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TECNOLOGIAS E EDUCAÇÃO ESCOLAR: A ESCOLA PODE SER CONTEMPORÂNEA DO SEU TEMPO?

TECHNOLOGIES AND SCHOLAR EDUCATION: CAN THE SCHOOL BE CONTEMPORARY WITH ITS TIME?

TECNOLOGÍAS Y EDUCACIÓN ESCOLAR: ¿PUEDE LA ESCUELA SER CONTEMPORÁNEA A SU TIEMPO?

RESUMEN

O texto reflete, numa perspectiva histórica, sobre a presença dos artefatos tecnológicos na escola e seus usos para escolarizar crianças e jovens. A partir de uma compreensão de que a escolarização se efetiva por meio dos usos de recursos diversos com os quais a escola interage, como os artefatos tecnológicos, a intenção é lançar luzes sobre a relação da escola com o seu tempo. Para isso, o início do século XIX é o ponto de partida de nossa digressão, tomando a proposição do método mútuo como referência principal, a qual se estende até ao final do XX, quando a tecnologia da informática foi incorporada às práticas escolares. Esse esforço reflexivo nos permitiu compreender que a escolarização, como tecnologia do poder, teve nos artefatos tecnológicos uma referência potencializadora das práticas escolares.

Palavras-chave
Escola; Escolarização; Tecnologias de poder; Artefatos tecnológicos

ABSTRACT

The text reflects, in a historical perspective, on the presence of technological artifacts in school and their uses to educate children and young people. From an understanding that schooling is effective through the use, by the school, of different resources, such as technological artifacts, the intention is to shed light on the school’s relationship with its time. For this, the beginning of the 19th century is the starting point of our tour, taking the proposition of the mutual method as the main reference, which extends until the end of the 20th, when computer technology was incorporated into school practices. This reflective effort makes us necessarily understand that schooling, as a technology of power, had in technological artifacts a potential reference for school practices.

Keyword: School. Schooling. Power technologies. Technological artifacts.

Keywords
School; Schooling; Power technologies; Technological artifacts

RESUMEN

El texto reflexiona, en perspectiva histórica, sobre la presencia de artefactos tecnológicos en la escuela y sus usos para educar a niños y jóvenes. A partir de la comprensión de que la escolarización se efectiva mediante el uso de diferentes recursos en escuelas, como los artefactos tecnológicos, se pretende dar luz sobre la relación de la escuela con su tiempo. Por ello, el inicio del siglo XIX es el punto de partida de nuestro recorrido, tomando como principal referencia el método mutuo, el cual se extiende hasta finales del siglo XX, cuando la tecnología informática se incorporó a las prácticas escolares. Este esfuerzo reflexivo nos permitió comprender que la escolarización, como tecnología del poder, tenía en los artefactos tecnológicos un referente potencializado para las prácticas escolares.

Palabras-clave
Escuela; Escolarización; Tecnologías de poder; Artefactos tecnológicos

Introdução

A escola é, muitas vezes, criticada por não conseguir acompanhar as transformações do mundo e, portanto, por estar defasada em relação ao seu tempo histórico. Contudo, nada mais elementar do que a crítica à escola por ela não ser contemporânea do seu tempo. Isso porque a contemporaneidade da escola com o mundo e com as relações sociais, econômicas, políticas e culturais se dá por vias que nem sempre os seus críticos mais apressados percebam. É o caso, por exemplo, dos produtos tecnológicos e seus usos. Tais produtos, entendidos como artefatos tecnológicos, habitam a escola, assim como estão presentes em outras instituições e no cotidiano das pessoas na modernidade. Todavia, de que maneira e por meio de quais artefatos, objetos ou dispositivos as tecnologias habitam o mundo escolar? Neste artigo, propomo-nos a analisar a presença dos artefatos tecnológicos no pensamento educacional e os discursos sobre seus possíveis usos na escola brasileira, entendendo esses elementos também como formas ou meios de escolarização da população de jovens e crianças.

O texto, de caráter ensaístico, focará nas discussões que se iniciam com as tentativas de implantação, no Brasil, do método monitorial, ou mútuo, nas primeiras décadas do século XIX, quando havia clara intenção de expandir a escolarização entre o “povo” e, para isso, fazia-se necessária a adoção de recursos oriundos de tecnologias – banco ou mesa de areia, quadros, suportes, sinetas etc. – que permitissem não apenas uma nova organização da classe, mas também (e, às vezes, principalmente) a mediação entre professores e alunos no processo de ensino e aprendizagem. No decorrer do século XIX e ao longo do século XX, da inclusão do quadro negro e do cinema na escola, passando pelo rádio e pela televisão, chegaremos ao computador como nova panaceia para salvar a escola do seu ostracismo tecnológico. Assim, nosso ponto de chegada será as discussões que ser fazem no final do século XX, acerca da necessidade de incorporação dos computadores e das tecnologias da informação no cotidiano escolar. Naquele momento, os críticos às escolas, que as consideravam uma instituição tradicional e pouco afeita às mudanças, defenderam, mais uma vez, que as tecnologias poderiam salvar a escola e, quem sabe, banir do seu cotidiano os(as)as obsoletos(as) professores(as), avessos(as) às mudanças e ao novo. Para a construção deste ensaio, utilizaremos como fontes a legislação escolar, artigos de jornais e revistas sobre o tema e pesquisas realizadas a respeito do assunto.

Escolarização como Tecnologia de Governo da População

Escolarizar a população brasileira foi o investimento feito pelo Estado Nacional ao longo do tempo histórico que este texto contempla, a fim de aproximar o país da civilidade e da modernidade nos moldes do que já vinha ocorrendo, sobretudo, na Europa e nos Estados Unidos, ainda que sempre aclimatadas à realidade brasileira. Para isso, pensar a escola e a sua função de escolarizar crianças e jovens demandava tomar o discurso metódico da Pedagogia como referência e como necessário, uma vez que o ensino racional e eficaz vinha se tornando imperativo para a eficiência da organização dos países que se queriam modernos (ROLDÁN VERA; CARUSO, 2007ROLDÁN VERA, E.; CARUSO, M. (orgs.). Imported modernity in post-colonial state formation. The appropriation of political, educational, and cultural models in nineteenth-century Latin America. Frankfurt: Peter Lang, 2007. 412 p.). Nesse processo, é importante salientar, não houve uma anterioridade histórica da constituição do Estado em relação à escolarização, já que ela própria foi componente fundamental da construção dos Estados Nacionais, ainda que, também, um dos seus efeitos mais evidentes.

Escolarizar será tomado, neste texto, segundo a definição proposta por Faria Filho (2002)FARIA FILHO, L. M. Escolarização, culturas e práticas escolares no Brasil: elementos teórico-metodológicos de um programa de pesquisa. In: LOPES, A. A. B. M. et al. História da Educação em Minas Gerais. Belo Horizonte: FCH/FUMEC, 2002., que a concebe em sentido duplo: no primeiro caso, a escolarização é:

[...] o estabelecimento de processos e políticas concernentes à “organização” de uma rede, ou redes, de instituições, mais ou menos formais, responsáveis seja pelo ensino elementar da leitura, da escrita, do cálculo e, no mais das vezes, da moral e da religião, seja pelo atendimento em níveis posteriores e mais aprofundados

(FARIA FILHO, 2002FARIA FILHO, L. M. Escolarização, culturas e práticas escolares no Brasil: elementos teórico-metodológicos de um programa de pesquisa. In: LOPES, A. A. B. M. et al. História da Educação em Minas Gerais. Belo Horizonte: FCH/FUMEC, 2002., p. 111).

No segundo caso, a escolarização é entendida como “o processo e a paulatina produção de referências sociais tendo a escola, ou a forma escolar de socialização e transmissão de conhecimentos, como eixo articulador de seus sentidos e significados”. Aqui, o autor estará atento ao que irá chamar de “consequências sociais, culturais e política da escolarização” (FARIA FILHO, 2002FARIA FILHO, L. M. Escolarização, culturas e práticas escolares no Brasil: elementos teórico-metodológicos de um programa de pesquisa. In: LOPES, A. A. B. M. et al. História da Educação em Minas Gerais. Belo Horizonte: FCH/FUMEC, 2002., p. 111). Esse segundo sentido remete ao conceito de forma escolar concebido por Vincent, Lahire e ThinVINCENT, G.; LAHIRE, B.; THIN, D. Sobre a história e a teoria da forma escolar. Educação em Revista, Belo Horizonte, n. 33, p. 7-47, 2001., para os quais forma escolar é “um modo de socialização” que se impôs no transcurso histórico “a outros modos de socialização” (2001, p. 11).

A partir da definição do duplo sentido do termo “escolarização”, mais especificamente por exercer o poder do estabelecimento de processos e políticas que visam escolarizar os jovens e as crianças e por ser referência social para socialização e transmissão de saberes, é possível visualizar aquilo que podemos considerar elementos-chave da composição que propiciará o processo de escolarização: a organização dos tempos e espaços escolares, a invenção dos sujeitos da escola (alunos/professores), a seleção e a imposição dos conhecimentos ensináveis, o estabelecimento de práticas ritualistas, a exigência de uso comum de uniformes, carteiras, compêndios, manuais e livros didáticos, além dos modos de comportamento impostos pelas práticas disciplinares.

Em sentido amplo, essa noção de escolarização será concebida como dispositivo de saber e de poder para a imposição de um modo disciplinar, a fim de, por meio da escola, educar a massa da população de crianças e jovens. Será nessa direção que o provimento do fazer a escola, por meio da invenção e da utilização dos artefatos tecnológicos, tendo nas pedagogias o cerne criador das condições de escolarizar, é que este texto compreenderá o dispositivo de escolarização como meio para a realização da efetividade educativa da escola, portanto como tecnologia de poder.

Pensando dessa maneira, o questionamento que se apresenta é: como e por meio de que a escola torna efetiva a sua função de educar crianças e jovens? Quais artefatos tecnológicos, métodos e normativas são inventados ou apropriados para o atendimento da escolarização?

Essa questão remete a uma explicitação do sentido que a educação escolar toma como dispositivo de escolarização ou tecnologia de governo da população. Nesse caso, a nossa compreensão do dispositivo de escolarização aproxima-se da acepção de Foucault sobre o dispositivo, que é, segundo ele, um conjunto heterogêneo que compreende “discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Esse conjunto heterogêneo, com a inclusão dos artefatos tecnológicos, “tem uma função estratégica” (FOUCAULT, 1999FOUCAULT, M. Dits et écrits. Paris: Gallimard, 1999. v. III., p. 299), pela qual o uso dos artefatos tecnológicos, por parte da escola, tem um sentido de tecnologia de poder como operador da escolarização.

Esse entendimento de tecnologia de governo nos é útil para lançarmos luzes sobre o processo de implementação de um sistema de escolarização que se impôs como forma de socialização e transmissão de saberes escolares na realidade brasileira dos séculos XIX e XX – um sistema de escolarização que funcionou como tecnologia de poder, por meio de “estratégias de relação de forças”, sustentando “tipos de saber”, reciprocamente, e que se inscreveu e se constituiu num jogo de poder, o qual se deu em momentos históricos determinados e determinantes de políticas públicas para a educação brasileira.

Como forma de entendimento da escolarização como operadora do dispositivo e da tecnologia de poder, analisaremos, na sequência, os usos da materialidade escolar e dos métodos de ensino, os quais são, ao nosso ver, os elementos que objetivam a escolarização como dispositivo. Ressalva-se como necessário esclarecer que não é a escola tampouco os artefatos tecnológicos, métodos, arquitetura escolar, currículo ou qualquer forma materializada do fazer escolar que consideramos dispositivo de poder ou de tecnologia de controle, mas a escolarização, uma vez que ela, como dispositivo, toma o lugar de ser:

[...] uma rede que se estabelece diante de elementos heterogêneos que envolvem os discursos, o espaço escolar, as ideias, o currículo, os materiais escolares, os procedimentos administrativos etc.; a natureza das relações entre esses elementos está no âmbito das relações de poder e é de caráter estratégico, confirmando-as como produtos e produtoras de saber

(VEIGA, 2002VEIGA, C. G. A escolarização como projeto de civilização. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, n. 21, set./dez., 2002. https://doi.org/10.1590/S1413-24782002000300008
https://doi.org/10.1590/S1413-2478200200...
, p. 91).

Reafirmando, os artefatos tecnológicos que podem ser considerados realizações inventivas da escola ou que a ela são impostos irão compor o fazer escolar, materializando, assim, a escolarização como dispositivo ou como tecnologia de poder.

Do Banco de Areia ao Cinema Educativo: a Educação e suas Tecnologias I

Observa-se, nas primeiras décadas do século XIX, um grande e transnacional movimento de discussão da educação, cujo aspecto mais visível é o chamando método mútuo, monitorial ou lancasteriano. A circulação e a propagação das propostas desse “método” pelo mundo afora, como vem sendo estudado por dezenas de pesquisadores no mundo inteiro, articula, a uma só vez, elementos advindos do ideário das luzes e da Revolução Francesa sobre a necessidade de expandir a educação escolar como forma de escolarização dos sujeitos para a atuação nos espaços públicos; do movimento empresarial na busca de formas de educação disciplinar do operariado para o trabalho fabril; e dos Estados Nacionais para encontrar modos cada vez mais eficazes de integrar e homogeneizar populações e constituí-las como partícipes da nação. Nesse sentido, noções mais ou menos elaboradas de ideais de esclarecimento, disciplina industrial e nacionalismos se articulam potentemente na defesa da ampliação e encontram no método mútuo uma forma sintética de circulação ampliada, ainda que essa síntese não seja destituída de grandes tensões.

No Brasil, as primeiras manifestações acerca do método mútuo aparecem já no fim da segunda década do século XIX e ganham grande visibilidade nos anos seguintes. Assim, por meio de panfletos, artigos de jornais e leis, políticos, intelectuais e professores vão apregoar as vantagens do método para a organização da classe e para ordenação do ensino.

Do ponto de vista da organização da classe, o método mútuo apresenta a vantagem de, pela primeira vez na história da escola de primeiras letras, ou elementar, instituir um modo para que o professor, ainda que por meio indireto, pelo uso dos monitores, possa superar o arcaico método individual, de tradição doméstica e familiar, cada vez mais inadequado para o ensino das multidões que se queria educar. Assim, em vez de dar aula para cada aluno, em particular, o professor poderia dar aulas para grupos de alunos e, por meio da ajuda dos monitores, poderia dar aulas para centenas e, quiçá, milhares de alunos. Desse modo, o mundo da escola dava, pois, um passo gigante na constituição de uma organização especificamente escolar da classe, a qual não precisaria mimetizar os modos domésticos de ensino, abrindo os caminhos para que, nas décadas seguintes, a partir de várias confluências, fosse estabelecida a organização seriada da classe.

Doutra sorte, também o ensino seria substancialmente modificado pelas proposições trazidas pelo método mútuo. Ao mesmo tempo que se instituía a organização das classes como coletivos e introduziam-se os monitores como peças-chave do processo de ensino, a operacionalização do método reivindicava, também, a presença de um conjunto expressivo de materiais escolares, que passariam a povoar o universo escolar. Assim, os bancos de areia, cavaletes, cartazes, apitos, sinetas e vários outros instrumentos de ensino coadjuvavam a ação da espaçosa arquitetura das escolas e dos professores e alunos-mestres nos melhores sonhos de uma escola à altura da tarefa de civilizar os bárbaros, homogeneizar os diferentes e inseri-los, de forma ordeira, ainda que ativa, para alguns, ao Império da ordem que se queria construir nos trópicos.

Ainda que se advogue, muitas vezes, o fracasso quase total do método mútuo no Brasil, não há dúvida de que algumas das questões e soluções por ele trazidas se estabeleceram definitivamente no pensamento pedagógico, nas políticas educacionais e nas escolas brasileiras. Surgida no interior desse debate, a necessidade de “educar o educador”, ou seja, de formar o professor, terá vida longa e próspera entre nós. Doravante, o professor bem-formado foi considerado, em boa parte de nossa história, a pedra de toque de uma escola de qualidade, assim como a necessidade de superar definitivamente o ensino individual triunfará em direção a modelos cada vez mais coletivos e ampliados de organização da classe, o que ressignificava e tornava a escolarização mais requintada e efetiva na busca de alcançar os objetivos de instruir e educar jovens e crianças para uma dada civilidade à moda brasileira.

No que se refere em especial à cultura material da escola, a constituição de um modo especificamente escolar de ensino – que articulava modos anteriores, principalmente do mundo da casa e da Igreja, mas os deslocava no sentido de uma educação coletiva e cada vez mais secularizada – cobrará esforços dos professores, das autoridades da educação e de muitos “inventores”1 1 Veja-se, entre outros exemplos, o caso do inventor mineiro que produziu um artefato mecânico para o ensino das primeiras letras no fim do século XIX, estudado por Giannetti (2015). para a criação de uma nova materialidade da escola, importando isso em mudanças contínuas das tecnologias escolares.

Na passagem da primeira para a segunda metade do século XIX, a materialidade da escola será enriquecida com a presença cada vez maior dos livros de destinação específica para a escola, os quais, crescentemente, ao lado dos quadros negros, dos cartazes, dos quadros ilustrado, das carteiras escolares e dos cadernos, permitirão que a escola dialogue com as melhores tecnologias de seu tempo. Do mesmo modo, as excursões escolares e os museus buscarão dar mais dinamicidade ao ensino escolar e colocá-lo em diálogo contínuo com a comunidade em torno da escola.

Será no fim do século XIX – no encontro das expectativas políticas generosas quanto à importância da educação e à necessidade de expandir a escola como forma de inserção das populações na República e no mercado de trabalho com os investimentos científicos sobre os processos de ensino-aprendizagem – que ocorrerá o estabelecimento da seriação e dos espaços específicos para o funcionamento das escolas, destravando, assim, definitivamente, entraves seculares no tocante à ampliação da escola para o conjunto da população em idade escolar.2 2 Sobre idade escolar ver, entre outros, Gouvêa (2004).

Essa nova forma de organização da escola, pela seriação, pensada como construção social, advém de preocupações de diversas ordens – política, administrativa, pedagógica, científica e cultural –, próprias de um mundo moderno que descobre na escolarização um instrumento eficaz de fortalecimento dos ideais das estruturas dos Estados modernos. Nesse sentido, a escola, produzida como lugar específico, demandado pela insipiente proposta do ensino simultâneo e da implementação do método intuitivo, no Brasil, diferentemente dos outros lugares, toma a feição de um território independente, sobretudo, do espaço doméstico. Na modernidade, o espaço, a materialidade e a arquitetura escolares são inventados como técnica para disciplinar, hierarquizar e homogeneizar, como observa Foucault ao afirmar que:

[...] a organização de um espaço serial foi uma das grandes modificações técnicas do ensino elementar. Permitiu ultrapassar o sistema tradicional (um aluno que trabalha alguns minutos com o professor, enquanto fica ocioso e sem vigilância o grupo confuso dos que estão esperando). Determinando lugares individuais tornou possível o controle de cada um e o trabalho simultâneo de todos. Organizou uma nova economia do tempo de aprendizagem. Fez funcionar o espaço escolar como uma máquina de ensinar, mas também de vigiar, de hierarquizar, de recompensar”

(1987FOUCAULT, M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987., p. 126).

Ressalve-se, também, nessa nova forma de organização escolar, disposta em escola agrupada ou em forma de grupos escolares, a intensificação da utilização do tempo. Para isso, além da metodologia de distribuição da classe em séries, com cada professor lecionando para uma série, tendo um diretor acompanhando o funcionamento da classe, o controle do ritmo do ato de ensinar e aprender ocorria por meio de tecnologia de controle do tempo, fazendo uso, para isso, de apitos, sinais e demarcações pelo relógio dos horários das aulas, de forma a acelerar a aprendizagem dos alunos.

Não por acaso, será justamente nesse momento que uma invenção passará a integrar continuamente o imaginário escolar: o cinema. Até então, a tecnologia disseminada socialmente de educação intelectual e política que concorre com a escola era quase exclusivamente aquela representada pela imprensa (na forma de panfletos, jornais, livros e revistas), a qual a escola continuamente buscava incorporar e, de certa forma, submeter aos seus imperativos. Com o surgimento do cinema, uma nova forma educativa se estabeleceu no espaço público, tensionando o lugar da escola no mundo social.

Nas primeiras décadas do século XX, não serão poucos aqueles que, ao observar o dinamismo e a estética cinematográficos, defenderão que se estava inventando uma nova “instituição educativa”, a qual, doravante, poderia substituir a escola como tecnologia de educação e governo da população. Ainda que essa utopia educativo-estética cinematográfica nunca tenha, de fato, ameaçado a hegemonia educativo-pedagógica escolar, a estética e a dinâmica da escola serão continuamente comparadas às do cinema e autorizarão a avaliação intelectual e política de que a escola não consegue ser contemporânea do seu tempo.

No entanto, diante das ameaças trazidas pelo cinema – que, por um lado, tensionava as práticas educativas escolares e, por outro, nem sempre se submetia às rígidas regras de controle dos comportamentos e dos costumes –, professores, políticos, intelectuais, funcionários públicos e agentes religiosos, muitas vezes sintetizados na mesma pessoa, advogavam a favor da necessidade de que a escola dialogasse ativamente com aquela nova forma de organização e transmissão culturais. A invenção do cinema educativo e, por outro lado, a ácida crítica às produções cinematográficas serão os dois lados da moeda dessa disputa, a um só tempo política, estética e educativa pela educação das massas urbanas.

Do Rádio ao Computador, Passando pela Televisão: a Educação suas Tecnologias II

Se havia muito a escola já vinha convivendo com a imprensa e conseguira dela retirar vários de seus impulsos criativos e disruptivos, com a entrada em cena do cinema, altera-se a dinâmica da disputa e impõe-se à escola um diálogo ativo com essa nova tecnologia, que se apresenta com grande potencial educativo. Contudo, o certo é que os profissionais da escola e uma miríade de outros sujeitos que a tinham como referência para a educação e/ou como oportunidade de negócios não deixaram de investir para que a instituição escolar, em diálogo com seu tempo, viesse a se reinventar.

Destarte, o limiar do século XIX e as primeiras décadas do século XX revelam mudanças significativas no quadro das relações sociais, políticas, econômicas e culturais, com implicações demarcadoras de um novo tempo para a realidade educacional, deixando, com isso, muitos legados para a construção da educação que o século XX irá conhecer. No campo econômico, o processo produtivo assume uma dinâmica de crescimento com contornos de aceleração bem mais definidos em decorrência do desenvolvimento da industrialização dos países centrais da Europa e da América do Norte, com repercussões significativas nos países periféricos, entre os quais pode ser citado o Brasil.

Importante afirmar que o processo produtivo crescente influenciou no modelo de organização da sociedade, cuja base sustentou-se num sistema de produção capitalista. Tal modelo espalhou-se por várias regiões do planeta, substituindo os velhos modelos de gestão do Estado por um modelo novo, o que se deu por meio, sobretudo, do convencionado ideal de Estado Republicano, como no caso do Brasil e de outros países das Américas. Também é válida a consideração de que o modelo que se firmava recebera os questionamentos com as maiores veemências críticas, como é o caso do marxismo, que colocou em xeque as relações de produção, considerando-as contraditórias. Como evidência dessa contradição no campo social, vê-se o movimento das massas operárias, organizando-se em favor da busca da melhoria de condição de trabalho, buscando uma identidade de classe pela via da organização da classe trabalhadora.

No campo cultural, destaca-se o lugar privilegiado que a escola irá ocupar na centralidade da distribuição da cultura, especialmente como espaço destinado à construção de um imaginário de infância, principalmente pobre, o qual será tecido na direção da conformação da criança trabalhadora, diferentemente das crianças das classes superiores, que encontrarão na escola a legitimidade dos valores próprios da sua classe de origem, mantendo-se, assim, a cultura da diferença.

A renovação da educação será produzida dentro desse movimento de transformações, que aconteceu no interior das sociedades. Pensou-se uma educação que pudesse responder aos desafios ensejados pela sociedade moderna que se desejava e, acima de tudo, que objetivava o controle social das massas populares por meio da seleção, da classificação e da organização dos indivíduos para o atendimento às demandas da atividade produtiva do trabalho. Nesse sentido, a renovação da educação parte da crítica à educação até então desenvolvida, concebida como tradicional, sob o argumento de que a educação que se praticava nas escolas não mais respondia aos clamores modernos das sociedades que emergiam ou, ainda, que viriam a ser forjadas pelos interesses de uma elite dominante, a qual via na educação a possibilidade de realização do seu intento de conformação dos indivíduos aos novos tempos de progresso.

A chamada Escola Nova emerge nesse contexto de renovação da educação. Sob uma prática escolar e uma pedagogia com base nas teorias ativistas, essa escola, que se impôs como instituição-modelo de uma sociedade dita democrática e progressista, alimentou-se de um discurso libertário e fundamentado nas abordagens científicas, buscando no primado do fazer as marcas de sua inovação em relação a uma escola estática, descontextualizada e, sobretudo, livresca e verbalista. Nesse sentido, essa nova escola busca em outras áreas das ciências humanas os pressupostos que irão orientar e fundamentar as novas práticas. Buscam-se, por exemplo, na psicologia o auxílio para a compreensão da natureza infantil, o conhecimento dos processos de aprendizagem e os recursos dos métodos. De modo semelhante, na sociologia, busca-se fundamentar o entendimento da educação como instrumento para que a sociedade se desenvolva, em seus aspectos de formação do bom cidadão ou, ainda, de preparação para a participação na sociedade produtiva.

Essa renovação da escola, como observou CambiCAMBI, F. História da pedagogia. São Paulo: UNESP, 1999., “realizou uma reviravolta radical na educação, colocando no centro a criança, as suas necessidades e as suas capacidades” (1999, p. 513). Inclui-se, também, a ênfase no fazer, precedendo o conhecer, valorizando as tentativas experimentais, como a pesquisa, a descoberta e o estudo dos meios naturais. Por fim, tem-se a valorização do ambiente como estimulador da aprendizagem.

Outro aspecto inovador dessa renovação da escola, como parte do movimento mais amplo das concepções ativistas, é a inclusão dos artefatos tecnológicos como elementos auxiliares da aprendizagem do aluno, a partir da sua relação direta com o objeto a ser apreendido. Embora os usos de tais recursos tecnológicos, no processo da aprendizagem, tenham se tornado significativos nas escolas ativas, será na escola nova que eles serão ressignificados, adquirindo não mais a função de ensinar ao aluno, mas de ser para ele um meio de se chegar ao que precisava ser conhecido.

Para que os artefatos atendessem a essa nova função pedagógica, a escola nova lançou mão dos recursos laboratoriais, oficinas, salas ambientes, museus, bibliotecas, hortas e jardins, além de auditórios e quadras esportivas. Ou seja, são escolhas de espaços e materialidades que servissem como meios para a prática da observação e da experimentação (SOUZA. 2013SOUZA, R. F. Objetos de ensino: a renovação pedagógica e material da escola primária no Brasil, no século XX. Educar em Revista, Curitiba, n. 49, p. 103-120, jul./set. 2013. https://doi.org/10.1590/S0104-40602013000300007
https://doi.org/10.1590/S0104-4060201300...
).

Para essa escola, os artefatos tecnológicos exerciam uma função formadora da realidade social, pois constituíam elementos facilitadores do processo de adaptação da criança à sua realidade social e das possíveis mudanças que tal realidade demandava. Por esse motivo, não é sem sentido atribuir à escola nova a relevância que dava a tais recursos pedagógicos, uma vez que até mesmo propunha a sofisticação de uma materialidade que incluísse novas tecnologias (SOUZA, 2013SOUZA, R. F. Objetos de ensino: a renovação pedagógica e material da escola primária no Brasil, no século XX. Educar em Revista, Curitiba, n. 49, p. 103-120, jul./set. 2013. https://doi.org/10.1590/S0104-40602013000300007
https://doi.org/10.1590/S0104-4060201300...
). Essa assertiva encontra-se presente no discurso do manifesto dos pioneiros, quando se ressalta a importância de a escola lançar mão de vários recursos para a realização da obra educativa e do papel que deve exercer dentro da sociedade. Diz o manifesto:

[A] escola deve utilizar, em seu proveito, com a maior amplitude possível, todos os recursos formidáveis, como a imprensa, o disco, o cinema e o rádio, com que a ciência, multiplicando-lhe a eficácia, acudiu a obra de educação e cultura e que assumem, em face das condições geográficas e da extensão territorial do país, uma importância capital

(AZEVEDO et al., 2010AZEVEDO, F. et al. Manifestos dos pioneiros da Educação Nova (1932) e dos educadores (1959). Recife: Fundação Joaquim Nabuco/Editora Massangana, 2010., p. 15).

Ao se propor lançar mão de “recursos formidáveis”, encontravam-se intrínsecas as preocupações que, segundo Souza, “coadunavam com o espírito que informava os pressupostos da Escola Nova”, de uma “educação orientada para a vida moderna, aberta a novos horizontes e concebendo o conhecimento como um processo de aquisição mais flexível, mais ampliado e diversificado”. (2013, p. 110). Tais recursos podem, de forma sintética, ser nomeados como: aparelhos de projeção luminosa, álbuns diários, brinquedos, jogos, gravuras, tabuleiros, calendários, aquários, além de materiais para o funcionamento do cinema e do rádio educativos, para os laboratórios e gabinetes (SOUZA, 2013SOUZA, R. F. Objetos de ensino: a renovação pedagógica e material da escola primária no Brasil, no século XX. Educar em Revista, Curitiba, n. 49, p. 103-120, jul./set. 2013. https://doi.org/10.1590/S0104-40602013000300007
https://doi.org/10.1590/S0104-4060201300...
).

No entanto, do ponto de vista dos críticos da escola e dos defensores de modos mais dinâmicos e abrangentes de educação intelectual, cultural e política da população, nada teve mais efeito, até meados do século XX, do que a emergência e a expansão da transmissão radiofônica. Apesar de nascer, no Brasil, nos anos 1920, como “rádio educativa”, a rádio rapidamente se liberou dessa alcunha e se transformou numa grande indústria cultural, fosse do pondo de vista dos negócios, fosse do ponto de vista da função pedagógico-educativa que veio a exercer no país inteiro.

A rádio, ao contrário do cinema, permitia, pelo custo dos aparelhos receptores e pela tecnologia utilizada, uma ação política, pedagógica e cultural que ultrapassasse os estreitos limites das grandes cidades brasileiras, ainda que o cinema tivesse uma capilaridade bastante expressiva, sobretudo em comparação com os dias atuais. Mais ainda: permitia ao Estado chegar aonde a escola não tinha presença. Não por acaso, então, abundaram as utopias de que, enfim, a modernidade havia produzido e/ou encontrado uma tecnologia educativa à altura da necessidade de contínua expansão do capitalismo, do ethos urbano industrial e da ação integradora do Estado Nacional.

Todavia, os sujeitos da escolarização, que já vinham buscando a modernização da escola por meio da incorporação das tecnologias no ambiente escolar, como supracitado, da escolarização da imprensa e do cinema, rapidamente buscaram colonizar também o rádio. Não é por outro motivo que, a partir dos anos 1930, abundam programas radiofônicos que mimetizaram a dinâmica escolar e buscam transformar milhões de brasileiros e brasileiras não apenas em ouvintes da radiodifusão, mas em aplicados alunos radiofônicos.

Nos anos 1950 – quando as tecnologias do impresso, do cinema e do rádio já eram bastante familiares aos sujeitos escolares, bem como as dimensões educativas das mais diversas tecnologias industriais já eram reconhecidas por muitos teóricos do mundo social3 3 Ver, a este esse respeito, o clássico estudo de Raymond William (1969) e vários outros trabalhos desse autor. –, o aparecimento e a disseminação da televisão vieram trazer novo ingrediente a essa trama educativa. Agora, não era mais o texto que precisava ser decifrado, nem o som, tampouco havia necessidade de se deslocar para uma sala de cinema para ver o mundo em movimento e o movimento do mundo. A televisão trazia tudo isso e muito mais para casa!

É evidente que, quase imediatamente, os profissionais e defensores da escola descobriram os potenciais educativos da televisão. Suas ações foram, quase sempre, no sentido de escolarizar esse novo instrumento, fosse por meio da sua incorporação no universo da escola, fosse desejando que ela tivesse um padrão ético, estético e cognitivo que desse continuidade ao esforço educativo escolar. De outra parte, ancorados e dando vasão aos interesses da indústria cultural, os recém-constituídos empresários e profissionais da televisão puseram em ação um potente discurso em defesa das liberdades de expressão e de criação artística, que lhes assegurassem autonomia diante dos ímpetos colonizadores da escola. Não foi por acaso, portanto, que, ao longo das décadas seguintes, observamos padrões de relações notadamente tensos entre o mundo da escola e o da televisão, do rádio e do cinema, ainda que tais tensões quase sempre escondessem, ao fundo, padrões comuns de subserviência à ordem capitalista, bem como o investimento pela sua continuidade.

Nesse contexto, a apropriação da televisão pelo universo escolar e, por outro lado, a apropriação da gramática escolar pela televisão foram marcas importantes nas sociedades contemporâneas, o que ocorreu também no Brasil, nas últimas décadas do século XX, conforme atestam a presença quase onipresente da televisão nos espaços e tempos da escola, bem como a existência de um sem-número de programas “educativos” nas redes de televisão.

No entanto, a partir da segunda metade do século XX, tudo isso parecerá obsoleto diante da presença cada vez mais maior do computador nos imaginários social e escolar.

O que se verá, nesse tempo, é o fenômeno do desenvolvimento das tecnologias da informação ou da computação, o que, em certa medida, incidirá na vida social, como um todo, e em especial, na vida escolar. O que se constata é que a utilização crescente dos equipamentos computacionais pelos mais variados grupos de pessoas fará com que elas se tornem reféns, em suas vidas diárias, das inúmeras demandas de formas de uso: para o acesso à conta bancária via banco 24 horas; para o pagamento das compras em caixa registradora dos hipermercados; no controle de entrada e saída do trabalhador das empresas via cartão magnético; para comunicação via redes sociais; entre outras. No caso da escola, destaca-se a chegada dos microcomputadores, levando alunos e professores a incluírem, no cotidiano escolar, tais equipamentos investidos de novas oportunidades de ensino e aprendizagem.

De fato, o processo de informatização da sociedade, bem como da educação, vem ganhando espaço nos mais variados segmentos sociais. Essa evidencia está presente, como já foi afirmado, na realidade do dia a dia das pessoas e, sobretudo, nos meios de comunicação de massa que, com muita frequência, noticiam as novidades e as alternativas do uso da informática para facilitar-lhes a vida. No campo educacional, em especial, o volume de publicações que v.m ocorrendo nos últimos tempos deixa transparecer a importância dada à entrada do computador na educação, como elemento mediador entre sujeito que ensina e sujeito que aprende.4 4 Valente (1999); Papert (2008); Morais e Silva (2014).

Não sem razão essa apropriação do computador pela escola tem se dado por meio de embates significativos no campo intelectual. Num primeiro momento, de um lado, localiza-se uma polarização entre os que acreditam que a presença do computador na escola tem o poder salvacionista da educação, retirando-a de seu caos e, de outro, veem-se aqueles que negam a sua importância sob o pretexto de que essa presença acarreta, segundo MacedoMACEDO, E. F. Novas tecnologias e currículo. In: MOREIRA, A. F. B. (org.). Currículo: questões atuais. Campinas: Papirus, 1997. p. 39-58., “a destruição dos padrões éticos e morais” (1997, p. 39). Num segundo momento, apresenta-se um esforço de mudança de foco e de atenção para as preocupações concernentes às implicações, às vantagens, aos perigos e, sobretudo, à melhor maneira de aplicação do computador e dos programas computacionais no processo de ensino escolar. Dessa forma, essa mudança assume, no debate da área, uma nova ênfase, centralizando-se na forma de uso do computador nos processos educacionais. Nessa nova ênfase, pode ser entendido que o método ganha espaço, privilegiado sobre o conteúdo. Essa constatação pode ser sintetizada na afirmação de que as mudanças que chegam à escola, advindas da informática, trazem consigo apenas novos recursos para a reprodução das antigas práticas, o que não representa nenhuma inovação ao processo de ensino-aprendizagem, mas o privilégio de um melhor “método em detrimento do conteúdo, no sentido da adoção indiscriminada de novidades sem um questionamento acerca da adequação daquela forma de uso da tecnologia para se obter o resultado de aprendizagem pretendido” (MATTOS, 1995MATTOS, M. I. L. Aprendizagem e tecnologia educacional. Tecnologia Educacional, Rio de Janeiro, v. 22, n. 125, p. 8-11, 1995., p. 9).

Destarte, a abordagem da relação da tecnologia computacional com a educação escolar, no cenário da trajetória histórica brasileira, não pode desconsiderar o fato de ser tal tecnologia uma produção social, que chega à escola num processo de migração de outro setor da vida social para a educação e para as diferentes instâncias do espaço escolar. Dessa maneira, o computador e os programas computacionais que chegam à escola não foram produzidos pelo segmento educacional, mas por outro segmento. Encontram-se no espaço educacional para servir à educação, podendo, inclusive, não representar a lógica que preside as ações pedagógicas escolares, mas a de seus construtores. Isso não significa que tal produção não sirva aos interesses e às práticas educacionais, pelo contrário: sua chegada vem sendo bem recebida e seu uso apresenta-se crescente. O que se deve levar em conta é a quem esse dispositivo de escolarização, mediado pelos usos dos computadores e seus programas, irá servir e que interesses irá representar dentro do contexto da educação. Portanto, a sua apropriação pela escola deve acontecer a partir do entendimento de que a tecnologia da informática é uma produção social e, como tal, deverá ocupar esse espaço, que tem como finalidade a socialização do saber produzido.

Complementarmente, é importante considerar que a presença dos equipamentos computacionais na escola não representa tão somente um adereço para enfeitar a sala de aula ou um recurso técnico para se lançar mão quando o momento assim o exigir. Tal presença representa, também, a incorporação da intencionalidade subjacente à sua construção que, ao ocupar o espaço educacional, traz consigo as determinações dos fins com os quais está comprometida.

No entanto, o que os estudos e a experiência de muitos de nós demonstram é que, apesar de sua onipresença imagética no interior da escola, o computador, durante décadas, não foi uma realidade fática, muito menos impactou fortemente a dinâmica do ensino, tampouco tornou obsoletas as tecnologias escolares inventadas nos séculos ou décadas anteriores. O quadro negro, o giz e o livro didático para o(a) professor(a), assim como o caderno, o lápis e o mesmo livro para os(as) alunos(as) constituirão os materiais mais disponíveis e manuseados no mundo da escola.

Do mesmo modo, apesar da emergência de tecnologias que permitem a reprodução acelerada e em grande quantidade de materiais escolares, como impressoras a laser ou fotocopiadoras, demorou décadas para que tais tecnologias tomassem o lugar daquelas de reprodução mecânica de larga e longeva tradição escolar, como os mimeógrafos, quando não a simples cópia realizada por alunos(as) e professores(as). Esse processo, como se pode observar no cotidiano, não é uma simples colonização da escola pelas tecnologias ou de uma negação dessas por aquela. Como a realidade do mundo todo vem demonstrando, sobretudo nestes tempos pandêmicos em que vivemos, trata-se de um complexo conjunto de dimensões históricas, culturas, políticas e econômicas, que, atravessando as dimensões educativas e pedagógicas do universo escolar, criam possibilidades e limites para uma relação produtiva e crítica entre escola e as tecnologias.

Considerações Finais: Há Espaço para Escola na Contemporaneidade?

Diante do quadro aqui tratado de forma ensaística, cabe, finalmente, perguntar: considerando a emergência e a onipresença das tecnologias no mundo social, bem como as dificuldades encontradas pela escola em sua incorporação, é possível advogar a contemporaneidade da escola com seu próprio tempo?

No que diz respeito à escola, vivemos hoje um entroncamento fundamental para o seu futuro e, a respeito disso, não há garantia de nada. Por um lado, a defesa à esquerda e revolucionária do fim da escola, feita por Ivan Ilich nos anos 1960, ganhou, nas últimas décadas, forte reforço entre os movimentos reacionários de direita. Organizado em todo o mundo, o movimento homeschooling milita pela volta à educação doméstica como forma de proteção às crianças, às mulheres e às famílias contra as agressões e a violência a que estariam sujeitas numa sociedade que, cada vez mais, presaria a democracia, a igualdade e as diversidades. Tais conceitos, segundo vários dos militantes desse movimento, não estariam de acordo com os preceitos cristãos e de uma sociedade dirigida pelos “melhores”, ou seja, pelos homens brancos, heterossexuais, cristãos e bem-sucedidos.5 5 Ver, a esse respeito, –Barbosa e Oliveira (2017).

De outro lado, os movimentos democráticos e, desgraçadamente, a pandemia provocada pela Covid-19 vieram demonstrar a centralidade da escola como agência de guarda, proteção e formação nas complexas sociedades contemporâneas. Mais do que isso, temos hoje a demonstração cabal de que a escola cumpre um papel central não apenas no governo da população, mas na estruturação do conjunto do mundo social, aí incluídas as dimensões políticas, econômicas e culturais.

Todavia, não devemos esquecer que todos esses movimentos se colocam na esteira de uma exaltação desmedida do papel formativo das novas (e das não tão novas) tecnologias e de uma redução brutal do direito à educação em direito à escola ou, no pior dos casos, no chamado “direito à aprendizagem”, cunhado pelo empresariado da educação e por suas fundações, que tomam de assalto a administração pública em todo o mundo.

Ainda que não seja preciso lembrar que toda tecnologia é, necessariamente, educativa – já que envolve os corpos e as mentes humanas, faz a mediação de nossas relações com o mundo e constitui conjunto expressivo de relações –, não podemos esquecer que as tecnologias não são neutras e que os processos educativos que elas põem em marcha são orientados pelo jogo de força dos sujeitos individuais e coletivos atuantes no mundo social, jogo esse no qual as forças democráticas, nas últimas décadas, não têm sido propriamente as vencedoras! As potências educativas das tecnologias são muitas, quase infinitas, mas o controle da direção em que tal processo formativo se dá está, hoje, nas mãos de um número limitado de corporações internacionais, sobre as quais os sujeitos da educação escolar e mesmo os Estados Nacionais têm pouco ou nenhum controle.

Nesse contexto, a exacerbação do papel educativo das tecnologias, por um lado, e a redução do direito à educação em direito à escolarização, por outro, podem ser um desserviço à causa democrática e uma subvalorização dos potenciais educativos democráticos dos movimentos e coletivos sociais. Como sabemos, hoje, mais do que nunca, ainda que a escola seja uma instituição de fundamental importância para o governo da população, a sua frequentação pelas novas gerações não é suficiente para a constituição de sujeitos democráticos, críticos, criativos, empáticos e cuidadosos consigo, com os outros e com o mundo.

É preciso, sim, disputar a escola. Contudo, ao mesmo tempo, é fundamental defender uma concepção de educação que ultrapasse os muros da escola e se realize no cinema, na televisão, na Internet, nos movimentos sociais, nos sindicatos, nos partidos políticos e nos mais variados coletivos sociais. Tal educação, assim como a escola, não é, per se, democrática. Todavia, não é fechando os olhos para ela e, menos ainda, desprezando-a que ela terá menos impacto na formação dos sujeitos e, portanto, nos rumos que tomarão as sociedades humanas e as vidas no planeta nas próximas décadas. Disputá-la é, portanto, um imperativo ético de cuidado com as vidas humanas e não humanas que habitam a Terra.

Notas

  • 1
    Veja-se, entre outros exemplos, o caso do inventor mineiro que produziu um artefato mecânico para o ensino das primeiras letras no fim do século XIX, estudado por Giannetti (2015)GIANNETTI, R. Ensaios para uma história da arte de Minas Gerais no século XIX. Belo Horizonte: Autêntica, 2015..
  • 2
    Sobre idade escolar ver, entre outros, Gouvêa (2004)GOUVÊA, M. C. S. Tempos de aprender: a produção histórica da idade escolar. Revista Brasileira de História da Educação, Campinas, v. 4, n. 2[8], p. 265-288, 2004..
  • 3
    Ver, a este esse respeito, o clássico estudo de Raymond William (1969)WILLIAMS, R. Cultura e sociedade. São Paulo: Editora Nacional, 1969. e vários outros trabalhos desse autor.
  • 4
    Valente (1999)VALENTE, J. A. (org.). O computador na sociedade do conhecimento. Campinas: UNICAMP/NIED, 1999.; Papert (2008)PAPERT, S. A máquina das crianças: repensando a escola na era da informática. ed. rev. Porto Alegre: Artmed, 2008.; Morais e Silva (2014)MORAIS, M. C.; SILVA, J. C. O uso das novas tecnologias no processo de ensino aprendizagem nos anos finais do ensino fundamental na escola pública. In: GOVERNO DO ESTADO DO PARANÁ. Cadernos PDE: os Desafios da Escola Pública Paranaense na Perspectiva do Professor PDE. Curitiba: Secretaria da Educação do Estado do Paraná, 2014. v. I..
  • 5
    Ver, a esse respeito, –Barbosa e Oliveira (2017)BARBOSA, L. M. R; OLIVEIRA, R. L. P. Homeschooling e o Direito à Educação. Revista Proposições, Campinas, v. 28, n. 2, maio/ago. 2017. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-73072017000200015. Acesso em: 1º dez. 2020.
    https://www.scielo.br/scielo.php?script=...
    .
  • Este texto resulta das pesquisas desenvolvidas pelos autores com o auxílio da FAPEMIG e do CNPq, aos quais agradecemos.

Referências

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Editor de Seção: Lícinio C. Lima

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Ago 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    29 Mar 2021
  • Aceito
    29 Maio 2021
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