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Maurício Tragtenberg: Uma vida para as ciências humanas

MAURÍCIO TRAGTENBERG: UMA VIDA PARA AS CIÊNCIAS HUMANAS* * Resenha do livro Maurício Tragtenberg: Uma vida para as Ciências Humanas, organizado por Doris Accioly e Silva & Sonia Alem Marrach (Araraquara: Editora da UNESP/FAPESP, 2001. 327p.).

Dulce C. A. Whitaker** * Resenha do livro Maurício Tragtenberg: Uma vida para as Ciências Humanas, organizado por Doris Accioly e Silva & Sonia Alem Marrach (Araraquara: Editora da UNESP/FAPESP, 2001. 327p.).

Coerência entre o pensar e o agir! Eis o grande ensinamento que brota das páginas deste livro e que me parece o grande legado de Maurício Tragtenberg. A prática da coerência não é fácil nem para sociólogos nem para qualquer cientista social de qualquer área específica. O peso da estrutura social da qual o sociólogo participa, seus interesses de classe, as seduções do poder, criam obstáculos muitas vezes intransponíveis a uma compreensão do real que não seja apenas o tecnicismo das pesquisas positivistas ou a chamada "teoria teórica" (como diria o recentemente falecido Pierre Bourdieu) por meio da qual se deslumbram reciprocamente sábios de toda ordem em encontros acadêmicos esterilizantes.

Por outro lado, ao tentar escapar dessas armadilhas epistemológicas, o sociólogo parte para a militância e, deslumbrado com seu papel de condutor daqueles que, segundo pensa, nada sabem, se esquece das teorias científicas que o ajudariam a compreender os fenômenos sobre os quais pretende influir. Esquece ainda que os sujeitos sociais que pretende conduzir possuem seu próprio saber e são muitas vezes mais conscientizados do que o próprio sociólogo. Esse perigo é ainda maior quando sua militância é ligada a Instituições, porque os benefícios que delas recebe limitam e muito sua visão crítica. E não raro, quando tais benefícios já não são suficientes, o sociólogo militante muda repentinamente de idéias, de teorias e de militância, vislumbrando outras oportunidades de ascensão na esfera política ou empresarial, as quais exigem outra visão de mundo e, portanto, outras teorias.

Um interessante exercício de sociologia do conhecimento seria comparar os escritos dos intelectuais em diferentes momentos de suas carreiras e garimpar mudanças de rumo, relacionando-as com ascensão social e/ou com militância política.

É claro que todos mudamos, já que a sociedade muda, a ciência muda e o volver dos fenômenos se altera em sua complexidade multifacetada. Mas há sociólogos que mudam porque vão se tornando cada vez mais profundos em suas análises, cada vez mais iluminados em sua compreensão do outro, cada vez mais críticos em relação às injustiças e desigualdades. São aqueles que descobrem os caminhos da coerência e cuja militância nada tem a ver com o poder, ao qual deram as costas exatamente por causa de suas convicções teóricas. Praticam então a militância que se prende única e tão somente à libertação dos oprimidos e ao combate à exploração. Dialogam com o outro sem tentar colonizá-lo e são capazes de encontrar o exato arcabouço teórico de que necessitam, e montar o campo teórico para suas pesquisas sem mudar camaleonicamente as fontes do seu saber.

Sim, já estou falando de Maurício Tragtenberg, aquele que nunca foi seduzido pelo poder. A imagem que surge, grandiosa, das páginas do livro organizado por Doris Accioly e Silva e Sônia Alem Marrach é a do intelectual cuja vida se desenrolou nessa admirável coerência entre saber, pensar, agir, criticar, combater, polemizar.

As teorias que produziu, buscando incessante inspiração nos clássicos, iluminam hoje as boas pesquisas sobre Burocracia, ajudam a compreender os dilemas da classe trabalhadora, a complexidade da organização da escola, as necessidades de um processo político libertário, e foram produzidas de forma viva em monumental participação na Imprensa Operária, durante décadas de militância desinteressada das "prebendas" (como ironizava), porém agudamente interessada nas propostas dos movimentos sociais.

O livro sobre Tragtenberg mostra as várias e complexas faces desse incansável critico das hipocrisias das sociedades burocratizadas que se autodenominam democráticas, e foi montado com textos e depoimentos de vários autores que se depuseram a homenageá-lo. A organização dos textos re-constrói a figura e a trajetória do homenageado, permitindo a certos leitores (o meu caso, por exemplo) a identificação com diferentes momentos de suas andanças intelectuais.

Logo às primeiras páginas, resgata-se uma entrevista na qual o autor fala de si próprio, da sua infância, quando lia livros proibidos (Stefan Zweig, vejam só) "no telhado" e se refere longamente à família Abramo, que foi uma de suas "Universidades". Pode se sentir aí a força do Capital Cultural dos Abramo sendo absorvida pelo jovem sedento de compreender o mundo. Trata-se de uma fala ao mesmo tempo densa e bem humorada, recordando os livros que leu na Biblioteca Mário de Andrade, "o melhor período de minha vida", segundo ele. Suas leituras de então ajudam a explicar o autor enciclopédico que se revelaria depois. Mas deixo ao leitor o prazer de descobrir por si mesmo os caminhos percorridos por nosso modelo de coerência.

Muitos amigos seus compareceram com textos emocionados que recordam momentos fulgurantes da sua carreira. O carinho de Lélia Abramo... A sensibilidade de Antonio Candido, recordando o caráter pioneiro dos artigos que publicou denunciando os mitos do capitalismo Japonês... A modéstia de Tragtenberg... sua implacável crítica ao sistema educacional... sua inarredável opção pelo socialismo libertário e contra todas as formas de opressão, exploração e controle...

Para tanto, usou a criatividade da palavra, conforme assinala o belíssimo artigo de Doris Accioly e Silva. Vale a pena reproduzir aqui o que diz essa autora, profunda conhecedora da obra do homenageado:

Conhecendo como poucos a profunda "desconfiança de todas as burocracias com relação à palavra livre, criadora" – como apontou Fernando Prestes Motta – Maurício Tragtenberg a praticava o tempo todo, fosse pelo humor, pela ironia, pela irreverência, fosse pela inversão das frases desvelando sentidos, desalienando-os. (Accioly e Silva, p. 83)

O valor que dava à Literatura, aliado ao espírito intensamente interessado na compreensão do humano deram-lhe as chaves do uso da palavra como arma das mais legítimas em defesa da classe trabalhadora.

Alguns textos desvelam o intelectual orgânico das causas dos trabalhadores, o intelectual que constrói e aprofunda suas teorias em diálogo permanente com eles sem intenções iluministas de conduzi-los ou doutriná-los, ao contrário incorporando suas inquietudes e reivindicações.

O fato de ser um erudito – leitor iluminado das obras mais significativas da literatura e das Ciências Humanas – como o são, por exemplo, Dostoiewsky no primeiro caso e Marx no segundo, o fato de conhecer a obra de Ibn Khaldoun e até do precursor indiano de Maquiavel, nada disso impediu que escrevesse durante anos uma coluna no Jornal Notícias Populares (desprezado pelo bom mocismo dos intelectuais), o que nos revela finalmente a face mais bela deste ser iluminado: a total ausência de preconceitos – um transitar tranqüilo entre os bens simbólicos de todas as classes sociais que gostaria de ver eliminadas para o surgimento de uma única humanidade, fraternal, solidária e sem hierarquias.

** Pesquisadora do CNPq junto aos Programas de Pós-Graduação em Educação e Sociologia da Unesp em Araraquara (SP).

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    Resenha do livro
    Maurício Tragtenberg: Uma vida para as Ciências Humanas, organizado por Doris Accioly e Silva & Sonia Alem Marrach (Araraquara: Editora da UNESP/FAPESP, 2001. 327p.).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      13 Dez 2006
    • Data do Fascículo
      Abr 2002
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