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O revivescimento da aprendizagem?

The revival of learning?

Resumos

Este artigo é uma provocação. Ele focaliza a sociedade da aprendizagem, sua substância e retórica. Os protagonistas da sociedade da aprendizagem defendem a idéia de que a escolaridade está morrendo e que a educação deveria passar por uma reengenharia. Propõe uma nova infra-estrutura em torno do conceito de aprendizagem em linha. Entretanto, essa visão da sociedade da aprendizagem padece de, pelo menos, três defeitos. Primeiro, ela pressupõe que se pode transmitir tudo o que se pode imaginar; segundo, que fazer alguma coisa funcionar é tão simples como conceber uma infra-estrutura; e, finalmente, que a sociedade da aprendizagem pode se libertar das relações de poder que marcaram seus predecessores.

Sociedade da aprendizagem; Aprendizagem em linha; Milenarismo; Poder; Empoderamento


This article is a provocation. It focuses on the learning society, its substance and rhetoric. Protagonists of the learning society advance the idea that schooling is dying, and that education should undergo re-engineering. A new infrastructure is proposed around the concept of on-line learning. This vision of the learning society suffers, however, from at least three defects. First, it assumes that what can be imagined can be delivered; secondly, that making something work is as simple as designing an infrastructure; and finally, that the learning society can escape from the power relations that also marked its predecessors.

Learning society; On-line learning; Millennium; Power; Empowerment


O REVIVESCIMENTO DA APRENDIZAGEM?* * Tradução de Alain François.

David Hamilton** * Tradução de Alain François.

Resumo: Este artigo é uma provocação. Ele focaliza a sociedade da aprendizagem, sua substância e retórica. Os protagonistas da sociedade da aprendizagem defendem a idéia de que a escolaridade está morrendo e que a educação deveria passar por uma reengenharia. Propõe uma nova infra-estrutura em torno do conceito de aprendizagem em linha. Entretanto, essa visão da sociedade da aprendizagem padece de, pelo menos, três defeitos. Primeiro, ela pressupõe que se pode transmitir tudo o que se pode imaginar; segundo, que fazer alguma coisa funcionar é tão simples como conceber uma infra-estrutura; e, finalmente, que a sociedade da aprendizagem pode se libertar das relações de poder que marcaram seus predecessores.

Palavras-chaves: Sociedade da aprendizagem. Aprendizagem em linha. Milenarismo. Poder. Empoderamento.

THE REVIVAL OF LEARNING?

ABSTRACT: This article is a provocation. It focuses on the learning society, its substance and rhetoric. Protagonists of the learning society advance the idea that schooling is dying, and that education should undergo re-engineering. A new infrastructure is proposed around the concept of on-line learning. This vision of the learning society suffers, however, from at least three defects. First, it assumes that what can be imagined can be delivered; secondly, that making something work is as simple as designing an infrastructure; and finally, that the learning society can escape from the power relations that also marked its predecessors.

Key words: Learning society. On-line learning. Millennium. Power. Empowerment.

"Por que está indo para a América do Sul?", perguntaram meus colegas. "Para compartilhar minha pesquisa sobre os primórdios da escolaridade moderna (1500-1650)", respondi simplesmente. Entretanto, mais tarde, encontrei outro motivo. A cidade de São Paulo foi fundada pelos Jesuítas em 1554, época em que a palavra de ordem era começar a reformar a escolaridade na Europa. "Portanto", concluí, "uma visita ao Brasil só poderá beneficiar minha pesquisa".

Meus colegas persistiram: "O que significa, então, sua pesquisa histórica para o século XXI?". Respondi que meus hospedeiros – o Programa de Pós-Graduação em "educação, política e sociedade" da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – compartilham meu interesse mais amplo pela escolaridade. Além do mais, meus colegas brasileiros ainda partilham da minha crença de que se debruçar sobre a escolaridade do passado significa também refletir acerca da escolaridade no futuro.

Neste artigo, combinando esses interesses, recorro a uma análise histórica para iluminar o futuro incerto da escolaridade. Em suma, pondero sobre a questão: "Se a escolaridade moderna teve um início, será que também terá um fim?".

Primórdios

Minhas visões sobre os primórdios da escolaridade moderna brotam de uma simples observação. A linguagem da educação européia mudou de modo significativo durante o século XVI, época em que alguns termos ganharam relevo, conforme indicado abaixo:

Os vocábulos programa e didática eram formas latinizadas de palavras gregas mais antigas; classe e currículo eram termos do latim clássico emprestados de outros campos; e catecismo era um vocábulo do grego clássico cujo novo significado começava a incluir tanto respostas formais como questões formais.

A escolaridade moderna moldou-se em torno dessa nova infra-estrutura de idéias e práticas. Ricos patrões investiram nestes métodos modernos e memorandos públicos, guias e manuais de método listavam e elaboravam seus pressupostos. Decretos municipais os endossaram, professores arrojados os adotaram e, não menos importante, as trocas européias em termo de idéias educativas garantiram sua disseminação. Criava-se uma nova tecnologia instrucional.

O surgimento das palavras programa e currículo assinalava a reorganização pedagógica de corpora existente de doutrina aprovada, ao passo que a atenção dada aos catecismos e à didática refletia a reorganização do ensino para garantir a transmissão eficiente da doutrina. Por meio dessas inovações assumia-se que uma doutrina podia ser suavemente transmitida pelos ouvidos, olhos, mentes, corpos e almas de alunos. Na sua forma mais simples, essa transformação do século XVI marcou uma transição da atenção pública da aprendizagem para a instrução. Antes da fundação de São Paulo, por exemplo, os escritos educativos europeus focalizavam o que e como as crianças deveriam aprender, enquanto, pouco depois, esses escritos davam muito mais atenção ao que e como se deveria ensinar às crianças.

Dois textos dos princípios da história jesuíta, o Exercitia spiritualia e o Ratio studiorum, ilustram esta guinada instrucional. Elaborado nos anos 1520 por Inácio de Loyola, fundador dos Jesuítas, o Exercitia spiritualia surgiu como um manual de auto-instrução ou de autodisciplina, uma preparação para a vida espiritual. Santo Inácio o introduziu enquanto estava estudando em Paris nos anos de 1530, época em que não apenas fundou a Companhia de Jesus como também sofria a influência de discussões sobre a reorganização do ensino e da aprendizagem. Embora as primeiras versões do Exercitia spiritualia tivessem sido escritas em castelhano, uma versão latina, mais literária, apareceu em 1548.

Característico da segunda metade do século XVI, o Ratio studiorum é um texto contrastante que reuniu todas as experiências jesuítas posteriores à publicação do Exercitia spiritualia e à fundação do Colégio de Messina, ambos de 1548. Seu título pode ser traduzido por "esquema de estudos"; sua versão final colocava uma ênfase maior no esquema do que nos estudos, o que era de se esperar, uma vez que esta era a característica do Ratio studiorum – reorganizar práticas existentes – que lhe valeu sua notoriedade. Ele foi publicado em sua forma aprovada em 1599, sofreu pequenas mudanças em 1615 e permaneceu intocado até 1773.

As mudanças educativas que essas diferenças entre o Exercitia spiritualia e o Ratio studiorum representam são um dos focos de minha pesquisa sobre o século XVI, muito embora o Ratio studiorum não constituísse a única fonte de reforma pedagógica, visto que mudanças comparáveis ocorreram em toda a Europa.

Um novo revivescimento da aprendizagem?

Quatrocentos anos mais tarde, as diferenças entre aprendizagem e instrução têm voltado à pauta dos fazedores de políticas educativas. Essa discussão surge da alegação de que a sociedade da aprendizagem está substituindo a sociedade industrial. Considera-se até a perspectiva de um novo renascimento educacional. O capital humano é elevado ao mesmo status do capital financeiro e a nova aprendizagem alimenta capabilidades que, coletivamente, vão impelir as economias do futuro, movidas a conhecimento.

Escolaridade e emprego convergem. Em 2001, por exemplo, a Comissão Européia criou um diploma em aprendizagem eletrônica (e-learning) para aumentar a cooperação entre escolaridade, negócios e indústria. Já em 1998, o governo britânico declarava que "As capabilidades distintivas do Reino Unido não são as matérias-primas, a terra nem a mão-de-obra barata: hão de ser nossos conhecimentos, habilidades e criatividade".

A sociedade da aprendizagem adquiriu uma dupla finalidade em tempos de globalização. Ela é ao mesmo tempo uma fonte de desenvolvimento social e um meio de sobrevivência econômica. Jornalistas e escritores de discursos, que ressaltam suas características inovadoras, projetadas como a infra-estrutura da sociedade da aprendizagem, têm plena consciência disso.

Aprendizagem em linha

A aprendizagem em linha, ou aprendizagem eletrônica, é a pedra angular da sociedade da aprendizagem. Sua introdução, caso tiver êxito, marcará uma nova era na escolaridade. Dado que pode ser ministrada tanto nos campi quanto fora deles, ela implica o fim da distância. Como a aprendizagem tende a ocorrer mais por iniciativa do estudante do que do professor, ela também acarreta a morte agônica dos horários rígidos. Ademais, por marginalizar a didática, o advento da aprendizagem em linha também aponta para a morte do professor. Como resultado, este deixa de ser uma figura proeminente na equação econômica da sociedade da aprendizagem. A razão professor-aluno, indicador econômico notável na sociedade instrucional, está sendo substituída pela razão alunos–conexões Internet. O currículo "à prova do professor" (professor-proof) – meta dos primeiros educadores como Comênio (1592-1670) – está sendo substituído pelo currículo sem professor (professor-free). Nas palavras de um consultor do Banco Mundial, um currículo é um "planejamento para aprendizagem, não para ensino".

Processos, não conhecimentos

A retórica da sociedade da aprendizagem também abriu mão de outro pilar da sociedade instrucional. O conhecimento como doutrina é rejeitado, junto com a visão de que as habilidades são traços biológica ou psicologicamente herdados. Conhecimento e habilidade, qualidades intelectuais sobre as quais se constrói a noção de capabilidade, tornaram-se construtos fluidos. Esta noção pressupõe que os alunos podem aprender a aprender e aprender a como ter flexibilidade para encontrar soluções para eventuais problemas. A sociedade da aprendizagem, portanto, valoriza muito o conhecimento sobre conhecimento e prioriza o meta-conhecimento e a meta-cognição, pressupondo que os alunos têm uma visão clara e abrangente dos objetivos de uma tarefa; que serão capazes de julgar quando um curso de ação deveria ser abandonado; e que, diante de dificuldades, conseguirão reconsiderar estágios anteriores de seu pensamento.

Integração da aprendizagem e avaliação

Além do currículo, a transformação da sociedade da aprendizagem também se estendeu à avaliação. Rótulos como avaliação alternativa ou autêntica estão se tornando populares. Além do mais, as práticas de avaliação foram repensadas. Atribui-se à avaliação uma função antes formadora do que somativa. Ela é parte integrante do ensino, tornando os exames meros adjuntos do ensino. Por outro lado, softwares de aprendizagem em linha facilitam a integração da aprendizagem com a avaliação. Na teoria, os alunos acreditam estar conduzindo a própria aprendizagem.

Cursos personalizados

A imagem da sociedade da aprendizagem tem mais uma característica: é apresentada como um Jardim do Éden, cujos frutos estão à livre disposição de todos os alunos, sem que estes tenham de seguir caminhos prescritos, como nos cursos ou currículos que seus predecessores seguiam na sociedade instrucional. Antes, os alunos são estimulados a achar seu próprio caminho pelas ramificações de um hipertexto de conhecimento. Congregada por provedores de acesso à Internet, a sociedade da aprendizagem se apresenta como uma organização igualizada e globalizada. Um pouco como outro ícone da era da informação, o boné de beisebol, existe apenas uma Internet e ela satisfaz a fantasia dos engenheiros – tamanho único. Entretanto, ela deixa sem respostas duas perguntas de engenharia: quem projetou os mapas de aprendizagem embutidos num software? Quem personalizou os caminhos que os alunos seguem?

Livros do aluno para "download"

A Internet é um corpus de conhecimentos processados e armazenados no qual os alunos podem organizar e baixar tanto seus próprios livros como seus próprios Cd-Roms. Entretanto, até o Jardim do Éden da Bíblia tinha suas limitações e tentações. A preexistência de direitos sobre propriedade intelectual (ex copirraite) é a cobra no Jardim do Éden. Por outro lado, o livro do aluno para "download" pode ser uma fonte de conhecimento em linha, mas sua configuração também contém frutos proibidos que exploram a curiosidade dos alunos em linha e inibem a criatividade de fornecedores de acessos à Internet ligados à educação.

Habilidades no lugar de conhecimentos

Outro pressuposto-chave na sociedade da aprendizagem, incluído na noção de capabilidade, é que o desempenho é preferível à competência. Uma pessoa é capaz porque sabe fazer algo e a pergunta educativa "Qual é seu potencial?" foi substituída pela pergunta econômica "O que você sabe fazer?". Por outro lado, o desempenho tem um duplo propósito: serve tanto para a avaliação como para a aprendizagem em linha. O desempenho pode ser medido tanto econômica quanto cognitivamente. Os alunos podem achar que estão aprendendo segundo seu próprio ritmo, mas o valor dessa aprendizagem é medido, implícita ou explicitamente, com critérios que fogem ao alcance de seus anseios, aspirações ou desejos.

O Fim de Escolaridade?

A sociedade da aprendizagem tem sua própria infra-estrutura: pelo seu próprio formato, uma plataforma baseada na rede está vinculada ao desempenho educacional e econômico. Entretanto, essa plataforma herda muito pouca coisa do século XVI. Apresenta muito pouco de um programa enquanto lista predeterminada de conteúdos; ou de classes como multidões de alunos. Do mesmo modo, os defensores do liberalismo da sociedade da aprendizagem rejeitariam o diálogo fechado de um catecismo, assim como rejeitam a noção de um currículo como trajeto bem definido através do mapa dos conhecimentos e pouco se importam com o fato da didática oferecer um conjunto de princípios que governam a transmissão da aprendizagem.

O que significa esta divergência? Será que a chegada da sociedade da aprendizagem anuncia o fim de escolaridade moderna? Se tivesse tido a oportunidade de perguntar isto ao Governo Britânico, à Comissão Européia ou ao Banco Mundial, o que não é o caso, esperaria três respostas. A primeira seria dada em letras maiúsculas, com uma fonte inusitada – formas de ênfase em voga nas relações públicas. A sociedade da aprendizagem, sugeririam eles, é a "Próxima Melhor Coisa". É algo novo, original e futurista; muito mais do que uma inovação elaborada a muito custo a partir das lições do passado.

Depois, esperaria ouvir que a sociedade da aprendizagem é original porque reflete uma reengenharia em massa da escolaridade "tradicional". Profetas e gurus identificaram os elementos de sua infra-estrutura e, ao alcançarem esses objetivos, sua tarefa de relações-públicas se encerrou. Entretanto, eles continuam vítimas de um desconforto que acomete todo inventor: uma coisa é inventar, outra coisa é fazer a invenção funcionar.

Finalmente, os defensores da sociedade da aprendizagem alegariam que seu trabalho constitui um Novo Começo que substitui as práticas obsoletas da escola instrucional. Segundo eles, a infra-estrutura que sustentava a escolaridade moderna sobreviveu à sua utilidade, mas seus elementos são artefatos culturais que deveriam ser relegados a um museu do folclore: não oferecem qualquer vantagem social ou econômica. Em compensação, as virtudes da sociedade da aprendizagem falam por si só: a sociedade soltou-se da camisa-de-força da instrução e, nesse processo, a educação formal se libertou das restrições do modernismo.

Apocalipse quando?

Entretanto, a sociedade da aprendizagem não passa de uma visão. Seus pressupostos relativos à morte da escolaridade estão inscritos apenas nas palavras, imagens e afirmações dos fazedores de significados culturais – educadores, economistas, peritos em relações públicas, pesquisadores de mercado, escritores de discurso e políticos –, que reproduzem, reciclam e formam a opinião popular. Ora, essa visão é comercializada por órgãos que têm um alcance global e, sendo atraente, reconfortante e niveladora, ela é amplamente aceita. A linguagem da sociedade da aprendizagem projeta um sentido de redenção humana: a humanidade foi salva da Queda precipitada pela falha de Adão e Eva no Jardim do Éden.

A sociedade da aprendizagem é, portanto, uma sociedade milenarista. Ela antecipa, e até promete, um mundo melhor. Ela projeta a forma de coisas ainda por vir. Como toda visão milenarista, contudo, as alegações a respeito da sociedade da aprendizagem são um amálgama enganador de retórica e lógica, em que a falta de lógica é compensada pela retórica. A dimensão retórica da imagem da sociedade da aprendizagem é crucial e chama a atenção para certas idéias, buscando estabelecer seu mérito unívoco e vender noções específicas como uma fonte de salvação humana e global.

Minha própria visão é que a sociedade da aprendizagem é uma fantasia do tipo Guerra nas Estrelas, baseada no pressuposto utópico de que o que pode ser imaginado pode ser transmitido. Além do mais, essa fantasia de Guerra nas Estrelas inclui uma garantia de infalibilidade: a sociedade da aprendizagem em linha promete estar livre de bug e de vírus. A prática, contudo, é diferente. A aprendizagem em linha funciona com algumas pessoas por algum tempo, mas dificilmente funcionará para todo o mundo, o tempo todo. Fazer da invenção um sucesso exige que os fracassos sejam reduzidos a níveis aceitáveis para seus clientes potenciais. Testes onerosos são necessários e eles são sempre ameaçados pela perspectiva de novas invenções. Geralmente, a visão Guerra nas Estrelas da sociedade da aprendizagem é adiada e "Apocalipse agora" se transforma em "Apocalipse algum dia".

Aprendizagem inocente

O apelo popular da sociedade da aprendizagem está vinculado ao avanço das liberdades individuais. Dizem que a sociedade da aprendizagem livrou-se dos defeitos da sociedade instrucional. A instrução, ainda segundo esses argumentos, formou insidiosamente alunos para desígnios sobre os quais não tinham o menor controle. Em compensação, a aprendizagem é um processo pessoal, puro e inocente.

Mas, na realidade, não há aprendizagem inocente. À medida que os alunos aprendem, eles se formam dentro de um contexto social e, até um certo ponto, são também formados por esse contexto. Sem contar que um contexto social também é um contexto psicológico ou ideológico: é ao mesmo tempo interno e externo. As características do contexto social já estão instaladas nas biografias dos alunos, incutidas em suas cabeças e mãos e realizadas em seus pensamentos e atos.

Através desta mediação, a sociedade da aprendizagem alimenta novos modos de viver, posições sociais e identidades cognitivas. A aprendizagem está estreitamente vinculada ao consumo. Somos o que aprendemos na Internet. Integrantes da sociedade da aprendizagem se conhecem pelos seus números de PIN, senhas, endereços de correio eletrônico, e não pelas suas relações biológicas ou sociais. É mais provável eles aparecerem como david.h@milton do que como David Hamilton.

A sociedade da aprendizagem é um grande negócio. Está profundamente implicada em produção global e marketing, e também abarca um mundo segmentado, dividido, desigual. Não por acaso existe uma relação estreita entre Web design, Web marketing e aprendizagem em linha. A sociedade da aprendizagem é um conceito guarda-chuva que abriga marketing, transmissão e consumo de doutrina. Os engenheiros de software, assim como os Web designers, recorrem a uma gama cada vez maior de dispositivos retóricos em linha para cativar a atenção e a interação dos usuários da Internet. Eles são os pedagogos da aprendizagem em linha, tornaram-se os novos guardiões da ordem "sociodigital". Obviamente, na medida em que um site na Web provoca as respostas desejadas, ele é um descendente digital direto do catecismo.

A viagem é o destino

Minha observação final sobre o revivescimento da aprendizagem remonta aos primórdios da escolaridade moderna. O propósito educativo chave da escolaridade moderna era o de garantir a salvação dos jovens. Ela os preparava para que pudessem acabar ascendendo aos céus. O céu era o estado ideal e a escolaridade era organizada em torno dessa meta distante e a longo prazo.

Esta perspectiva educacional tem se mantido. A escolaridade sempre tem algum tipo de intenção espiritual ou secular de ordem superior. Ela é estruturada para fomentar uma unidade espiritual, lingüística, uma coesão nacional, uma cidadania ativa, uma democracia participativa, e assim por diante. Entretanto, esses objetivos estão sempre fora de alcance, como as estrelas no céu. Nesse sentido, o professor lembra um navegador que enfrenta o oceano: as estrelas estão sempre aí; elas são essenciais à vida que professores e alunos compartilham; e elas estão sempre a postos para ajudar na navegação, no dia-a-dia do ensino e da aprendizagem.

Conclusão

A educação é um processo de empoderamento. É uma resposta a um eterno desafio humano. Ela explora o potencial que os seres humanos têm de transcender os limites da evolução biológica e almeja garantir que a mudança social agregada seja mais rápida do que a evolução biológica da espécie humana.

Contudo, a educação não é um processo padrão: está mudando constantemente. A escolaridade moderna apareceu tarde nos registros históricos europeus – muito depois de épocas em que temos provas de sua existência. Ela surgiu do trabalho da igreja medieval que criou instituições formais para preparar suas gerações futuras de oficiantes. Mais tarde, escolas de igrejas começaram a preparar os jovens para a vida adulta fora da igreja. A formação desses alunos externos passou paulatinamente a predominar no trabalho dessas escolas de igrejas. No processo, a escolaridade acabou ultrapassando os limites do projeto elaborado pela igreja. O Estado acabou substituindo-a como força principal na organização e no controle da escolaridade. No fim do século XX, contudo, os Estados nacionais encontraram certas dificuldades em acompanhar os novos ritmos, modulações e instrumentações que se infiltraram na organização da escolaridade.

Esta perspectiva conferiu um novo significado à sociedade da aprendizagem. Os ritmos, a retórica e as práticas da sociedade da aprendizagem são uma convergência intricada de interesses sociais. As comunicações de massa ganharam uma significância educativa no início do século XX. A alfabetização em massa lhes forneceu um novo nicho de mercado e os jornais e seus donos arrogaram-se responsabilidades educativas (ou doutrinais) do Estado.

Na secunda metade do século XX, contudo, outras mídias começaram a se destacar, principalmente o rádio e a televisão, e a assumir várias responsabilidades educativas. Finalmente, os anos de 1990 foram uma década em que o potencial educativo da tecnologia de computadores acabou se impondo. Os paralelos entre a ascensão da sociedade da aprendizagem e o surgimento da "geração MTV" não é acidental. A comunicação nunca é inocente e a aprendizagem nunca é puramente autônoma.

Em conseqüência, permaneço céptico frente aos méritos alegados da sociedade da aprendizagem. Acho tão difícil admitir que estamos retornando para um mundo de aprendizagem quanto aceitar que os trabalhos de Gutenberg, Erasmo e Maquiavel marcaram uma época histórica com pureza moral e inocência intelectual. A escolaridade sempre se construiu sobre uma tensão entre poder e empoderamento; e, como tentei sugerir neste artigo, a infra-estrutura da sociedade da aprendizagem deveria ser excluída deste processo.

Aprendizagem e instrução, como educação e escolaridade, podem ser examinadas através de várias lentes, umas convergindo para o "empoderamento", outras para o "poder". Embora a retórica da sociedade da aprendizagem enfatize o empoderamento pessoal por meio da educação, sua análise sugere uma interpretação contrária. Mesmo se sua forma e substância são mascaradas por uma camada externa de empoderamento retórico, é o poder que vem em primeiro lugar na sociedade da aprendizagem.

Durante toda sua história, a educação foi incomodada por questões de conteúdo e método, poder e empoderamento, que sempre foram centrais para a educação e a sociedade. Neste artigo, tentei mostrar porque elas não são menos importantes para o Brasil de 2002 do que eram na época em que a escolaridade, como o Brasil, começou a tomar sua forma moderna.

Recebido em junho de 2001.

Aprovado em julho de 2001.

** Departamento de Educação, Umeå University, Suécia. E-mail: david.hamilton@pedag.umu.se

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    Tradução de Alain François.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      13 Dez 2006
    • Data do Fascículo
      Abr 2002

    Histórico

    • Aceito
      Jul 2001
    • Recebido
      Jun 2001
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