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Apresentação

Apresentação

O conhecimento escolar tem se constituído em objeto da preocupação de diferentes autores do campo do currículo, principalmente a partir da emergência, na década de 1970, de teorizações pedagógicas críticas. Nesse momento, em inúmeros estudos, focalizam-se os processos de seleção, organização, distribuição e estratificação dos conteúdos curriculares, visando-se a melhor identificar e discutir os interesses subjacentes e buscar alternativas. As análises centram-se, fundamentalmente, nas relações entre conhecimento escolar e poder, procurando entender como o currículo contribui para reforçar divisões sociais referentes a classe social, etnia e gênero.

Questionam-se, nessa abordagem crítica, a cultura erudita, as disciplinas tradicionais e seus conteúdos, chegando-se mesmo a colocar em xeque a própria racionalidade com que a escola vem trabalhando. Definidos pelos que detêm o poder, os currículos são vistos como construções históricas e como instrumentos de controle de grupos subalternizados.

Acusado de relativista, o tom que informa muitas dessas análises contrapõe-se aos argumentos de outros teóricos críticos, que defendem, na escola pública, a transmissão dos conteúdos que compõem o saber sistematizado, usualmente mais restrita às escolas dos grupos sociais privilegiados. Nesse enfoque, o domínio de tais conteúdos é visto como indispensável à luta por melhores condições de vida e por ascensão social.

Encontram-se, assim, nos textos críticos, distintos pontos de vista em relação ao caráter universal ou relativo, científico ou ideológico, do conhecimento escolar, o que acarreta diferentes posicionamentos em relação ao que se deve incluir nos currículos. Essas diferenças expressam-se também nas políticas curriculares, com base nas quais se procura definir como, nos sistemas escolares e nas escolas, devem ocorrer os processos de escolher, organizar, ensinar e avaliar os conteúdos.

A recente influência dos estudos culturais e do pós-modernismo no pensamento sobre currículo contribui para preservar o foco no conhecimento escolar e para acentuar o caráter relativista das análises e das proposições. O currículo é concebido como texto, como discurso, como prática de significação, como representação. Destacam-se seu caráter produtivo, sua capacidade de atribuir sentidos, e se estabelecem como metas, em um currículo criticamente orientado, identificar relações sociais opressivas, desafiar regimes de verdade instaurados e questionar tudo o que vem passando por natural.

Além disso, o complexo caráter multicultural de nossas sociedades contemporâneas sugere a revisão de tradicionais classificações das manifestações culturais, bem como estimula, nos currículos, o respeito à diferença e o questionamento das relações de poder que a constituem. Como conseqüência, questões referentes ao universalismo e ao relativismo cultural, bem como discussões de ordem epistemológica, assumem particular relevância ao se tomarem decisões sobre currículo, tanto no nível das políticas e das propostas curriculares oficiais, como no nível de sua materialização nas escolas e nas salas de aula.

Os artigos que compõem o presente dossiê pretendem estimular novas reflexões e contribuir para discussões e decisões mais fundamentadas. Os textos de Jean-Claude Forquin, Tomaz Tadeu da Silva, Vera Candau, Donaldo Macedo e João Wanderley Geraldi foram apresentados no Seminário Internacional comemorativo dos 25 anos do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação da UFRJ, realizado de 16 a 19 de junho de 1997, no Salão Pedro Calmon do Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ. Os textos elaborados por Antonio Flavio Barbosa Moreira e José Augusto Pacheco foram acrescidos aos demais por abordarem recentes políticas e reformulações de currículo, no Brasil e em Portugal, onde se enfrentam muitos dos dilemas mencionados.

Forquin, em seu ensaio, analisa argumentos favoráveis e contrários ao universalismo e ao relativismo no currículo. Insiste na necessidade de se garantir espaço, nas disciplinas escolares, para o melhor da produção humana, para aquilo que, por seu esplendor, sua originalidade, sua riqueza, pode e deve ser admirado e aprendido por todos os indivíduos. Defende, assim, o que denomina de universalismo concreto, universalismo da singularidade expressiva, que, embora situado histórica e culturalmente, se revela capaz de transcender as limitações do tempo e do espaço em que se manifesta.

Silva e Candau debatem os pontos de vista de Forquin. Silva rejeita a separação que o pesquisador francês faz entre ciências exatas e ciências humanas, bem como sua crença no universalismo da ciência. Rejeita, ainda, a forma como Forquin entende o universalismo no contexto do currículo escolar. Por fim, questiona o próprio sentido da discussão universalismo versus relativismo, tal como ela se vem desenvolvendo.

Candau também se remete ao universalismo proposto por Forquin, argumentando que os saberes universais constituem construções históricas a serem entendidas, repensadas e desafiadas. Ressaltando a importância de uma perspectiva multicultural na escola contemporânea, critica o tom "romântico" e "descontextualizado" da visão de currículo advogada pelo autor.

Macedo, em seu texto, concebe a alfabetização como forma de política cultural. Procura oferecer uma nova teoria de alfabetização, analisa recentes campanhas de alfabetização e sugere que se empregue a linguagem dos educandos nos programas de alfabetização, para que essa alfabetização se constitua em importante parcela de uma pedagogia emancipatória.

Geraldi, debatendo com Macedo, focaliza, dentre os múltiplos aspectos da correlação entre linguagem, cultura e ideologia, a questão da aquisição da modalidade escrita da linguagem. Com base em dois exemplos, que expressam distintas relações entre a oralidade e a escrita, sustenta a necessidade, nos processos escolares, de oposição à unicidade discursiva e lingüística.

Moreira, em seu texto, coloca-se a favor de análises de propostas alternativas que se voltem para identificar tantos suas lacunas e dificuldades como os avanços que promovem em relação às propostas oficiais mais afinadas com o discurso conservador dominante. Revê reformulações curriculares desenvolvidas em alguns estados e municípios brasileiros nas décadas de 1980 e 1990, procurando compreender e destacar como, em tais propostas, se defendem processos mais democráticos de seleção e de organização curricular.

Pacheco, com base em Lundgren, apresenta modelos de políticas curriculares, em que esforços de centralização e de descentralização se encontram distintamente combinados. Concebendo a descentralização como fundamentalmente caracterizada pela territorialização das decisões, argumenta que, em Portugal, as recentes mudanças sugerem mais um processo de (re)centralização que de descentralização.

Cada um dos autores, em seu recorte particular, oferece significativa contribuição ao debate relativo às políticas curriculares e às decisões epistemológicas nelas necessariamente envolvidas. Esperamos que tais contribuições possam inspirar políticas e decisões sempre mais democráticas e mais efetivas.

Antonio Flavio Barbosa Moreira

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Abr 2001
  • Data do Fascículo
    Dez 2000
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