Open-access A EDUCAÇÃO COMO DIREITO NUM MUNDO DESIGUAL

EDUCATION AS A RIGHT IN AN UNEQUAL WORLD

LA EDUCACIÓN COMO DERECHO EN UN MUNDO DESIGUAL

RESUMO

O presente ensaio debate possibilidades e exigências para a realização do direito à educação, observando criticamente os obstáculos que lhe são apresentados por um mundo desigual. Propondo que a educação como direito seja estudada através de três conceitos – a educação como direito consagrado, a educação como direito decretado, e a educação como direito praticado – é a este último que o artigo atribui protagonismo analítico. Reconhecendo centralidade à ideologia meritocrática promovida pelas políticas educacionais contemporâneas, o texto conclui que nos encontramos em processo de transição de uma pedagogia democrática, nunca inteiramente realizada e sucedida, para uma pedagogia meritocrática, empreendedorista e contra o outro. A meritocracia é considerada, relativamente à educação como direito praticado, um dos maiores obstáculos enfrentados, capaz de produzir novas desigualdades e de operar uma forte erosão da democracia e da pedagogia democrática na educação.

Palavras-chave
Direito à educação; Política educacional; Meritocracia; Pedagogia contra o outro

ABSTRACT

This essay discusses possibilities and requirements for realizing the right to education, critically observing the obstacles presented by an unequal world. Proposing that education as a right be studied through three concepts – education as a consecrated right, education as a decreed right, and education as a practiced right –, it is to the latter that the article attributes analytical protagonism. Recognizing the centrality of the meritocratic ideology promoted by contemporary educational policies, the text concludes that we find ourselves in a process of transition from a democratic pedagogy, never fully realized and successful, to a meritocratic, entrepreneurial and anti-other pedagogy. Meritocracy is considered, in relation to education as a practiced right, one of the biggest obstacles faced, capable of producing new inequalities and causing a strong erosion of democracy and democratic pedagogy in education.

Keywords
Right to education; Educational policy; Meritocracy; Pedagogy against the other

RESUMEN

Este ensayo analiza las posibilidades y requisitos para hacer realidad el derecho a la educación, observando críticamente los obstáculos que presenta un mundo desigual. Al proponer que la educación como derecho sea estudiada a través de tres conceptos – educación como derecho consagrado, educación como derecho decretado y educación como derecho practicado –, es a este último al que el artículo atribuye protagonismo analítico. Reconociendo la centralidad de la ideología meritocrática promovida por las políticas educativas contemporáneas, el texto concluye que nos encontramos en un proceso de transición de una pedagogía democrática, nunca plenamente realizada y exitosa, a una pedagogía meritocrática, emprendedora y anti-otro. La meritocracia es considerada, en relación con la educación como derecho practicado, uno de los mayores obstáculos enfrentados, capaz de producir nuevas desigualdades y provocar una fuerte erosión de la democracia y de la pedagogía democrática en la educación.

Palabras-clave
Derecho a la educación; Política educativa; Meritocracia; Pedagogía contra el otro

Introdução

Uma das questões clássicas, daquelas que permanecem ao longo do tempo e amiúde nos vão perseguindo e inquietando, hoje envoltas em novos discursos políticos, sob renovadas promessas e grandes declarações de importantes instituições internacionais, é aquela que, de entre várias formulações, poderá ser enunciada do seguinte modo: é possível a realização do direito a uma educação democrática e igualitária num mundo desigual? Num mundo em que as diversidades de todo o tipo – económicas, sociais, culturais, linguísticas, religiosas, étnicas, etárias, de género, etc. – são frequentemente transformadas em desigualdades sociais e educacionais? E por referência a uma educação que vem sendo objeto de discursos hiperbólicos, que ora a apontam como a origem de todos os males, dos défices de competências e de qualificações, de empregabilidade e de produtividade, ora a erigem, ao invés, como solução salvífica e de superação da crise económica e social, através de um pedagogismo exacerbado, de uma formação para a competitividade e de um empreendedorismo pedagógico triunfantes?

Com efeito, o direito à educação, especialmente à educação escolar básica, encontra-se juridicamente inscrito em textos legais e de uma forma quase generalizada. Razão pela qual tem sido observado que, “Hoje, praticamente, não há país no mundo que não garanta, em seus textos legais, o acesso de seus cidadãos à educação básica”, entendendo a educação escolar como “uma dimensão fundante da cidadania” (Cury, 2002, p. 245). Remete-nos o mesmo autor para a Declaração Universal dos Direitos Humanos, para convenções e pactos, a que se poderia juntar o Movimento da Educação para Todos e a regra de ouro de que é a criança o verdadeiro sujeito dos direitos. No entanto, a educação como direito humano implica questões de justiça, e não só de direitos legais, como foi realçado, entre outros, por Sen (2009). As lutas pela consagração da educação como um direito revelaram-se historicamente importantes, ainda quando tenderam a concentrar-se nas questões do acesso, nem sempre incluindo as matérias relacionadas com a permanência e o sucesso educativos. Tal como correram os riscos inerentes aos discursos grandiloquentes, mas por vezes apenas retóricos, tendendo a reduzir os direitos aos direitos legais, sem dúvida relevantes, mas só por si insuficientes. Daí a situação caracterizada em termos normativos por Lee (2013), entre o reconhecimento positivo do direito à educação e a realidade negativa da sua não realização efetiva.

A relevância de se proclamar o direito à educação não dispensa, portanto, a exigência da efetivação desse direito, para todas e todos e com qualidade social e educativa, dessa forma associando a lógica dos direitos àquilo a que Sen (2009, p. 231, 244) chamou a educação como capacidade, individual e coletiva, orientada para o bem estar das pessoas e o seu empoderamento, para a liberdade, combatendo as desigualdades injustas, adotando uma lógica de mudança social, insistindo naquilo que cada pessoa é capaz de fazer, que valoriza e que tem oportunidade de fazer, no âmbito mais geral de uma conceção de aperfeiçoamento individual e social. Sen (1997) distinguiu com clareza entre a “acumulação de capital humano” enquanto valor face ao capital na produção, baseado em competências, conhecimento e esforço, e a “expansão da capacidade humana”, entendida como capacidade de os seres humanos conduzirem as suas vidas de acordo com os seus valores e com as escolhas substantivas que realizam. Desse modo, não se ignora a educação enquanto potencial valor acrescentado para a produção económica, mas rompe-se com uma abordagem utilitarista que concebe primordialmente os seres humanos como “recursos humanos”, como fatores de produção económica, apoucando a importância da informação, do conhecimento crítico e reflexivo, bem como da sua participação na transformação social. Em suma, os seres humanos são entendidos como sendo a finalidade do desenvolvimento económico e social, do bem-estar e da liberdade, encontrando-se em permanente processo de expansão das suas capacidades, muito para além da perspetiva que os subordina à condição de “capital humano” e à capacitação como sinónimo de adaptação funcional aos imperativos do capitalismo global. Trata-se de um referencial que se aproxima das conceções críticas de “educação permanente”, ampliando não apenas o tempo da educação a toda a vida dos sujeitos, mas também a todas as esferas da vida e através de potencialmente todas as formas e modalidades de educação que se revelem compatíveis com a humanização dos seres humanos e a sua participação na transformação do mundo (Melo; Lima; Guimarães; 2021).

A perspetiva da educação como direito humano, sendo crucial, não é, contudo, suficiente. É necessário que os direitos que nos são outorgados, tantas vezes na sequência de processos de luta e reivindicação, extravasem o universo jurídico-formal para serem atualizados, experimentados, cumpridos, enfim, vividos. Razão pela qual alguns autores, de entre os quais Robeyns (2006), são favoráveis à articulação entre “direito à educação” e “educação como capacidade”, na linha de Sen, até para poder afrontar criticamente uma terceira perspetiva, historicamente bem conhecida: a educação como “capital humano”, especialmente influente a partir da década de 1960 e, hoje, novamente, insistindo nas competências e nos conhecimentos como investimentos na produtividade do trabalho assalariado. Tal abordagem técnico-racional exige um esforço crítico em termos de interpretação, tal a centralidade que assumiu, sob variadas formas, nas políticas educacionais hodiernas e em distintas escalas; da OCDE à Unesco, do Banco Mundial à União Europeia – entre outros “guardiões dos futuros” educacionais e instrumentos de governação global (Robertson, 2022) – incluindo ainda diferentes receções por parte de governos nacionais, regionais e locais, e também por parte de instituições e atores educativos.

O que tem sido possível observar é que a perspetiva do direito à educação, tal como definida pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, tem sido objeto de diversas apropriações tecnocráticas e meritocráticas. Justificando, por essa razão, as questões levantadas por McCowan (2010), designadamente: o direito à educação relaciona-se com o quê?; por educação entende-se sobretudo o acesso às escolas?; serão as escolas, isoladamente, as instituições próprias e suficientes para assegurarem efetivamente o direito à educação? Voltando a certas apropriações de política educacional, a educação como direito ganhou algumas ressonâncias que exigem debate, sobretudo sempre que apresentam argumentos como o não desperdício de “recursos humanos”, ou o combate aos seus défices de competências, a adequação da formação de mão de obra qualificada às demandas do mercado de trabalho, ou a necessidade de alargar a base de recrutamento das elites, entre outros, todos de caráter funcional e instrumental.

Os dilemas são vários, tanto mais quanto o direito à educação é incontornável, mas exige uma educação distinta da tradicional, não elitista, mas antes democrática, diversa, multicultural, isto é, uma educação como direito humano não passível de ser subsumido por políticas de promoção e gestão de “capital humano”. O que significa que a generalização do acesso à educação é, simultaneamente, crucial e insuficiente, sobretudo se não cuidar da democratização da organização, dos conteúdos, dos métodos, da avaliação, etc.; seja no âmbito da educação escolar seja nos contextos da educação não escolar. Em qualquer caso, essa democratização exige outras políticas públicas democráticas, na economia e no trabalho, na saúde e na habitação, na segurança social, sem as quais a tão propalada “igualdade de oportunidades” sucumbe perante uma conceção formalista e uma chocante desigualdade de condições de partida. Essa desigualdade de condições de partida é estrategicamente usada, designadamente pelas novas classes médias, tal como foi observado, por exemplo, nas investigações de Stephen Ball (2002), para ampliar as suas vantagens sociais e escolares, a par de estratégias de distinção social, designadamente através da intensificação da competição posicional que busca obter vantagens competitivas para os seus filhos (Ball, 2002, p. 20-21). Também por isso, as novas classes médias tendem a não apoiar os esforços de democratização da educação e a experimentação de métodos educacionais e pedagógicos mais igualitários, bem como políticas sociais equitativas e redistributivas, ações afirmativas e outras, contra a discriminação no acesso, na permanência e no sucesso educativos.

A Educação como Direito: Consagrado, Decretado, Praticado

A pesquisa em torno da problemática da educação como direito beneficia, segundo creio, da distinção conceptual, que passo a propor, entre educação como direito consagrado, educação como direito decretado, educação como direito praticado.

No primeiro caso – a educação como direito consagrado – reporto-me aos grandes referenciais axiológicos e normativos, na sua maior parte com caráter genérico: declarações internacionais, convenções, pactos, constituições políticas dos países, que consagram o direito à educação enquanto valor, princípio ou orientação que há de, potencialmente, conhecer expressões mais concretas e definidas, seja na ordem jurídica, seja em textos posteriores de caráter injuntivo, seja em decisões políticas e estratégicas de variado alcance, seja ainda através da ação de atores concretos e em contextos específicos de ação. Porém, os impactos da educação como direito consagrado nas legislações ordinárias dos países, regiões, municípios e outras organizações autónomas são muito variáveis. O que significa que a educação como direito consagrado não garante, imediatamente, uma educação como direito decretado, até porque esta é sempre o resultado de uma decisão e de uma receção política contextualizada, a partir de ideários distintos e de forças políticas diversas, com as suas respetivas dinâmicas de poder. Não há, portanto, qualquer automatismo, ou pura reprodução normativa, entre a educação como direito consagrado e a educação como direito decretado, nesta como noutras áreas, da gestão democrática das escolas à participação democrática dos atores educativos. É, de resto, possível admitir que a educação como direito decretado na legislação ordinária de um determinado país, por exemplo, e num determinado momento histórico, possa, nuns casos ficar aquém da consagração da educação como direito e, noutros casos, ir além, ser mais ambiciosa e avançada, relativamente àquilo que se encontra consagrado nos grandes textos, muitos dos quais de circulação global.

A matéria torna-se mais complexa quando compreendemos que quer a educação como direito consagrado, quer a educação como direito decretado numa dada ordem jurídica, por mais relevantes que sejam não garantem, necessariamente, a educação como direito praticado. Refiro-me já não apenas ao plano das orientações para a ação, mas sobretudo ao plano da ação, em contextos organizacionais concretos onde a educação como direito é praticada, ou não (Lima, 1992, p. 148-175). A educação como direito consagrado e a educação como direito decretado inscrevem-se ambas, analiticamente, no plano das orientações para a ação. E, dessa feita, remetem para a ideia de direito à educação, ao passo que a prática efetiva desse direito à educação, no plano da ação, remete para a realização efetiva da educação como direito, em termos empíricos e não apenas jurídicos e formais, implicando assim não só uma natureza axiológica e legal, mas mais do que isso, uma tradução operacional em termos de ação organizacional, de governo e de gestão, de conteúdos, métodos, recursos, avaliação, etc. Ou seja, trata-se de uma realização efetiva, ainda que de formas diversas e em graus variados, da educação como direito, como complexo de práticas sociais democráticas e igualitárias.

Se a educação como direito praticado é influenciada pelo plano das orientações para a ação, sabemos, teoricamente e empiricamente, que não é nunca uma simples cópia, uma mera reprodução desse plano, como se fosse possível dispensar os atores e as práticas educativas concretas. E também por essa razão podem ocorrer situações nas quais a educação como direito praticado suplante, vá mais longe, venha mesmo a influenciar a educação como direito consagrado e como direito decretado. Isso poderá ser mais facilmente constatável em processos de mudança revolucionária, ou de transição democrática, em termos de regime político, como sucedeu, respetivamente, em Portugal e no Brasil no último quartel do século XX. Recorde-se, a título de exemplo, que a gestão democrática das escolas, durante a Revolução do Cravos, em 1974, conheceu um percurso inverso relativamente àquele que é geralmente considerado canónico do ponto de vista jurídico e formal: foi, em primeiro lugar, uma prática nas escolas (das periferias para o centro político), logo a partir dos primeiros dias após o 25 de abril, contra as orientações para a ação (consagradas e decretadas) produzidas pelos governos de António de Oliveira Salazar e de Marcello Caetano ao longo de quase meio século de regime autoritário; seguidamente, ainda durante o processo revolucionário, viria a ser objeto de reconhecimento a posteriori, sendo decretada por parte dos governos provisórios, embora de forma muito genérica e algo contraditória, em qualquer dos casos sem capacidade para vir a desmobilizar os atores educativos no plano da ação e suas respetivas práticas de autonomia de facto, redundando frequentemente em infidelidades normativas múltiplas (Lima, 2024) face a várias orientações governamentais; finalmente, a gestão democrática das escolas viria a ser consagrada como referência constitucional, apenas em 1976 e também a posteriori relativamente às práticas dos atores iniciadas a partir de abril e maio de 1974 e a certa legislação produzida durante o período revolucionário de 1974-1976.

Sem perder de vista a distinção, e as possíveis articulações e desarticulações relativas, entre as três categorias acabadas de propor, é sobretudo a partir da educação como direito praticado que se passará, aqui, a interrogar criticamente as dificuldades e os obstáculos que se vêm colocando a uma prática efetiva da educação como direito. Prática que exige uma educação democrática no contexto de outras políticas sociais democráticas, igualitárias e justas, através do combate às desigualdades injustas. Contudo, o atual contexto social, profundamente marcado por um mundo desigual, revela-se amplamente contraditório relativamente a uma educação democrática, à margem da qual não será possível realizar uma educação como direito humano.

Nas primeiras páginas da sua obra A tirania do mérito, o filósofo norte-americano Sandel (2020, p. 17) escreveu: “Estes são tempos perigosos para a democracia”. Com efeito, o ideal de bem comum tem sido desvitalizado, a xenofobia e o racismo são fenómenos recorrentes, o populismo nacionalista e os partidos de extrema-direita triunfam em vários contextos, as desigualdades sociais aumentam, as crises climática e pandémica mostram, com clareza, como os impactos são globais, afetando todos os cidadãos, mas de formas radicalmente desiguais.

Hoje, o projeto de uma educação democrática, compreendendo necessariamente a educação como direito praticado, a democratização dos conteúdos e dos processos pedagógicos, das formas de organização e gestão, de deliberação, dos processos de avaliação, da autonomia profissional de professores e educadoras, entre outros elementos, representa um objetivo central de uma sociedade mais democrática. Tanto mais quanto esse projeto se encontra atualmente em crise, revelando uma considerável erosão em termos democráticos, incluindo grandes organizações internacionais e supranacionais, as quais produzem discursos e orientações políticas mais comprometidos com objetivos económicos e de competitividade do que com objetivos substantivamente democráticos e igualitários. A própria democracia cognitiva é, à semelhança da democracia política, contrariada pelo regresso a teorias elitistas que se satisfazem com a democracia procedimental, com a igualdade de oportunidades formal, com o governo pelos especialistas e pelos números, concedendo protagonismo aos peritos e ao exercício de uma peritocracia (Lafont, 2020), mas cujas bases cognoscitivas residem, quase sempre, fora do campo científico e profissional da educação e da pedagogia. Para além da “corrosão da educação pública” que, como tem sido observado (Adrião; Venco, 2021), adota como elementos principais a privatização e a precariedade nas relações de trabalho, com manifestos impactos na educação como direito praticado.

Compreender criticamente os processos que vêm conduzindo a uma astenia democrática, a uma orientação instrumental e tecnocrática baseada num pretenso consenso cognitivo, científico e pericial, transformando a educação e a formação em ferramentas de engenharia social e de gestão das crises do capitalismo global, ou seja, numa espécie de terapia, representa uma agenda de pesquisa indeclinável; a menos que se insista numa educação “bancária” capaz de domesticar (Freire, 1975) o potencial crítico da educação, sob uma pós-democracia que Crouch (2004) vê como projetada a partir da empresa capitalista, tomada como arquétipo institucional. Uma pós-democracia que há muito foi definida por Rancière (1996, p. 104) como “a prática consensual do apagamento das formas do agir democrático”, ou como uma democracia consensual em “estado idílico” e com “conteúdo evanescente” (id., ibid., p. 99 e 102).

A educação como direito praticado é uma das formas daquele agir democrático, exigindo, designadamente, uma escola pública de massas e outras organizações educativas não escolares nas quais as diversidades deixem de ser consideradas como um problema para passarem a ser admitidas como uma solução. Uma solução em termos de reconhecimento, de expressão, de diálogo, de novas políticas sociais de combate a todas as desigualdades sociais injustas e discriminatórias. A realização do ideal de uma educação democrática e igualitária exigirá transformações sociais, de classe, de relações de poder, muito para além da educação, embora não podendo deixar de incluir a educação e a democratização das suas organizações, do seu governo, do currículo, da pedagogia e da didática, e, certamente, da avaliação. Obra complexa que pressupõe a democratização da economia e da sociedade, mas que essa democratização não garante imediatamente no campo da educação, como se tem observado, ignorando frequentemente a autonomia relativa desse campo e as suas dinâmicas próprias: umas vezes resistindo oligarquicamente e contornando potencialidades democráticas de políticas que poderiam vir a ser ampliadas no que à educação como direito praticado se refere; outras vezes, pelo contrário, não apenas viabilizando valores e práticas democráticos em contextos políticos desfavoráveis, mas também construindo, e eventualmente antecipando, alternativas educativas e pedagógicas mais democráticas, igualitárias e justas que, a seu modo, são contributos para a democratização política e social e para a constituição de cidadãos democraticamente ativos.

A Meritocracia como Obstáculo

São vários e consideráveis os obstáculos à educação como direito praticado, mesmo em regimes políticos democráticos, muitos dos quais obstáculos de ordem política, económica e social. De tal forma que, como observou Gentili (2009, p. 1067), somos confrontados com o paradoxo aparente de uma universalização do acesso à escola, mas sem direito à educação, fenómeno a que o autor chamou “universalização sem direitos”, destacando como obstáculos, na América Latina, a pobreza e a desigualdade, a segmentação e diferenciação escolares, bem como uma conceção privatista e economicista de educação. Elementos que conhecendo especificidades regionais e locais são, porém, bastante generalizados, especialmente aqueles que mais imediatamente se articulam com a chamada reforma global da educação, com a governação em rede de pendor neoliberal e gerencialista, e mais genericamente com aquilo que designei por uma pedagogia contra o outro (Lima, 2019). Uma pedagogia que recusa a sua politicidade, a história das ideias pedagógicas, as controvérsias entre distintas tradições e escolas, os debates filosóficos e antropológicos, e que, em última análise, se carateriza por uma espécie de consenso pós-pedagógico que dispensaria o debate e a crítica. É, por essas razões, uma pedagogia contra o outro também enquanto exercício de persuasão e convencimento, de rivalidade e competitividade, promovendo a impregnação empresarial da educação, a privatização lato sensu como princípio reformador assente nas “melhores práticas” da gestão empresarial, a hegemonia da educação e formação técnica e profissional, a desafeição pela gestão democrática e colegial das organizações educativas a favor de um lideracionismo técnico, eventualmente maximizado por um perfil carismático. Finalmente, baseia-se na defesa de derivas quantofrénicas e positivistas na avaliação de tudo e de todos, impondo uma educação contábil que permite mensurar, comparar e hierarquizar, indiferente às diferenças, às complexidades e às injustiças, recorrendo para esse efeito à ideologia meritocrática, ao seu resgate e à sua regeneração, a ponto de ressemantizar a meritocracia, que passará, no universo da educação, de uma conotação pejorativa inicial e de feição distópica para algo considerado desejável e mesmo indispensável. De certo modo, pode-se considerar que a pedagogia contra o outro se inscreve genericamente naquilo que Giroux et al. (2022) denominaram de “pedagogias da precariedade”, com o seu triunvirato formado pelo empreendedor, pelo aprendiz de competências, pelo professor como técnico de execução. Trata-se de prover mínimos educativos, mínimos democráticos e mínimos de proteção social, normalizando a competitividade, a insegurança e a precariedade, ou seja, o sofrimento do outro, dessa forma evacuando a esperança como necessidade ontológica (Freire, 1992) da educação e, já sem ela, recusando uma pedagogia das possibilidades e da transformação.

Em contexto meritocrático, nas suas relações com a competitividade, os padrões, a indiferença às diferenças, a avaliação em educação adquiriu uma nova centralidade. Bernard Charlot observou que para que seja possível construirmos uma Pedagogia Contemporânea – que segundo ele não temos, embora ela nos faça imensa falta –, através da qual a educação se assuma como uma forma de enfrentar a barbárie, será necessário começar pelo começo, por um primeiro ato: “o primeiro ato de rutura a ser lavada a cabo é uma recusa radical das atuais formas de avaliação, que são hoje a chave do sistema educacional porque lhe impõem a lógica da concorrência generalizada” (Charlot, 2023, p. 7). Afonso (2009, p. 26) já havia chamado a atenção para a necessidade de construir “[…] modelos verdadeiramente democráticos de accountability em educação”, associando a esse conceito três dimensões: avaliação, prestação de contas, responsabilização. Mas a concorrência generalizada é um dos esteios da pedagogia contra o outro, promovendo a rivalidade, a competição exacerbada, o governo pelo mérito, considerados marcadores da promoção da qualidade educacional pela “filantropia dos interesses e vozes de privatização” (Antunes; Peroni, 2023, p. 15-18). Esquecendo que a competição é uma prática contrária a uma educação humana (Adorno, 2000); que os resultados escolares são importantes mas que, no final, não deixam de ser subprodutos da educação (Dewey, 2007); que a democracia exige uma educação capaz de substituir a rivalidade pelo bem comum, pela solidariedade e pela cooperação (Petrella, 2002); que a “descompetitivização” da sociedade se revela hoje, em contextos de múltiplas formas de guerra, uma démarche urgente, para o que uma educação não “sobreadapatada” aos imperativos da economia capitalista constitui um contributo inalienável (Hessel; Morin, 2011). E contudo, tais esquecimentos já ocorrem também no mundo da educação, dividido entre democratização e remeritocratização; entre a diversidade sociocultural dos alunos e a estandardização monocultural da avaliação; entre a autonomia pedagógica de professoras e educadores e as práticas recentralizadas e de controlo remoto por parte das autoridades políticas e escolares; entre a aparente defesa de uma educação integral do ser humano e a produção de “capital humano”; entre inclusão e competitividade, de que resulta frequentemente uma “exclusão includente”, definida por Gentili (2009, p. 1061) como o “[…] processo mediante o qual os mecanismos de exclusão educacional se recriam e assumem novas fisionomias, no contexto de dinâmicas de inclusão e inserção institucional”.

Em suma, encontramo-nos em processo de transição de uma pedagogia democrática – nunca inteiramente realizada ou sucedida – para uma pedagogia contra o outro, sob impulso de novas pressões para a performatividade competitiva. Do que resulta uma educação empreendedorista, meritocrática, seletiva, potencialmente desumanizadora e eventualmente alienante. E assim, nos discursos políticos sobre educação, uma nova linguagem tem emergido, de forma aparentemente consensual e naturalizada: qualidade e excelência, melhores práticas e evidências, qualificações e competências, liderança de recursos humanos, competitividade e produtividade, empregabilidade e empreendedorismo. Trata-se, em geral, de categorias com baixa densidade teórica e quase sempre externas ao campo da educação, configurando a hegemonia de uma ideologia pós-pedagógica, tecnocrática, que tende a romper com o conceito de educação em termos humanistas democráticos.

É em tal contexto que o processo de “alunização” das crianças, dos jovens e dos adultos em formação, representa uma espécie de homogeneizador institucional e estatutário, a partir do qual toda a comparação, hierarquização e diferenciação socioeducativa se tornará legítima. As “variáveis” socioeconómicas, culturais, de género, de etnia, etc., deixariam, pretensamente, de interferir no processo de reconhecimento do esforço, da inteligência, do talento e dos dons. E assim aportamos ao continente das derivas meritocráticas que ganham relevo crescente na educação pública, impondo uma educação contábil, mensurável e competitiva, um dos maiores obstáculos à realização da educação como direito praticado. Uma deriva meritocrática que, além de tudo, é reforçada por discursos políticos e que parece vir a ganhar alguma adesão entre educadores profissionais, até pelo facto de, aparentemente, poder reforçar o seu poder através do recurso a formas tradicionais de avaliação sumativa; mesmo quando, por ser turno, essas formas avaliativas, sobretudo quando externas e estandardizadas, acabam igualmente por ter impactos na avaliação, no escrutínio e no controlo dos próprios docentes. Sendo assim, todos os indivíduos, uma vez na condição de alunos ou formandos, partilhariam o mesmo status e recursos idênticos, inerentes a esse estatuto; partiriam da mesma posição institucional, seriam detentores dos mesmos recursos estratégicos para, apenas através do seu esforço individual, alcançarem os resultados mais notáveis, caso em que os melhores deverão ser premiados e reconhecidos como exemplo, até para efeitos de emulação por parte dos outros. Como se não existissem “distorções do mérito académico”, ignorando que a “corrida meritocrática começa desde posições de partida não meritocráticas” (Mijs, 2016, p. 19). Ou seja, ignorando que essa corrida não pode ser justa, pois o critério de justiça é violado, desde o início, pelo regime meritocrático, uma vez que, como observou Sandel (2020, p. 122), “O ideal meritocrático não é remédio para a desigualdade; é uma justificação da desigualdade”.

Ignorando-se as classes sociais passa, contudo, a ser possível concentrar toda a atenção, de forma insular, no aluno/formando individualmente considerado, como se cada um pudesse ser libertado da sua classe social de origem através de uma igualdade de oportunidades todo-poderosa (Radnor; Koshy; Taylor, 2007, p. 296). Uma igualdade de oportunidades formal que legitimaria o fracasso e uma posição de chegada inferior no futuro ou, como há muito foi observado, que tornaria clara uma “igualdade de oportunidades para ser desigual” (Young, 1958, p. 103). No final, os bem-sucedidos ficarão convencidos de que mereceram atingir o êxito, tal como os fracassados tenderão a convencer-se de que mereceram fracassar, passando a interiorizar a culpa pelo facto de terem respondido à igualdade de oportunidades através da “desigualdade grosseira de resultados” (Lipsey, 2014, p. 37).

O mérito pressupõe o demérito e o caráter raro do primeiro, tal como a recompensa e o reconhecimento pressupõem a indiferença ou mesmo a punição. No limite, a excelência eleva-se bem acima da trivialidade e, sobretudo, da mediocridade. A ideologia meritocrática parte do princípio de que é justo o julgamento do mérito dos outros a partir do momento em que, primeiro, foi estabelecida a igualdade de oportunidades – essa “ficção necessária”, como lhe chamou Dubet (2008, p. 49) –, dessa feita atingindo uma justiça meritocrática (Mulligan, 2018, p. 3). Só não nos diz como se atinge, a priori, a igualdade de oportunidade não meramente formal, nem nos esclarece acerca dos limites democráticos, educativos e pedagógicos de tal prática.

Em todo o caso, a ideologia meritocrática é hoje um princípio reformador típico nas abordagens da Nova Gestão Pública e da Nova Governança, com impactos profundos na educação e nas escolas, no trabalho de alunos e de professoras, através de mecanismos de controlo pelos resultados, de competitividade entre classes, escolas, sistemas de ensino, de novas formas de organização e gestão das escolas e de suas lideranças, através da performatividade competitiva. O reconhecimento do mérito e, eventualmente, do trabalho para o atingir individualmente e para o fabricar institucionalmente, assentam na introdução de novas formas de governação inspiradas pelo mundo dos negócios. Alguns autores (como Brown e Tannock, 2009), falaram já da emergência de uma governação global pelo talento, congruente com a influência do neoliberalismo na educação; uma forma de meritocracia global que deixou o nacionalismo meritocrático para trás. A meritocracia contemporânea ignora as críticas seminais de Young (1958) às conceções individualistas, essencialistas e eugenistas, antes destacando a ambição pessoal e a inteligência, a competição como algo que deve ser encorajado logo a partir da escola, para além do seu caráter essencialmente individual (Allen, 2012, p. 371-377).

No início da década de 1970, Daniel Bell resgatou a meritocracia num contexto de valorização das competências técnicas na gestão de “recursos humanos”, na liderança exercida pelos melhores e mais capazes, no elogio da “hierarquia do intelecto”, tendo admitido que a sociedade pós-industrial seria “a extensão lógica da meritocracia”, ou seja, “a codificação de uma nova ordem social baseada, em princípio, na prioridade do talento educado” (Bell, 1972, p. 41). Para ele, tratava-se de uma “meritocracia justa”, assente num novo princípio de estratificação social e da qual resultava uma “autoridade merecida” (id., ibid., p. 64-68). Nesse sentido, a meritocracia não seria incompatível com a igualdade, nem com uma economia de mercado, segundo Miller (1996, p. 278-300), mas antes seria aceitável quando ocorresse em contextos institucionais e segundos princípios de igualdade. Pelo contrário, outros autores, como Litter (2013, p. 54), associaram meritocracia a plutocracia e a oligarquia, partindo da crítica a uma conceção inata e essencialista de inteligência e à construção de um sistema competitivo no qual a maioria ficaria para trás, incapaz de se suceder e, como tal, de se ver distinguida. Como é observado com base em exemplos ocorridos em Inglaterra (Litter, 2013, p. 61), foi sobretudo desde a década de 1990 que foram incrementadas as conexões estreitas entre meritocracia e neoliberalismo em educação, assim originando críticas ao ensino unificado e ao sistema de atribuição de bolsas de estudo, emergindo então os discursos sobre empreendedorismo, empregabilidade, competitividade e mercadorização da educação.

Cabe perguntar, com Dubet (2004, p. 540), o que seria uma escola justa? “Ser puramente meritocrática, com uma competição escolar entre alunos social e individualmente desiguais”, no contexto de um mundo desigual? E que, de resto, seria incapaz de diminuir as desigualdades? É exatamente aqui que emerge a “crueldade do modelo meritocrático”, quando os vencidos não são considerados vítimas, oprimidos, ou subordinados, mas antes responsáveis pelo seu fracasso, tendo sido incapazes de aproveitar as oportunidades que a educação lhes teria propiciado. E por isso Dubet (2024, p. 544) se questiona: “O mérito é outra coisa além da transformação da herança em virtude individual?”. E, insistindo, pergunta “Se não somos responsáveis pelo nosso nascimento, como sê-lo por nossos dons e aptidões”? Concluindo, após reflexão, que numa sociedade meritocrática “[…] o mérito pessoal é o único modo de construir desigualdades justas, isto é, desigualdades legítimas”, embora não impedindo que a meritocracia produza “sempre mais vencidos do que vencedores” (ibid., p. 545). Dessa forma a todos subordinando àquilo a que Sandel (2020) chamou a “tirania do mérito”, assim se disseminando a crença de que a educação funciona com base na metáfora do elevador social como sinónimo de mobilidade social ascendente através da educação, quando, referindo-se à educação superior na América, Sandel (2020, p. 169) concluiu, mas inversamente: “[…] é como um elevador num edifício em que a maioria das pessoas entra pelo topo”.

A meritocracia revela-se como uma ideologia que serve sobretudo os grupos de mais elevado status social e educacional, embora tenda a ser aceite também por grupos de baixo status enquanto possibilidade de mobilidade social futura, ou de justificação do seu lugar futuro num mundo desigual. Assim se legitimando as diferenças sociais e confirmando o papel de “reprodução” da escola, que há muito fora estudado por Bourdieu e Passeron (1970). Num contexto crescentemente meritocrático, sob discursos e práticas que chegam a ser semelhantes aos da alta competição desportiva e às respetivas metodologias de treino, agora frequentemente praticadas fora das escolas públicas, já não basta ser considerado excelente; é necessário parecê-lo e, mais importante ainda, fazer sabê-lo através de processos múltiplos e redundantes que até há poucos anos seriam vistos como hiperbólicos e ostentatórios. Atualmente, contudo, são considerados procedimentos necessários, em função das novas exigências sociais de celebração do mérito académico, tal como foi referido por alguns diretores escolares que estudamos noutro trabalho, aqui parcialmente retomado (Lima, 2017). A introdução de novos “rituais de distinção académica”, quase sempre dependentes de resultados escolares, mesmo quando a investigação encontra algumas referências dispersas a outros tipos de distinção baseados em valores e comportamentos (Torres; Quaresma, 2017, p. 23), mas que só raramente são praticados, reforça a orientação performativa e competitiva, também já apelidada de resultadista. São práticas orientadas pelo “direito a ser brilhante”, associadas a comportamentos não apenas individuais por parte dos alunos/formandos, mas também dependentes de estilos de vida, recursos financeiros e capital cultural e social das famílias, que extravasam os muros das escolas (Gillies, 2005). Ao invés, práticas parentais consideradas educacionalmente desqualificadas, culturalmente pobres, moralmente duvidosas ou reprováveis, por referência aos valores das classes média e alta, embora num quadro de análise que quase sempre se revela indiferente à estratificação social e aos conceitos de classe e de status, sugerem estratégias de distanciamento subtil, de exclusão escondida, ou, em alternativa, apontam para a necessidade de uma reeducação dos progenitores, funcionalmente adaptada aos quesitos da produção de resultados escolares no seio da escola competitiva e que persegue a excelência, subordinando-os ao papel de coadjuvantes dos educadores profissionais. Em termos mais gerais, operando uma “(re)naturalização do papel da família e das desigualdades” (Saforcada; Ximenes, 2024, p. 18).

Para além dos contextos educativos e estritamente pedagógicos, assiste-se a uma pedagogização genérica da vida social na qual a competição por talento na “economia do conhecimento” e da inovação é central e contribui para o reforço da ideologia meritocrática e da ideia de combate ao desperdício do talento. Mesmo que o elogio da meritocracia ocorra, contraditoriamente, em contextos nos quais a mobilidade social ascendente, por via escolar, revela novas dificuldades ou esteja, eventualmente, em declínio. Sendo certo que mais crianças e mais jovens oriundos da classe trabalhadora são hoje mais educados e considerados mais competentes, podendo por isso vir a almejar atingir o topo, esse topo não se encontra, correlativamente, em expansão. O desemprego estrutural, a precariedade no trabalho e a uberização, entre outros elementos típicos do novo capitalismo, são todos compatíveis com as perspetivas vocacionalistas e empreendedoristas, e ainda com o acréscimo de competências e de qualificações escolares disponíveis. Esses e outros elementos, frequentemente combinados, não garantem que crescentes números de indivíduos não pereçam perante as exigências sempre maiores que um novo homo eoconomicus enfrentará, impiedosamente, sob o risco de se tornar redundante, dispensável, supérfluo (Bauman, 2005).

Nota Final

O ensaio distópico sobre educação e igualdade que Michael Young publicou em 1958, intitulado “A ascensão da meritocracia”, compreendia um período que não só complementava o título da obra satírica e em estilo ficcional, como lhe fixava os limites temporais de um longo processo de construção e de desenvolvimento da meritocracia que ainda não atingimos cronologicamente (1870-2033). No seu final, o autor previa uma revolta contra a sociedade meritocrática e a sua respetiva elite, composta por ricos e poderosos que teriam passado a legitimar a sua posição através da meritocracia do talento. Então, a democracia seria apenas uma aspiração, governada não pelo povo, mas pelos mais inteligentes, selecionados por uma educação que seria um instrumento privilegiado de competição económica. E por isso Young se viu forçado, em 2001, a publicar no jornal The Guardian uma carta aberta dirigida ao primeiro-ministro britânico Tony Blair, na qual o autor que cunhou o termo meritocracia lhe recomendava que deixasse de o usar em tom positivo e propositivo, num tempo em que as desigualdades cresciam e a seleção educacional era reforçada. Proposta de difícil aceitação, quando a competição internacional entre economias era acompanhada e apoiada por uma competição também entre escolas, tal como Young (1958, p. 33) havia admitido, e quando o termo, originalmente associado a um mundo distópico, passava a ser apresentado sob fundo positivo e como promessa de realização de uma utopia desejada.

A educação como direito praticado não tem como ser exercida sem afrontar o mundo desigual que se lhe opõe, incluindo desde logo o mundo educativo desigual e meritocrático que foi historicamente construído e socialmente naturalizado, tendendo à reprodução das desigualdades que marcam indelevelmente as condições de partida dos sujeitos em contextos sociais que revelam a sua cegueira face às “diferenças transformadas em desigualdades” (Casa-Nova, 2013, p. 146). Uma educação democrática, mais igualitária e mais justa exigirá uma pedagogia e uma avaliação democráticas e não meritocráticas, não elitistas nem subjugadas à concorrência, à competição económica e à produção de competências apenas instrumentais. A educação e a avaliação das diversidades constituem tarefas difíceis e complexas, especialmente em contextos onde domina a racionalidade técnica, a padronização e a seleção, transformando as diversidades em desigualdades e instituindo o ideal meritocrático como forma de governo pelas e para as desigualdades justificadas. Nesse contexto, torna-se crucial reinventar a pedagogia democrática, revitalizando a pedagogia, hoje silenciada e em crise de legitimidade, e ainda revitalizando a democracia, atualmente em processo de profunda erosão, também nas próprias organizações educativas, perante novas formas de governação global que a dispensam ou que preferem optar por atalhos, por mínimos democráticos e por soluções meramente formais. De contrário, o governo da educação, a formação de educadores, o currículo, a avaliação, tenderão a ser vistos como problemas apenas técnicos, axiologicamente neutros e despojados de politicidade, carecendo sobretudo dos contributos da revolução digital, da boa governança e de líderes empreendedores. O que, no limite, mataria a pedagogia e, provavelmente, também as possibilidades de uma educação democrática assente no diálogo e na participação nas decisões por parte de cidadãos livres e educados, exercendo a sua autonomia e aprofundando as condições para o autogoverno das instituições educativas.

A crítica académica, socioeducativa, ética e política, revela-se incontornável perante os problemas enunciados, mesmo sabendo que não operará mudanças isoladamente nem imediatamente, mesmo entre professoras e educadores. Mas poderá desvelar as soluções atomizadas e falsamente inclusivas, a retórica do direito à educação através de estratégias socialmente diferenciadas, segmentadas, estigmatizantes. Ademais, revelando que a educação é vida, não sendo uma mera preparação para a vida futura, nem para um mundo cuja desigualdade se quer, de forma aquiescente e bem ajustada, perpetuar, designadamente através de uma educação desigual para um mundo desigual.

  • Financiamento através de fundos nacionais do Centro de Investigação em Educação, Instituto de Educação, Universidade do Minho. Projetos No: UIDB/01661/2020; UIDP/01661/2020.
  • Este texto adota a sintaxe e o léxico do português de Portugal, bem como a ortografia do Acordo Ortográfico de 1990, oficialmente em vigor naquele país, as quais foram rigorosamente mantidas.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Nov 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    09 Set 2024
  • Aceito
    02 Out 2024
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