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A DOCÊNCIA SOB A HEGEMONIA DA DIMENSÃO TÉCNICA E METODOLÓGICA DO DISCURSO EDUCACIONAL

The teaching function beneath the hegemony of the technical and methodological dimension of the educational discourse

El rol docente bajo la hegemonía de la dimensión técnica y metodológica del discurso educativo

RESUMO:

Este artigo visa realizar uma reflexão acerca do lugar de enunciação reservado ao professor na trama discursiva que hoje constitui a educação. Nela, a dimensão técnica e metodológica da função docente ocupa lugar de destaque, de forma que o ato educativo, sua finalidade e seus objetivos passam a ser percebidos como algo passível de ser mensurado e controlado. Caminhando em sentido contrário, com base no diálogo com aportes da filosofia e da psicanálise, buscamos discorrer aqui sobre a possibilidade de restituir ao ato educativo sua dimensão autoral e ao professor um lugar de enunciação em nome próprio.

Palavras-chave:
Educação; Formação de professores; Trabalho docente; Função do educador; Tecnicismo pedagógico

ABSTRACT:

This article proposes a reflection about the role reserved to the teacher in the discourse that constitutes education today. The technical and methodological dimension of the teaching function seems to occupy in this discourse a prominent place, so that the educational act, its purpose and objectives come to be perceived as something that can be measured and controlled. Moving in the opposite direction, from a dialogue with philosophy and psychoanalysis, we seek to discuss about the possibility of restoring to the educational act its authorial dimension and to the teacher a place of enunciation in his own name.

Keywords:
Education; Teacher training; Teaching work; Role of Educator; Pedagogical Technicality

RESUMEN:

Este artículo pretende realizar una reflexión acerca del lugar de enunciación reservado al profesor en la trama discursiva que hoy constituye la educación. En ella, la dimensión técnica y metodológica de la función docente ocupa un lugar destacado, de forma que el acto educativo, su finalidad y objetivos pasan a ser percibidos como algo pasible de ser medido y controlado. Al contrario, a partir del diálogo con aportes de la filosofía y del psicoanálisis, buscamos discurrir sobre la posibilidad de restituirle al acto educativo su dimensión autoral y por lo tanto al profesor un lugar de enunciación en nombre propio.

Palabras clave:
Educación; Formación de profesores; Trabajo docente; Rol del educador; Tecnicismo pedagógico

Introdução

O presente artigo visa propor uma reflexão acerca do lugar hoje reservado ao professor no discurso educacional. Profundamente orientado e marcado pela dimensão técnica e metodológica, com base na qual o educar seria passível de ser controlado, previsto e mensurado, vemos reduzir-se o lugar reservado à enunciação daquele que ensina.

Compreendendo a educação à luz de autores da psicanálise como laço estabelecido entre sujeitos, afirmamos a impossibilidade de que este seja tido como algo da ordem do previsível. Seguindo por um caminho semelhante, mas sob a perspectiva do pensamento arendtiano, a educação constitui-se como atividade que se assemelha à ação e, como tal, situa-se na trama imponderável dos assuntos humanos, de forma que suas implicações e consequências são, por essência, da ordem do indeterminável.

Partindo da consideração do aspecto singular e indeterminado do educar, propomos aqui o questionamento acerca do lugar hoje reservado ao professor, em uma lógica que pretende tornar possível o controle de tudo aquilo que se passa no ato educativo. Assim, situando a questão no entrecruzamento da educação, filosofia e psicanálise, buscamos discorrer acerca da possibilidade de restituir ao educar sua dimensão autoral e ao professor um lugar de fala no discurso educacional.

A educação na sociedade: algo de estrutural, algo de contingencial

A educação faz-se presente entre os sujeitos nos diversos tempos, culturas e sociedades de forma tão natural e constitutiva que não nos parece plausível, ou sequer digno de ocupar nossas reflexões, a possibilidade de construção e manutenção de um mundo sem a sua existência - independentemente do modo como ela se realize ou seja concebida pelas sociedades. Tal condição deve-se ao fato de o laço educativo - laço que se estabelece entre adultos e crianças - não decorrer estritamente de uma escolha. A educação é uma “obrigação que a existência de crianças coloca a todas as sociedades humanas” (ARENDT, 2014aARENDT, H. A crise na educação. In: ARENDT, H. Entre o passado e o futuro. Tradução de Mauro W. Barbosa. 7. ed. São Paulo: Perspectiva, 2014a., p. 234). O educar é inerente à própria condição humana, condição na qual somos inseridos ao nascermos e sermos acolhidos em um mundo que nos precede - em fatos e narrativas.

A nós, humanos, não basta o simples nascimento - como fenômeno estritamente biológico - para virmos a integrar o mundo de nossos pares; o aparecimento na vida relega-nos à condição esvaziada daquilo que nos torna essencialmente humanos. Para que isso ocorra, precisamos de outro sujeito que nos transmita a humanidade que a ele outrora foi também transmitida. A humanidade, inicialmente fora de nós, habita o outro e depende de sua direta implicação subjetiva para nos ser transmitida: é preciso que um humano nos ensine, em certo sentido, a sê-lo também.

A despeito de sua condição estrutural entre os humanos, a forma como a educação se realiza tem caráter contingencial. Isto é, a educação adquire formas e nuanças características da época e da sociedade na qual se realiza: sua organização, modelos e pressupostos apresentam diferentes contornos e especificidades. Há, por sua vez, nas mais distintas e distantes sociedades, edificação comumente cara e conhecida por todos, cuja precisa função há muito constitui tema polêmico: a escola, “instituição de ensino inventada pela sociedade para introduzir as crianças (em) o mundo” (MASSCHELEIN; SIMONS, 2018MASSCHELEIN, J.; SIMONS, M. Em defesa da escola: uma questão pública. Tradução de Cristina Antunes. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2018., p. 25). Nela, a chamada educação formal realiza-se nos primeiros e fundamentais anos de vida de uma criança.

Invenção política da polis grega, a escola surgiu como “uma usurpação do privilégio das elites aristocráticas e militares da Grécia antiga. Na escola grega, não era mais a origem de alguém, sua raça ou ‘natureza’ que justificava seu pertencimento à classe do bom e do sábio” (MASSCHELEIN; SIMONS, 2018MASSCHELEIN, J.; SIMONS, M. Em defesa da escola: uma questão pública. Tradução de Cristina Antunes. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2018., p.26). A instituição escolar, dizem-nos Masschelein e Simons (2018MASSCHELEIN, J.; SIMONS, M. Em defesa da escola: uma questão pública. Tradução de Cristina Antunes. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2018., p. 31), “dá às pessoas a chance (temporariamente, por um curto espaço de tempo) de deixar o seu passado e os antecedentes para trás e se tornarem um aluno como qualquer outro”. Abrigando uma potência singular de suspenção do tempo e do espaço, a escola é capaz de operar uma interrupção do que seria uma causalidade natural na vida dos sujeitos; é capaz de promover uma reorganização dos lugares que, frequentemente com rigidez, são reservados a cada um deles.

De forma essencial e com especial beleza, a escola transforma o conhecimento e as habilidades “em ‘bens comuns’, e, portanto, tem o potencial para dar a todos - independentemente dos antecedentes, talento natural ou aptidão - o tempo e o espaço para sair de seu ambiente conhecido, para se superar e renovar (e, portanto, mudar de forma imprevisível) o mundo” (MASSCHELEIN; SIMONS, 2018MASSCHELEIN, J.; SIMONS, M. Em defesa da escola: uma questão pública. Tradução de Cristina Antunes. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2018., p. 10, grifo do autor). Parece ser essa potencialidade - inerente, imponderável e constitutiva -, semelhante àquela da pedra não lapidada que guarda em si potencial de imprevisível preciosidade, que coloca a escola sob os olhares de inúmeros sujeitos, intenções e instituições.

Masschelein e Simons (2018MASSCHELEIN, J.; SIMONS, M. Em defesa da escola: uma questão pública. Tradução de Cristina Antunes. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2018.) discorrem em profundidade, em sua obra Em defesa da escola: uma questão pública, acerca de discursos e estratégias que visariam, em alguma medida, domar tanto a escola como o professor. Pela forma como atuam, tais discursos e estratégias interferem diretamente na compreensão acerca do que é a finalidade da educação, bem como a função da escola e daquele que ensina. Entre eles, destacamos aqui, para reflexão, a tecnologização, definida pelos autores como a intensa busca por critérios e garantias técnicas na qual o objetivo se torna a otimização do desempenho técnico da escola, alunos e professores; e a psicologização, percebida como uma tendência de substituir o ensino por um meio de orientação psicológica e considerar o conhecimento do mundo psicológico do aluno condição necessária ao ensino.

Atravessada por esses e tantos outros discursos e estratégias de controle e regulação, a educação, como complexa trama discursiva, compreende enunciados de diversas construções e conceituações humanas. Não nos causa surpresa observar que argumentos oriundos dos diferentes campos de saber se põem a pensá-la e, mais precisamente, a articular proposições sobre a melhor maneira de realizá-la. Além disso, tida com frequência como precioso instrumento de construção, renovação ou manutenção social, a escola, bem como a própria educação, faz-se alvo de diversas intenções e interesses extrínsecos. Sob lógica que a instrumentaliza, a educação escolar passa a ser vista exclusivamente como um meio para se alcançar algo de mais relevância e importância - escola como local de criação de força de trabalho, via para uma mais rápida e lucrativa colocação no mercado, espaço de manutenção e legitimação de determinadas condições, entre outros.

Nesse sentido, Carvalho (2017CARVALHO, J. S. F. Educação, uma herança sem testamento: diálogos com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Perspectiva : FAPESP, 2017., p. 29) aponta que, na contemporaneidade, “a experiência escolar deixa de ser concebida a partir de seu potencial formativo para passar a ser organizada a partir de sua suposta funcionalidade social”. A crescente submissão da educação escolar à lógica instrumental institui um processo que

[...] reduz a experiência escolar a um meio cujo fim tem sido a mera adaptação funcional dos indivíduos aos reclamos de produção e consumo das sociedades contemporâneas, de forma a despojá-la de seu sentido intrínseco: a iniciação dos mais novos em heranças simbólicas capazes de dar inteligibilidade à experiência humana e durabilidade ao mundo comum (CARVALHO, 2017CARVALHO, J. S. F. Educação, uma herança sem testamento: diálogos com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Perspectiva : FAPESP, 2017., p. 110-111).

Sob lógica de controle e regulação, observa-se, de maneira recorrente no decorrer do tempo, que entre os diversos discursos que constituem a trama educativa há aqueles que se sobrepõem aos demais, em força e credibilidade, e passam a circular de forma hegemônica entre os sujeitos que se dedicam à educação. Tal hegemonia, por sua vez, não é fixa, mas alterna-se de acordo com as crenças e os desejos que animam o imaginário pedagógico de determinada época ou sociedade. Ocorre que os imaginários pedagógicos não são feitos apenas de ideias claras e distintas (LAJONQUIÈRE, 2019LAJONQUIÈRE, L. de. Quando o sonho cessa e a ilusão psicopedagógica nos invade, a escola entra em crise. Notas comparativas Argentina, Brasil, França. Educação Temática Digital, v. 21, n. 2, p. 297-315, 2019. https://doi.org/10.20396/etd.v21i2.8651506
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), e o império de umas “em detrimento de outras é revelador da circulação de determinadas tramas conceituais, em sintonia com diversos momentos da história e da política nacional” (LAJONQUIÈRE, 2019LAJONQUIÈRE, L. de. Quando o sonho cessa e a ilusão psicopedagógica nos invade, a escola entra em crise. Notas comparativas Argentina, Brasil, França. Educação Temática Digital, v. 21, n. 2, p. 297-315, 2019. https://doi.org/10.20396/etd.v21i2.8651506
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, p. 299).

Assim sendo, de acordo com aquilo que se faz hegemônico à ocasião, vemos especialistas que passam a caminhar ativamente entre os educadores carregando a boa-nova - esta que virá ao resgate de uma comumente obsoleta e malsucedida educação. O professor dá então um passo para trás e cede espaço àquele que fala em nome da ciência ou professa saberes tidos como superiores aos que ele corriqueiramente detém.

Os discursos pedagógicos, a centralidade do método e a lógica da adequação

Institucionalmente definida como campo de estudo necessário à formação de todo e qualquer educador que deseja se dedicar à infância e aos primeiros anos da escolarização básica, encontra-se a pedagogia. Reunindo um conjunto de saberes, reflexões, práticas e metodologias acerca do ensino e da aprendizagem, a pedagogia tem a função de formar inicialmente o professor - chamado polivalente.

Nos dias atuais, em contexto profundamente marcado pelo predomínio da técnica e do método, observa-se um intenso movimento de construção do saber pedagógico como saber especializado sobre a educação, isto é, um saber pautado no que seriam pressupostos naturais e científicos, de tal forma que a ele é também conferido caráter de ciência, de uma metodologia científica. Voltolini (2007VOLTOLINI, R. O discurso do capitalista, a psicanálise e a educação. In: ARAÚJO, N. V.; AIRES, S.; VERAS, V. (orgs.). Linguagem e Gozo. Campinas: Mercado de Letras, 2007. p. 197-212., p. 206) aponta que hoje o termo pedagógico “sempre que anexado a um ato qualquer parece creditar a este ato uma aura de adequação, de profissionalismo, de planejamento científico, etc. Isto é pedagógico! Isto não é muito pedagógico! Ambas são sentenças que visam legitimar o valor das decisões no universo escolar”.

Nesse mesmo sentido, Imbert (2001IMBERT, F. A questão da ética no campo educativo. Tradução de Guilherme João de Freitas Teixeira. Petrópolis: Vozes, 2001.) apresenta-nos, em seu trabalho, a ideia de Jean Boutaud (1981) do que poderia ser uma adequada definição da percebida “pedagogia moderna”. É ela:

[...] Bem ancorada no real por controlar seu objeto, cujas leis de desenvolvimento são de seu conhecimento, e por se apoiar em um conjunto de métodos de ensino - métodos ativos, cuja fundamentação objetiva é fornecida pela psicologia genética -, a pedagogia moderna poderá reivindicar, daqui em diante, o estatuto de ciência (BOUTAUD, 1981 apudIMBERT, 2001IMBERT, F. A questão da ética no campo educativo. Tradução de Guilherme João de Freitas Teixeira. Petrópolis: Vozes, 2001., p. 47).

Em tal contexto, vemos autorizar-se na educação e no discurso pedagógico uma lógica na qual se torna imperativa ao professor a constante atualização de sua formação - para consequente aprimoramento de sua prática -, por meio de cursos que ofereçam saberes técnicos e científicos acerca do ensino e da aprendizagem. É fundamental, alega-se, que o professor conheça e domine técnicas precisas sobre como fazer, como desenvolver, como discutir, como identificar, como reconhecer, como aplicar1 1 .Termos frequentemente utilizados na ementa de cursos de extensão destinados a professores. .

Dessa forma, habitando o ambiente escolar, a pedagogia jamais se encontra sozinha. Vêm com frequência ao seu socorro saberes de diversos campos, como a sociologia, a psicologia, a medicina, entre tantos outros. Cada um deles traz consigo uma lógica discursiva própria, construída sobre pressupostos específicos de seu domínio conceitual, bem como um vasto campo semântico, com vocabulário e chaves de leitura também próprios.

Inicialmente professados pelos especialistas, tais discursos ou lógicas discursivas, ao adentrarem na escola, são rapidamente apropriados pelos professores que, com isso, parecem crescer em prestígio e credibilidade entre os pares. Falar, por exemplo, em termos médicos e psicológicos acerca de uma agitação percebida em seu aluno - que no contexto atual rápida e facilmente se tornaria uma hiperatividade - coloca o professor em posição superior àqueles que transitam fora de tal saber. Houve época ainda em que se acreditava possível atribuir “baixo rendimento escolar” à determinada raça, etnia ou condição econômica. Haveria algo como um destino social previamente traçado e irrevogável.

Independentemente do lugar de onde advêm os enunciados que se propõem ao resgate da educação, todos eles parecem caminhar em sentido comum: buscam, por intermédio de um mapeamento, de uma identificação, ou seja, de um conhecimento preciso sobre quem são os alunos, construir um ensino rigorosamente adequado às supostas necessidades do educando. Tais discursos creem na possibilidade de controle daquilo que se passa no ato educativo, bem como na possibilidade de um ensino plenamente estável, assertivo e mensurável, de forma que, por meio dele, seja possível atingir em absoluto objetivos e finalidades a priori traçados. Para isso, a educação vale-se de determinados instrumentos - testes, métodos, escalas, avaliações, categorias, laudos, entre tantos outros - que a auxiliam no reconhecimento e mapeamento dos sujeitos e no almejado controle da práxis educativa.

Lajonquière (1997LAJONQUIÈRE, L. de. Dos “erros” e em especial daquele de renunciar à educação. Estilos da Clínica, v. 2, n. 2, p. 26-43, 1997. https://doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v2i2p27-43
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; 1998LAJONQUIÈRE, L. de. (Psico)pedagogia, psicanálise e educação. Estilos da Clínica, v. 3, n. 5, p. 120-134, 1998. https://doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v3i5p120-134
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; 2009LAJONQUIÈRE, L. de. Infância e Ilusão (psico)pedagógica: escritos de psicanálise e educação. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 2009.), em seus trabalhos, discorre em profundidade sobre a ocorrência de tal processo quando munido essencialmente de saberes e ilusões próprias da psicologia para mapeamento e identificação dos sujeitos. O autor, já na década de 1990, nomeia tal processo ilusão (psico)pedagógica: ilusão hegemônica na educação pela qual se pretende possível ajustar com precisão - com base no conhecimento do momento psicomaturacional do aluno - a oferta à demanda educativa. Vê-se, por sua vez, que tal ilusão, passadas mais de duas décadas, se mantém hoje no discurso educativo, mesmo que sob outras faces. A crença na possibilidade de ajustar o que se ensina ao que necessita o aprendiz se alimenta de e põe em movimento enunciados advindos de diversos campos do conhecimento. A ilusão (psico)pedagógica - forma específica de sonhar o laço que se desdobra entre adultos e crianças - modula os saberes e enunciados que transitam pelo campo educativo de maneira que eles passam a ser pronunciados pela lógica (ilusão) de adequação.

Nesse sentido, inúmeros trabalhos de psicanálise na educação vêm nos apresentar elementos que de algum modo revelam uma impossibilidade estrutural de tal crença, ou ao menos a colocam em questionamento. Sigmund Freud (1996FREUD, S. Análise Terminável e Interminável. In: FREUD, S. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira. Tradução de Maria Aparecida Moraes Rego. Rio de Janeiro: Imago , 1996. v. 23.), pai da psicanálise, anunciara, já no início do século passado, ser a educação uma profissão impossível. Dizia de sua impossibilidade, pois, no educar, aquilo que se atinge ao final do processo jamais reitera ou coincide com o ponto de partida, isto é, com aquilo que era planejado a priori. Tal impossibilidade deve-se essencialmente ao fato de a educação constituir-se de um laço estabelecido entre sujeitos - do desejo, do inconsciente - e habitar o campo da palavra, campo estruturalmente equívoco. À palavra lançada não é possível, mesmo sob a hegemonia do mais assertivo e adequado método, atingir alvo preciso.

No âmbito dos assuntos humanos, propõe Arendt (2014bARENDT, H. O que é liberdade? In: ARENDT, H. Entre o passado e o futuro. Tradução de Mauro W. Barbosa. 7. ed. São Paulo: Perspectiva , 2014b., p. 189), o teste da causalidade - “a previsibilidade do efeito se todas as causas forem conhecidas” - não pode ser aplicado de forma irrestrita. Segundo a autora, é inerente à ação humana “o irromper no mundo como uma ‘improbabilidade infinita’” (ARENDT, 2014bARENDT, H. O que é liberdade? In: ARENDT, H. Entre o passado e o futuro. Tradução de Mauro W. Barbosa. 7. ed. São Paulo: Perspectiva , 2014b., p. 218), e dessa improbabilidade decorre que o impacto de um acontecimento nunca é também “inteiramente explicável; sua fatualidade transcende em princípio qualquer antecipação” (ARENDT, 2014bARENDT, H. O que é liberdade? In: ARENDT, H. Entre o passado e o futuro. Tradução de Mauro W. Barbosa. 7. ed. São Paulo: Perspectiva , 2014b., p. 219). A condição humana é, pois, impregnada de um caráter indeterminado, inscrito na própria noção de liberdade.

A afirmação freudiana - reiterada pela observação da condição de imprevisibilidade de toda ação humana - faz tremer as bases supostamente sólidas das metodologias e teorias pedagógicas que visam enredar tudo aquilo que se passa no ato educativo, como fórmula objetiva e assertiva para um ensino bem-sucedido. Esse aspecto parece ser uma das grandes angústias e, por sua vez, elemento de mobilização dos educadores e das mais diversas escolas: qual metodologia usar ou qual linha pedagógica seguir para que o ensino seja eficaz.

A educação, nos diferentes tempos, insere-se em um movimento de incessante busca por uma metodologia ou teoria pedagógica que venha a garantir, ou ao menos contribuir, com o que seria um ensino de qualidade. Mesmo nos tempos mais distantes ou no uso de teorias e métodos hoje bastante questionáveis - castigos físicos, por exemplo -, a intenção última, ou mesmo aquilo que animava os que os praticavam, era a realização de algo que pudesse ser considerado um bom ensino. Acreditava-se na eficácia desta ou daquela prática para a concretização de determinados objetivos. Em tal lógica, além do sucesso, o fracasso educativo é também passível de ser explicado em termos de uma inadequação do método (LAJONQUIÈRE, 1998LAJONQUIÈRE, L. de. (Psico)pedagogia, psicanálise e educação. Estilos da Clínica, v. 3, n. 5, p. 120-134, 1998. https://doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v3i5p120-134
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) ou de sua má aplicação - em virtude da falta de recursos, despreparo dos professores, falta de planejamento, inadequação dos alunos e tantas outras explicações.

Sobre a centralidade do método na educação, Azanha (1992AZANHA, J. M. P. Uma ideia de pesquisa educacional. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1992.) traz-nos interessante elemento para reflexão ao retomar em seu texto as contribuições e implicações que Comênio, importante pensador do século XVII, trouxe à pedagogia e à educação de maneira geral. Considerado o pai da didática moderna, Comênio, em sua conhecida obra intitulada Didática Magna, marca o que se tem como o início da sistematização da pedagogia. Azanha (1992) aproxima as proposições de Comênio para a educação àquilo que Francis Bacon pretendia fazer pela ciência.

Por meio dessa obra, Comênio realizou uma transposição das idéias mestras de Bacon sobre a ciência para o campo da educação. Para não alongar o assunto além do necessário, basta referir o seguinte: para Bacon, o estado lastimável da ciência de então indicava a necessidade de um novo método, que seria único para todas as ciências e fundado na observação. A excelência desse método seria a garantia do êxito de sua aplicação independentemente do talento dos indivíduos que o usassem. A “arte de ensinar tudo a todos” foi a réplica pedagógica, que Comênio propôs, da “verdadeira indução” baconiana (AZANHA, 1992AZANHA, J. M. P. Uma ideia de pesquisa educacional. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1992., p. 37).

Conforme o autor, assim como fazer ciência para Bacon era aplicar um método, para Comênio educar ou ensinar consistia também na aplicação de um método. Segundo Azanha (1992AZANHA, J. M. P. Uma ideia de pesquisa educacional. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1992., p. 38), da mesma forma que as concepções baconianas “marcaram de modo indelével a visão mais difundida da ciência nos séculos posteriores, as ideias de Comênio sobre as relações entre ensino e método perduram até hoje”. Sendo assim, a atual “reivindicação da centralidade do método em todo ensino” (AZANHA, 1992AZANHA, J. M. P. Uma ideia de pesquisa educacional. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1992., p. 38) poderia ser encarada como questão intimamente relacionada à influência de Comênio. Depois dele,

[...] a preocupação metodológica tornou-se uma constante do pensamento pedagógico até os dias de hoje. Desde o fim do século passado e ao longo deste, com as primeiras investigações educacionais empíricas e a posterior consolidação da pesquisa educacional como prática institucional regular, grande parte da temática dessa pesquisa tem sido a busca de procedimentos de ensino mais adequados e eficazes (AZANHA, 1992AZANHA, J. M. P. Uma ideia de pesquisa educacional. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1992., p. 39).

Além do papel central ocupado pela dimensão metodológica no ensino, valorizam-se ainda, de maneira singular, os métodos ou teorias pedagógicas mais modernos, inovadores, decorrentes de estudos e evidências científicas. Dessa lógica resulta que a educação, nos dias atuais, parece ser regida por uma espécie de modismo, isto é, por uma constante busca pelas mais inovadoras e modernas pedagogias. Esse modismo segue a lógica do tempo como algo linear e progressivo, de tal forma que aquilo que nos sucede seria necessariamente superior. As sempre novas, revolucionárias e científicas metodologias surgem como redentoras de uma sempre obsoleta educação. Decorre desse contexto a crença em um método excepcional sempre por advir (LAJONQUIÈRE, 2009LAJONQUIÈRE, L. de. Infância e Ilusão (psico)pedagógica: escritos de psicanálise e educação. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 2009.) e em uma verdade que possa ser esgotada pelo avanço do saber (VOLTOLINI, 2007VOLTOLINI, R. O discurso do capitalista, a psicanálise e a educação. In: ARAÚJO, N. V.; AIRES, S.; VERAS, V. (orgs.). Linguagem e Gozo. Campinas: Mercado de Letras, 2007. p. 197-212.).

As explicações, depois que se iniciou a era do progresso, não cessam de se aperfeiçoar para melhor explicar, melhor fazer compreender, melhor ensinar a aprender, sem que jamais se possa verificar um aperfeiçoamento correspondente na dita compreensão. Antes, pelo contrário, começa a erguer-se um triste rumor, que não mais deixará de se amplificar, de um contínuo declínio na eficácia do sistema explicativo, a carecer, evidentemente, de novo aperfeiçoamento para tornar as explicações mais fáceis de serem compreendidas por aqueles que não as compreendem (RANCIÈRE, 2005RANCIÈRE, J. O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica , 2005., p. 23).

Observando sob perspectiva mais ampla e generalizada isso que seria um sintoma social, Lebrun (2004LEBRUN, J. P. Um mundo sem limite: ensaio para uma clínica psicanalítica do social. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2004.), em sua obra Um mundo sem limite: ensaio para uma clínica psicanalítica do social, percebe o “saber de última moda” como um efeito do saber de enunciados, promovido pelo discurso da tecnociência. Há, nessa modalidade de discurso, “a proliferação de enunciados que não mais testemunham, em seu seio, que a dimensão da enunciação esteve presente” (LEBRUN, 2004LEBRUN, J. P. Um mundo sem limite: ensaio para uma clínica psicanalítica do social. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2004., p. 65). Nele, “lidamos apenas com enunciados, sem o vestígio do apagamento da enunciação” (LEBRUN, 2004LEBRUN, J. P. Um mundo sem limite: ensaio para uma clínica psicanalítica do social. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2004., p. 65). Entre outras consequências, o autor aponta que, nesse tipo de saber, a própria história - e também o que aqui compreendemos por tradição - perderia a sua validade e importância. Sob essa lógica, é inevitavelmente reservado ao sujeito lugar de profundo e inóspito silêncio.

Nesse contexto, no qual é o método percebido como aspecto fundamental para uma educação bem-sucedida, desdobram-se, com frequência, discussões acerca do papel do professor e, consequentemente, do aluno. Cada novo método ou nova pedagogia carrega consigo, em seus pressupostos e prescrições, qual seria precisamente o lugar adequado a ser ocupado pelos sujeitos. Atualmente, pensar a função do professor é, com frequência, um pensar externo à práxis educativa e regido pela consideração da educação como estimulação metódica e científica, o que aparentemente coloca não apenas o professor, mas também o aluno, em posição de assujeitamento. Ao se pretender o método como algo absoluto, crê-se ser possível suprimir do ato educativo tudo aquilo que se situa essencialmente na ordem da transmissão - aquilo que se passa à nossa revelia - para lidar apenas com conhecimentos, com meras informações técnicas e conceituais, que seriam sistematicamente veiculadas por meio de um ensino planejado e controlável.

Inserido nessa lógica, o educar esvazia-se do que seria sua dimensão autoral, singular, essencialmente subjetiva - decorrente de uma relação estabelecida entre sujeitos -, e passa a alienar-se ao método e ao discurso então hegemônicos na educação; quanto maiores a regulação e padronização do ato educativo pelo método, proporcionalmente menores o efeito de mestria e a possibilidade daquele que ensina e daquele que aprende falarem em nome próprio. Na contemporaneidade, “num tempo ‘racional’, técnico e iluminado; num tempo cujo saber-fazer foi teorizado ou cujo humano tornou-se ‘ciência’” (PEREIRA, 2008PEREIRA, M. R. A impostura do Mestre. Belo Horizonte: Argvmentvm, 2008., p. 176), a dimensão essencialmente humana, daquilo que emerge do (des)encontro entre sujeitos, parece sistematicamente caminhar no sentido de esvair-se das relações.

Aspecto importante a se evidenciar nesse contexto é a intencionalidade contida na escolha por determinada diretriz ou teoria pedagógica que, em última instância - na dimensão da práxis, despida de toda e qualquer pretensão externa de controle e regulação -, se trata pura e simplesmente da forma como decidimos lidar e conduzir o encontro educativo. Tal escolha é reveladora de uma série de questões muito mais profundas e anteriores àquilo que concretamente se passa dentro de uma sala de aula. A importância dessa questão deve-se essencialmente ao fato de a própria finalidade da educação estar a ela vinculada e parecer também se modificar à medida que se modificam as teorias vigentes. Ocorre que, em grande parte dos casos, a intencionalidade por trás de determinadas escolhas, bem como a percebida finalidade da educação que estas carregam, não advém daquelas compartilhadas pelo professor que dia após dia as põem em circulação nem corresponde a elas. O professor, excluído da intencionalidade que anima sua prática, passa então a professar em silêncio. Em nome de que ou em nome de quem se ensina? Seria possível a um alguém ensinar com base em algo que dele - e nele - não ecoa? Eis o que parece ser um dos aspectos-chave dessa discussão.

Educação, um laço que constitui sujeitos

Para além das excessivas amarras metodológicas que parecem tentar minimizar todo traço de subjetividade presente no encontro educativo, tal encontro, feliz e inevitavelmente, ocorre entre sujeitos. Pensemos, então, de maneira mais específica, nesses sujeitos que do ato educativo participam, ou ao menos no papel que nele desempenham. Com relação àquele que ensina, diz-se com frequência sobre o excesso de centralização do educar na figura do professor de outrora. A caricata e datada figura do professor tradicional, do mestre, como aquele que tudo sabe e a quem compete incorporar de forma hegemônica tudo o que se passa no ato educativo causa arrepios aos ferrenhos defensores da corrente que, de maneira muitas vezes fluida e acrítica, se intitula construtivista. Tal denominação e seus termos adjacentes - professor facilitador, mediador etc. - tornaram-se espécie de senso comum entre muitos daqueles que desejam de forma absoluta se afastar do que supostamente seria um ensino tradicional. Com frequência, sem grande aprofundamento, busca-se, nesse modo de ensino, retirar o foco antes tiranicamente colocado sobre o professor para colocá-lo com brilho e entusiasmo sobre o aluno. Pelos corredores das escolas, entende-se hoje tradicional todo e qualquer ensino cego e refratário às necessidades do aluno, no qual o severo e ultrapassado professor - esvaziado das modernas técnicas, de conhecimentos e recursos educacionais - se coloca como centro de uma relação na qual a outra ponta, o aluno, nada tem a propor ou lançar da ordem do desejo. Há quem diga, entretanto, que a educação hoje ofertada nas escolas já não é mais a mesma e que em muito deixa a desejar em relação àquela rígida e consistente de nossos pais ou avós. E assim parecemos seguir: sem rumo aparentemente certo, vagando pelas teorias mais ou menos tradicionais, mais ou menos construtivistas.

Entre inúmeros outros impasses, é neste ponto em que um nó insiste em se estabelecer: a constante alternância de um lugar de palavra no ato educativo, decorrente das distintas proposições metodológicas, isto é, o duelo para definir quem será o sujeito da vez na relação, professor ou aluno. Nessa lógica que observamos hoje na educação, bastante acentuada nas últimas décadas, parece não haver espaço para a enunciação de mais de uma voz no laço educativo; é permitido que falemos cada um à sua vez. O diálogo geracional, a filiação a uma tradição, a uma cultura, apresentada por alguém que nela já habitava a outro alguém a quem está reservada a sua renovação, parece ter-se esvaziado. O que há é sempre um monólogo, e aparentemente estamos na cena na qual o professor se cala.

Há, no entanto, uma impossibilidade constitutiva à condição de um alguém que professa em silêncio - de lugar esvaziado de uma posição de sujeito. À revelia do que pretendem certas metodologias ou lógicas de controle e regulação do ato educativo, as escolhas de um professor “não se resumem a deliberações acerca de meios técnicos supostamente mais eficazes para atingir um fim, já que a forma pela qual se ensina e se aprende tem, em si mesma, um caráter formativo” (CARVALHO, 2017CARVALHO, J. S. F. Educação, uma herança sem testamento: diálogos com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Perspectiva : FAPESP, 2017., p. 105). O que se transmite ao educar extrapola aquilo que de forma objetiva e controlada mensuramos e nomeamos conteúdos.

Não nos parece possível o educar - como ato que recebe e insere no mundo aqueles que nele chegam - esvaziado da singular e inapreensível dimensão humana, desprovido da marca que o sujeito imprime quando educa um alguém, e do infinitamente improvável que o recém-chegado apresenta ao mundo. É dos sujeitos, e apenas deles, que devemos esperar a renovação do mundo: “Mesmo no tempo mais sombrio temos o direito de esperar alguma iluminação, e que tal iluminação pode bem provir, menos das teorias e conceitos, e mais da luz incerta, bruxuleante e frequentemente fraca que alguns homens e mulheres, nas suas vidas e obras, farão brilhar” (ARENDT, 2008ARENDT, H. Homens em tempos sombrios. Tradução de Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2008., p. 9).

Ocupando posição na qual a condição autoral lhe é permitida, a experiência daquele que ensina, como representante de uma tradição, dá forma àquilo que professa, assim como “imprime-se na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso” (BENJAMIN, 2012BENJAMIN, W. O narrador. In: BENJAMIN, W. Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. 8. ed. São Paulo: Brasiliense, 2012., p. 221). Há algo do professor que, a despeito das pretensões e dos objetivos pedagogicamente calculados, é ao aluno transmitido. Nesse mesmo sentido, ao encontrar ocasionalmente seu antigo professor, Freud (1976FREUD, S. Algumas reflexões sobre a psicologia escolar. In: FREUD, S. Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1976. v. 13., p. 286) narra:

Minha emoção ao encontrar meu velho mestre-escola adverte-me de que antes de tudo, devo admitir uma coisa: é difícil dizer se o que exerceu mais influência sobre nós e teve importância maior foi a nossa preocupação pelas ciências que nos eram ensinadas, ou pela personalidade de nossos mestres. É verdade, no mínimo, que esta segunda preocupação constituía uma corrente oculta e constante em todos nós e, para muitos, os caminhos das ciências passavam apenas através de nossos professores.

Diante do contexto aqui apresentado, lançamo-nos ao seguinte questionamento: seria essa a dimensão essencialmente suprimida - ou ao menos aquela que se deseja suprimir - sob a lógica do percebido tecnicismo pedagógico? A dimensão do humano, do professor como alguém que, inserido em uma tradição que o constituiu, fala em nome próprio como representante da experiência humana acumulada, das histórias e das narrativas? Em tempos nos quais estão as experiências “perdendo a sua comunicabilidade” (BENJAMIN, 2012BENJAMIN, W. O narrador. In: BENJAMIN, W. Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. 8. ed. São Paulo: Brasiliense, 2012., p. 217), parece não mais haver espaço para alguém que as narre, ou para uma figura que poderíamos propor e nomear professor-narrador.

O narrador, diz-nos Benjamin (2012BENJAMIN, W. O narrador. In: BENJAMIN, W. Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. 8. ed. São Paulo: Brasiliense, 2012., p. 217), “retira o que ele conta da experiência: de sua própria experiência ou da relatada por outros. E incorpora, por sua vez, as coisas narradas à experiência dos seus ouvintes”. Ocorre que nos dias atuais, tempo da short story (BENJAMIN, 2012BENJAMIN, W. O narrador. In: BENJAMIN, W. Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. 8. ed. São Paulo: Brasiliense, 2012., p. 219), “quase nada do que acontece é favorável à narrativa, e quase tudo beneficia a informação”. O homem de hoje, observa o autor, “não cultiva mais aquilo que não pode ser abreviado” (BENJAMIN, 2012BENJAMIN, W. O narrador. In: BENJAMIN, W. Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. 8. ed. São Paulo: Brasiliense, 2012., p. 222).

Tal como o laço que se estabelece no ato educativo, no qual cabe ao professor “zelar pela durabilidade do mundo comum de heranças simbólicas” (CARVALHO, 2017CARVALHO, J. S. F. Educação, uma herança sem testamento: diálogos com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Perspectiva : FAPESP, 2017., p. 25) para que “os que são novos no mundo possam vir a se inteirar dessa herança pública, apreciá-la, fruí-la e renová-la” (CARVALHO, 2017CARVALHO, J. S. F. Educação, uma herança sem testamento: diálogos com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Perspectiva : FAPESP, 2017., p. 25), na narrativa a relação “entre o ouvinte e o narrador é dominada pelo interesse em conservar o que foi narrado” (BENJAMIN, 2012BENJAMIN, W. O narrador. In: BENJAMIN, W. Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. 8. ed. São Paulo: Brasiliense, 2012., p. 227), de forma que ao ouvinte seja assegurada “a possibilidade da transmissão” (BENJAMIN, 2012BENJAMIN, W. O narrador. In: BENJAMIN, W. Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. 8. ed. São Paulo: Brasiliense, 2012., p. 227, grifo nosso). No comparativo estabelecido, é importante evidenciar que, em ambas as relações, se mostra necessária a implicação subjetiva das duas partes - professor/aluno, narrador/ouvinte. Isto é, ambos exercem papel ativo, autoral, permeado de marcas simbólicas de pertencimento. Não basta que apenas um dos lados proponha algo miraculoso, se no outro extremo habita alguém de quem nada da ordem do desejo se possa esperar ou permitir.

Benjamin (2012BENJAMIN, W. O narrador. In: BENJAMIN, W. Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. 8. ed. São Paulo: Brasiliense, 2012., p. 232) diz-nos ser comum a todos os narradores

[...] a facilidade com que se movem para cima e para baixo nos degraus de sua experiência, como numa escada. Uma escada que chega até o centro da terra e que se perde nas nuvens - é a imagem de uma experiência coletiva, para a qual mesmo o mais profundo choque da experiência individual, a morte, não representa nem um escândalo nem um impedimento.

Tal imagem bem poderia ilustrar a função à qual se propõe o educador ao se colocar diante dos novos no mundo como representante de uma tradição. As subidas e descidas nos degraus da experiência e da tradição compõem movimento inerente ao educar e compreendem o que seria tarefa básica da educação: “Estabelecer um diálogo intergeracional capaz de imprimir durabilidade a um mundo comum” (CARVALHO, 2017CARVALHO, J. S. F. Educação, uma herança sem testamento: diálogos com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Perspectiva : FAPESP, 2017., p. 75).

É entre o novo e tudo aquilo que preexistia, em que Arendt situa a educação e aquele que educa, o que exige “o duplo e paradoxal compromisso por parte do educador” (CARVALHO, 2017CARVALHO, J. S. F. Educação, uma herança sem testamento: diálogos com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Perspectiva : FAPESP, 2017., p. 25) de zelar pela durabilidade do mundo e, ao mesmo tempo, permitir aos novos que dele se apropriem e venham a renová-lo. Mesmo em tempos nos quais o cenário educativo pende vertiginosamente para o que seria o lado da renovação, é imperativo restituir ao professor o lugar de autoridade que lhe cabe, uma vez que, perante os recém-chegados, “é como se ele fosse um representante de todos os habitantes adultos, apontando os detalhes e dizendo à criança: - Isso é o nosso mundo” (ARENDT, 2014aARENDT, H. A crise na educação. In: ARENDT, H. Entre o passado e o futuro. Tradução de Mauro W. Barbosa. 7. ed. São Paulo: Perspectiva, 2014a., p. 239).

Ao propormos aqui a figura do professor-narrador, referimo-nos essencialmente ao sujeito a quem se faz possível a enunciação em nome próprio, enunciação em nome de algo talhado na tradição e na experiência essencialmente humana. Personagem a quem é permitido “fazer julgamentos, apresentar escolhas e confrontá-las com outras possibilidades” (CARVALHO, 2017CARVALHO, J. S. F. Educação, uma herança sem testamento: diálogos com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Perspectiva : FAPESP, 2017., p. 37) diante de uma herança “que nos chega sem testamento” (CARVALHO, 2017CARVALHO, J. S. F. Educação, uma herança sem testamento: diálogos com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Perspectiva : FAPESP, 2017., p. 116). É a iniciação numa herança comum, diz-nos Carvalho (2017CARVALHO, J. S. F. Educação, uma herança sem testamento: diálogos com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Perspectiva : FAPESP, 2017., p. 25), “de saberes, práticas, conhecimentos, costumes, princípios, enfim, de obras às quais um povo atribui grandeza, valor, mérito ou significado público, que constitui o objeto precípuo da ação educativa”.

Dessa forma, faz-se necessária a existência de uma figura docente provida de discurso e contornos singulares, em absoluta oposição à lógica na qual se observa “o menosprezo desse princípio em favor de um suposto saber que se coloca acima da pluralidade de julgamentos e opiniões - recorrente na padronização globalizada de programas e objetivos educacionais a partir de diretrizes de organismos técnicos internacionais” (CARVALHO, 2017CARVALHO, J. S. F. Educação, uma herança sem testamento: diálogos com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Perspectiva : FAPESP, 2017., p. 37). Na ruidosa padronização, que busca enredar todo o encontro educativo, faz-se o apático silêncio do professor. Assim,

não é por outra razão que a tecnoburocracia, que ocupou o vazio da deliberação política, despreza a palavra, trivializa e degrada a interação política que a palavra deveria proporcionar, no propósito, desgraçadamente bem-sucedido no mundo contemporâneo, de afirmar o caráter supérfluo do sujeito histórico como agente de transformação (SILVA, 2001 apudCARVALHO, 2017CARVALHO, J. S. F. Educação, uma herança sem testamento: diálogos com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Perspectiva : FAPESP, 2017., p. 38).

A condição autoral: algumas considerações

A discussão aqui apresentada afasta-se em absoluto da proposição de uma educação na qual a dimensão metodológica seja definitivamente abandonada do ato educativo e expulsa das escolas. Aquilo que de forma mais ou menos sistematizada o professor acumula em sua prática, bem como os conhecimentos acerca de propostas metodológicas e abordagens pedagógicas, atua como chave de leitura da práxis pedagógica e da experiência docente e lhe permite nelas se localizar. Busca-se aqui, por meio do reconhecimento e da valorização da dimensão subjetiva do educar, uma reflexão acerca das reais limitações e implicações do âmbito estritamente metodológico à educação, para que “não tomemos lamparinas por sóis” (AZANHA, 1992AZANHA, J. M. P. Uma ideia de pesquisa educacional. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1992., p. 14).

O professor, ao colocar-se no laço educativo como sujeito, como alguém sob posse daquilo que propõe e professa, revestido da autoridade que tal condição o compete, abre ao aluno a possibilidade de vir a ocupar também esse lugar. Nesse sentido, diz-nos Pereira (2016PEREIRA, M. R. O nome atual do mal-estar docente. Belo Horizonte: Fino Traço, 2016., p. 21): “Se há circunstancialmente momentos em que se pode dizer que alguém venha a ser um bom professor, esse somente o será quando ele atuar no avesso daquilo que prevê a racionalidade técnica dos inumeráveis compêndios pedagógicos de nosso entorno”.

Ao reconhecer e sustentar o laço educativo como uma relação entre sujeitos, ou entre agentes, como diria Arendt (2014aARENDT, H. A crise na educação. In: ARENDT, H. Entre o passado e o futuro. Tradução de Mauro W. Barbosa. 7. ed. São Paulo: Perspectiva, 2014a.), o professor abre-se à possibilidade de confronto com um alguém em “plena posse de sua história singular, de suas dimensões de razão e de afetividade, de consciência e de inconsciente, assim como de sua capacidade em produzir significações” (IMBERT, 2001IMBERT, F. A questão da ética no campo educativo. Tradução de Guilherme João de Freitas Teixeira. Petrópolis: Vozes, 2001., p. 101). O professor apresenta ao seu aluno a possibilidade de emancipação (RANCIÈRE, 2005RANCIÈRE, J. O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica , 2005.) e coloca-se à consideração de que não é apenas a ciência do mestre que seus alunos aprendem, uma vez que é a eles possível traçar caminhos e chegar a pontos distintos daqueles que inicial e intencionalmente lhes foram propostos. Em tal perspectiva, o professor entrega-se ao reconhecimento de que se faz mestre apenas “por força de ordem que mergulha os alunos no círculo de onde eles podem sair sozinhos, quando retira sua inteligência para deixar as deles entregues [a outras]” (RANCIÈRE, 2005RANCIÈRE, J. O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica , 2005., p. 31), por dar aos alunos “ordem de atravessar uma floresta cuja saída ignora” (RANCIÈRE, 2005RANCIÈRE, J. O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica , 2005., p. 27).

Diante da reflexão aqui apresentada, parece-nos fundamental que o laço educativo sustente e permita a construção e manutenção de um lugar de autoria para ambos os sujeitos envolvidos na relação: professor e aluno. O sujeito ativo, o lugar de enunciação, de construção autoral e significativa, carregada de marcas singulares, deve ser então reservado às duas posições do desgastado binômio ensino-aprendizagem, afinal a conquista de um lugar no discurso “corresponde ao fato da distinção e é a efetivação da condição humana da pluralidade, isto é, do viver com um ser distinto e único entre iguais” (ARENDT, 2015ARENDT, H. A condição humana. Tradução de Roberto Raposo. 12. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015., p. 221).

Assim, afastando-se de uma relação absolutamente planejada e sistematizada, norteada exclusivamente por essa ou aquela metodologia ou teoria pedagógica - e seu arsenal de pressupostos e instrumentos -, orientamo-nos à construção do ato educativo como genuína relação entre sujeitos de uma mesma humanidade, filiados a uma mesma tradição, engajados na renovação, construção e manutenção do solo comum que nos permite caminhar entre as diferentes gerações e perpetuar isto que por tantos séculos seguimos construindo e reconstruindo: o mundo.

Referências

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  • ARENDT, H. Homens em tempos sombrios. Tradução de Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
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Notas

  • 1
    .Termos frequentemente utilizados na ementa de cursos de extensão destinados a professores.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Ago 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    13 Abr 2019
  • Aceito
    29 Maio 2019
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