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“LEITURA DO MUNDO” E EDUCAÇÃO EM PAULO FREIRE

“READING OF THE WORLD” AND EDUCATION IN PAULO FREIRE

LECTURA DEL MUNDO” Y EDUCACIÓN EN PAULO FREIRE

RESUMO

O artigo tem por objetivo examinar os sentidos e aplicações que se podem aferir da expressão “leitura do mundo” na obra de Paulo Freire e considerar o limite do uso dessa expressão, bem como sua contextualização. Para tanto, organizamos a discussão em duas sessões: a primeira trata da emergência do pensamento freireano e a consciência de pertencimento ao mundo; a segunda trata da compreensão freireana de “leitura do mundo”, considerando especialmente a relação entre de leitura e as ações de ler e estudar na perspectiva desse autor.

Palavras-chave
Paulo Freire; Leitura; Leitura do mundo; Educação

ABSTRACT

The article aims to examine the meanings and applications that can be inferred from the expression “reading of the world” in Paulo Freire’s work, and to discuss the limits of the use of this expression, as well as its contextualization. Therefore, we organized the discussion in two sessions: the first deals with the emergence of Freire’s thinking and the awareness of belonging to the world; the second deals with Freire’s understanding of “reading of the world”, especially considering the relationship between reading and the actions of read and study from the perspective of this author.

Keywords
Paulo Freire; Reading; Reading of the world; Education

RESUMEN

El artículo tiene por objetivo examinar los significados y aplicaciones que se pueden inferir de la expresión “lectura del mundo” en la obra de Paulo Freire y considerar los límites del uso de esta expresión, así como su contextualización. Por ello, organizamos la discusión en dos sesiones: la primera trata del surgimiento del pensamiento de Freire y la conciencia de pertenencia al mundo; la segunda trata de la comprensión de Freire de “lectura del mundo”, especialmente considerando la relación entre la lectura y las acciones de leer y de estudiar desde la perspectiva de este autor.

Palabras clave
Paulo Freire; Lectura; Lectura del mundo; Educación

Introdução

“Leitura do mundo” é uma das expressões freireanas – como “dialogia”, “relação educador-educando”, “conscientização”, “saber da experiência feito” – que ganharam amplitude e se tornaram pilar conceitual ou argumento relevante em uma infinidade de trabalhos e propostas pedagógicas, tanto de educação quanto de movimentos sociais. Uma breve busca na Web usando “leitura do mundo” como palavra-chave permite encontrar dezenas de trabalhos em que a expressão aparece associada a diferentes temas, muitos dos quais sequer fazem referência a Freire ou pouco consideram as obras do autor em que o conceito se apresenta.

Com frequência, tais estudos operam com a ideia genérica de “leitura de mundo”1 1 O termo comumente utilizado por Paulo Freire é “leitura do mundo”, embora ocasionalmente apareça em alguns de seus textos “leitura de mundo”, aparentemente por descuido editorial; grafamos “leitura de mundo” neste caso para chamar a atenção a esse equívoco interpretativo frequente em trabalhos que tomam como referência o conceito freireano, desconsiderando a diferença de efeito argumentativo que o artigo definido implica. Em todas as outras situações, usamos “leitura do mundo”. como percepção do real, experiência de vida, compreensão ou significação de algo, tomando por base – explícita ou não – a afirmação disseminada de que “a leitura do mundo precede a leitura da palavra” (FREIRE, 1982aFREIRE, P. A importância do ato de ler. A importância do ato de ler – em três artigos que se completam. São Paulo: Cortez, 1982a., p. 9). Na consulta que realizamos e na qual rapidamente identificamos mais de vinte textos, percebemos que os estudos que usam esse argumento tematizam assuntos tão diversos como alfabetização de crianças, educação de jovens e adultos, formação do leitor, meio ambiente, comunicação, ensino de química, de geografia, de ciências, de artes. Em comum, trazem como fundamento uma certa ideia de educação interdisciplinar e formativa, bem como a recusa à educação instrucional, sem que se considere com propriedade o que é educação crítica.

É nosso entendimento que, não obstante o entusiasmo pedagógico e a manifestação de um desejado compromisso com a educação, a apropriação aligeirada de conceitos e sua utilização quase ingênua, quando não epistemologicamente caótica, produz percepções equivocadas tanto do que é leitura como da própria noção de educação, limitando-se ao senso comum. Neste artigo, examinamos – por meio do estudo extenso e cuidadoso da obra de Paulo Freire – os sentidos e aplicações que se podem aferir de “leitura do mundo” e advertimos sobre o limite de uso dessa expressão.

Organizamos a exposição em duas sessões: na primeira, buscamos focar na emergência do pensamento freireano e em sua contextualização no campo da pedagogia crítica; na segunda, examinamos como Paulo Freire compreende “leitura do mundo” e de que forma ela se insere em seu pensamento e interage com a questão da leitura propriamente.

A Emergência do Pensamento Freireano e a Consciênciade Pertencimento ao Mundo

A proposta freireana de educar emerge no cenário político e pedagógico dos anos 1960, quando o mundo experimentava, ao lado da Guerra Fria e do predomínio de duas potências totalitárias, forte movimento libertário, aí incluído um importante movimento cristão que se consolidaria na teologia da libertação. Ao mesmo tempo, as Ciências Humanas – Educação, Psicologia, Sociologia, Antropologia – constituíam novos paradigmas, indicando o protagonismo do sujeito no processo de aprendizagem e propondo metodologias de ensino que questionavam os modelos tradicionais, baseados na aquisição de conhecimento por exposição ostensiva e repetição.

Paulo Freire destacou-se no cenário político-educacional da época com uma proposta de educação de adultos – alfabetização – que submetia o ensino e a aprendizagem da escrita à tomada de consciência pelo “educando” de si e do mundo, proposta na qual se assumia categoricamente o reconhecimento de que o sentido de aprender algo – no caso, alfabetizar-se – está intrinsecamente relacionado com o propósito de poder agir no mundo, de forma a modificá-lo. À educação da dominação (“educação bancária”), contrapunha a educação para a libertação – feita com os oprimidos: “‘Quero aprender a ler e a escrever para mudar o mundo’ [é] a afirmação de um analfabeto paulista para quem, acertadamente, conhecer é interferir na realidade conhecida” (FREIRE, 1967FREIRE, P. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967., p. 112).

Seu pensamento – e essa é uma marca que atravessou sua trajetória – recusava peremptoriamente qualquer fantasia idealista, assumindo a concretude histórica da condição humana. Em Pedagogia do Oprimido (FREIRE, 1968FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1968.), sua obra de maior impacto, redigida durante o exílio no Chile entre 1967 e 1978, observa que

[...] a educação como prática da liberdade, ao contrário daquela que é prática da dominação, implica na negação do homem [e da mulher] abstrato, isolado, solto, desligado do mundo, assim também na negação do mundo como uma realidade ausente dos homens [e mulheres]. A reflexão que propõe, por ser autêntica, não é sobre este homem [e mulher] abstração nem sobre este mundo sem homem [ou mulher], mas sobre os homens [e as mulheres] em suas relações com o mundo. Relações em que consciência e mundo se dão simultaneamente. Não há uma consciência antes e um mundo depois e vice-versa

(FREIRE, 1968FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1968., p. 45).2 2 Nesta citação e em outras, Freire utiliza o termo “homem” como expressão genérica para identificar a pessoa humana; em respeito a seu pensamento e ao reconhecimento de que, em obras posteriores, ele questiona a lógica machista dessa expressão, optamos por inseri “mulher” ao lado de “homem”, evidenciando que se fala de pessoa humana e não de uma parte da humanidade – os homens.

No esforço de compreender os homens e as mulheres – o humano em sua história –, bem como no empenho em fundamentar teórica e epistemologicamente sua ideia de “conscientização”, Freire busca a compreensão da consciência mesma de que cada indivíduo – mas também as classes sociais – dispõe de si e do mundo.

E se, na condição de alheamento histórico em que se encontrava a gente do campo (“zonas fortemente atrasadas do país”), isolada e presa na história, Freire (1967, p. 58)FREIRE, P. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967. reconhece uma consciência intransitiva – a qual “representa um quase incompromisso entre o homem [e a mulher] e sua existência”, porque adstrito “a um plano de vida mais vegetativa, com áreas estreitas de interesses e preocupações”, de modo que lhe escapa “a apreensão de problemas que se situam além de sua esfera biologicamente vital” –, quando considera a condição da vida urbana, industrial, postula uma estado de consciência transitiva, a qual

[...] amplia o seu poder de captação e de resposta às sugestões e às questões que partem de seu contorno e aumenta o seu poder de dialogação, não só com o outro homem [mulher], mas com o seu mundo [...]. Seus interesses e preocupações, agora, se alongam a esferas mais amplas do que à simples esfera vital

(FREIRE, 1967FREIRE, P. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967., p. 59).

Um novo e profundo paradoxo manifesta-se nessa condição: a mudança de estado e de ser da sociedade, que adviria do espaço de ampliação da consciência consequente da maior mobilidade e de condições de existência, produz outra e mais severa alienação. A consciência transitiva, limitada a si mesma e aos modos da vida comum do mundo moderno, mostra-se “preponderantemente ingênua”, marcando-se “pela simplicidade na interpretação dos problemas”, com “tendência a julgar que o tempo melhor foi o tempo passado”. Em função da massificação, essa transição apresenta “forte inclinação ao gregarismo”, à “impermeabilidade à investigação”, ao que corresponde ao “gosto acentuado pelas explicações fabulosas”, à “fragilidade na argumentação” e ao “forte teor de emocionalidade”. Nesse sentido, não produz propriamente o diálogo, mas a polêmica, voltando-se para “explicações mágicas”.

É exatamente esta distorção da transitividade ingênua – no caso de não promovida à transitividade crítica, que levará o homem ao tipo de consciência que Marcel chama de “fanatizada” [...]. Eis aí um dos grandes perigos, das grandes ameaças, a que o irracionalismo sectário nos está conduzindo

(FREIRE, 1967FREIRE, P. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967., p. 59).3 3 Impossível não associar essa percepção de Freire aos aspectos fascistas – negacionistas, sectários e egoístas – que informam o atual movimento reacionário mundial e que, no Brasil, se realizam completamente no bolsonarismo e nas articulações totalitárias de todo o mundo.

Essa forma de consciência – que condiz com a escola e a educação adequadas ao modo produtivo e às relações de poder estabelecidas pelo capitalismo na contemporaneidade – não eleva o humano à condição de liberdade (“matriz verdadeira da democracia”). Outrossim, evidencia que a consciência crítica não brotará espontaneamente, mas apenas por meio da ação política consistente, da qual a educação é parte. Freire tem plena percepção de que a condição de opressão não mudará por causa da educação revolucionária, embora essa tenha um papel a cumprir.

A criticidade para nós implica na apropriação crescente pelo homem de sua posição no contexto. Implica na sua inserção, na sua integração, na representação objetiva da realidade. Daí a conscientização ser o desenvolvimento da tomada de consciência. Não será, por isso mesmo, algo apenas resultante das modificações econômicas, por grandes e importantes que sejam. A criticidade, como a entendemos, há de resultar de trabalho pedagógico crítico, apoiado em condições históricas propícias

(FREIRE, 1967FREIRE, P. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967., p. 60).

No ensaio “Ação cultural para a libertação”, produzido no mesmo período (1969) e publicado no Brasil anos mais tarde como capítulo do livro Ação Cultural para a Liberdade e Outros Escritos (FREIRE, 1976aFREIRE, P. Ação cultural para a libertação. Ação cultural para liberdade e outros escritos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976a.), o educador retoma essa análise operando com os conceitos de “consciência semi-intransitiva”, “consciência transitivo-ingênua” e “consciência crítica”, a última correspondendo ao estágio em que os oprimidos se assumam como “classe para si”.

Baseada em mitos, a ação cultural para a dominação não problematiza a realidade. Na ação cultural [para a libertação] problematizante, a realidade anunciada é o projeto histórico a ser concretizado pelas classes dominadas, em cujo processo a consciência semi-intransitiva como a ingênua são sobrepassadas pela consciência crítica – “máximo de consciência possível”

(FREIRE, 1976aFREIRE, P. Ação cultural para a libertação. Ação cultural para liberdade e outros escritos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976a., p. 67).

Anos mais tarde, já em um momento histórico distinto, embora não menos dominado pelo autoritarismo, em Pedagogia da Autonomia (FREIRE, 1996FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.), Freire revisita a questão da consciência, explorando o princípio da “curiosidade” humana.4 4 Embora em trabalhos anteriores já se apresentem a ideia de curiosidade e a expressão “curiosidade crítica”, parece-nos que é nesta obra que se encontra claramente a exposição do princípio da curiosidade e sua caracterização.

Novamente, verificam-se, por assim dizer, diferentes estados de consciência. Para tanto, retoma o princípio da inconclusão do ser humano – já presente em Pedagogia do Oprimido (FREIRE, 1968FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1968.) e fortemente reafirmado em Pedagogia da Esperança – Reencontro com a Pedagogia do Oprimido (FREIRE, 1992FREIRE, P. Pedagogia da esperança: reencontro com a Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.) –, segundo o qual homens e mulheres estão “num permanente movimento de procura”. A “curiosidade”, inerente à condição de existência, implica o movimento de indagar e indagar-se, um “fenômeno vital” sem o qual “não haveria criatividade”, visto que é “a curiosidade que nos move e que nos põe pacientemente impacientes diante do mundo que não fizemos, acrescentando a ele algo que fazemos” (FREIRE, 1996FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996., p. 15).

Isso não significa que ela não se diferencie quando se consideram as formas de ser no mundo. Assim, em função das formas de os sujeitos experimentarem a vida, a curiosidade pode fazer-se “ingênua”, passando a “crítica”, em função da própria ação indagadora, alcançando sua realização plena como “epistemológica”, quando se consubstancia o “conhecimento cabal do objeto”, de modo que, “quanto mais criticamente se exerça a capacidade de aprender, tanto mais se constrói e desenvolve a ‘curiosidade epistemológica’” (FREIRE, 1996FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996., p. 13).

Freire insiste na observação de que, tanto em uma quanto em outra forma, a curiosidade é a expressão de um mesmo movimento constitutivo da subjetividade: “a curiosidade ingênua [...] é a mesma curiosidade que, criticizando-se, aproximando-se, de modo metodicamente rigoroso do objeto cognoscível, se torna curiosidade epistemológica”. Por isso, reforça que a diferença entre elas é de “superação” e não de “ruptura”, realizada por meio da “criticização” daquela que, “ao criticizar-se, tornando-se curiosidade epistemológica, metodicamente ‘rigorizando-se’ na sua aproximação ao objeto, conota seus achados de maior exatidão” (FREIRE, 1996FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996., p. 15).

Sem dúvida, essa maneira de perceber o modo como a gente se faz, se põe e se percebe no mundo mostra um olhar que se quer sensível ao comum da vida e à sua expressão no senso comum – “o saber de pura experiência feito” – próprio da curiosidade ingênua, reforçando a incompletude do ser humano e sua abertura para o conhecimento. A aposta pedagógica é a de que o aluno, provocado pela reflexão que se produz na relação verdadeiramente dialógica, ampliaria sua percepção do mundo, aproximando-se, primeiro, da curiosidade crítica e, depois, da curiosidade epistemológica.

A dialogicidade verdadeira, em que os sujeitos dialógicos aprendem e crescem na diferença, sobretudo, no respeito a ela, é a forma de estar sendo coerentemente exigida por seres que, inacabados, assumindo-se como tais, se tornam radicalmente éticos

(FREIRE, 1996FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996., p. 31).

Disso resulta que não há como, no estabelecimento e no desenvolvimento de “relações político-pedagógicas com os grupos populares, desconsiderar seu saber de experiência feito; sua explicação do mundo de que faz parte a compreensão de sua própria presença no mundo” (FREIRE, 1996FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996., p. 42), sempre com a aguda percepção de que isso exige esforço e de que “a leitura do mundo feita a partir da experiência sensorial não basta” (FREIRE, 1997bFREIRE, P. Professora sim, tia não – cartas a quem ousa ensinar. São Paulo: Olho d’Água, 1977b., p. 21).

A mesma posição Freire já assumira na Pedagogia do Oprimido, quando observa que “nosso papel não é falar ao povo sobre a nossa visão do mundo, ou tentar impô-la a ele, mas dialogar com ele sobre a sua e a nossa” (1968, p. 55); e o fez outra vez na Pedagogia da Esperança, quando reforça que o princípio da dialogia supõe a afirmação da voz e da experiência dos interlocutores, de maneira que, no diálogo, um não se reduza ao outro, mas, ao contrário, se afirmem de tal modo que “a relação de conhecimento não termina no objeto, [mas] se prolonga a outro sujeito, tornando-se, no fundo, uma relação sujeito-objeto-sujeito” (FREIRE, 1992FREIRE, P. Pedagogia da esperança: reencontro com a Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992., p. 61).

Há que destacar que o aspecto quase poético com que Freire referiu-se ao senso comum (“o saber de pura experiência feito”), associado à afirmação da imposição pedagógica de o professor respeitar o saber do aluno, glamouriza o conhecimento espontâneo e o próprio senso comum, como que autorizando certa interpretação idealista e subjetivista da cultura popular e das formas de conhecer e valorar de cada pessoa. Contudo, o próprio autor, com a mesma frequência com que adverte sobre o imperativo de respeitar o outro, sua compreensão de mundo e seus desejos e necessidades como única forma de realizar uma educação de liberdade, observa que

[...] a prática docente crítica, implicante do pensar certo, envolve o movimento dinâmico, dialético, entre o fazer e o pensar sobre o fazer. O saber que a prática docente espontânea ou quase espontânea, “desarmada”, indiscutivelmente produz é um saber ingênuo, um saber de experiência feito, a que falta a rigorosidade metódica que caracteriza a curiosidade epistemológica do sujeito

(FREIRE, 1996FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996., p. 21).

Dessa forma, assim como a transformação da consciência transitivo-ingênua em consciência crítica não é espontânea ou automática, tampouco é natural a superação da curiosidade ingênua e sua constituição em curiosidade epistemológica. Tal dinâmica está sob constante ameaça. Daí que o respeito ao senso comum no processo de sua superação deve ser acompanhado da promoção da atividade criadora do aluno e do compromisso com a consciência crítica, cuja superação da ingenuidade não é automática nem imediata.

Contra toda a força do discurso fatalista neoliberal, pragmático e reacionário, insisto, sem desvios idealistas, na necessidade da conscientização. Insisto na sua atualização. Na verdade, enquanto aprofundamento da “prise de conscience” do mundo, dos fatos, dos acontecimentos, a conscientização é exigência humana, é um dos caminhos para a posta em prática da curiosidade epistemológica. Em lugar de estranha, a conscientização é natural ao ser que, inacabado, se sabe inacabado

(FREIRE, 1996FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996., p. 28).

Ao explicitar em que consiste a educação problematizadora, Freire defende a importância essencial da “conscientização” e afirma que o diálogo é condição necessária para alcançá-la, insistindo que tal diálogo seja profundamente comprometido, de forma indissociável, com a humanização dos sujeitos e com a transformação do mundo. Disso decorre a percepção de que a “educação problematizadora” não cabe no “fixismo reacionário”, porque aponta a “futuridade revolucionária” e, consequentemente, adquira caráter profético e, como tal, “esperançoso”.

Não há idealismo nisso, embora se reconheça em seu argumento uma humanidade que, em certa medida, afirma-se em si mesma, pela condição inerente de manifestação do espírito, em uma perspectiva de inspiração fenomenológica e embasada no humanismo cristão radical. De todo modo, não é algo que se dá espontaneamente, mas, ao contrário, como consequência de uma educação que, reconhecendo a condição histórica das pessoas humanas, se identifique com elas como “seres mais além de si mesmos — como ‘projetos’ —, como seres que caminham para frente, que olham para frente” (FREIRE, 1996FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996., p. 47).

Freire insiste que, na dialogia, o ponto de partida está na gente mesma, mas adverte, repetidamente, rechaçando qualquer viés ingênuo, que não há homens ou mulheres sem mundo, sem realidade, de modo que o movimento sempre parte das relações pessoas-mundo, sendo os pontos de partida o aqui e agora que constituem a situação em que as pessoas se encontram: é “somente a partir desta situação, que lhes determina a própria percepção que dela estão tendo, que podem mover-se”, sem com isso entender que tal condição implica imobilismo: “para fazê-lo, autenticamente, é necessário que a situação em que estão não lhes apareça como algo fatal e intransponível, mas como uma situação desafiadora, que apenas os limita” (FREIRE, 1996FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996., p. 48).

A percepção ingênua ou mágica da realidade da qual resultava a postura fatalista cede lugar a uma percepção que é capaz de perceber-se e que, por ser capaz de perceber-se enquanto percebe a realidade que lhe parecia inexorável, é capaz de objetivá-la. Aprofundando a tomada de consciência da situação, os homens e as mulheres se “apropriam” dela como realidade histórica, fazendo-se capazes de transformá-la” (FREIRE, 1968FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1968., p. 48).

Compreensão Freireana de “Leitura do Mundo” e “Leitura da Palavra”

A Leitura do Mundo

Eis o enunciado, que pode ser considerado marco original da ideia de “leitura do mundo” cunhada por Paulo Freire: “A leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquele” (FREIRE, 1982aFREIRE, P. A importância do ato de ler. A importância do ato de ler – em três artigos que se completam. São Paulo: Cortez, 1982a., p. 9).

De fato, o uso frequente de “leitura” no debate pedagógico é aquele em que, por projeção metafórica, se oferece a ela a significação com base em observações e vivências pessoais – a leitura que a pessoa faz das coisas que vê, de processos que se passam em seu entorno, do que lhe acontece –, aproximando-se, às vezes referidamente, da “leitura do mundo” de que fala Freire, tomando-a como equivalente de leitura ampliada, aberta e sempre verdadeira e legítima.

Freire, contudo, traz problematização muito distinta dessa apropriação ingênua. Rechaçando a educação instrumental e autoritária e denunciando a dominação e a alienação características da educação bancária, vincula de forma estrita a aprendizagem da leitura-escrita à condição de cada um, e do coletivo, de dizer aquilo que é seu projeto de mundo e de vida, intervindo na sociedade e transformando-a de modo a fazê-la justa e democrática. Nesse sentido, a leitura do mundo seria a percepção mesma da vida-vivida, incluindo tanto as experiências subjetivas mais íntimas como as relações histórico-sociais mais complexas.

Há que destacar, desde logo, que o tema específico da leitura, seja como procedimento cognitivo, seja como intelecção do texto escrito, não se encontra propriamente na obra de Paulo Freire, cujo cerne sempre esteve na educação – originalmente, na alfabetização de adultos e, em função da força epistemológica e política de seu argumento, nos processos formativos dos movimentos populares, na reflexão teórico-prática da ação cultural e, até mesmo, na educação escolar.

De fato, principalmente em seus primeiros escritos, nas décadas de 1960 e 1970, “leitura” e “ler”, quando ocorrem, remetem à atividade específica de interagir com o texto escrito, sem maiores considerações. Eventualmente, aproxima-se à ideia de intelecção ou interpretação de um texto consequente de sua leitura, estrito senso, mas sem teorização específica. O termo é admitido em seu sentido usual, dispensando qualquer esclarecimento.

No entanto, isso não significa que Freire não estabelecesse relação entre o ato de ler e a percepção crítica da realidade, com ênfase nas diferenças e desigualdades produzidas na história humana. Ao contrário, enfatiza que

[...] o aprendizado da escrita e da leitura como uma chave com que o analfabeto iniciaria a sua introdução no mundo da comunicação escrita. O homem [e a mulher], afinal, no mundo e com o mundo. O seu papel de sujeito e não de mero e permanente objeto. A partir daí, o analfabeto começaria a operação de mudança de suas atitudes anteriores. Descobrir-se-ia, criticamente, como fazedor desse mundo da cultura. Descobriria que tanto ele, como o letrado, tem um ímpeto de criação e recriação

(FREIRE, 1967FREIRE, P. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967., p. 108).

Já em “Ação cultural para a libertação” (FREIRE, 1976aFREIRE, P. Ação cultural para a libertação. Ação cultural para liberdade e outros escritos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976a.), escrito em 1969, verifica-se uma passagem em que a expressão “leitura da realidade” e sua “releitura” aparece numa acepção próxima da que viria a ser “leitura do mundo”. Ao tratar da semi-intransitividade, observa que

[...] homens e mulheres, cuja consciência se encontra a este nível, sejam incapazes de superar sua compreensão mágica dos fatos; sejam incapazes de refazer a leitura de sua realidade, percebendo, afinal, que a sua indigência tem outras razões que não as até então admitidas. Pelo contrário, a experiência tem mostrado que mais rapidamente do que se pensa, esta releitura se faz possível, mesmo que, entre o momento da releitura e do engajamento numa nova forma de ação coerente com ela, haja muito o que fazer

(FREIRE, 1976aFREIRE, P. Ação cultural para a libertação. Ação cultural para liberdade e outros escritos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976a., p. 59, grifos nossos).

Em outro texto dessa época – “A alfabetização de adultos – crítica de sua visão ingênua compreensão de sua visão crítica” (FREIRE, 1976bFREIRE, P. A alfabetização de adultos – crítica de sua visão ingênua compreensão de sua visão crítica. Ação cultural para liberdade e outros escritos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976b.) –, criticando o modelo de educação bancária em que o ensino da leitura e da escrita está desvinculado da realidade concreta de quem se põe a aprender, porque o sistema é feito pelo dominador, insiste em que,

[...] mais que escrever e ler que a “asa é da ave”, os alfabetizandos necessitam perceber a necessidade de um outro aprendizado: o de “escrever” a sua vida, o de “lera sua realidade, o que não será possível se não tomam a história nas mãos para, fazendo-a, por ela serem feitos e refeitos

(FREIRE, 1976bFREIRE, P. A alfabetização de adultos – crítica de sua visão ingênua compreensão de sua visão crítica. Ação cultural para liberdade e outros escritos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976b., p. 13, aspas do autor, grifos nossos).

Trata-se, sem dúvida, de um jogo argumentativo em torno da ação de escrever e ler, em que se assume não o ato em si, mas a consequência que dele advém. Não faz sentido aprender as letras apenas para reproduzi-las; o que faz sentido é

[...] aprender a ler essa palavra escrita em que a cultura se diz e, dizendo-se criticamente, deixa de ser repetição intemporal do que passou, para temporalizar-se, para conscientizar sua temporalidade constituinte, que é anúncio e promessa do que há de vir. O destino, criticamente, recupera-se como projeto

(FREIRE, 1967FREIRE, P. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967., p.12).

A exata expressão “leitura do mundo” só viria a aparecer no discurso de Paulo Freire – por duas vezes – em Cartas a Guiné-Bissau (FREIRE, 1977aFREIRE, P. Cartas à Guiné-Bissau: registros de uma experiência em processo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977a.), embora nessa obra predomine a “leitura (e ‘re-leitura’) da realidade”, expressão com pelo menos doze ocorrências, demarcadas com aspas, com a finalidade de informar a intenção conotativa no uso da palavra.

Ao examinar a relação entre alfabetização e conscientização, Freire considera que haja situações da ação político-pedagógica em que “a alfabetização é precedida, em aparente contradição, pelapós-alfabetização”. Seguindo o argumento, destaca que sempre considerou “a alfabetização de adultos como ação cultural”, implicando que a alfabetização deve ser percebida como “esforço de ‘leitura’ e de ‘re-leitura’ da realidade, no processo de sua transformação”. Conclui sublinhando que “o domínio dos signos linguísticos escritos, mesmo pela criança que se alfabetiza, pressupõe uma experiência social que o precede – a da ‘leitura’ do mundo” (FREIRE, 1977aFREIRE, P. Cartas à Guiné-Bissau: registros de uma experiência em processo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977a., p. 68, aspas do autor, grifos nossos). Ao tratar do engajamento comunitário na prática reflexiva motivada por uma “temática geradora significativa”, Freire sustenta que se pode chamar esse movimento de “pós-alfabetização”, embora ainda que não houvessem os educandos iniciado propriamente a aprendizagem da “leitura e da escrita dos signos linguísticos”.

Seria, no caso, a prática da “re-leituracrítica de sua realidade, associada a uma forma de ação sobre ela, a que poderia despertar a comunidade para o aprendizado da leitura e da escrita dos signos linguísticos. O oposto, numa perspectiva revolucionária, é que seria inviável, isto é, o aprendizado da língua sem o aprofundamento da “leitura” e da “re-leitura” da realidade

(FREIRE, 1977aFREIRE, P. Cartas à Guiné-Bissau: registros de uma experiência em processo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977a., p. 70, aspas do autor, grifos nossos).

Evidentemente, a expressão “pós-alfabetização”, no contexto em que é usada, tem a ver muito mais com a compreensão de educação que com a de aquisição do sistema de escrita e muito menos com algo como leitura sem texto. Freire, nesse argumento, engaja-se em demonstrar aos companheiros de Guiné-Bissau com quem trabalhava que a pressão pela alfabetização estrito senso – isto é, aquisição do domínio de um sistema de escrita alfabética de uma língua cuja maioria da gente não dominava – tendia a coincidir com uma política de educação equivocada, que ganhava contornos pragmáticos, em que a percepção e a interpretação da realidade pareceriam condicionadas a esse domínio, quando, de fato, era o contrário disso que deveria se impor. Daí porque a expressão “leitura da realidade” ocorra nessa obra mais frequentemente que “leitura do mundo”.

A educação política, a compreensão da razão por que o mundo é como é e por que e como vivemos onde vivemos, põe-se como condição da superação da semi-intransitividade ou da curiosidade ingênua, para um estado de percepção de si, da vida e das coisas em que a aprendizagem das letras faça sentido. Caso contrário, apenas se reproduziria, ainda que num movimento com o qual se pretendesse revolucionar os princípios da educação bancária; ou, o que também foi para Freire um problema agudo e real, reforçava-se o autoritarismo voluntarista, que se despreza a gente tal como ela está no mundo, seu lugar e sua história.

Para Freire, a aprendizagem da escrita-leitura, percebida como ato criador, implica necessariamente “a compreensão crítica da realidade” (outra forma de referir-se à expressão “leitura do mundo”).

O conhecimento do conhecimento anterior, a que os alfabetizandos chegam ao analisar a sua prática no contexto social, lhes abre a possibilidade a um novo conhecimento: conhecimento novo, que, indo mais além dos limites do anterior, desvela a razão de ser dos fatos, desmistificando, assim, as falsas interpretações dos mesmos

(FREIRE, 1977aFREIRE, P. Cartas à Guiné-Bissau: registros de uma experiência em processo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977a., p. 23).

De todo modo, chama a atenção a progressiva ampliação do termo “leitura” no sentido de compreensão, de análise da realidade – ou do mundo – no texto freireano. Na Pedagogia do Oprimido, não há ocorrência de “leitura do mundo”, embora apareça por dezessete vezes a expressão “consciência do mundo”. Aliás, o termo, constante em Freire, dos primeiros aos últimos escritos, é “mundo”, não “leitura” ou “análise”, indicando que a essência do desenvolvimento da autonomia e do compromisso com a mudança está na percepção de como a história se faz na vida e a vida na história, por seres objetivamente situados na realidade material. Mesmo em Alfabetização: Leitura do Mundo, Leitura da Palavra, livro resultante de diálogo de Paulo Freire com Donaldo Macedo (FREIRE; MACEDO, 1990FREIRE, P.; MACEDO, D. Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra. São Paulo: Paz e Terra, 1990.) – o único em que a expressão “leitura do mundo” ocorre no título –, verificam-se dez ocorrências de “leitura” do mundo e sete de “leitura” da realidade, sendo a palavra “leitura” sempre grafada com aspas.

Será, finalmente, na conferência realizada no 3° Congresso de Leitura do Brasil, em 1981, que Paulo Freire definitivamente passará a utilizar sistemática e consistentemente a expressão “leitura do mundo”. Naquela ocasião, convidado a pensar a questão da leitura, tal qual proposta pela tendência pedagógica que tinha por alvo a promoção da leitura como movimento de crítica à ignorância e ao tradicionalismo escolar de ensinar a ler como processo mecânico e descontextualizado, o autor volta-se à percepção reflexiva de sua infância, referindo-se a ela como “a ‘leitura’ do mundo, do pequeno mundo em que me movia” e que, naturalmente, antecederia “a leitura da palavra que nem sempre, ao longo de minha escolarização, foi a leitura da ‘palavra-mundo’” (FREIRE, 1982aFREIRE, P. A importância do ato de ler. A importância do ato de ler – em três artigos que se completam. São Paulo: Cortez, 1982a., p. 9).

No texto, pronunciado na abertura do congresso, Freire traz, com intenso lirismo e suave nostalgia, reminiscências de seus primeiros anos de vida, da casa em que viveu – seus quartos, corredores, sótão, terraço (onde ficavam as avencas da mãe) – e, também, de medo das almas penadas e da luz tênue e elegante com que os lampiões pouco iluminavam as ruas do Recife.

Os “textos”, as “palavras”, as “letras” daquele contexto se encarnavam no canto dos pássaros – o do sanhaçu, o do olha-pro-caminho-quem-vem, o do bem-te-vi, o do sabiá; na dança das copas das árvores sopradas por fortes ventanias que anunciavam tempestades, trovões, relâmpagos; as águas da chuva brincando de geografia: inventando lagos, ilhas, rios, riachos. Os “textos”, as “palavras”, as “letras” daquele contexto se encarnavam também no assobio do vento, nas nuvens do céu, nas suas cores, nos seus movimentos; na cor das folhagens, na forma das folhas, no cheiro das flores – das rosas, dos jasmins –, no corpo das árvores, na casca dos frutos.

(FREIRE, 1982aFREIRE, P. A importância do ato de ler. A importância do ato de ler – em três artigos que se completam. São Paulo: Cortez, 1982a., p. 10)

O cotejamento do que se apresenta nos três momentos referidos (1969; 1977a; 1982a) torna evidente que esse pensador sempre entendeu que só faz sentido a aprendizagem da leitura-escrita se for para servir à ampliação da compreensão crítica da realidade e da tomada de atitude para sua transformação. Nesse sentido, aprende-se (e se ensina) a ler e escrever como parte de uma educação que quer promover a “curiosidade epistemológica” dos educandos comprometidos com o processo pedagógico, sempre considerando seu conhecimento anterior – real e objetivo –, dialeticamente considerando (respeitando e tensionando) sua percepção de mundo, a qual é parte de sua “experiência vital”.

Ler e escrever as palavras só nos fazem deixar de deixar de ser sombra dos outros quando, em relação dialética com a “leitura do mundo”, tem de ver com o que chamo de “re-escrita” do mundo, quer dizer, com sua transformação

(FREIRE, 1996FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996., p. 40, aspas do autor, grifos nossos).

Assim, Freire traz à tona a subjetividade e a individualidade de cada pessoa como elemento essencial, num movimento em que, voltando-se para sua vivência e compreendendo-a como a “leitura do seu mundo” ou sua “leitura do mundo”, percebe a condição objetiva de ser vivente num mundo a um tempo particular, único e histórico-social. Nesse sentido, como ele mesmo afirma, faz uma espécie de “‘arqueologia’ de sua compreensão do complexo ato de ler, ao longo de sua experiência existencial” (FREIRE, 1996FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996., p. 12).

É por esse olhar fortemente fenomenológico que indica a indissociabilidade sujeito-mundo, individual-social, particular-universal – a “unidade dialética em que se encontram solidárias subjetividade e objetividade” –, que “podemos escapar ao erro subjetivista como ao erro mecanicista e, então, perceber o papel da consciência ou do ‘corpo consciente’ na transformação da realidade” (FREIRE, 1976aFREIRE, P. Ação cultural para a libertação. Ação cultural para liberdade e outros escritos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976a., p. 108).

A tensão entre ser sujeito no mundo e sujeito do mundo, ser em sua história inserida História sem deixar de ser a história de cada um, está implícita no princípio da dialogia – outra tese constitutiva da pedagogia freireana desde seus primeiros escritos. Na Pedagogia da Autonomia, livro produzido com a intenção declarada de conversar com o professor e a professora no chão da escola, Freire insiste em que a “explicação do mundo do(a) educando(a) faz parte da compreensão de sua própria presença no mundo” e que ela está explicita, sugerida ou escondida na “leitura do mundo” que precede sempre a “leitura da palavra”. Isso porque “a leitura do mundo revela a inteligência do mundo que vem cultural e socialmente se constituindo. Revela também o trabalho individual de cada sujeito no próprio processo de assimilação da inteligência do mundo” (FREIRE, 1996FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996., p. 42, 63).

Dialeticamente, contudo, essa forma de ser e de perceber a si e ao mundo de cada um (mais uma vez: “o saber da experiência feito” – o senso comum, a que já nos referimos na primeira parte deste artigo) não seria a da consciência absoluta, mas daquela que emana da condição de ser de cada um. Por isso, “respeitar a leitura do mundo do educando não é um jogo tático com que o educador ou educadora procura tornar-se simpático ao educando”, tampouco se confunde com “concordar com ela ou a ela se acomodar, assumindo-a como sua” (FREIRE, 1996FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996., p. 63). E, por isso, a atitude de docência pressupõe instigar

[...] constantemente a curiosidade do educando em vez de “amaciá-la” ou “domesticá-la”. É preciso mostrar ao educando que o uso ingênuo da curiosidade altera a sua capacidade de achar e obstaculiza a exatidão do achado. [...] É a maneira correra que tem o educador de, com o educando e não sobre ele, tentar a superação de uma maneira mais ingênua por outra mais crítica de inteligir o mundo

(FREIRE, 1996FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996., p. 63).

A leitura atenta desse enunciado permite perceber que só faz sentido o esforço de ler o texto se for para compreender o mundo, para compreender-se nele, e, mais que isso, para modificá-lo na perspectiva da liberdade e da emancipação humana. Por isso, não basta a “leitura crítica do mundo”; há que “ir mais longe e dizer que a leitura da palavra não é apenas precedida pela leitura do mundo, mas por uma certa forma de ‘escrevê-lo’ ou de ‘reescrevê-lo’, quer dizer, de transformá-lo através de nossa prática consciente” (FREIRE, 1982aFREIRE, P. A importância do ato de ler. A importância do ato de ler – em três artigos que se completam. São Paulo: Cortez, 1982a., p. 9).

Ao par da afirmação categórica de pertencimento ao mundo de cada indivíduo e do imperativo de reconhecê-lo em sua condição objetiva e de respeitar profundamente seu modo de ser e de perceber-se, Freire engaja-se na crítica ao espontaneísmo e ao autoritarismo. No segundo texto que compõe A Importância do Ato de Ler – fruto de palestra apresentada no XI Congresso Brasileiro de Biblioteconomia e Documentação, realizado em João Pessoa em janeiro de 1992, quando tematiza a “Alfabetização de adultos e bibliotecas populares”, o educador reforça que “a opção libertadora nem se realiza através de uma prática manipuladora nem tampouco por meio de uma prática espontaneísta. O espontaneísmo é licencioso, por isso irresponsável” (FREIRE, 1982bFREIRE, P. Alfabetização de adultos e bibliotecas populares. A importância do ato de ler – em três artigos que se completam. São Paulo: Cortez, 1982b., p. 16).

É imperativo reconhecer o direito da gente – o(a) educando(a), o(a) outro(a), com quem nos relacionamos e a quem dirigimos nossa palavra – de “dizer a sua palavra” e, portanto, de “escutá-los”, falando com ela e não a ela, pois “simplesmente falar a eles seria uma forma de não os ouvir”; e, para falar com os educandos e educandas, devem os educadores e as educadoras

[...] “assumir” a ingenuidade dos educandos para poder, com eles, superá-la. E assumir a ingenuidade dos educandos demanda de nós a humildade necessária para assumir também a sua criticidade, superando, com ela, a nossa ingenuidade também

(FREIRE, 1982bFREIRE, P. Alfabetização de adultos e bibliotecas populares. A importância do ato de ler – em três artigos que se completam. São Paulo: Cortez, 1982b., p. 17).

Ainda na mesma palestra, Freire enfatiza o caráter político de toda educação, sublinhando ser impossível tanto a “educação neutra, que se diga a serviço da humanidade, dos seres humanos em geral”, como a “prática política esvaziada de significação educativa” (1982b, p. 15). Nesse viés,

[...] tanto no caso do processo educativo quanto no do ato político, uma das questões fundamentais seja a clareza em torno de a favor de quem e do quê, portanto contra quem e contra o quê, fazemos a educação e de a favor de quem e do quê, portanto contra quem e contra o quê, desenvolvemos a atividade política. Quanto mais ganhamos esta clareza através da prática, tanto mais percebemos a impossibilidade de separar o inseparável: a educação da política. Entendemos então, facilmente, não ser possível pensar, sequer, a educação, sem que se esteja atento à questão do poder

(FREIRE, 1982bFREIRE, P. Alfabetização de adultos e bibliotecas populares. A importância do ato de ler – em três artigos que se completam. São Paulo: Cortez, 1982b., p. 15-16, grifos nossos).

Enfim – dirá o educador –, tomar “a alfabetização como ato de conhecimento, como ato criador e como ato político, é um esforço de leitura do mundo e da palavra” (FREIRE, 1982bFREIRE, P. Alfabetização de adultos e bibliotecas populares. A importância do ato de ler – em três artigos que se completam. São Paulo: Cortez, 1982b., p. 19). A aproximação que se faz, portanto, não é de simples contiguidade, mas da percepção de dois processos independentes que ganham sentido exatamente quando um se faz para e com o outro. Ler, aprender, estudar é um processo de descoberta de si, mas tal descoberta só se realiza quando se considera a vida-vivida, a experiência vital, da qual fazem parte a “curiosidade” e a “incompletude”, e se faz a “leitura do mundo”.

Com a metodização da curiosidade, a leitura do mundo pode ensejar a ultrapassagem da pura conjectura para o projeto de mundo. A presença maior da ingenuidade que caracteriza a curiosidade no momento da conjectura vai cedendo espaço a uma inquieta e mais segura criticidade que possibilita a separação da pura opinião ou da conjectura para o projeto de mundo

(FREIRE, 2000FREIRE, P. Pedagogia da indignação – cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: Editora da Unesp, 2000., p. 21, grifos do autor).

Assim, resulta da análise que aqui fazemos a percepção cristalina de que o binômio leitura do mundo – leitura da palavra deve ser compreendido como expressão da condição de ser no mundo, de viver nele e de pensá-lo; aí está a razão de estudar, de inquerir, de relacionando-se com os produtos da cultura – ler, estrito senso, é uma da forma de fazer isso.

Essa percepção encontra guarida na compreensão que tem Ana Maria Freire, sua companheira de muitos anos e estudiosa de sua obra, ao dissertar sobre “a leitura do mundo e a leitura da palavra em Paulo Freire”.

Foi pela imbricação de sentimentos, emoções, observação, intuição e razão que ele criou a sua “leitura do mundo”, uma epistemologia, uma teoria do conhecimento, uma compreensão crítica da educação na qual disse a sua palavra lendo o contexto do mundo ditado pelo “texto” que seu corpo consciente lhe dizia e ele “escutava” e sobre ele refletia

(FREIRE, 2015FREIRE, A. M. A leitura do mundo e a leitura da palavra em Paulo Freire. Cadernos Cedes, Campinas, v. 35, n. 96, p. 291-298, maio/ago. 2015. https://doi.org/10.1590/CC0101-32622015723767
https://doi.org/10.1590/CC0101-326220157...
, p. 293, aspas do autor, grifos nossos).

Sobre o Conceito de Leitura no Pensamento Freireano

Paulo Freire não tem, em sua vasta obra, considerações mais específicas sobre que é leitura – como fenômeno próprio e circunstanciado. De modo geral, foca na razão de ler e nos sentidos que ler pode ter na vida das pessoas e da sociedade. Há, contudo, um momento em particular em que isso se anuncia aparentemente. Será em Alfabetização: Leitura do Mundo, Leitura da Palavra, versão traduzida de obra produzida em diálogo com Donaldo Macedo e publicada originalmente em inglês em 1987 (FREIRE; MACEDO, 1990FREIRE, P.; MACEDO, D. Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra. São Paulo: Paz e Terra, 1990.) e a única em que a expressão “leitura do mundo” aparece no título, que se encontrarão algumas pistas do pensamento freireano sobre leitura.

O livro traz um capítulo assinado exclusivamente por Donaldo Macedo que explora a concepção de “alfabetização” (no inglês “literacy”)5 5 Literacy” tem sido versado para o português, não sem problemas conceituais e teóricos, ora como “alfabetização”, ora como alfabetismo, ora como “letramento”, conforme se considere a especificidade da aquisição do sistema de escrita ou a aprendizagem de usos sociais da escrita. Embora a publicação em português tenha optado por “alfabetização”, a forma como se trata o problema sugere que se está considerando o “letramento”. como “conjunto de práticas que atuam quer para empoderar, quer para desempoderar as pessoas, [...] conforme sirva para reproduzir as formações sociais existentes ou funcione como um conjunto de práticas culturais que promovam a mudança democrática e emancipadora” (FREIRE; MACEDO, 1990FREIRE, P.; MACEDO, D. Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra. São Paulo: Paz e Terra, 1990., p. 9).

No capítulo em questão, Donaldo Macedo6 6 Embora o texto em questão seja parte de um livro de autoria conjunta, entendemos que, em o artigo sendo assinado apenas por Donaldo Macedo, cabia referi-lo indicando o único autor. frisa, desde logo, que permanece predominante na maioria dos programas de alfabetização a meta de ensinar a língua-padrão, com ênfase na aquisição da “leitura técnica” e das “habilidades para a escrita”, sustentando “uma ideia de ideologia que, sistematicamente, antes rejeita do que torna significativas as experiências culturais dos grupos linguísticos subalternos”, conquanto devesse, na perspectiva da Pedagogia crítica, situar-se “dentro de uma teoria de produção cultural e como parte integrante do modo pelo qual as pessoas produzem, transformam e reproduzem significado” (MACEDO, 1990MACEDO, D. Alfabetização e pedagogia crítica. In: FREIRE, P.; MACEDO, D. Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra. São Paulo: Paz e Terra, 1990., p. 121).

As abordagens tradicionais da alfabetização, porque presas ao método positivista e a uma postura epistemológica de pretenso rigor científico e refinamento metodológico, abstraem as questões metodológicas dos contextos ideológicos e ignoram a inter-relação das estruturas sociopolíticas com o ato de ler, sustentando “uma ideologia de reprodução cultural, que encara os leitores como ‘objetos’, como se seus corpos conscientes estivessem absolutamente vazios, esperando ser preenchidos pela palavra do professor”.

Em sua crítica ao que identifica como abordagens à ideia de leitura (entendemos que objetivamente identificam-se aí modelos de educação), Macedo aponta quatro tendências, as quais, embora apresentem diferenças expressivas entre si, comungam do traço comum de ignorar o papel da linguagem na construção das subjetividades humanas, o modo pelo qual ela confirma ou rejeita as histórias e as experiências de vida das pessoas, desobrigando-se de proporcionar “um modelo teórico para empoderar os agentes históricos com a lógica da autodeterminação individual e coletiva”.

A mais tradicional, por assim dizer, é a “abordagem acadêmica da leitura”, correspondente à ideia clássica de escola convencional, cujo foco estaria na formação do “homem letrado – perfeitamente versado nos clássicos, articulado no falar e no escrever e ativamente engajado em atividades intelectuais”. A leitura seria o modo de aquisição de formas preestabelecidas de conhecimento, organizando-se em torno do domínio das grandes obras clássicas. Contudo, porque irrealista, em sua versão mitigada e ajustada aos padrões sociais mais objetivos, ela se concentra na aquisição de habilidades de leitura e de decodificação, desenvolvimento de vocabulário, apresentando assim uma dupla abordagem da leitura: um nível para a classe dirigente, outro para a maioria despossuída.

Tal abordagem da leitura (de fato, abordagem da educação, visto que corresponde a uma concepção de ensino e a uma função social da escola) é, na visão do autor, inerentemente alienadora, porque ignora a experiência de vida, a história e a prática linguística dos alunos, em nada contribuindo com a apropriação da história, da cultura e da linguagem da classe trabalhadora.

Já a “abordagem utilitarista da leitura”, que se apresenta sob verniz progressista, percebe a alfabetização como atendimento das exigências de leitura da sociedade industrial, tendo por meta produzir “leitores que atendam aos requisitos básicos de leitura da sociedade contemporânea”, com ênfase no aprendizado mecânico de habilidades de leitura, formando “alfabetizados funcionais”, treinados para responder aos requisitos da sociedade tecnológica. Pragmática, essa abordagem aposta em programas de leitura na forma de “pacotes” como solução das dificuldades dos alunos na leitura de textos publicitários, instrucionais, formulários, catálogos, rótulos. Se a primeira abordagem corresponderia à escola tradicional, essa teria como espelho a educação funcional-produtivista, manifesta nos modelos de gestão e avaliação parametrizadas, evidenciados por indicadores e rankings de eficiência e produtividade (novamente, observe-se, está-se a identificar uma concepção não de leitura, mas de educação).

A terceira abordagem, denominada “leitura do ponto de vista do desenvolvimento cognitivo”, valoriza a construção do significado pelo qual os leitores se envolvem numa interação dialética entre si e o mundo objetivo. Embora se considere importante a aquisição de habilidades de leitura-escrita, o núcleo central do trabalho pedagógico estaria em como as pessoas “constroem o significado mediante processos de solução de problemas”; percebe-se a leitura como processo intelectual, mediante uma série de etapas de desenvolvimento fixas, não valorativas e universais. Desse modo, a compreensão mesma do texto é descuidada em “benefício do desenvolvimento de novas estruturas cognitivas que capacitem os alunos a caminhar de tarefas simples de leitura para tarefas altamente complexas”. Tal abordagem se inspiraria nas ideias pedagógicas e psicológicas de John Dewey e Jean Piaget.

Entende o autor que tal abordagem raramente se preocupa com questões de reprodução cultural, ignorando “o capital cultural dos alunos – sua experiência de vida, sua história e sua linguagem”. Daí que, dificilmente, oferece-lhes a possibilidade de “engajar-se numa reflexão crítica completa, com respeito à experiência prática e aos fins que os motivam a organizar suas descobertas e substituir a mera opinião a respeito dos fatos pela compreensão cada vez mais rigorosa de sua significação”.

Finalmente, a abordagem romântica da leitura, carregada de certa inconsistência teórica, prima pelo voluntarismo. Querendo-se “interacionista” e focada na construção do significado, encara “o significado como gerado pelo leitor, e não como se dando na interação entre o leitor e o autor via texto”. Aposta na afetividade e na leitura como satisfação do ego e experiência prazerosa. Quer ser contraponto às modalidades autoritárias das pedagogias que fazem dos leitores “objetos”, mas, porque “liberal, deixa de problematizar o conflito de classe e as desigualdades de sexo e de raça”, ignora a cultura dos grupos subalternos, imaginando que todas as pessoas têm igual acesso à leitura ou que essa leitura faz parte do aporte cultural de todas as pessoas.

O modelo romântico tende a reproduzir a forma de cultura da classe dominante, não percebendo a ingenuidade e a impertinência que é esperar de um aluno da classe trabalhadora, confrontado e vitimado por infinitas desvantagens, alegria e autoafirmação apenas pela leitura. Assim, desvinculando a leitura (a educação, frisamos) das relações assimétricas de poder, as quais estabelecem e legitimam determinadas abordagens de leitura, objetivamente contribui para desempoderar determinados grupos.

As quatro abordagens identificadas por Macedo se enquadram no grupo de teorias não críticas da Educação, porque tomam a educação como fenômeno “autônomo”, tratando de compreendê-la desconsiderando seus condicionantes objetivos, os determinantes sociais, a estrutura socioeconômica que condiciona a forma de manifestação do fenômeno educativo. A primeira equivale à pedagogia tradicional; a segunda, à pedagoga tecnicista; e as duas últimas, à pedagogia nova.

Não por outra razão entende Macedo, repercutindo a análise freireana, que nenhuma dessas abordagens contribui para que o(a) aluno(a) utilize sua própria realidade como base de sua formação (“literacy”) e aponta nelas o grave desvio de ignorar a força da língua na constituição da cultura e das subjetividades. Assim, defende que “os educadores devem desenvolver estruturas pedagógicas radicais que propiciem aos alunos a oportunidade de utilizar sua própria realidade como base para a alfabetização. Isso inclui, evidentemente, a língua que trazem consigo para a sala de aula” (MACEDO, 1990MACEDO, D. Alfabetização e pedagogia crítica. In: FREIRE, P.; MACEDO, D. Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra. São Paulo: Paz e Terra, 1990., p. 130).

Tendo por referência o debate travado por Paulo Freire quando de seu trabalho com educação nos países africanos de língua portuguesa que recém haviam alcançado sua independência, deixando de ser colônias portuguesas, em que percebiam um pernicioso antagonismo entre a língua de cultura (universal, escrita) e a língua da cultura (local, falada), Macedo sublinha que

[...] é da máxima importância que se dê a mais alta prioridade à incorporação da língua dos alunos como língua principal de ensino na alfabetização. Por meio da própria língua é que serão capazes de reconstruir a própria história e a própria cultura. A língua dos alunos é o único meio pelo qual podem desenvolver sua própria voz, pré-requisito para o desenvolvimento de um sentimento positivo do próprio valor

(1990, p. 148).

No que tange especificamente à questão linguística, Macedo reconhece a importância do conhecimento da “língua padrão dominante” e defende que sua plena apropriação permite o empoderamento para engajar-se no diálogo com os diversos setores da sociedade mais ampla. Contudo, refuta “o modo ‘negativo’ de propor a questão da língua em termos de opressão – a língua dos alunos, “carente” das características da língua dominante” – e enfatiza que não se pode permitir o silenciamento da voz dos oprimidos pela legitimação deformada da língua-padrão: “a voz dos alunos jamais deve ser sacrificada, uma vez que ela é o único meio pelo qual eles dão sentido”. Assim, “a língua subalterna, como língua reprimida, poderia, se fosse falada, desafiar o domínio linguístico privilegiado da língua padrão” (MACEDO, 1990MACEDO, D. Alfabetização e pedagogia crítica. In: FREIRE, P.; MACEDO, D. Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra. São Paulo: Paz e Terra, 1990., p. 150), cabendo aos(às) educadores(as)

[...] desmistificar o padrão dominante e os pressupostos de sua superioridade implícita e desenvolver um programa de alfabetização emancipadora enformado por uma pedagogia radical, [...] a qual tornaria concretos valores tais como solidariedade, responsabilidade social, criatividade, disciplina a serviço do bem comum, vigilância e espírito crítico

(MACEDO, 1990MACEDO, D. Alfabetização e pedagogia crítica. In: FREIRE, P.; MACEDO, D. Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra. São Paulo: Paz e Terra, 1990., p. 150).

Por traz dessa percepção, está a ideia mesma da metáfora da “leitura do mundo”, em seu duplo aspecto: como manifestação da experiência vital (o modo de ser consequente da vida-vivida naquele lugar e naquelas condições) e como ato crítico-reflexivo, dialético, em que as pessoas e os grupos “leem” sua realidade e indagam-na, para, no exercício da curiosidade em movimento – da curiosidade ingênua para a crítica e, desta, para a epistemológica – “reescrevê-la” com base em sua nova “leitura do mundo”.

É essa tomada de consciência – política, histórica – que conjura o afastamento das abordagens que valorizam a aquisição de habilidades mecânicas, dissociando a leitura [do texto, mas também da vida] e a intelecção de qualquer outro produto da cultura por meio de variadas possibilidades semióticas de seu contexto ideológico e histórico. Somente assim, o desenvolvimento, pelo leitor, da compreensão crítica do texto e do contexto sócio-histórico a que ele se refere torna-se fator importante da alfabetização [literacy], e aprender a ler e escrever se faz “ato criativo, que implica a compreensão crítica da realidade” (MACEDO, 1990MACEDO, D. Alfabetização e pedagogia crítica. In: FREIRE, P.; MACEDO, D. Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra. São Paulo: Paz e Terra, 1990., p. 154).

Enfim, a “leitura do mundo” não é um tipo de leitura entre outros (e sequer se aproxima de outras aplicações de leitura, como leitura de imagem, leitura não verbal, leitura da mão), nem se confunde com a leitura da palavra. Mais exatamente, “leitura do mundo” e “leitura da palavra” não são simples extensões semânticas uma da outra, mas duas categorias distintas, metaforicamente aproximadas pelo jogo linguístico-argumentativo e cuja articulação dialética permite entender por que, onde e como vivemos, quem somos e como nos fazemos.

E o “mundo” de que fala Freire (um dos temas mais recorrentes em toda a obra) não se resume nem se confunde com uma coisa sobre que se debruça com a geografia de um atlas ou um conceito escolar a aprender – percepção que, infelizmente, parece comum em projetos de ensino ingenuamente engajados no “ensino contextualizado”; e menos ainda se circunscreve ao “meu mundo” ou ao “mundo outro” (embora estes se constituam na articulação subjetividade-objetividade), próprios da visão subjetivista sistematicamente refutada por Freire. O “mundo” é a história humana toda, complexa e contraditória, abarcando a totalidade da vida e a vida de cada um.

Sim, a razão da leitura do texto (como também da admiração de objetos de arte, da audiência da música, do exercício do cálculo, da projeção reflexiva pela observação de objeto) está em re-ler (re-ver, re-tomar, re-tocar, interpretar o mundo) e, na eticidade da existência material concreta e na afirmação objetiva da subjetividade, intervir para reescrevê-lo, fazê-lo outro, justo e humano. A ausência disso é permanecer na semi-intransitividade, na repetição alienada da curiosidade ingênua, como se fosse condição natural da vida.

Ler e Estudar no Contexto Freireano

Para terminar este ensaio, tratamos da advertência maior de Paulo Freire no que se refere à importância do rigor – intelectual, político, ético. Isso é relevante, pois é um tema no qual as ideias de Freire são frequentemente distorcidas, muitas vezes por autores que se pretendem freirianos.

Na supracitada conferência sobre a importância do ato de ler (a qual, em nossa análise, deve ser entendida como o momento simbólico da emergência da expressão “leitura do mundo” e de sua relação com a leitura da palavra), que, depois, tornou-se um dos lemas de sua concepção pedagógica, Freire destaca o risco de interpretação ingênua de seu argumento, algo que estaria em consonância com a “abordagem romântica da leitura”, ingênua e voluntarista.

A denúncia do ensino mecanicista, preocupado com volumes e quantidade de leitura, com a transmissão passiva de informações característica da educação bancária, não impede Freire de observar que

[...] a minha crítica à magicização da palavra não significa uma posição pouco responsável com relação à necessidade de lermos, sempre e seriamente, os clássicos neste ou naquele campo do saber, de nos adentrarmos nos textos, de criar uma disciplina intelectual

(1982a, p. 12).

No pequeno ensaio “Considerações em torno do ato de estudar”, redigido no Chile para ser “introdução à relação bibliográfica proposta aos participantes de um seminário nacional sobre educação e reforma agrária”, como explica em nota de rodapé, Freire (1976c, p. 8-10)FREIRE, P. Considerações em torno do ato de estudar. Ação cultural para a liberdade e outros escritos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976c. sublinha que estudar é uma atitude frente ao mundo, que exige debruçar-se sobre o texto, interpretando-o, lendo-o com curiosidade, não desistindo quando da primeira dificuldade. Estudar exige esforço, não é fácil, é ato criativo, e não de repetição; demanda postura crítica, sistemática, e uma disciplina intelectual que não se ganha a não ser praticando-a.

Enfim, o ato de estudar,

[...] enquanto ato curioso do sujeito diante do mundo, é expressão da forma de estar sendo dos seres humanos, como seres sociais, históricos, seres fazedores, transformadores, que não apenas sabem, mas sabem que sabem

(FREIRE, 1982cFREIRE, P. O povo diz a sua palavra a sua alfabetização em São Tomé e Príncipe. In FREIRE, P. A importância do ato de ler – em três artigos que se completam. São Paulo: Cortez, 1982c., p. 34).

A atitude crítica no estudo é a mesma que deve ser tomada diante do mundo, da realidade, da existência. Uma atitude de adentramento com a qual se vá alcançando a razão de ser dos fatos cada vez mais lucidamente

(FREIRE, 1976cFREIRE, P. Considerações em torno do ato de estudar. Ação cultural para a liberdade e outros escritos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976c., p. 9).

Torna-se claro, assim, que a visão difundida de Freire como um educador que secundariza o esforço e o rigor é profundamente equivocada. Procuramos mostrar neste artigo, para além da temática específica do significado da expressão “leitura do mundo” em Freire, a importância de ler sistemática e seriamente a obra de Freire, para superar equívocos que permeiam a difusão de suas ideias nos meios educacionais, e na sociedade de forma geral.

  • Estudo decorrente da colaboração dos autores em função dos projetos de pesquisa “Relações entre linguagem e conhecimento na educação escolar” (PPGE-Ufopa) e “Políticas educacionais com impacto sobre docentes em âmbito federal e estaduais no Brasil no século XXI: uma análise em torno de seus efeitos sobre o bem-estar docente e o mal-estar docente” (PPGE-Unoeste).

Notas

  • 1
    O termo comumente utilizado por Paulo Freire é “leitura do mundo”, embora ocasionalmente apareça em alguns de seus textos “leitura de mundo”, aparentemente por descuido editorial; grafamos “leitura de mundo” neste caso para chamar a atenção a esse equívoco interpretativo frequente em trabalhos que tomam como referência o conceito freireano, desconsiderando a diferença de efeito argumentativo que o artigo definido implica. Em todas as outras situações, usamos “leitura do mundo”.
  • 2
    Nesta citação e em outras, Freire utiliza o termo “homem” como expressão genérica para identificar a pessoa humana; em respeito a seu pensamento e ao reconhecimento de que, em obras posteriores, ele questiona a lógica machista dessa expressão, optamos por inseri “mulher” ao lado de “homem”, evidenciando que se fala de pessoa humana e não de uma parte da humanidade – os homens.
  • 3
    Impossível não associar essa percepção de Freire aos aspectos fascistas – negacionistas, sectários e egoístas – que informam o atual movimento reacionário mundial e que, no Brasil, se realizam completamente no bolsonarismo e nas articulações totalitárias de todo o mundo.
  • 4
    Embora em trabalhos anteriores já se apresentem a ideia de curiosidade e a expressão “curiosidade crítica”, parece-nos que é nesta obra que se encontra claramente a exposição do princípio da curiosidade e sua caracterização.
  • 5
    Literacy” tem sido versado para o português, não sem problemas conceituais e teóricos, ora como “alfabetização”, ora como alfabetismo, ora como “letramento”, conforme se considere a especificidade da aquisição do sistema de escrita ou a aprendizagem de usos sociais da escrita. Embora a publicação em português tenha optado por “alfabetização”, a forma como se trata o problema sugere que se está considerando o “letramento”.
  • 6
    Embora o texto em questão seja parte de um livro de autoria conjunta, entendemos que, em o artigo sendo assinado apenas por Donaldo Macedo, cabia referi-lo indicando o único autor.

Referências

  • FREIRE, A. M. A leitura do mundo e a leitura da palavra em Paulo Freire. Cadernos Cedes, Campinas, v. 35, n. 96, p. 291-298, maio/ago. 2015. https://doi.org/10.1590/CC0101-32622015723767
    » https://doi.org/10.1590/CC0101-32622015723767
  • FREIRE, P. Educação como prática da liberdade Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967.
  • FREIRE, P. Pedagogia do oprimido Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1968.
  • FREIRE, P. Ação cultural para a libertação. Ação cultural para liberdade e outros escritos Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976a.
  • FREIRE, P. A alfabetização de adultos – crítica de sua visão ingênua compreensão de sua visão crítica. Ação cultural para liberdade e outros escritos Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976b.
  • FREIRE, P. Considerações em torno do ato de estudar. Ação cultural para a liberdade e outros escritos Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976c.
  • FREIRE, P. Cartas à Guiné-Bissau: registros de uma experiência em processo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977a.
  • FREIRE, P. Professora sim, tia não – cartas a quem ousa ensinar. São Paulo: Olho d’Água, 1977b.
  • FREIRE, P. A importância do ato de ler. A importância do ato de ler – em três artigos que se completam. São Paulo: Cortez, 1982a.
  • FREIRE, P. Alfabetização de adultos e bibliotecas populares. A importância do ato de ler – em três artigos que se completam. São Paulo: Cortez, 1982b.
  • FREIRE, P. O povo diz a sua palavra a sua alfabetização em São Tomé e Príncipe. In FREIRE, P. A importância do ato de ler – em três artigos que se completam. São Paulo: Cortez, 1982c.
  • FREIRE, P. Pedagogia da esperança: reencontro com a Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
  • FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
  • FREIRE, P. Pedagogia da indignação – cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: Editora da Unesp, 2000.
  • FREIRE, P.; MACEDO, D. Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra. São Paulo: Paz e Terra, 1990.
  • MACEDO, D. Alfabetização e pedagogia crítica. In: FREIRE, P.; MACEDO, D. Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra. São Paulo: Paz e Terra, 1990.
Editor de Seção: Pedro Goergen

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    25 Nov 2021
  • Aceito
    14 Set 2022
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