das etapas escolares - os objetivos serão simplesmente alcançados” (Narodowski, 2001NARODOWSKI, Mariano. Comenius & a educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2001., p. 48). A ordem é prescrita para o conteúdo (currículo), para a seriação (graus, séries), para a ação pedagógica (método), para a relação entre os sujeitos (exemplo-imitação, disciplina comportamental, cumprimento de ordens), para a relação com o transcendente (ordem natural e divina do universo), etc. Esse mote renascentista e inaugural da modernidade está intrinsecamente vinculado ao princípio da produtividade: obter o máximo de resultado, no mínimo de tempo e com o mínimo de custo. Não é necessário entrar nos detalhes desse modelo pedagógico para se dar conta de que ele coloniza as crianças. Basta pensar nas implicações e implicâncias que derivam do repúdio a toda e qualquer desordem.

A modernidade produziu discursos pedagógicos, religiosos e laicos, convergentes no tocante à colonização das crianças. Bruna Ribeiro (2022RIBEIRO, Bruna. Pedagogia das miudezas: saberes necessários a uma pedagogia que escuta. São Carlos: João & Pedro, 2022., p. 48) afirma que “[...] as crianças têm sido historicamente submetidas ao poder geracional dos adultos”. Não se ouviam vozes de crianças na história da infância, contada pelos adultos. Mas no mundo de hoje, em que a lógica disciplinar é sobrepujada pela lógica do controle e a escola experimenta um certo descompasso em relação à sociedade de controle (Veiga-Neto, 2007), convém perguntar se as pedagogias monológicas, transmissivas e reprodutivas, em que as crianças são vistas como seres submissos, ainda fazem sentido para a educação das crianças?

A colocação da pergunta supõe que a escolarização tradicional ainda exerce influência na educação infantil, mesmo que as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (Brasil, 2009) reconheçam expressamente a especificidade da educação infantil, que em nada se identifica com perspectivas pedagógicas adultocêntricas que, em seus processos pedagógicos, negam as ações (brincar, estudar, organizar-se) protagonizadas pelas atividades das crianças. As práticas pedagógicas que não reconhecem as crianças como sujeitos ativos na recepção e reelaboração da cultura operam nos marcos de um modelo educacional colonial, que discursa a proteção e a necessidade do cuidado do adulto, a pretexto de suposta imaturidade e fragilidade das crianças. Acresce que, sob o pretexto de proteção e cuidado, impedimo-las de viverem plenamente suas próprias vidas; segundo a afirmação de Ribeiro (2022RIBEIRO, Bruna. Pedagogia das miudezas: saberes necessários a uma pedagogia que escuta. São Carlos: João & Pedro, 2022., p. 45), “para não as deixar morrer, não as deixamos viver”; impedimo-las de “[...] explorarem suas múltiplas linguagens, desenvolverem sua capacidade de argumentação, decisão e escolha [...]”.

Nesse sentido, as perspectivas coloniais de infância e pedagogia não acolhiam as crianças com suas diferenças e singularidades. Sugere Ribeiro (2022RIBEIRO, Bruna. Pedagogia das miudezas: saberes necessários a uma pedagogia que escuta. São Carlos: João & Pedro, 2022., p. 49) que o conceito contemporâneo de infâncias, vividas de múltiplas formas, “[...] venha acompanhado da instituição de mecanismo e práticas que propiciem espaços que legitimem a voz da criança, tanto no âmbito macro das políticas públicas, como no âmbito das práticas cotidianas das unidades de educação infantil”. Trata-se de levar a criança à condição de ator social, de participar, de ser ouvida, de ser envolvida nas diferentes práticas sociais. Ela não é um “adulto em miniatura”, ou alguém que treina para a vida adulta, uma vez que o tempo da estar na escola é também o tempo da vida, o que remete a pensar que a criança é para além da escola. Sugere Cohn (2005COHN, Clarice. Antropologia da criança. Rio de Janeiro: Zahar, 2005., p. 21) que as crianças, “ao contrário de seres incompletos, treinando para a vida adulta, encenando papéis sociais enquanto são socializados ou adquirindo competências e formando sua personalidade social”, nesta nova perspectiva, “passam a ter um papel ativo na definição de sua própria condição. Seres sociais plenos ganham legitimidade como sujeitos nos estudos que são feitos sobre elas”.

Como ativas e produtoras de cultura, as crianças participam da sociedade, recriando-a a todo momento. Para Cohn (2005COHN, Clarice. Antropologia da criança. Rio de Janeiro: Zahar, 2005., p. 28-29), a criança “[...] atuante desempenha um papel ativo na constituição das relações sociais em que se engaja, não sendo, portanto, passiva na incorporação de papéis e comportamento sociais”. Mais do que isso, ela “[...] interage ativamente com os adultos e as outras crianças, com o mundo, sendo parte importante na consolidação dos papéis que assume e de suas relações sociais”. Nesse sentido, as crianças não são apenas produzidas pela cultura, mas também produtoras de cultura. A sociologia da infância, como apontam Faria et al. (2015FARIA, Ana Lúcia Goulart de; BARREIRO, Alex; MACEDO, Elina Elias de; SANTIAGO, Flávio; SANTOS, Solange Estanislau dos. Invitações Pós-coloniais. In: FARIA, Ana Lúcia Goulart de; BARREIRO, Alex; MACEDO, Elina Elias de; SANTIAGO, Flávio; SANTOS, Solange Estanislau dos (Orgs.). Infâncias e pós-colonialismo: pesquisas em busca de pedagogias descolonizadoras. Campinas: Leitura Crítica: Associação de Leitura do Brasil - ALB, 2015. p. 11-24., p. 13), compreende a criança como “um sujeito histórico, participante ativa da construção da realidade social, produto e produtora de cultura, criadora de conhecimentos e saberes”. Problematizam-se, desse modo, as perspectivas de criança que a tomam como falta ou como imatura. Assim, as pedagogias que assumem a educação como um “[...] meio de difusão de ideais, valores, costumes, crenças e a criança, tratada como inferior e incapaz, ela está sujeita aos mecanismos e dispositivos que produzem o seu lugar de ser e estar socialmente” (Faria et al., 2015, p. 15) anunciam-se como pedagogias colonizadoras.

Abramowicz (2011ABRAMOWICZ, Anete. A pesquisa com crianças em infâncias e a sociologia da infância. In: FARIA, Ana Lúcia Goulart de; FINCO, Daniela. Sociologia da infância no Brasil. Campinas: Autores Associados, 2011. p. 17-36., p. 32) sugere que “[...] a educação infantil seja capaz de compor uma educação pós-colonialista, aproveitando-se de maneira antropofágica daquilo que está posto como inventividade e diferença no campo da educação”, inventividade, como característica da criança enquanto sujeito que está imbuído de um elã criador, justamente por estar se iniciando na vida. Salva, Schütz e Mattos (2021SALVA, Sueli; SCHÜTZ, Litiéli Wollmann; MATTOS, Renan Santos. Decolonialidade e interseccionalidade: Perspectivas para pensar a infância. Cadernos de gênero e diversidade, v. 7, n. 1, p.160-178, 2021. https://doi.org/10.9771/cgd.v7i1.43546
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, p. 173) sugerem pensar as crianças sob esta perspectiva, como “espelho da novidade”, principalmente, porque “[...] têm ideias próprias e inauguram formas de ser e estar no mundo”.

Miguel (2015MIGUEL, Antonio. Exercícios descolonizadores a título de prefácio: isto não é um prefácio... e nem um título! In: FARIA, Ana Lúcia Goulart de; BARREIRO, Alex; MACEDO, Elina Elias de; SANTIAGO, Flávio; SANTOS, Solange Estanislau dos. Infâncias e pós-colonialismo: pesquisas em busca de pedagogias descolonizadoras. Campinas: Associação de Leitura do Brasil, 2015. p. 25-53., p. 39) aponta que, a partir do século XIX, pela proliferação de discursos ditos “científicos” e, portanto, supostamente “adultos” e “sérios”, produzidos por diferentes epistemologias, psicologias e pedagogias”, produziu-se um discurso sobre a criança, vista como infante, este “ser pequeno”, este “ser de brinquedo”, “incompleto”, “não sério”, este ainda “não-ser”, que marcou e marca profundamente o trabalho pedagógico com as crianças. Problematizar as perspectivas colonizadoras da formação das crianças significa pôr em pauta os processos de sua socialização. Coloniza-se o corpo tomando como parâmetro a religiosidade judaico-cristã ocidental, o discurso biomédico heteronormativo moderno, as explicações biológicas baseadas na fisiologia humana, as etapas do desenvolvimento humano, etc. Estas orientações estão presentes, na contemporaneidade, na forma como professores/as educam as crianças pequenas. Por isso, não é de estranhar os esforços presentes na educação dos corpos, dos desejos, das vontades, das brincadeiras de meninas e meninos.

Em “As técnicas do corpo”, Marcel Mauss (2003MAUSS, Marcel. As técnicas do corpo. Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac e Naify, 2003, p. 401-422.) explora como a cultura constrói ou coloniza os corpos. Valendo-se da compreensão de Mauss, Daniela Finco (2015FINCO, Daniela. Gênero, corpo, infância: desafios para educação descolonizadora de meninos e meninas. In: FARIA, Ana Lúcia Goulart de; BARREIRO, Alex; MACEDO, Elina Elias de; SANTIAGO, Flávio; SANTOS, Solange Estanislau dos (Orgs.). Infâncias e pós-colonialismo: pesquisas em busca de pedagogias descolonizadoras. Campinas: Leitura Crítica: Associação de Leitura do Brasil - ALB, 2015. p.107-125., p. 117) reconhece que “[...] o corpo, desse modo, é objeto da cultura na medida em que é produzido, moldado, modificado, adestrado e adornado segundo os parâmetros de cada cultura.” Para problematizar essa perspectiva colonizadora, foram fundamentais as contribuições da antropologia e da sociologia da infância, pois ressignificaram o conceito de socialização, rompendo com o modelo determinista, saindo de uma perspectiva de que a criança apenas se adaptava à sociedade e se moldava a ela, para a perspectiva construtivista, em que a criança é parte da sociedade, sujeito ativo, que aprende e “constrói ativamente seu mundo social e seu lugar nele” (Corsaro, 2011CORSARO, William. Sociologia da infância. Porto Alegre: Artmed, 2011., p. 19).

A partir de seus estudos com as crianças em contextos de educação infantil na Itália e nos Estados Unidos, William Corsaro (2011CORSARO, William. Sociologia da infância. Porto Alegre: Artmed, 2011., p. 31. Destaque do Autor) criou o conceito de “reprodução interpretativa”. A noção de “[...] interpretativo abrange aspectos inovadores e criativos da participação infantil na sociedade” e a de “reprodução” inclui a noção de que “as crianças não se limitam a internalizar a sociedade e a cultura, mas contribuem ativamente para a produção e mudança culturais”. Ambas as noções alargam a compreensão de criança, incorporando o entendimento dela como ator, como produtora de cultura. Quais as implicações de uma postura decolonial diante da educação e da docência na educação infantil?

Tratando especificamente de nosso país, um ponto fundamental acerca desse questionamento diz respeito a compreender que é uma necessidade premente de escutar todas as crianças, crianças indígenas, negras, crianças de todas as classes sociais, ribeirinhas, quilombolas, do campo, dos diferentes contextos culturais, e legitimar as suas culturas. Sendo a escola uma das poucas instituições democráticas, lugar em que podem estar todas as crianças, independentemente se sua classe, raça, gênero, é preciso nela instituir “uma pedagogia da infância [...], uma pedagogia da diferença, da escuta, das relações, diríamos, uma pedagogia macunaímica” (Faria; Finco, 2011FARIA, Ana Lúcia Goulart de; FINCO, Daniela. Apresentação. In: FARIA, Ana Lúcia Goulart de; FINCO, Daniela. Sociologia da infância no Brasil. Campinas: Autores Associados, 2011. p. 1-16., p. 3).

Trata-se, segundo as autoras, de uma pedagogia que difere da pedagogia clássica, que rompe com a ideia de criança como ser incompleto, imatura em relação ao adulto. Uma pedagogia que não recusa discutir as múltiplas formas de opressão existentes na sociedade. Uma pedagogia que admite existirem em nossa sociedade diferentes formas de discriminação (classe, gênero, relações étnico-raciais), que alijam as crianças de seus direitos, e, ao admiti-las, coloca-as no debate. Segundo Faria et al. (2022FARIA, Ana Lúcia Goulart de; SALVA, Sueli; PINHEIRO, Leandro; PIRES, Lucas. A pesquisa com/sobre/para crianças - descolonizando o olhar e a escuta: uma conversa com Ana Lúcia Goulart de Faria. Revista Educação, v. 47, n. 1, e62/1-25, 2022. http://dx.doi.org/10.5902/1984644470256
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, p. 9), uma pedagogia para a infância “[...] é uma educação que não é escolar, que não antecipa escolaridade, mas que tem a especificidade de educar uma faixa etária de uma forma diferente do que se educa outras faixas etárias”, seja na pré-escola, seja na creche.

Educação/docência decolonial: implicações pedagógicas

Uma perspectiva de educação decolonial anuncia-se como crítica às pedagogias transmissivas, às atuais políticas de currículo largamente prescritivas e de fazer pedagógico orientado a partir de materiais previamente comercializados, agora proposta da educação infantil às demais etapas da educação básica. Uma educação decolonial, descolonizadora para Miguel (2015MIGUEL, Antonio. Exercícios descolonizadores a título de prefácio: isto não é um prefácio... e nem um título! In: FARIA, Ana Lúcia Goulart de; BARREIRO, Alex; MACEDO, Elina Elias de; SANTIAGO, Flávio; SANTOS, Solange Estanislau dos. Infâncias e pós-colonialismo: pesquisas em busca de pedagogias descolonizadoras. Campinas: Associação de Leitura do Brasil, 2015. p. 25-53., p. 50), “[...] não deveria ver os processos de escolarização orientados por e para um propósito de unidade nacional ou de unidade na diversidade em nome de qualquer argumento.” Isso vale para proposições pedagógicas orientadas desde processos avaliativos estandardizados que não se abrem à emergência da diversidade, tampouco à de adversidades ou da transgressão. Assim, propostas propedêuticas curricularizadas para bebês, a crianças pequenas e às bem pequenas cerceiam sua criatividade, sua curiosidade e a inventividade. Reitera-se o afirmado nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (Brasil, 2009, p. 12), que considera as experiências das crianças na concepção de currículo entendido como “conjunto de práticas que buscam articular as experiências e os saberes das crianças com os conhecimentos que fazem parte do patrimônio cultural, artístico, ambiental, científico e tecnológico, de modo a promover o desenvolvimento integral de crianças de 0 a 5 anos de idade”.

Compreende Miguel (2015MIGUEL, Antonio. Exercícios descolonizadores a título de prefácio: isto não é um prefácio... e nem um título! In: FARIA, Ana Lúcia Goulart de; BARREIRO, Alex; MACEDO, Elina Elias de; SANTIAGO, Flávio; SANTOS, Solange Estanislau dos. Infâncias e pós-colonialismo: pesquisas em busca de pedagogias descolonizadoras. Campinas: Associação de Leitura do Brasil, 2015. p. 25-53., p. 51) que uma “[...] educação orientada por desejos de unidade, consenso, unidade na diversidade e inclusão da diversidade na grande meta-narrativa do discurso humanista liberal significa colonização liberal”. Neste sentido, para Macedo et al. (2016MACEDO, Elina Elias de; SANTIAGO, Flavio; SANTOS, Solange Estanislau dos; FARIA, Ana Lúcia Goulart de. Infâncias e descolonização: desafios para uma educação emancipatória. Crítica Educativa, v. 2, n. 2, p. 38-50, 2016. https://doi.org/10.22476/revcted.v2i2.95
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, p. 38), as pedagogias descolonizadoras propõem “[...] olhares que subvertem a ordem escolar vigente que transformam experiências em práticas, em atividades, em disciplinas, que classificam e avaliam linguagens e subjetividades, que normatizam os desenhos, os corpos, os sonhos”. Assim, o que significa assumir uma postura decolonial na educação das crianças da educação infantil? Algumas demarcações ajudarão o pensar e o fazer decolonial de educação. Entre elas, elencam-se: decolonizar o poder, o saber, o ser, o viver, o olhar, o pensamento com vistas a pensar uma pedagogia da infância decolonial.

Decolonizar o poder - O poder se expressa sob múltiplas formas, subordinando diferentes sujeitos à lógica colonizadora de pensar, de agir, do acesso aos direitos, de imposição de modos de vida e de reconhecimento. Manifesta-se na forma de subordinação étnica, racial, religiosa, cultural, política, social, econômica, etc. Nesse sentido, o currículo escolar anuncia-se como um instrumento de poder (Silva, 1999SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de Identidade: uma introdução às teorias de currículo. Belo Horizonte: Autêntica. 1999.; Louro, 2000LOURO, Guacira Lopes. O corpo educado: pedagogias da sexualidade. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.; Arroyo, 2014ARROYO, Miguel. Outros sujeitos, outras pedagogias. 2. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2014.), à medida que veicula saberes de interesses específicos que têm por finalidade a concentração e manutenção do controle sobre os indivíduos e/ou grupos sociais. Uma perspectiva decolonial do poder realça a necessidade de desconstruir a “lógica do mercado e da hegemonia capitalista”, visando à “construção de relações democráticas participativas, fundadas na justiça social e coerentes com os interesses do conjunto da humanidade e com a autonomia de cada grupo sociocultural” (Koch; Fleuri, 2019KOCH, Simone Riske; FLEURI, Reinaldo Matias. Diversidade e Sociedade. Chapecó: Argos, 2019., p. 40).

Um enfoque hermenêutico da educação infantil não imaginaria decolonizar subjetividades corporais colonizadas sem auxiliá-las a retomarem a palavra e fazerem-se ouvir na ciência, na moral, na estética, na saúde, na política, na economia, no planejamento urbano, na religião etc. Decolonizar o poder sobre os corpos infantis implica reconhecer as demandas expressas pelas próprias crianças sobre todas as dimensões que afetam suas vidas. Implica, inclusive, incentivá-las e auxiliá-las a expressar seus pontos de vista, em suas respectivas condições socioculturais e históricas de vida. Os contrapoderes a serem erguidos com as crianças terão de levar em conta suas experiências, desejos, saberes, valores. Pensando o poder nas relações humanas em termos de multipolaridade, Norbert Elias (2008ELIAS, Norbert. Introdução à sociologia. Lisboa: Edições 70, 2008., p. 80-81), cogita que, se “[...] as crianças exercem poder sobre os pais, faz sentido pensar que seja possível que façam algo análogo na relação com o(a) professor(a)”. Mas para que esse possível se realize, a condição é que elas sejam valorizadas como parceiras de conversação.

Decolonizar o saber - Entre os muitos desafios de uma educação decolonial das crianças, as epistemologias dominantes requerem ser interrogadas, ou seja, abrir fissuras na monocultura científica moderna ocidental. De modo mais alargado, conforme Koch e Fleuri (2019KOCH, Simone Riske; FLEURI, Reinaldo Matias. Diversidade e Sociedade. Chapecó: Argos, 2019., p. 40), torna-se “[...] necessária uma ressignificação epistemológica do conhecimento, que desconstrua o pressuposto moderno colonial da ‘universalidade’ das ‘ciências’ e considere as complexidades e as ambivalências produzidas no encontro entre os diferentes saberes e culturas”. Significa interrogar as matrizes de poder e de conhecimento eurocêntrico que orientam as nossas inteligibilidades.

A admissão de outros conhecimentos, conforme Boaventura de Sousa Santos (2006SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. In: SOUSA, Boaventura de Sousa (Org.). Conhecimento prudente para uma vida decente: um discurso sobre as ciências revisitado. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2006. p. 777-819., 2007), significa propor uma ruptura na monocultura epistemológica ocidental. Afirma que “[...] há práticas sociais que estão baseadas em conhecimentos populares, conhecimentos indígenas, conhecimentos camponeses, conhecimentos urbanos, mas que não são avaliados como importantes e rigorosos” (Santos, 2007, p. 29). O não reconhecimento desses saberes é “[...] denominado pelo autor como desperdício de experiência social e que poderiam se afirmar como alternativas a uma vida e sociedade mais sustentável” (Kuhn; Kuhn, 2018KUHN, Martin; KUHN, Mara Lúcia Welter. Dimensões sociais do conhecimento: implicações à docência e às práticas educativas. Educação Unisinos, v. 22, n. 3, p. 305-312, 2018. https://doi.org/10.4013/edu.2018.223.12641
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, p. 310). Nesse sentido, sugere Santos (2006, p. 814), “[...] criar constelações de saberes e práticas suficientemente fortes para fornecer alternativas credíveis ao que hoje se designa por globalização neoliberal e que não é mais do que um novo passo do capitalismo global no sentido de sujeitar a totalidade inesgotável do mundo à lógica mercantil”.

No caso da educação de crianças, significa pensar que a educação infantil é o lugar de aprender, sem ser o lugar de ensinar, lugar em que o fazer educativo tem uma intencionalidade pedagógica. Ou seja, trata-se de acordo com Infantino (2022INFANTINO, Agnese. Crianças e Adultos nos contextos educativos: A partilha das Aprendizagens. In: INFANTINO, Agnese (Org.). As crianças também aprendem: o papel educativo das pessoas adultas na educação infantil. São Carlos: Pedro & João, 2022, p. 71-118., p. 73) de “[...] cultivar um saber e uma cultura pedagógica com a qual alimentar, [...] um clima relacional empático, aberto, capaz de suavizar e atenuar a rigidez institucional dos serviços, para torná-los leves e flexíveis, na relação com as crianças e com as famílias”.

Significa interrogar o currículo, bem como a forma de sua transmissão, requer reconhecer as crianças como sujeitos de conhecimento, como autoras e produtoras de cultura. Como participantes na produção de sentidos e significados acerca do mundo. Trata-se de interrogar as narrativas dominantes e afirmar as narrativas que tiveram suas histórias negadas, subjugadas, como as de mulheres, negros, indígenas, gênero, classe, relações étnico-raciais etc. Numa perspectiva decolonial, como compreende Aquino (2015AQUINO, Ligia. Educação da infância e pedagogias descolonizadoras: reflexões a partir do debate sobre identidades. In: FARIA, Ana Lúcia Goulart de; BARREIRO, Alex; MACEDO, Elina Elias de; SANTIAGO, Flávio; SANTOS, Solange Estanislau dos. Infâncias e pós-colonialismo: pesquisas em busca de pedagogias descolonizadoras. Campinas: Associação de Leitura do Brasil, 2015. p. 95-105., p 101), interrogam-se as “questões etárias, de gênero, de raça”, de criança, de desenvolvimento, de aprendizagem, que colonizam as famílias, as crianças, negando-lhe a construção de sua identidade, colocando-as em condição de subalternidade. Como sugere Ribeiro (2022RIBEIRO, Bruna. Pedagogia das miudezas: saberes necessários a uma pedagogia que escuta. São Carlos: João & Pedro, 2022., p. 49), requer criar “[...] espaços que legitimem a voz da criança, tanto no âmbito macro das políticas públicas, como no âmbito das práticas cotidianas das unidades de educação infantil”. Significa decolonizar o discurso monológico do saber adulto e dar voz às crianças. Como sugerem Macedo et al. (2016MACEDO, Elina Elias de; SANTIAGO, Flavio; SANTOS, Solange Estanislau dos; FARIA, Ana Lúcia Goulart de. Infâncias e descolonização: desafios para uma educação emancipatória. Crítica Educativa, v. 2, n. 2, p. 38-50, 2016. https://doi.org/10.22476/revcted.v2i2.95
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, p. 40), significa reconhecer a criança como “produtora de cultura e participante da vida social”.

Decolonizar o ser - A perspectiva adultocêntrica tem predominado nos espaços e tempos da educação infantil. O ser da criança compreendido como miniatura, como corrompida, como imatura, como não capaz, como plantinha a ser cultivada, como vir a ser são algumas de suas formas desta manifestação. Colonizamos o ser das crianças desde o nascimento. Colonizamos o seu corpo, suas formas de expressão, sua condição de gênero, suas crenças, seus entendimentos acerca do mundo. Para além da forte preocupação com os “comportamentos masculinos e femininos das crianças”, “sua clara identificação de gênero”, anunciada por Finco (2015FINCO, Daniela. Gênero, corpo, infância: desafios para educação descolonizadora de meninos e meninas. In: FARIA, Ana Lúcia Goulart de; BARREIRO, Alex; MACEDO, Elina Elias de; SANTIAGO, Flávio; SANTOS, Solange Estanislau dos (Orgs.). Infâncias e pós-colonialismo: pesquisas em busca de pedagogias descolonizadoras. Campinas: Leitura Crítica: Associação de Leitura do Brasil - ALB, 2015. p.107-125., p. 114), colonizamos o ser das crianças de múltiplas formas ao longo do processo educativo.

Os processos de escolarização, de classificação, de hierarquização, de ordenamento, de disciplinamento dos corpos são formas de colonização, marcas presentes nas pedagogias de herança moderna e nas atuais pedagogias neocoloniais. Recorrendo a Elias (1994ELIAS, Norbert. O processo civilizador: uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Zahar, 1994.), que reconhece o corpo como aquele que “[...] come, bebe, faz sexo, limpa-se, corre, anda, nada, medica-se, ornamenta-se, dorme, descansa, gesticula e fala” (Elias, 1994), acrescenta Finco (2015FINCO, Daniela. Gênero, corpo, infância: desafios para educação descolonizadora de meninos e meninas. In: FARIA, Ana Lúcia Goulart de; BARREIRO, Alex; MACEDO, Elina Elias de; SANTIAGO, Flávio; SANTOS, Solange Estanislau dos (Orgs.). Infâncias e pós-colonialismo: pesquisas em busca de pedagogias descolonizadoras. Campinas: Leitura Crítica: Associação de Leitura do Brasil - ALB, 2015. p.107-125., p. 118), a este corpo como sendo “[...] socialmente classificado e hierarquizado - negro, branco, infantil, homossexual, adulto, feminino, heterossexual, forte, masculino - de forma a determinar papéis sociais e estabelecer relações de poder”. sentido, a perspectiva decolonial interpela os educadores e a pedagogia em seu conteúdo e em seu fazer pedagógico. Anuncia-se a necessidade de reconhecer o ser da criança em sua inventividade, em sua criatividade, em sua estética, em sua discursividade acerca do mundo.

Decolonizar o viver - Sinaliza para outras cosmovisões e formas de viver a vida. Koch e Fleuri (2019KOCH, Simone Riske; FLEURI, Reinaldo Matias. Diversidade e Sociedade. Chapecó: Argos, 2019., p. 41) compreendem que decolonizar o viver aponta para “[...] o reconhecimento e a convivência entre matrizes culturais e religiosas de diferentes povos que convivem no contexto multicultural”. Por mais que a escola e os adultos lhes impõem formas de ser e viver, as crianças resistem, enfrentam e transgridem. A sua captura pelas estruturas instituídas e instituintes é sempre parcial, pois elas interrogam, desafiam o estabelecido. Nesse sentido, as relações de poder que instituem formas de viver também são tensionadas e o processo de socialização assume outra tonalidade em que as crianças se tornam atuantes, protagonistas e produtoras da sua própria forma de encarar a existência.

Ao resistirem, as crianças interrogam a uniformização cultural, e já é um ato emancipatório. Desse modo, ao viverem a condição de criança, elas não só resistem, elas se constituem. Assim, a escolarização precoce pode ter o significado de alinhar a um tempo. Mas que tempo? Ao tempo chrónos, compreendido como “[...] continuidade de um tempo sucessivo, progressivo e sequencial, que na vida humana se representa pelas etapas de bebê, criança, jovem, adulto, idoso e tantas mais que se criar” (Aquino, 2015AQUINO, Ligia. Educação da infância e pedagogias descolonizadoras: reflexões a partir do debate sobre identidades. In: FARIA, Ana Lúcia Goulart de; BARREIRO, Alex; MACEDO, Elina Elias de; SANTIAGO, Flávio; SANTOS, Solange Estanislau dos. Infâncias e pós-colonialismo: pesquisas em busca de pedagogias descolonizadoras. Campinas: Associação de Leitura do Brasil, 2015. p. 95-105., p. 98). Este é o tempo da produtividade, é o tempo da organização lógica, do ordenamento e da sequencialidade do currículo e das aprendizagens escolarizadas. Diferentemente, a criança se movimenta no tempo kairós, “[...] um tempo não numerável e nem sucessível”. É o tempo da criança resistência, que brinca, que cria, que inventa, que subverte, etc. Para o(a) educador(a), tempo kairológico é acontecimental em virtude dos encontros, em cada caso surpreendentes, com os(as) educandos(as) que se autoexpressam.

Assim, a escolarização das crianças, sua pedagogização em material pedagógico formatado, sugere sua inscrição, seu viver, cada vez mais precoce em um tempo chrónos, tempo da lógica produtivista. Por essa razão, sustentamos uma pedagogia da infância não prescritiva, que acolha o imprevisível, a curiosidade da criança, a partir de um olhar aberto, interessado e endereçado às crianças em suas respectivas condições socioculturais de vida. Propõe-se organizar a ação pedagógica, de “[...] pensar, planejar pedagogicamente e atuar educativamente” (Infantino, 2022INFANTINO, Agnese. Crianças e Adultos nos contextos educativos: A partilha das Aprendizagens. In: INFANTINO, Agnese (Org.). As crianças também aprendem: o papel educativo das pessoas adultas na educação infantil. São Carlos: Pedro & João, 2022, p. 71-118., p. 39) a partir da criança, com a criança e com a responsabilidade de um adulto que tem um compromisso ético, estético e político com a educação das crianças conforme posto nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (Brasil, 2009).

Decolonizar o olhar - Repensar a educação das crianças a partir de uma perspectiva decolonial requer, acima de tudo, romper como o olhar monológico e adultocêntrico com que temos encarado a infância. Segundo Guacira Lopes Louro (2000LOURO, Guacira Lopes. O corpo educado: pedagogias da sexualidade. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2000., p. 15), “[...] homens e mulheres adultos contam como determinados comportamentos ou modos de ser parecem ter sido ‘gravados’ em suas histórias pessoais”. Para que essas marcas se efetivem, “[...] um investimento significativo é posto em ação: família, escola, mídia, igreja, lei, participam dessa produção”. Fundamentalmente essas marcas, impressões dispõem o modo como olhamos para e compreendemos o mundo, produzem uma determinada cosmovisão. Nesse sentido, as instituições enunciadas assumem tarefa pedagógica, portanto, de poder e contribuem para a produção de determinados modos de ver o mundo e de os sujeitos relacionarem-se com ele, ou de disciplinamento ou de autogoverno.

Decolonizar o pensamento - Requer construir uma nova concepção de criança, de infância e de educação. Uma educação da/para/com as crianças a partir da escuta, do acompanhar, propor, “oferecer contextos de qualidade para o desenvolvimento e as aprendizagens nos primeiros anos de vida” (Infantino, 2022INFANTINO, Agnese. Crianças e Adultos nos contextos educativos: A partilha das Aprendizagens. In: INFANTINO, Agnese (Org.). As crianças também aprendem: o papel educativo das pessoas adultas na educação infantil. São Carlos: Pedro & João, 2022, p. 71-118., p. 72). Intenciona-se romper com o modo dualista de pensar e abarcar a diferença temporal em suas potencialidades, de ver a criança a partir de sua potencialidade, de sua capacidade criadora. De ser propositivo e acolhedor, de ser escuta, mas também capaz de mobilizar o pensamento, de desafiar, de deixar ser. De entender que educação infantil é lugar de aprendizagem, mas não de ensino, um exercício de olhar “de ponta-cabeça”, como nos diz Ana Lúcia Goulart de Faria. Para a autora: “Promover condições para que as crianças inventem é o ponto de partida para que juntos/as, adultos/as e crianças, favoreçamos o parto difícil deste outro mundo que está por vir” (Faria, 2022, p. 7). Significa não desistir da criança, pois ela é criança muito pouco tempo e não nos permite o direito de desistir da luta por uma pedagogia da infância decolonial.

Enfim, somos também produtos da cultura. Construímos nossa identidade e subjetividade reproduzindo e incorporando modos de ser e existir, como bem, os questionamos e os transformamos. Como pondera Ribeiro (2022RIBEIRO, Bruna. Pedagogia das miudezas: saberes necessários a uma pedagogia que escuta. São Carlos: João & Pedro, 2022., p. 47), “[...] nossas vidas carregam uma tradição, são condicionadas e podem gerar preconceitos, estereótipos e intolerâncias de toda ordem”. Decolonizar nosso olhar anuncia a possibilidade de reconhecermos em cada olhar, um olhar não único, mas um entre outros possíveis. Assim, “[...] a criança, através de suas inúmeras e múltiplas linguagens, através de seu comunicar, sentir, fazer, se relacionar, ser e estar no mundo, nos convida a enxergarmos o mundo de outra forma” (Ribeiro, 2022, p. 34).

Decolonizar o nosso olhar implica ativar e privilegiar o sentido mais nobre do ser humano, o ouvido. Requer abertura auditiva a como a criança vê e interpreta o mundo, ver (ouvindo), através do seu olhar a novidade através do seu modo de relacionar-se com o mundo. É o olhar da criança que reflete o mundo, ainda visto como novidade que irrompe à revelia do existente. Propor uma narrativa decolonial sugere interrogar os pressupostos epistêmicos modernos que acompanham os discursos sobre a criança e a pedagogia. Produzir novas narrativas sobre criança e infância e seu processo de socialização/educação, anuncia-se como abertura auditiva (escutatória) de outras lógicas de organização do mundo, inclusive a da criança, que traz consigo a novidade.

Entre as rupturas epistêmicas anunciadas, decolonizar o poder, o saber, o ser, o viver e o olhar e o pensamento, quem sabe, seja outro desafio à educação e à docência com as crianças. Como sugere Ribeiro (2022RIBEIRO, Bruna. Pedagogia das miudezas: saberes necessários a uma pedagogia que escuta. São Carlos: João & Pedro, 2022., p. 47) “[...] escutar o outro significa abrir espaço para buscarmos ler o mundo com outros olhos”. Com olhos que ouvem. Configura-se o ato educativo em ato dialógico, de criar espaços e tempos de fala e de escuta. De produção de pedagogias emancipatórias que se contraponham ao avanço de novas pedagogias colonizadoras. Requer reconhecer em cada criança um sujeito epistêmico, ético e estético. Um sujeito que constitui sua identidade no convívio com os outros, com a diversidade humana e com a natureza. Enfim, é imperioso pensar uma pedagogia da infância que acolha a diferença. É esse olhar que pode incidir em um processo de decolonizar o pensamento e entender o mundo por alguma das lógicas rizomáticas e plurais das crianças, e que podem ser lógicas da relação e da criação, como a lógica de Manuel de Barros (2013BARROS, Manoel. Poesia completa. São Paulo: LeYa, 2013., p. 266):

Quando o menino encompridava rios Andava devagar e escuro - meio formado em silêncio. Queria ser a voz em que uma pedra fale. Paisagens vadiavam seu olho. Seus cantos eram cheios de nascentes. Pregava-se nas coisas quanto aromas.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    01 Set 2022
  • Aceito
    10 Jan 2024
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