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Editorial

Nos anos 1990, acompanhando os processos de reconversão produtiva, o discurso da competência foi introduzido no Brasil e em outros países da América Latina por empresários e também pelos governos, estimulados pelos organismos multilaterais.

O processo de institucionalização da noção de competências em nosso país, que lhe confere caráter oficial, realizou-se, principalmente, mediante as reformas educacionais promovidas, pelo governo Fernando Henrique Cardoso, na Educação Básica, Profissional e Superior.

A formação vinculada à noção de competência, construída sob o registro do cognitivo, da ação e dos comportamentos (saber, saber fazer e saber ser), é vista como um conjunto de meios a serviço de certas finalidades, isto é, de ajuste às demandas imediatas e pontuais das empresas. As duas dimensões - as do saber e do saber fazer - foram as mais frequentemente debatidas em função da ênfase nelas colocada pelo Decreto 2.208 de 17 de abril de 1997, que promoveu a separação entre formação de caráter geral, mais relacionada ao "saber" e ao Ensino Médio, e a formação de caráter específico, relacionada ao "saber fazer" e ao Ensino Técnico.

As competências relacionadas ao "saber ser", embora discutidas, foram todavia menos enfatizadas. No entanto, do ponto de vista empresarial, estas são tão valorizadas quanto aquelas, pois dizem respeito a uma dimensão relevante da formação do trabalhador desejado, qual seja, sua disposição psíquica para a colaboração, assim como para a criação de um clima de bem-estar, de ausência de fricções e de embates, para o compromisso com a organização, enfim, para o entregar-se totalmente a ela. Não por acaso esta tem sido a perspectiva enfatizada pelos setores de Recursos Humanos das empresas no que diz respeito à "gestão de pessoas".

Do ponto de vista educacional essa discussão é importante, pois a proposta da formação por competência não foi deixada de lado. Seus objetivos, ainda atuais na legislação educacional e no discurso dominante, informam hoje a organização da maioria de cursos e programas de formação ou qualificação profissional que continuam a ser um "sistema regulado pelo mercado", com consequências previsíveis: a ampliação da hierarquização da força de trabalho, o aprofundamento da distância entre os trabalhadores qualificados e os não qualificados, em resumo, o aumento da exclusão e o aprofundamento da desigualdade social.

Embora tenham deixado de ser referidas nas Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (DCNEM), as competências reapareceram no documento híbrido das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Profissional. Na versão aprovada em 2012, não consta a menção às competências socioemocionais, mas naquela que a precedeu, e foi alvo de críticas de educadores e entidades, constava a proposição do conselheiro Francisco Cordão de que a formação por competências deveria seguir o que denominou de CHAVE - sigla para o conjunto de competências compreendido pelo conhecimento (C), habilidades (H), atitudes (A), valores (V) e emoções (E) -, proposição que vem sendo reiterada em publicações relacionadas à formação profissional. A adoção pelas empresas do conjunto de competências acima referido objetiva não apenas o profissional tecnicamente competente, mas, também, docilizado, algo que não é recente pois já foi proposta na década de 1950 pela Escola de Relações Humanas.

As investidas dos setores empresariais têm se intensificado nos últimos quatro anos do Governo Dilma Rousseff, e seus projetos educacionais estão alcançando espaço cada vez maior no Ministério da Educação, no Conselho Nacional da Educação, no Congresso Nacional e até na Casa Civil.

As Diretrizes Curriculares Nacionais do Ensino Médio, aprovadas pelo Conselho Nacional de Educação em 2012, constituem uma conquista dos movimentos sociais populares e entidades representativas de educadores, os quais participaram da elaboração do Documento-base que contribuiu para a redação final das DCNEM e de várias ações em defesa de suas concepções e orientações, tais como: a presença das representações do Cedes e da Anped em audiências públicas na Câmara e no Senado, e a organização, pelo Cedes, de um número (fascículo 116) especialmente dedicado ao Ensino Médio pela Revista Educação & Sociedade.

No entanto, tais Diretrizes continuam a ser ignoradas nas políticas estaduais e, dessa maneira, permanecem desconhecidas pela maioria dos professores da educação básica. Em vários estados a opção governamental foi a de estabelecer convênios com empresas incorporando os seus projetos pedagógicos, orientados pelo modelo das competências, e a de repassar a organização do currículo do ensino médio e da formação de seus docentes para o controle privado - o que caracteriza uma espécie de "privatização branca" do ensino público nesses estados. É o que está ocorrendo nos Estados de Pernambuco, Ceará, Goiás e São Paulo (Revista Exame n. 20, 30/10/2013, p. 36 a 57). E, no Estado do Pará, onde o Instituto Unibanco já "assessorava" o ensino médio, agora foi contratada a Fundação Itaú para "assessorar" o ensino fundamental do estado. Embora a holding bancária se refira, em seu Relatório Anual de Sustentabilidade de 2011, à "[...] formação de cidadãos mais preparados e conscientes de seu papel na sociedade [...]", a preocupação central se expressa na sequência do parágrafo:

[...] estamos formando, de maneira legítima, melhores clientes, não só para o Itaú Unibanco, mas para a economia do país como um todo. Em outras palavras, estamos ajudando as pessoas, o país e o próprio banco a crescerem [...]. (p.160)

Recentemente, em julho de 2013, realizou-se o 11º. Seminário Itaú Internacional de Avaliação Econômica de Projetos Sociais: Competências Socioemocionais para o Século XXI, realizado pela Fundação Itaú Social com a colaboração técnica do Instituto Ayrton Senna. O evento envolveu a participação de vários especialistas internacionais e nacionais. Nessas circunstâncias, foi divulgado o Programa de Medição de Competências Socioemocionais, denominado SENNA (Social and Emotional or Non-cognitive Nationwide Assessment), resultado da iniciativa do Instituto Ayrton Senna em parceria com a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico.

Em seguida, para nossa surpresa e preocupação, o MEC, por meio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Nível Superior, firma parceria com o Instituto Ayrton Senna para a criação do Programa de Apoio à Formação de Pesquisadores e Professores no Campo das Competências Socioemocionais, sob a responsabilidade da Diretoria da Formação de Professores da Educação Básica - DEB/Capes, Edital n. 044, de 10/07/2014. Pergunta-se: o que virá em seguida? Seriam as competências socioemocionais um critério de aferição, na educação escolar, do "pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho", direito consagrado no Artigo 205 da Constituição Federal de 1988, conferindo a tal artigo uma interpretação distorcida por subordiná-lo basicamente à lógica do capital?

No Legislativo, as investidas dos reformadores empresariais sobre Ensino Médio se concretizam em projetos de lei que, no completo desconhecimento das Diretrizes Nacionais existentes, apregoam a falência desta etapa da educação básica e a urgência das mudanças curriculares... São os casos do PL n. 6840/2013 e, no âmbito da discussão sobre a constituição da Base Nacional Comum do Currículo (conforme o disposto na LDBEN de 1996 e no último Plano Nacional de Educação), as propostas de currículo mínimo ou de currículo unificado.

Reagindo a essas investidas, no calor das disputas políticas ainda presentes no MEC, a Secretaria de Educação Básica iniciou, em 2013, um projeto resistente: o Pacto Nacional pelo Fortalecimento do Ensino Médio, com o objetivo de socializar as concepções das DNEM entre os professores das redes estaduais e, dessa forma, promover ações nas escolas para a adequação dos currículos às orientações das Diretrizes. Sua concretização tem ocorrido de maneira diferenciada nos estados pactuados, com ganhos significativos em alguns e resultados inexpressivos em outros, a depender da vontade política dos governos, da capacidade de negociação dos representantes do MEC e/ou da persistência dos agentes pedagógicos locais no enfrentamento dos obstáculos à sua realização.

No âmbito da sociedade civil organizada - além das ações desenvolvidas pelas associações representativas dos educadores, como Anped, Cedes e Anfope, entre outras - foi constituído o Movimento Nacional em Defesa do Ensino Médio, reunindo estas entidades e educadores de diferentes níveis e modalidades de ensino de diversos estados do país, de forma a agilizar a defesa da escola pública de qualidade social e das políticas e concepções que lhe dão sustentação. A mobilização tem viabilizado, também, a troca de informações entre grupos de pesquisadores e estimulado a realização de pesquisas conjuntas sobre temas e situações emergenciais, como a do avanço da privatização na educação pública, nas suas formas diferenciadas e perversas. Tal produção de conhecimento favorece, sem dúvida, a ação política organizada.

Em resumo, entendemos que diferentes valores e interesses de grupos e de forças políticas e econômicas, por vezes antagônicas, disputam o campo educacional no Brasil e se manifestam tanto no entendimento conferido à concepção de educação, presente no artigo 205 da Constituição Federal e nos princípios dele decorrentes inscritos no artigo 206 do mesmo texto, quanto no Plano Nacional de Educação aprovado. Assinala-se, sob o risco da síntese, que se opõem nesses posicionamentos, de um lado, uma concepção mercantilista da educação, respaldada na teoria do Capital Humano, e, de outro, a orientada pelo desenvolvimento humano.

Tendo em vista divergências dessa natureza e, ao mesmo tempo, considerando o fato de que elas não se objetam, mas se hibridizam no PNE, o V Seminário da Educação Brasileira, a ser promovido pelo Centro de Estudos Educação e Sociedade (Cedes) em junho de 2015, mantendo uma tradição iniciada em 1979 e retomada em 2009, propõe-se a analisar tanto as posições antagônicas, quanto a concertação entre elas, que são o substrato do Plano. Parece-nos urgente que, para além da natureza dos problemas crônicos da educação brasileira, a presente proposta problematize a constituição do Sistema Nacional de Educação no contexto das mudanças estruturais e sociais em curso na desigual sociedade brasileira contemporânea,

Nossa expectativa é a de que iniciativas semelhantes possam se multiplicar e venham a contribuir para a construção de espaços de resistência contra o avanço de políticas privatizantes, na defesa e valorização da educação pública.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2014
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