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Piaget: 100 anos

Piaget: 100 anos** Resenha do livro de Barbara Freitag (org.). São Paulo, Cortez, 1997, 263p. Resenha do livro de Barbara Freitag (org.). São Paulo, Cortez, 1997, 263p.

Luci Banks-Leite*** Resenha do livro de Barbara Freitag (org.). São Paulo, Cortez, 1997, 263p. Resenha do livro de Barbara Freitag (org.). São Paulo, Cortez, 1997, 263p.

As inúmeras comemorações em torno do centenário de nascimento de Piaget organizadas, sob diferentes formas, no Brasil e em outros países marcaram o ano de 1996 e deram origem a publicações importantes em torno da obra do ilustre mestre genebrino.

O livro, organizado por B. Freitag, surge com o intuito de lembrar essa data e procura oferecer ao leitor brasileiro (ou melhor, do Mercosul - dois textos surgem em espanhol) uma coletânea de trabalhos recentes e originais escritos por autores brasileiros e estrangeiros que têm em comum referências às diferentes facetas da obra do pesquisador. Esse trabalho se quer inter ou multidisciplinar e aborda assuntos que se inserem em áreas variadas. A partir de uma análise dos artigos, 11 no total, observa-se alguns eixos temáticos em torno dos quais o livro se estrutura, a saber:

  • questões de

    filosofia e epistemologia tratadas por Th. Kesselring (Berna/Suíça) e Z. Ramozzi-Chiarottino (USP/São Paulo).

  • temas relativos ao que se pode denominar genericamente de "

    afetividade"; nesse sentido, o trabalho de B. Freitag (Universidade de Brasília) apresenta uma contribuição a respeito do estudo dos sonhos e o de G. Venturi (USP/São Paulo) trata de questões de desenvolvimento moral e mais especificamente de moral sexual.

  • trabalhos que abordam assuntos relacionados

    à aprendizagem e/ ou à pedagogia; é o caso do texto de T. Nunes (Universidade de Londres) sobre a aprendizagem da matemática, o de E. Grossi (Brasília) sobre questões relativas à pedagogia e de L. Oliveira Lima (Rio de Janeiro) que discute o construtivismo em educação.

  • textos que analisam a

    recepção da obra de Piaget em diferentes épocas e países: S. Parrat-Dayan (Genebra/Suíça) contribui com um trabalho sobre a leitura dos primeiros trabalhos de Piaget pelos pedagogos nos anos 20-30 em países europeus, sobretudo na Suíça e na França; M. Caruso & G. Fairstein (Buenos Aires) nos falam dos acontecimentos relativos à acolhida de Piaget na pedagogia argentina na década de 70; M.S. Vasconcelos (Unesp/Assis) retraça um amplo panorama relativo à introdução do pensamento de Piaget no Brasil na década de 1930 e assinala alguns desdobramentos do pensamento piagetiano em épocas recentes e, por último, E. Veras Soares (Universidade de Brasília) efetua uma análise sociológica de duas propostas pedagógicas desenvolvidas no Brasil que se reclamam da teoria piagetiana.

Nesta breve resenha, serão focalizados, sobretudo, os textos concernentes aos dois últimos temas por serem os que envolvem a discussão de questões pedagógicas e educacionais, assinalando um ou outro trabalho referente aos dois primeiros eixos temáticos.

Não poderíamos deixar de comentar o trabalho de T. Kesselring, Jean Piaget: entre ciência e filosofia, por tratar, de forma interessante e séria, um tema importante e pouco estudado, qual seja, a relação entre ciência e filosofia na obra de Piaget. Kesselring assinala, na introdução do texto, que "o que torna Piaget filosoficamente interessante não é sua relação com a filosofia, mas sim a maneira pela qual fez ciência" (p. 17). O autor lembra a influência que o pensamento de Bergson e de Arnold Reymond tiveram sobre o jovem Piaget, bem como "afinidades e coincidências" entre certas concepções de Kant, Aristóteles e Hegel e os trabalhos piagetianos. Considerando-se as fortes marcas da filosofia nesses trabalhos, duas questões merecem ser discutidas: de um lado, as razões da relação polêmica que Piaget entreteve com a filosofia, como bem atestam alguns de seus textos e, sobretudo, o livro Sagesse et illusions de la philosophie (1968), e de outro, a fraca receptividade do pensamento piagetiano entre os filósofos; de fato, com raras exceções, Piaget ou foi ignorado ou mal interpretado e mesmo distorcido pelos filósofos de seu tempo. A análise dessas questões leva Kesselring a assinalar a importância do trabalho de Piaget no tratamento de questões atuais que permeiam o domínio filosófico e que acabam por incidir em outros campos do saber.

Em relação à "afetividade", o texto de B. Freitag, "Sonhos: da teoria clássica à pesquisa contemporânea", retraça, em um primeiro momento, as idéias de Freud e Piaget a respeito dos sonhos - os "clássicos" que neste século dedicaram trabalhos a esse tema - para confrontá-las aos estudos contemporâneos. Em relação a Piaget ressalta as principais concepções que crianças e adolescentes possuem a respeito dos sonhos bem como os comentários críticos que esse autor teceu sobre a teoria freudiana, sobretudo no que diz respeito à memória. Na segunda parte do trabalho, a autora apresenta alguns resultados de trabalhos recentes sobre o sono e o sonho no campo da neurologia e, para concluir, assinala os limites dessa abordagem. De fato, ao finalizarmos a leitura do texto, permanece uma nítida impressão de que as idéias defendidas pelos dois autores "clássicos" são de longe muito mais interessantes e profícuas do que os dados "objetivos" fornecidos pela "moderna" ciência.

Sobre os temas relativos à aprendizagem e pedagogia, o texto "A aprendizagem da matemática e a socialização da inteligência", de Terezinha Nunes - pesquisadora que há muitos anos trabalha na área de psicologia cognitiva -, acentua que "se a matemática é uma prática cultural, aprender matemática é um processo de socialização" (p. 47). Ainda que partindo de idéias básicas da teoria psicogenética, a autora afirma que a aprendizagem de conceitos matemáticos está relacionada à socialização dos significados; para explicar a transformação dos significados do cotidiano em conceitos matemáticos recorre ao conceito introduzido Karmiloff-Smith de "redescrição representacional", mas lembrando que "embora a redescrição seja um termo cognitivo, os processos que levam à redescrição (..) são de natureza social" (p. 54). O artigo é bem documentado e útil não apenas aos pesquisadores da área de ensino-aprendizagem de matemática, mas a todos os estudiosos que refletem sobre as lacunas e/ou limites da perspectiva piagetiana e que buscam, em trabalhos de pesquisadores contemporâneos, caminhos para certos impasses teóricos.

Os outros dois trabalhos apresentados sobre o tema carecem, infelizmente, do mesmo rigor, pois apresentam imprecisões de ordem conceitual e/ou informações incorretas que comprometem o entendimento de aspectos importantes da obra do pensador genebrino. Vamos nos deter apenas no de Grossi, "Piaget em sala de aula, uma meta ainda longínqua", que traz um equívoco, logo no início, ao afirmar que "a palavra 'aprendizagem', nos escritos do Centro de Epistemologia Genética, pelo menos em título de obra, apareceu claramente pela primeira vez no livro de Inhelder, Sinclair e Bovet, Apprentissage et structures de la connaissance (1974)" (p. 124). Ora, primeiramente, o livro citado no qual Piaget aparece apenas como prefaciador não foi resultado de pesquisas do referido Centro, mas sim fruto de longos anos de trabalho das autoras no seio da Universidade de Genebra, na qual atuaram como professoras e pesquisadoras; e, aspecto mais importante, na década de 1950, inúmeras pesquisas sobre aprendizagem, desenvolvidas no Centro de Epistemologia, foram publicadas por Piaget1 em colaboração com vários estudiosos do tema: P. Gréco, A. Morf, L. Apostel, Vinh Bang e outros. Foram, aliás, esses trabalhos que deram origem a uma linha de pesquisa conduzida, a partir de então, por B. Inhelder que procurou focalizar mais aspectos psicológicos do que os propriamente epistemológicos dessa questão. No texto de Grossi, o que segue é um tratamento de difícil compreensão envolvendo idéias conceituais introduzidas pela autora, como por exemplo nível sociopsicogenético (ao que parece baseado em Wallon, mas sem clara explicitação do que venha a ser), campo operatório, teoremas em ação, isso tudo entremeado de comentários relativos ao trabalho pedagógico - trabalho esse, sem dúvida, de grande interesse e relevância - empreendido junto ao Geempa, em Porto Alegre, e à rede de escolas públicas do Distrito Federal. Ao terminarmos a leitura do mesmo, podemos concordar com o título desse capítulo "Piaget em sala de aula, uma meta ainda longínqua".

No que diz respeito à recepção dos trabalhos de Piaget, Parrat- Dayan assinala em La recepción de la obra piagetiana de los años 1920-30 por los pedagogos o interesse pela leitura dos primeiros trabalhos piagetianos no meio pedagógico. Com efeito, as pesquisas de Piaget a respeito do pensamento infantil surgem em um momento que é marcado pela "audácia pedagógica" e por uma nítida preocupação em se "observar a criança que se quer educar" (pp. 154-155). Através da análise de inúmeras resenhas críticas publicadas pelos pedagogos da época, a autora focaliza um ponto fundamental de interesse e alvo de controvérsias, qual seja, o estudo da mentalidade infantil; ao estudar as características da lógica da criança, sua maneira de apreender o mundo, Piaget a distingue e a diferencia do adulto, o que era uma novidade naquele momento. E é justamente ao apresentar elementos que visam mudar as concepções existentes sobre o pensamento infantil que Piaget recebe aplausos e incentivos de alguns que aguardam novas pesquisas sobre esse tema - é o caso, por exemplo, de Claparède e Ferrière2 - e críticas de outros. Esse texto nos lembra também que esse "primeiro" Piaget enfatizava a importância do intercâmbio interindividual no desenvolvimento cognitivo e que os problemas estudados então por ele - passagem do pensamento infantil ao adulto, o papel da linguagem e do fator social no desenvolvimento etc. - permanecem atuais.

Na mesma temática, o texto de Vasconcelos, "Raízes e caminhos do pensamento piagetiano no Brasil", nos fornece um bom contraponto com o anterior, ao dar margem a múltiplas reflexões sobre as peculiaridades da, digamos, "recepção" das idéias de Piaget no Brasil. O autor lembra que "com o Movimento da Escola Nova se abriu espaço para a propagação de suas idéias" (p. 195) em nosso meio já no final da década de 1920, o que nos leva a pensar que Piaget foi lido pelos pedagogos da Europa e do Brasil que tinham preocupações básicas comuns: a crítica à escola tradicional, a busca de novos métodos pedagógicos e questionamentos sobre a própria concepção de "educação". Entretanto, há diferenças fundamentais a serem apontadas: uma se refere ao fato de que os trabalhos de Piaget tiveram um grande impacto não apenas no meio pedagógico europeu, mas também entre os psicólogos da época, tanto franceses - Wallon, Delacroix, Luquet, Piéron - como os de língua inglesa, dos dois lados do Atlântico - Isaacs, Peterson, Stone entre outros;3. Fato mais interessante ainda, é que a "leitura" efetuada pelos pedagogos os diferenciam de forma considerável: enquanto no meio europeu se discutia a contribuição de Piaget ao estudo da mentalidade infantil, a repercussão dos trabalhos de Piaget no Brasil se deu na esfera dos métodos de ensino. Graças ao trabalho de Vasconcelos, aprendemos que o primeiro texto de Piaget a ser traduzido no Brasil, em 1936, foi "Remarques psychologiques sur le travail par équipes" (1935), publicado em um periódico do Ensino do Estado de São Paulo, na época dirigido por Lourenço Filho e que, a partir desse trabalho, uma estratégia desenvolvida pelos defensores da Escola Ativa foi justamente a dos trabalhos em equipe, entendendo-se este como um mero procedimento técnico-didático. Nota-se, portanto, que Piaget aparece no Brasil como um pesquisador que contribuirá para um trabalho pedagógico "moderno" em contraposição ao "tradicional" e, ao que parece, acreditava-se na possibilidade de transpor diretamente os resultados das pesquisas realizadas no domínio da psicologia para a área educacional. Os desdobramentos de uma tal atitude se fazem sentir até os nossos dias em que surgem tentativas de "aplicação" do construtivismo e/ou de pesquisas realizadas nesse enfoque à sala de aula.4

Em síntese, "Piaget:100 anos" é um livro irregular no que diz respeito ao valor das diferentes contribuições apresentadas, mas, apesar disso, ou talvez por isso mesmo, pleno de interesse. Concordamos com Freitag que na apresentação dos textos assinala que essa coletânea "tem tudo para gerar interesses e debates" (p. 13), pois consiste em uma boa ilustração de como "a teoria e a metodologia de Piaget se prestam a múltiplas apropriações e distorções" (p. 15).

Resta ainda a assinalar os "anexos" que trazem boa bibliografia de trabalhos de Piaget existentes no Brasil, assim como de alguns grupos e algumas instituições voltados para o trabalho de pesquisa na perspectiva piagetiana. Do ponto de vista técnico cabe mencionar com relação às referências bibliográficas de alguns trabalhos, a estranha ausência de autores mencionados no corpo do texto, lacuna que deverá ser corrigida em edições vindouras.

Notas

1. Trata-se dos bem conhecidos volumes dos Études d'Epistémologie Génétique, a saber, Apprentissage et connaissance (VII), Logique, apprentissage et probabilité (VIII), L'apprrentissage des structures logiques (IX ) e La logique des apprentissages, (X ), todos publicados em Paris pela PUF em 1959.

2. Esse ilustre pedagogo fundou, em 1899, o Bureau International des Écoles Nouvelles em Genebra, que em 1925 se transformou no Bureau International de l'Éducation, organismo dirigido por Piaget de 1929 a 1967.

3. Uma análise detalhada dessa questão se encontra em Parrat-Dayan, S.: "Le texte et ses voix:Piaget lu par ses pairs dans le milieu psychologique des années 1920-30". Archives de Psychologie, 61, 1993, pp. 127-152.

4. Cf. nosso trabalho "Sobre uma certa interpretação do construtivismo: Repercussões na área escolar e pedagógica", apresentado na Mesa-Redonda "Escola, Psicologia e Modernidade", XXVI Congresso Interamericano de Psicologia, São Paulo, julho 1997.

** Professora da Faculdade de Educação/Unicamp.

  • * Resenha do livro de Barbara Freitag (org.). São Paulo, Cortez, 1997, 263p.
    Resenha do livro de Barbara Freitag (org.). São Paulo, Cortez, 1997, 263p.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      22 Abr 1999
    • Data do Fascículo
      Ago 1998
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