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EDITORIAL

A sociedade brasileira e, em particular, a esfera educacional são defrontadas, no atual contexto, com um desafio que é produto histórico da forma pela qual, tanto no plano mais geral, quanto no específico, o país tem promovido a formação escolar de crianças, jovens e adultos. O desafio é representado pela perspectiva da formulação do Plano Nacional de Educação para o decênio 2011-2020, para a qual, desde meados de 2009, os diversos setores sociais e profissionais têm sido convocados.

A intenção de estruturar a educação nacional de forma a configurá-la como uma totalidade significativa, face aos desafios postos pela sociedade brasileira, não é nova entre nós. Desde a Constituição de 1934, foram elaborados apenas dois Planos Nacionais de Educação: o de 1962, como decorrência da primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei n. 4024/61), e o que resultou, tardiamente, da Constituição de 1988 - o PNE 2001-2010 (as discussões em torno do tema, na década de 1930, foram abortadas pelo golpe de Estado de 1937).

O primeiro deles praticamente alijou da discussão a participação social ampla, uma vez que sua elaboração ficou a cargo do Ministério da Educação e do Conselho Federal de Educação. O segundo, produzido no âmbito dos embates sobre a educação nacional, face aos rumos que a ela vinham sendo definidos pelo governo de Fernando Henrique Cardoso, em articulação com agências multilaterais, resultou do confronto entre duas proposições muito diversas: a do Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública, que agregou as entidades nacionais da área educacional, assumindo caráter democrático, e a do governo federal, produzida e tramitada em moldes tecnocráticos e sem consulta aos interessados.

A primeira, fundada na crítica às perspectivas então desenhadas para a educação nacional e inspirada na defesa da escola pública, gratuita, democrática, laica e de qualidade, pretendeu recuperar posições assumidas por aquelas entidades no decorrer dos intensos debates sobre a Lei de Diretrizes e Bases (Lei n. 9394/1996) e, ao mesmo tempo, produzir elementos para tornar concretas as proposições contidas na referida Lei, com as quais o Fórum concordava. A originária do Executivo, encaminhada ao Legislativo apensada à primeira, enfatizava, ao contrário, as políticas governamentais, já em curso antes mesmo da promulgação da LDB. No jogo político estabelecido, a proposta governamental foi vencedora. Apesar disso, o próprio Executivo encarregou-se de vetar nove metas do PNE voltadas ao financiamento da educação, frustrando, no nascimento, a possibilidade da plena realização do plano.

Em consequência, o PNE 2001-2010 refletiu amplamente a postura do governo Fernando Henrique Cardoso em relação à educação, caracterizada pela ampla abertura à privatização do ensino público, pelo centralismo na formulação e gestão das políticas para a área, temperado, este, pela desconcentração administrativa, impropriamente denominada de descentralização, e pela ênfase ao ensino fundamental em detrimento do restante da educação básica, da educação de jovens e adultos e da educação superior.

Embora a implementação do PNE tenha se iniciado formalmente em 2001, sua vigência se deu praticamente durante as duas gestões do governo Lula, com altos e baixos. As avaliações desenvolvidas "pela Comissão de Educação e Cultura da Câmara dos Deputados (2004), a do Conselho Nacional de Educação (2005), a da Secretaria de Educação Básica do MEC (2005-2006), a do Centro de Planejamento e Desenvolvimento Regional (CEDEPLAR, 2006) e a do INEP/MEC (2005)" apontam, de acordo com documento do MEC/CNE elaborado por uma Comissão Bicameral do CNE, com o objetivo de fornecer subsídios à elaboração do próximo PNE, para vários entraves, seja no que respeita ao conteúdo, seja no relativo à implementação do PNE 2001-2010.

No que se refere ao conteúdo, o documento retoma críticas feitas ao PNE 2001-2010 desde sua formulação (número excessivo de metas, desarticulação interna e superposição entre elas, supremacia das quantitativas sobre as qualitativas, ausência de indicadores, vetos aos mecanismos que permitiriam financiá-las), assim como ressalta a ausência de políticas voltadas para a superação das desigualdades regionais, a focalização excessiva no ensino fundamental e a pouca expressividade das metas relativas à diversidade. No que tange à implementação, o documento faz referência à pouca divulgação do PNE e à escassa influência que teve nas ações da área, à dissociação entre o PNE e os planos setoriais de governo, além dos planos estaduais e municipais, à não universalização da educação básica como direito, à ausência de mecanismos de acompanhamento e avaliação sistemáticos do plano.

Durante os dois mandatos de Lula, o quadro não se alterou significativamente em vários desses aspectos e, em especial, no que se refere ao percentual do PIB nacional aplicado à educação, que permaneceu praticamente o mesmo estipulado no governo Fernando Henrique Cardoso (em torno de 4,3%), assim como no que tange às políticas relativas à educação superior, à educação básica e à educação profissional, apesar do Decreto n. 5154/04, que pretendeu revogar o Decreto n. 2208/97, mas que, na verdade, não o fez.

Mudanças de maior impacto passaram a ocorrer durante o segundo mandato, grande parte das quais vinculadas ao Plano do Desenvolvimento da Educação (PDE), lançado em março de 2007, concomitante-mente ao "Plano de Metas Compromisso Todos pela Educação", o qual estabelece 28 diretrizes, tendo em vista a melhoria da qualidade da educação básica brasileira. Cabe lembrar que tal Plano de Metas expressa os propósitos do movimento "Compromisso Todos pela Educação", lançado em São Paulo, em setembro de 2006, como ação da sociedade civil, mas representando, efetivamente, o ponto de vista de um setor desta, o do grande empresariado.

O PDE dividiu especialistas e professores. De um lado, foi saudado como contributivo para a melhoria da qualidade do ensino. De outro, foi alvo de várias críticas, das quais uma das mais importantes é seu relativo descolamento do PNE, fato admitido pela própria esfera governamental, conforme o documento do CNE anteriormente citado. No entanto, esse mesmo documento considera que, por meio do PDE, várias metas do PNE teriam sido alcançadas, entre elas as relativas ao financiamento (FUNDEB), à educação básica (a formulação das diretrizes para a educação infantil, a extensão do ensino fundamental para nove anos, a universa-lização do ensino fundamental, a integração do ensino médio à educação profissional, o Plano de Ações Articuladas [PAR], os programas de alimentação, livro didático e transporte escolar, a criação do IDEB, a CAPES da educação básica, a política nacional de educação especial), à valorização do magistério (política e plano nacionais de formação de professores de acordo com o Decreto Federal n. 6755/09, o estabelecimento das diretrizes da carreira docente, o piso salarial nacional), à expansão do Sistema Federal de Ensino, com a criação dos Institutos Federais de Educação.

Tal avaliação parece-nos benevolente, na medida em que, se a criação dessas ações e programas pode estar direcionada a metas do PNE, a efetiva realização destas, como sugerido pelo documento, implica um longo processo que necessita ser avaliado com rigor. Como a própria formulação do documento deixa transparecer, o PDE é mais um conjunto de programas e ações abrangendo os diferentes níveis e modalidades de ensino do que propriamente um plano, conforme salientam outras críticas.

No nosso entender, todavia, a questão maior que permanece é a possibilidade de o PDE, com as características que o revestem, "pautar" o PNE 2011-2020, em vez do contrário, seja pelo fato de ter orientado uma série de ações governamentais no campo educacional a partir de sua promulgação, com isso induzindo outras, seja por ter agendado compromissos que podem ultrapassar o âmbito de ação do atual governo, mesmo que sua vigência se encerre em 2011, pois nele estão previstas ações que se estendem a 2022. Tal consideração não descarta as contribuições que o PDE tenha trazido ao campo educacional, apenas alerta para um cuidado a ser politicamente observado na elaboração do PNE.

O documento do CNE aponta para dois aspectos importantes na construção do PNE 2011-2020, quais sejam: o caráter que deve assumir de política de Estado e não de governo, como deveria ter acontecido com o anterior, e a dimensão democrática que deve marcar sua elaboração. O CNE considera que este último aspecto tem sido garantido pela realização das assembléias estaduais e municipais, por meio das quais se realizaram as consultas públicas cujos resultados serão objeto de debate na CONAE. No entanto, o documento silencia sobre uma dimensão participativa que extrapola o âmbito da elaboração do PNE. Trata-se do controle democrático sobre a realização das metas estipuladas, ou, em outros termos, do controle democrático da implementação do Plano, sem o que este poderá, como aconteceu com o atual PNE, tornar-se letra morta ou mera retórica. A responsabilização dos gestores encarregados da execução do Plano em seus diferentes níveis, a definição de indicadores claros, a transparência nas negociações, nas ações e no uso dos recursos financeiros, aliados não somente à criação de órgãos democráticos de controle, mas também a atribuição de efetivo poder popular no exercício desse controle, são outros aspectos que o PNE deve garantir para que ocorra a gestão democrática do seu desenrolar. Mobilizar de forma contínua os diversos setores sociais para esse controle é, no nosso entender, responsabilidade maior dos governos que se sucederão no período de vigência do Plano, assim como de entidades da sociedade civil e educacionais que congregam profissionais da área em diferentes níveis.

Um dos maiores desafios a ser enfrentado na formulação e im-plementação do PNE diz respeito ao pacto federativo. A relação entre centralização e descentralização tem se constituído em um impasse na formulação e efetivação desse pacto. A alocação e administração dos recursos financeiros, as responsabilidades de cada ente federativo e a relação entre eles no cumprimento destas são atravessadas por questões de natureza política e de gestão com diferentes graus de complexidade. A alternativa do PAR proposta pelo PDE aparentemente não conduziu aos resultados esperados, em função dos problemas surgidos no tocante ao repasse de recursos, mas o FUNDEB, apesar de suas limitações, parece ter representado um avanço nesse caso particular. O tratamento adequado desta questão é fundamental para que se torne possível concretizar uma das expectativas mais caras aos que militam no campo educacional: a constituição de um efetivo Sistema Nacional de Educação que propicie a colaboração e articulação entre os entes federativos, ao mesmo tempo que o respeito às suas respectivas autonomias.

A questão mais crucial a ser enfrentada na elaboração e imple-men-tação do PNE 2011-2020 refere-se a dois aspectos que lhe são centrais: a garantia do acesso à escola pública e permanência nela, bem como a qualidade da educação oferecida. O primeiro aspecto remete à consideração da educação como direito inalienável de todos os cidadãos, implicando, portanto, na universalização da educação básica, laica e gratuita e na progressiva e agressiva expansão da educação superior pública, com garantia de permanência e conclusão. Passos têm sido dados nessa direção, principalmente no que se refere ao ensino fundamental. Mas há muito a fazer em relação à educação infantil, ao ensino médio e à educação profissional, embora, com relação a esta, medidas já venham sendo tomadas nos últimos anos. O gargalo é constituído principalmente pelo ensino superior, o que tem propiciado a expansão do setor privado e a intensiva mercantilização desse nível de ensino, inclusive por meio da Educação a Distância (EaD), em prejuízo de suas dimensões pedagógicas. Questões polêmicas estão envolvidas aqui, entre as quais avultam a política de cotas, no caso do ensino superior público, e o PROUNI, no âmbito do ensino privado.

O segundo aspecto, muito mais complexo, é abordado pelo documento do CNE a partir da concepção de educação "como direito de todos, alicerçada na ética e nos valores de solidariedade, liberdade, justiça social e sustentabilidade, cuja finalidade é o pleno desenvolvimento, nas dimensões pessoais e sociais, de cidadãos críticos e compromissados com a transformação social". Concepção, como se percebe, demasiado ampla e genérica, que deixa em aberto uma série de interpretações sobre, por exemplo, de que ética, de que capacidade crítica, de que compromisso (e com quem) e de que transformação social se fala. Formulações assim vagas podem resultar na constituição de um PNE e de um Sistema Nacional de Educação que conduzam tanto ao acendrado conservadorismo quanto ao intenso questionamento político-social. Ou à simples continuação do que temos presenciado.

Para além dessa questão de natureza filosófica, é necessário considerar que educação de qualidade não é barata. Implica, entre outras exigências, boas instalações físicas, condições de trabalho adequadas, profissionais bem preparados, bem remunerados e vinculados a uma escola, alunos com boas condições de saúde, alimentação e habitação, disponibilidade de materiais didáticos, razão professor/alunos que permita efetiva atenção do primeiro aos segundos, enfim, uma série de requisitos atualmente não preenchidos, ou precariamente contemplados. Em outros termos, implica a definição de um percentual do PIB nacional destinado à educação, que necessita ser, no mínimo, duplicado em relação ao atual, e, além disso, articulação entre as políticas setoriais dos governos sob os quais vigorará, espera-se, o PNE 2011-2020.

Finalmente, há que considerar que o PNE será, num primeiro momento, apenas a materialização possível, num documento, das aspirações nacionais em torno da educação. Sua materialização, como história, dependerá dos esforços tanto da esfera oficial quanto da sociedade civil. Parte dessa materialização assenta-se sobre o acompanhamento rigoroso, permanente e criterioso da realização do que for proposto. Tal acompa--nha-mento requer, entre outras medidas e para além da formulação precisa de indicadores, a realização de investigações independentes que concernem aos vários aspectos da educação nacional cobertos pelo Plano, além dos estudos de impacto que devem ser produzidos no âmbito do MEC e das secretarias estaduais e municipais de Educação, pois a concretização das políticas se faz por mediações complexas, especialmente no que respeita às instituições escolares, que podem produzir nestas políticas modificações diversas e em variados níveis. Tal procedimento é, de um lado, dispen-di-oso e, de outro, exige vontade política, discernimento e capacidade de fazer as revisões que se mostrarem necessárias por contribuírem para a melhoria da qualidade da educação oferecida. A ausência ou cerceamento de investimentos em pesquisas de tal natureza impedem ou prejudicam processos avaliativos, o que é sério em um país como o Brasil, em que são imensas as diferenças e desigualdades de todo tipo.

Conferência Brasileira de Educação (CBE) - 30 anos

O CEDES relembra a instalação da primeira CBE, que resultou em uma série, realizada em São Paulo, de 31/03 a 03/04/1980, destinada, "em um espaço aberto a mais ampla discussão e circulação de ideias", a reunir educadores comprometidos com a construção de uma educação democrática que respondesse aos "interesses da maioria do nosso povo e não apenas a serviço das elites econômicas e culturais".

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Jun 2010
  • Data do Fascículo
    Mar 2010
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