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PASSAGEIROS DA NOITE - DO TRABALHO PARA A EJA: ITINERÁRIOS PELO DIREITO A UMA VIDA JUSTA

Publicado no fim de 2017 pela editora Vozes, Passageiros da Noite - do Trabalho para a EJA: Itinerários pelo Direito a uma Vida Justa narra o percurso de milhões de trabalhadores jovens e adultos que lutam pelo direito à educação, na especificidade de seu tempo humano de vida e de formação (ARROYO, 2017ARROYO, M. Passageiros da noite: do trabalho para a EJA: itinerários pelo direito a uma vida justa. Petrópolis: Vozes, 2017.). Usando a analogia da viagem de ônibus realizada por trabalhadores, depois de horas e horas de trabalho ou da busca por ele, a obra examina aqueles que, antes de chegarem a suas casas para o merecido descanso, apostam na parada na escola em busca de algo que lhes permita uma vida justa. Durante todo o percurso da leitura, depara-se com concepções caras à educação libertadora como direito, que contribui para o conhecimento de outros direitos garantidores da vida justa, talhada em processos de humanização. A linguagem é simples, objetiva e familiar aos que estudam o problema da humanização-desumanização, reconhecendo esse binômio como realidade histórica, reafirmando a necessidade de formação inicial e continuada para acompanhar tal problema em sua radicalidade e, ao mesmo tempo, reconhecendo os sujeitos.

Na apresentação da obra, o autor, Miguel González Arroyo, professor titular emérito da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), relembra-nos de algumas de suas publicações, desde Ofício de Mestre (2000), passando por Imagens Quebradas (2004) até Currículo, território em disputa (2011).

Passageiros da Noite provoca-nos a compreensão da educação de jovens e adultos (EJA) como direito e, portanto, não restrita à escolarização, mas pensada como tempo e espaço de formação humana de pessoas jovens, adultas, idosas - e até mesmo adolescentes. A sua leitura colabora para o entendimento sobre os educandos e educadores, das trajetórias educativas de tais sujeitos do trabalho para a EJA e de seus itinerários pelo direito a uma vida justa, feitos de resistências por emancipação.

A viagem pelos 23 capítulos, interligados pelo trajeto dos dez campos de indagações, de estudos e de formação percorridos pelos textos-análises do livro, traz a todos nós que nos ocupamos da educação como possibilidade de libertação, especialmente da educação de jovens, adultos e idosos, temas geradores de estudo e de formação que contribuem para a compreensão da riqueza, da radicalidade, da diversidade, da criatividade e da relevância das vivências dos sujeitos, diante da construção de qualquer proposta de política pública específica para a educação de trabalhadores jovens e adultos. A centralidade dessa política está no fato de que ela deve ser construída em diálogo com as vivências, as trocas de experiências, os relatos e os saberes presentes no fazer e/ou no refazer de vidas cotidianas de trabalhadores que estudam e que desejam ampliar e aprofundar o direito ao conhecimento como parte do percurso para alcançar outros direitos.

Nessa viagem a que a leitura nos transporta, está presente o diálogo com o significado radical, político e pedagógico dado à educação e à docência pelos seus sujeitos. Centrais e significativas são, ainda, as questões trazidas aos cursos de formação, ao focar as personagens desses deslocamentos do trabalho para a EJA, da EJA para casa e de casa mais uma vez para o trabalho, encarando a relevância desse percurso marcadamente social para a construção de propostas curriculares a serem trabalhadas com e por esses sujeitos, descentrando-se da mera certificação, por não serem eles apenas escolares, mas humanos.

Seguindo essa linha de pensamento, a obra instiga-nos a reflexão sobre a função da escola pública na construção de significados da EJA como periférica na proposição de políticas públicas e como educação à qual estão destinados os sujeitos educandos e educadores. A reflexão estende-se, ainda, aos espaços físicos e aos currículos, aos materiais didáticos, às formações inicial e continuada e, enfim, às ausências periféricas características do apartheid social, espacial, racial e pedagógico.

Portanto, o achado de Passageiros da Noite é nos convidar a não permitir que nossas práticas sejam contaminadas com tais representações, com significados segregadores, pois temos as funções de formar educadores e de ser educadores que educam e contribuem com a formação humana de jovens e adultos vitimados pela segregação de todos os tipos, trabalhando a autoestima pessoal e coletiva de resistências positivas, dignas, justas, humanas.

O que está em evidência na obra é que ela nos incita a reinventar a EJA por meio do reconhecimento desses sujeitos como trabalhadores, tendo na categoria trabalho o princípio básico para pensar a sua formação escolar como estratégia para enriquecer currículos e áreas do conhecimento. Logo, ver o trabalho como estruturante do processo de reconhecimento identitário, dos valores profissionais, da humanização.

Como se verifica na estrutura do livro, ouvir as narrativas desses trabalhadores que estudam e compartilhar saberes sobre história, geografia, corporeidade, matemática, artes, isto é, os saberes presentes nos processos de lutas dos movimentos sociais populares, é fundamental na construção do conhecimento, o que permite que os educandos reflitam acerca de seus processos de luta pelo direito ao trabalho. Tais reflexões podem também levar à articulação de lutas pelo direito à educação, fazendo o mesmo quanto às lutas por todos os outros direitos e pela construção da concepção do direito ao trabalho como um dos elementos do direito à cidadania.

O leitor encontra em Passageiros da Noite a convocação para trazer o trabalho para a agenda pedagógica por meio de suas práticas de trabalhador, bem como trava contato com o trabalho visto como princípio educativo que não se desenvolve como uma avenida paralela à da escola, mas como uma na qual os educandos e seus educadores atuam como herdeiros das resistências do movimento operário, do movimento docente e dos movimentos sociais populares.

À medida que a leitura flui, ressalta-se o convite do autor para que sigamos reaprendendo com Paulo Freire, consolidando-nos e contribuindo com os procedimentos de afirmação dos educandos como sujeitos dos processos de humanização. Além disso, esse reaprender ajuda-nos a elaborar propostas de cursos em que sejam consideradas as resistências históricas de trabalhadores do campo e da cidade que, em coletivo, pensem a sua emancipação. Tal emancipação está articulada ao fim da exploração que sofrem no trabalho, da desapropriação de suas terras e de suas casas, da invasão de seus territórios por estradas que se juntam e se misturam para alcançar outras matrizes pedagógicas e outros paradigmas formadores que reeduquem nosso pensamento.

Enfatiza-se que os itinerários por direito a uma vida justa merecem um tema gerador de estudos e de formação, para que se entenda a vinculação entre o direito à educação e as lutas pelos direitos humanos. Por outro lado, esse tema precisa ser compreendido por meio das experiências dos movimentos sociais que articulam resistências, justiça, ética, educação, direitos sociais, cidadania e direitos humanos, conquistados em batalhas travadas por sujeitos da luta pela humanidade roubada e pelos direitos negados.

O livro faz-nos constatar que a formação de sujeitos coletivos de direitos se choca com a visão individualista predominante do nosso sistema econômico, em detrimento da condição coletiva de classe social, de raça, de etnia, de gênero, de orientação sexual, de lugar, de saúde, de religiosidade, de territorialidade, de trabalho e de expropriação da renda, da terra, do teto, da escolarização e da EJA.

O conhecimento da luta dos movimentos sociais pode auxiliar na compreensão da tensão histórica entre direitos individuais e direitos coletivos, que por sua vez concorre para a superação do olhar individualizado, por serem eles sujeitos de direitos nos limites da sobrevivência.

Destaca também a condição de sujeitos de direito ao conhecimento e como a luta por esse direito enfrenta uma tensa construção na busca da articulação de conhecimento e cidadania. Essa busca tem como ponto de partida a alteração do olhar de iletrados, incultos, irracionais, de inumanos que podem ser escolarizados e educados para a cidadania. Uma vez não alterado esse olhar, persiste a negação política, deliberada e orquestrada do reconhecimento de sua cidadania. Na EJA, a afirmação desse reconhecimento está ligada a desvelar, estudar, incorporar, reconhecer e analisar as identidades positivas que lhes são historicamente roubadas nessa tessitura de negação.

Para tal, é fundante que os processos de produção, de seleção, de ocultação dos conhecimentos curriculares sejam conhecidos pelos jovens e adultos. ­Faz-se preciso disputar autorias de conhecimento e trazer para os currículos os saberes que remetem a resistências coletivas, que propiciam inventar formas de intervir e de alterar a vida cotidiana de maneira a torná-la justa e digna, compreendendo seus saberes como saberes sociais válidos, de formação humana, produzidos por sujeitos de culturas, de diversidades, de memórias coletivas, de valores, de identidades e populares.

Neste momento de nossa história política, social e econômica, em que tantos retrocessos se precipitam contra direitos conquistados e outros perseguidos, o autor traz-nos letras de músicas, títulos de filmes e literaturas que podem contribuir com as análises necessárias dos temas de estudo e formação discutidos ao longo do livro, na perspectiva das resistências pelo direito a uma vida justa, cimentada na esperança golpeada, em tempos de democracia açoitada e de acirramento da negação dos direitos dos sujeitos da EJA.

Afinal, trata-se de um excelente livro a ser citado e utilizado em cursos de formação inicial e de formação continuada de educadores, além de ser desejável seu uso na atualização de educadores que enfrentam o desafio e a delícia de trabalhar com jovens e adultos, trabalhadores, homens e mulheres empobrecidos, negros, indígenas e brancos, pessoas com deficiência.

Enfim, o desafio e o prazer de atuar com trabalhadores com corpos precarizados, violentados, cujas persistências e resistências históricas merecem ser trazidas e problematizadas nos currículos, nos mostram que esses sujeitos não ficaram parados no lugar em que a interrupção de sua trajetória escolar ou as suas nunca idas à escola os fizeram saltar da viagem em que eram passageiros, naquele momento de sua infância ou adolescência. Nessa jornada, eles trazem consigo o conteúdo de denúncias de opressões que sofrem e do desejo por paz e por dignidade, libertação, uma vida justa. HUMANA.

Desejo uma boa leitura.

Referência

  • ARROYO, M. Passageiros da noite: do trabalho para a EJA: itinerários pelo direito a uma vida justa. Petrópolis: Vozes, 2017.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Jul 2018
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2018

Histórico

  • Recebido
    17 Jan 2018
  • Aceito
    03 Abr 2018
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