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EDITORIAL

O presente editorial destaca os seguintes assuntos candentes da política educacional brasileira: a política da SAE sobre o desenvolvimento da primeira infância, considerações sobre o Substitutivo ao Projeto de Lei n. 8.035, de 2010 (PNE), e a propósito do Censo da Educação Superior.* * Os editores agradecem a Angel Pino Sirgado, Bianca Cristina Correa, Ligia Aquino e Valdemar Sguissardi pela colaboração na redação do presente Editorial.

A política da SAE sobre o desenvolvimento da primeira infância

Nos anos de 2010 e 2011 temos assistido a uma importante movimentação da Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE) da Presidência da República no intuito de conseguir elaborar uma Política Integrada para a Primeira Infância (de 0 a 3 anos e de 4 a 5 anos) que reúna as ações das áreas de saúde, educação e assistência social. Sem dúvida, é de bom augúrio constatar o interesse do atual governo em fornecer ao país uma política integrada para a primeira infância. É bem conhecido que a partir da Constituição de 1988, do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), de 1990, e da Lei n. 9.394, de dezembro de 1996, sobre a Educação Nacional, a infância brasileira adquiriu, formalmente, o estatuto de cidadania. Na sequência desses institutos legais, multiplicaram-se os movimentos sociais de educadores e estudiosos, de mulheres e famílias, com a ajuda ocasional de gestores e políticos em prol da educação da primeira infância, exigindo dos órgãos públicos creches e pré-escolas com educação gratuita e de qualidade para todas as crianças de 0 a 5 anos, enquanto sujeitos de direitos, fazendo do Estado e da sociedade sujeitos de deveres em relação a elas.

Vemos, portanto, com muito interesse a recente movimentação da SAE, merecendo toda a nossa atenção por diversas razões. Em primeiro lugar, pelo que representa, em nível político, de possibilidades de incremento de políticas integradas para a primeira infância, envolvendo alguns dos setores fundamentais do governo para garantir a qualidade de vida das crianças, tais como saúde pública, educação de qualidade e cuidados sociais. Estes setores são responsáveis por direitos de que a grande maioria da população ainda não desfruta de maneira minimamente satisfatória, ou até mesmo de nenhuma maneira. Em segundo lugar, porque essa movimentação é uma declaração de reconhecimento formal da importância do período da infância para a constituição cultural e social do cidadão, desde o seu nascimento, embora não sejam dadas referências consistentes para sustentar tal importância. Em terceiro lugar, porque promete garantir os recursos necessários para que os objetivos dessa política para a primeira infância possam efetivamente ser atingidos, como é de se esperar.

Entretanto, essa movimentação da SAE torna-se objeto de nossa atenção por outras razões nada positivas, dedutíveis das falas das principais autoridades da Secretaria, como o ministro Moreira Franco e o secretário Ricardo Paes de Barros, dos encaminhamentos das apresentações dos convidados durante o Seminário "Cidadão do Futuro", selecionados estrategicamente em grande parte dos setores burocráticos do governo ou afins, com ênfase na participação de economistas.

O mesmo pode ser dito em relação às opções "estratégicas" de orientação teórica e metodológica com as quais se pretende garantir o êxito dessa política educacional, especialmente no que se refere à proposta de avaliação da qualidade dos serviços de educação infantil, haja vista a importância dada à "pesquisa" de avaliação do desenvolvimento das crianças (Rio de Janeiro, set. 2010) - com o uso da "mágica" ferramenta ASQ-3 (Ages and Stages Questionnaires), importada dos Estados Unidos - e, no plano nacional, um "futuro imaginário" previsível em razão do exitoso resultado obtido no Rio de Janeiro.

Deve ser extremamente surpreendente para os pesquisadores da sociologia e da psicologia da infância, assim como para todos aqueles que têm longa experiência na educação infantil - os pais atentos à evolução física, social e psicológica de seus filhos e os educadores de creches e pré-escolas que labutam com profissionalismo e com consciência de estarem testemunhando a transformação de suas crianças -, constatar que nessa Política de Educação Infantil da SAE se faz da criança o objeto de um desenvolvimento e de uma aprendizagem previsíveis, sem nada dizer da natureza humana desse objeto, nem das condições sociais e culturais que permitem seu desenvolvimento, nem das diferenças sociais e históricas que tornam todas as crianças "seres singulares" e não "meros clones" de uma natureza pré-definida. Sim, porque, no fundo, é essa singularidade de cada criança (de cada ser humano) que é ignorada ao fazer depender o êxito da educação de avaliação de resultados de crianças de creche e de pré-escola com a aplicação de instrumento que homogeneiza o desenvolvimento previsível de todas as crianças nos cinco domínios pré-definidos: Comunicação; Coordenação Motora Ampla; Coordenação Motora Fina; Resolução de Problemas; Pessoal/Social, subdivididos cada um deles em 54 níveis de idade organizados em intervalos de 2; 2,5; 3; 4,5; 6 e 9 meses, de forma crescente do ponto 0 ano até o ponto 4,5 anos. Uma fragmentação dos estágios de desenvolvimento que nenhum dos grandes mestres da psicologia poderia ter sonhado!

Contudo, o que mais impressiona nessa política para a educação infantil é que se personaliza, mais uma vez, o educando como objeto de avaliação e se ignora a avaliação das instituições educativas e das condições reais que o Estado deve garantir para o desenvolvimento dos seus cidadãos.

A proposta de um modelo padronizado, ou de um protocolo único de avaliação do desenvolvimento das crianças na educação infantil, tal como vem sendo discutido pela SAE, não apenas fere a legislação educacional em vigor, como se confronta com o conhecimento acumulado na área. O próprio projeto de lei do novo Plano Nacional de Educação (PNE) enviado pelo governo ao Congresso Nacional, em dezembro de 2010, em que pesem todos os equívocos nele presentes e que vêm sendo criticados pela academia e por movimentos sociais, propõe a criação de "instrumentos nacionais, a fim de aferir a infraestrutura física, o quadro de pessoal e os recursos pedagógicos e de acessibilidade empregados na creche e na pré-escola", e não de instrumentos para avaliação das crianças.

Desse modo, entende-se que os sistemas devem, sim, monitorar a qualidade do trabalho desenvolvido nas unidades de educação infantil, mas, no que se refere às crianças, isto deve ser feito levando-se em conta as condições em que ocorrem as brincadeiras e interações entre elas, pois estes devem ser os eixos norteadores dos projetos pedagógicos em âmbito nacional, tal como determinado também nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (DCNEI).

Finalmente, supomos que, com a proposta, ampliam-se as possibilidades de abertura para o mercado comercializar os assim chamados "sistemas de ensino privados" que, até aqui, afirmavam sua importância com base no argumento de que, com a adoção das apostilas, os municípios estariam preparando melhor as crianças da pré-escola para o ingresso no fundamental, onde, por sua vez, teriam melhores resultados no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB). Assim, a adoção de sistemas de avaliação padronizados, tais como o ASQ, já em curso no Rio de Janeiro, evidencia o aspecto mercadológico da proposta, uma vez que as empresas, tanto as que vendem sistemas apostilados e de gestão, quanto as de consultoria educacional, poderão justificar sua "importância" para que as creches e pré-escolas tenham bons resultados nas avaliações.

Considerações sobre o Substitutivo ao Projeto de Lei n. 8.035, de 2010 (PNE)

Mais uma vez, voltamos ao tema do PNE, particularmente no que se refere ao conteúdo das metas e diretrizes e ao financiamento, dado o caráter condicionante de ambos. O relatório do Substitutivo ao Projeto de Lei (PL) n. 8.035, de 2010 (PNE), apresentado no dia 12/12/2011 à Comissão Especial - criada em abril de 2011, com a finalidade de proferir o Parecer ao PL -, foi lido pelo relator, deputado Ângelo Vanhoni, no Plenário da referida Comissão, no dia 13/12/2011, depois de vários anúncios e adiamentos.

A demora da apresentação do Substitutivo ao PL n. 8.035, pelo relator, decorreu basicamente das pressões por parte do Executivo, que tudo fez para evitar que fosse restabelecida no projeto a meta de 10% do PIB em gastos públicos para a educação, conforme decisão da Conferência Nacional de Educação (CONAE). Ao se afastar das decisões da CONAE, a proposta do Executivo perdeu sua fonte essencial de legitimidade, o que abriu espaço para pressões de diferentes grupos de interesse, muitos deles totalmente hostis ao debate público da questão. Referimo-nos, em particular, aos interesses do setor mercantil do ensino.

O Substitutivo Vanhoni se configura como uma proposta muito tímida e aquém do mínimo para as necessidades do país. Embora a ampliação de 7%, que constava no projeto original do Executivo, para 8% do PIB a ser investido em educação possa representar um avanço, cabe dizer que a mudança na redação de "investimento público", presente na versão do Executivo, para "investimento público total" sinaliza a intenção de contabilizar nos gastos educacionais recursos destinados ao setor privado de ensino, como o Programa Universidade Para Todos (PROUNI) e o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (PRONATEC). Além disso, a ausência de metas intermediárias de ampliação do investimento em relação ao PIB e a total omissão sobre a parcela de cada ente federado na ampliação desses investimentos tornam a meta meramente retórica.

A recuperação do conceito do Custo Aluno-Qualidade (CAQ), não incluído no PL n. 8.035, a ser implementado no prazo de dois anos, representa um avanço do Substitutivo. No entanto, a resolução CNE/CEB n. 08/2010, que estabelecia os valores do CAQ inicial, passado mais de um ano de sua aprovação, não foi ainda homologada pelo ministro da Educação. Destaque-se também a destinação de recursos do Fundo Social do Pré-sal, royalties e participações especiais referentes ao petróleo e à produção mineral para a manutenção e desenvolvimento do ensino público. A incógnita, contudo, diz respeito ao efetivo potencial de geração de recursos dessas novas fontes. Em contrapartida, cabe crítica à destinação de recursos públicos às instituições privadas que atuam no campo da educação básica, mecanismo que, sabidamente, tem sido instrumento de desobrigação da garantia de direitos por parte do poder público e de precarização da oferta.

Quanto à remuneração do magistério, estratégica para a melhoria da qualidade do ensino, o Substitutivo avança em relação ao projeto do Executivo, ao fixar que, até o sexto ano de vigência do plano, o rendimento dos profissionais do magistério das redes públicas da educação básica deve se equiparar a 80% do rendimento médio dos demais profissionais com escolaridade equivalente, igualando-se a esse rendimento, em 2020. Contudo, rendimento médio é um conceito estatístico que, do ponto de vista da política pública, terá pouca aplicabilidade se não se estabelecer parâmetros para a definição do Piso Salarial Nacional (PSN) em articulação com o rendimento médio. Para de fato avançar na valorização, seria importante o PNE estabelecer, por exemplo, uma relação do PSN com o salário mínimo necessário do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE), um indicador de grande legitimidade política e técnica.

Ainda em relação ao conteúdo, é indispensável destacar a importância conferida pelo relator a emendas que se distanciam, ou mesmo se opõem, ao Documento Final da CONAE, como, por exemplo, as referentes às Expectativas de Aprendizagem. Trata-se de estratégias que, referenciadas em currículos nacionais, fecham o círculo da regulação, a qual, por sua vez, ancorada nas avaliações nacionais, implica a penalização das escolas, dos professores e dos alunos.

A não incorporação das emendas das estratégias referentes à articulação de um Sistema Nacional da Educação, conforme o artigo 214 (EC n. 59/2009) da Constituição Brasileira, exclui do PNE um dos seus maiores objetivos.

A rejeição da emenda da inclusão no artigo 1º do Substitutivo do artigo 205 da Constituição, antecedendo o artigo 114, priva o PNE do conceito de Educação que marca todas as metas e estratégias que tratam de definir a qualidade da educação, implicando, por exemplo, a concepção do Ensino Médio e Técnico Profissional.

Concluindo, embora tenha dialogado bastante com a sociedade civil, o deputado Ângelo Vanhoni, com suas sucessivas idas e vindas, acabou por servir aos interesses do Planalto; atuou como um relator da base governista e não da sociedade como um todo. Deslegitimou a participação da sociedade organizada na CONAE, com vistas à formulação de uma política de Estado, transformando-a em política de governo.

Ao se afastar das emendas apoiadas no Documento Final da CONAE, o relator prestou um desserviço à educação brasileira, incorporando emendas cujos conceitos de educação são estranhos ao artigo 205 da Constituição e defendidos por movimentos dos setores empresarial, financeiro e mercantil. Basta analisar o recente parecer do CNE/CEB n. 09/2011, já homologado pelo ministro da Educação em novembro de 2011, que propõe uma versão do que deve ser a colaboração, em linha vertical, entre os entes federados, combinada, em linha horizontal, com os "operadores" de "arranjos educacionais", podendo incluir empresas.

A propósito do Censo da Educação Superior

Ao mesmo tempo em que nos congratulamos com a divulgação recente, pelo INEP/MEC, do Censo de Educação Superior, de 2010, estranhamos a interrupção, nos dados desse ano, de uma prática estatística sempre presente desde 1999 e bem-vinda para a correta interpretação e avaliação das políticas de educação superior: a apresentação do número de instituições (e respectivas matrículas), distinguindo-se, como no caso das públicas (federais, estaduais e municipais), as instituições privadas sem fins lucrativos (comunitárias e confessionais) das com fins lucrativos (particulares). A ausência dessa distinção impede que se tenha, a não ser por estimativa, uma visão mais exata da evolução dos números absolutos e percentuais, sobre o total de instituições e matrículas que mostrariam números como os que seguem: a) de 1999 a 2010, o número de instituições confessionais e comunitárias sofreu uma redução de 34%, passando de 379 unidades (34,5% do total) para 250 (10,5% do total), e o de matrículas, uma redução de 32,3%, passando de 886.561(37,4% do total) para cerca de 600.000 (11% do total); b) no mesmo período, o número de instituições particulares teve um extraordinário crescimento de 252%, passando de 526 unidades (48% do total) para 1.850 (77,8% do total), e o de matrículas, um crescimento ainda mais extraordinário (e preocupante) de 420%, passando de 651.362 (27,5% do total) para cerca de 3.400.000 (63% do total).

Homenagem ao professor Milton José de Almeida

O CEDES, neste número da revista Educação & Sociedade, homenageia o seu histórico sócio, o professor Milton José de Almeida, responsável pela criação artística da instituição e das capas de suas publicações. Expressando ao amigo, artista, acadêmico e colega a sua ausência/presença que sempre acompanhará nossos trabalhos e ações, a capa deste número e a criação sobre capas da revista que introduz a seção Imagens & Palavras, onde seu texto é publicado, lhe são dedicados.

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    Os editores agradecem a Angel Pino Sirgado, Bianca Cristina Correa, Ligia Aquino e Valdemar Sguissardi pela colaboração na redação do presente Editorial.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      03 Fev 2012
    • Data do Fascículo
      Dez 2011
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