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Retrato da escola no Brasil, sem retoques

IMAGENS & PALAVRAS

Retrato da escola no Brasil, sem retoques* * Resenha do livro organizado por Aída Maria Monteiro Silva e Márcia Ângela da Silva Aguiar (Brasília: CNTE, 2004).

Vera Lucia Sabongi De Rossi

Professora da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e membro do Grupo de Pesquisa "Memória, História e Educação". E-mail: derossi@mpc.com.br

Uma larga moldura preta realça as cores dos girassóis, árvores e pássaros que deslizam no céu azul. A bandeira nacional, imponente, está ondulante. Uma menina à porta da escola, bem vestida, parece suspirar realizada. Será que tentamos achar nas coisas que nos são preciosas o reflexo do que projetou nossa alma? Na verdade, fica difícil distinguir o seu rosto e devassar seus sonhos. Afinal, quem pode recusar-lhe o direito de entregar-se a eles sem obstáculos?

As cores cedem lugar ao branco e preto, quando deixamos para trás a ilustração da capa. Mas os sonhos permanecem nas palavras de Juçara Dutra Vieira, presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores do Brasil (CNTE), na Apresentação do livro - Retrato da escola no Brasil -, organizado por Aída Maria Monteiro Silva e Márcia Ângela da Silva Aguiar: "(...) Nosso desejo é o de construir um novo retrato da escola brasileira. Com o comprometimento de quem faz parte dela. Com a urgência de que a sociedade necessita".

Mesmo o compromisso e a projeção do desejo precisam de uma aliada forte, que hoje parece esquecida - embora no passado fosse considerada parte integrante da retórica -, a prova. Embora Aristóteles na Retórica tenha reagido à imprecisão da palavra pistis (prova), embora exista a linguagem mais modesta de evidence (testemunho), como prefere Perry Anderson e E. P. Thompson (entre outros), Ginzburg prefere a linguagem da prova, por ser a de quem submete os materiais de pesquisa a uma aferição permanente, provando e confirmando, como rezava a famosa divisa da Academia (científica fiorentina) del Cimento. Certamente caminhamos às apalpadelas, como o luthier que bate delicadamente, com os nós dos dedos, na madeira do violino: uma imagem que Marc Bloch contrapôs à perfeição mecânica do torno, para sublinhar o inextirpável componente artesanal do trabalho do pesquisador (Ginzburg, 2002, p. 13-14).

Para perceber a força dos ventos propícios, é importante retomar Juçara.

Com o nome de Retrato da escola no Brasil, a CNTE tem realizado investigações e produzido análises de dados colhidos por agentes diversos, voltados para a área de educação, bem como por instituições governamentais. A proposta do livro foi a de refletir sobre a contraposição e o cruzamento de fontes documentais extraídas primordialmente da pesquisa Retrato da escola 1 e 2, efetuada nos anos de 2000 e 2001, de autoria do INEP/MEC, que utilizou como base o banco de dados do saeb, referentes aos anos de 1995, 1997 e 1999.

Ao validar as provas, novamente é a vez de Ginzburg, os pesquisadores deveriam recordar que do ponto de vista da realidade, além de ser intrinsecamente seletivo e parcial, depende de relações de força que condicionam, por meio da possibilidade de acesso à documentação, a imagem total que uma sociedade deixa de si. É preciso levar em conta tanto as relações de força quanto aquilo que é irredutível a elas (idem, ibid., p. 43).

Para a obtenção dos resultados, afirma Juçara, foram feitos seminários com os oito autores dos artigos, que utilizaram outras fontes de pesquisa, o que ampliou a perspectiva analítica inicial e a confrontação de hipóteses. Ginzburg complementa, com toques decisivos:

A idéia de que as fontes, se dignas de fé, oferecem acesso imediato à realidade, ou pelo menos, a um aspecto da realidade, me parece rudimentar. As fontes não são nem janelas escancaradas, como acreditam os positivistas, nem muros que obstruem a visão, como pensam os céticos: no máximo poderíamos compará-las a espelhos deformantes. A análise da distorção específica de qualquer fonte implica já um elemento construtivo. (Ginzburg, op. cit., p. 44)

À primeira vista, o leitor pode estar pensando que o suposto diálogo sobre este tema diz respeito apenas ao pequeno círculo de especialistas: historiadores, filósofos, sociólogos e estudiosos de metodologia. Mas esta é uma aparência muito enganosa, explica Ginzburg. A discussão sobre história, retórica e prova, levanta uma questão bastante complexa, implica uma concepção do modo de proceder, que interessa a todos: a convivência e o choque de culturas que permanece cada vez mais dramático e violento, nos dias de hoje, em todo o mundo (idem, ibid., p. 13-14). Na verdade, corremos sérios riscos quando aceitamos a premissa da incompatibilidade entre retórica e prova. Entre eles, encontra-se o da tendência de fragmentar o conhecimento e a vida social numa série de pontos de vista incomunicáveis, nos quais cada grupo se vê murado no interior de sua própria relação com o mundo. O uso inteligente do contexto faz emergir o anacronismo, escrito com tinta invisível; em contrapartida, não podemos descartar a capacidade de o gênero humano fazer aparecer e desaparecer a realidade, como se num simples gesto ligasse e desligasse o televisor (idem, ibid., p. 39-43).

Até então, tentei alinhavar os diferentes artigos a partir de uma de suas semelhanças fundamentais, a do compromisso de os autores considerarem criticamente as fontes advindas da base de dados do CNTE e de outras fontes documentais que explicitam ao longo do texto. Agora, pretendo apresentar um breve panorama das diferenças, ou seja, das peculiaridades dos artigos - contidas em seus objetivos principais -, lembrando que o livro certamente merece uma leitura atenta e delicada do público leitor.

Oito autores desdobram diversas temáticas que haviam sido condensadas em cinco relatórios abrangendo questões sobre infra-estrutura, gestão democrática, trabalhadores em educação, drogas e violência e qualidade da educação.

Carlos Augusto Abicalil, em seu artigo sobre Avaliação, direito e democracia, resgatou o Estado republicano pretendido pela sociedade brasileira, tal como se expressa na Constituição Federal - a educação nacional na perspectiva do direito, de seus princípios e finalidades; a organização formal da educação básica - e apresentou as interfaces entre a herança, a reivindicação e a construção histórica posta por educadores. Caracterizou as bases da reforma educacional imposta e impostora, seus elementos constitutivos, tais como financiamento, formação, carreira currículo, avaliação e gestão.

Luiz Augusto Passos produziu o Retrato bem temperado da cultura escolar brasileira e refletiu sobre as dimensões da cultura na realidade escolar brasileira, adentrando no conceito de cultura na tradição grega e moderna e explicitando seu vínculo com a escola. Servindo-se das pesquisas da CNTE - acerca da violência nas escolas - questionou hiatos e limites advindos do perfil sintomático e amostral utilizado pelo MEC.

Luiz Fernandes Dourado, em Gestão democrática da escola: movimentos, tensões e desafios, situou a concepção de gestão presente na área educacional, especialmente o debate sobre o processo de gestão democrática da escola, desencadeado no país. Apresentou a educação como um campo de disputa de projetos e compreende o processo constitutivo e constituinte das relações sociais mais amplas.

Helena Costa Lopes de Freitas escreveu sobre A formação inicial e continuada dos profissionais da educação. Seu artigo traz reflexões do movimento dos educadores, envolvidos no debate sobre as políticas atuais de formação dos profissionais da educação e também os embates nos planos teórico-práticos presentes que desvelam concepções de projetos históricos.

O trabalho dos educadores foi escrito por Maria Isabel de Almeida, com o objetivo de compreender o que está acontecendo com os atuais professores e de colocar em evidência seus objetivos e suas tarefas, para favorecer a sua ação. Discutiu as transformações sociais no contexto do trabalho da escola para entender o conjunto dos problemas escolares como problemas sociais, e vice-versa.

Márcia Ângela da Silva Aguiar, em A reforma da educação básica e as condições materiais das escolas, problematizou as condições materiais, em especial as condições de infra-estrutura, das instituições escolares no âmbito das medidas de política direcionadas à gestão escolar.

Aída Maria Monteiro Silva, em Violência escolar: negação dos direitos humanos e da formação da cidadania, escreveu sobre a violência escolar no sentido de compreender a relação desta com a não-materialização dos direitos básicos. Ao investigar como a violência é percebida pelos atores das escolas, alertou sobre alternativas para seu enfrentamento.

Regina Vinhaes Gracindo, em Projeto político e pedagógico: retrato da escola em movimento, fez uma análise histórica e contextualizada do PPP, entendendo-o como forma de planejamento no processo de gestão democrática, para a construção de uma escola democrática, de qualidade socialmente referenciada.

Antes de finalizar, vou destacar mais uma semelhança presente nos artigos, por sinal nada corriqueira na atualidade: a da capacidade propositiva dos autores, ou seja, de abertura de perspectivas teórico-práticas para a formulação de políticas públicas, com potencialidades para alterar o retrato da escola. Seguem algumas das propostas, extraídas aleatoriamente, dos diferentes artigos:

Outro retrato da escola é possível desenhar a partir das lutas sociais em defesa de um projeto de educação pública, gratuita e de qualidade, que leve em conta as necessidades e demandas da sociedade brasileira na contemporaneidade. (Aguiar, p. 137)

Apostar num outro Brasil possível requer uma ação necessária para atuar na denúncia aberta e no anúncio de alternativas socialmente válidas e politicamente sólidas, será necessária uma conduta fundada nos imperativos éticos de resistência. (Abicalil, p. 26)

(...) Estimular a formação de redes múltiplas de experiências (troca de informações entre aquelas unidades escolares com projetos político-pedagógicos similares construídos pela comunidade. (Passos, p. 57)

Pensar a democratização na e da escola implica articular outros mecanismos e participação. Implica, portanto, a construção de um Projeto Político-Pedagógico, a consolidação dos conselhos escolares e grêmios estudantis, a luta pela progressiva autonomia da escola, entre outros mecanismos. (Dourado, p. 78)

O PPP precisa ser democrático (...) com o envolvimento de todos os segmentos da escola: direção professores, funcionários, alunos, pais e comunidade (...). O PPP será o retrato das políticas estabelecidas em nível escolar (...) será o retrato da escola. (Gracindo, p. 174)

Dar proteção aos jovens, professores, pais; manter a infra-estrutura de iluminação perto da escola em bom estado; controlar a venda de bebida alcoólica a menores nas proximidades da escola; controlar e proibir a circulação de drogas ilícitas (...). (Silva, p. 158)

A idéia de desenvolvimento profissional permite redimensionar a prática profissional do professor, colocando-a como resultante da combinação entre o ensino realizado por ele e sua formação contínua, permeada pelas condições concretas que determinam a ambos (...). (Almeida, p. 116)

O campo da formação de professores está exigindo a definição de uma política global de formação e valorização do magistério que contemple igualmente a formação inicial, as condições de trabalho, a carreira e a formação continuada (...). (Freitas, p. 97)

Articulação das três esferas públicas para a definição de melhoria das condições físicas materiais das escolas públicas, envolvendo trabalhadores(as) e que levem em consideração as necessidades educacionais efetivas, os interesses e as necessidades da população e os recursos disponíveis. (Aguiar, p. 137)

Há mais um testemunhador bastante atual, embora de longa data, que parece não estranhar boa parte do retrato acima desenhado:

Certas manhãs quando desço do bonde para o centro da cidade, naquelas manhãs em que, no dizer do poeta, um arcanjo se levanta dentro de nós; quando desço do subúrbio, vou vendo, pelo longo do caminho de mais de dez quilômetros, as escolas públicas povoadas. (...) uma grande quantidade de meninas anualmente disputa a entrada na escola normal. (...) procurando com isso aprender para ensinar, o quê? O curso primário, as primeiras letras a meninos e meninas pobres, no que vão gastar sua mocidade, a sua saúde e fanar sua beleza. (...)

Nossa política, que domina nossa edilidade (...) tem por fim fazer a vida incômoda e os povos infelizes e os seus partidos têm por programa um único: não fazer nada de útil. Admiro que os senhores que entendem de instrução pública não digam nada a respeito. (...) pois o remédio, que julgo tão simples, pode não sê-lo; mas espero despertar a atenção dos entendidos e serão eles capazes de achar um bem melhor. Ficarei muito contente e tenho esperança que tal se dê.

Bagatelas (RJ), 3/5/1918, Lima Barreto (1995, p. 13, 18 e 19).

Referências bibliográficas

GINZBURG, C. Relações de força: história, retórica, prova. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

BARRETO, L. Lima Barreto: crônicas escolhidas. São Paulo: Ática, 1995.

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    Resenha do livro organizado por Aída Maria Monteiro Silva e Márcia Ângela da Silva Aguiar (Brasília: CNTE, 2004).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      29 Maio 2006
    • Data do Fascículo
      Abr 2006
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