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Crenças coletivas e desigualdades culturais

Collective beliefs and cultural inequalities

Resumos

Com o conceito de capital cultural, desde os anos de 1970, a sociologia da educação francesa assumiu que as formas legítimas de cultura funcionam como uma moeda desigualmente distribuída que dá acesso a muitos privilégios. Entretanto, os pesquisadores estavam tão preocupados em criticar as ideologias oficiais a respeito da escola e em revelar desigualdades sociais perante a escola que não se indagaram sobre as condições históricas em que diferenças de percursos escolares podem ser interpretadas em termos de desigualdades escolares. A reflexividade histórica ajuda a conscientizar-se do fato de que a desigualdade é indissociável da crença coletiva na legitimidade (alto grau desejabilidade coletiva) de um objeto, de um saber ou de uma prática.

Desigualdades; Diferenças; Crenças coletivas; Legitimidade; Crítica


From the 70s on, the concept of cultural capital has helped the French Sociology of Education to acknowledge the fact that the legitimate forms of culture act as an unequally distributed money that gives access to many a privilege. Still, researchers were too busy criticizing official ideologies about School and bringing to light social inequalities in schooling to wonder which historical conditions differences between school trajectories may be interpreted as inequalities. The historical reflexivity leads to the awareness that inequality is indissociable from the collective belief in the legitimacy (high degree of collective desirability) of an object, knowledge or practice.

Inequalities; Differences; Collective beliefs; Legitimacy; Criticism


Crenças coletivas e desigualdades culturais* * Tradução de Alain François.

Collective beliefs and cultural inequalities

Bernard Lahire

Professor de sociologia da École Normale Supérieure Lettres et Sciences Humaines e diretor do Groupe de Recherche sur la Socialisation (CNRS). E-mail:Bernard.Lahire@univ-lyon2.fr

RESUMO

Com o conceito de capital cultural, desde os anos de 1970, a sociologia da educação francesa assumiu que as formas legítimas de cultura funcionam como uma moeda desigualmente distribuída que dá acesso a muitos privilégios. Entretanto, os pesquisadores estavam tão preocupados em criticar as ideologias oficiais a respeito da escola e em revelar desigualdades sociais perante a escola que não se indagaram sobre as condições históricas em que diferenças de percursos escolares podem ser interpretadas em termos de desigualdades escolares. A reflexividade histórica ajuda a conscientizar-se do fato de que a desigualdade é indissociável da crença coletiva na legitimidade (alto grau desejabilidade coletiva) de um objeto, de um saber ou de uma prática.

Palavras-chave: Desigualdades. Diferenças. Crenças coletivas. Legitimidade. Crítica.

ABSTRACT

From the 70s on, the concept of cultural capital has helped the French Sociology of Education to acknowledge the fact that the legitimate forms of culture act as an unequally distributed money that gives access to many a privilege. Still, researchers were too busy criticizing official ideologies about School and bringing to light social inequalities in schooling to wonder which historical conditions differences between school trajectories may be interpreted as inequalities. The historical reflexivity leads to the awareness that inequality is indissociable from the collective belief in the legitimacy (high degree of collective desirability) of an object, knowledge or practice.

Key words: Inequalities. Differences. Collective beliefs. Legitimacy. Criticism.

Como se sabe, apenas as diferenças, contradições e desigualdades alimentam utilmente o conhecimento sociológico. (...) Só há sociologia onde existem relações desiguais e figuras da diferença.

(Jean-Claude Passeron, 1991, p. 247)

O não-dito da medição das desigualdades sociais perante a escola

No início dos anos de 1970, na França, a sociologia da educação foi marcada pelas teorias estruturo-funcionalistas da reprodução. Na época, essas análises macrossociológicas, que, basicamente, lançavam mão dos métodos estatísticos, tentavam dar conta das desigualdades sociais perante a escola em função da posição das famílias dos alunos nas relações de produção econômica (Baudelot & Establet, 1971) ou na estrutura de distribuição do capital cultural (Bourdieu & Passeron, 1970). A instituição escolar era estudada como um lugar central de diferenciação-divisão das classes sociais ou de retradução-reprodução das relações de força entre grupos ou classes da formação social.

As desigualdades escolares são medidas a partir dos sinais de suas manifestações: as notas e apreciações produzidas pelos docentes, as taxas de repetência, a orientação para cursos pouco prestigiados (classe de relégation) ou filières "não-nobres", que sanciona as graves dificuldades escolares, o abandono definitivo do sistema escolar etc. Ao relacionar os indicadores do "fracasso escolar" e as propriedades sociais e culturais das famílias dos alunos (sociologicamente medidas por meio da categoria socioprofissional e do nível de diploma do pai e da mãe), essas abordagens macrossociológicas tomam por objeto a reprodução da estrutura das classes, as relações de força entre arbitrários culturais, a reprodução da estrutura de distribuição dos capitais e, mais especificamente, do capital cultural.

A metáfora do capital cultural (ou escolar) mostra claramente que, desde os anos de 1960-1970, a sociologia francesa assume o fato de que a cultura legítima, especificamente a que a escola seleciona como digna de ser transmitida, funciona nas formações sociais altamente escolarizadas como uma moeda desigualmente distribuída que, por esse motivo, dá acesso a privilégios diversos e variados. Se desdobrarmos a metáfora do capital cultural, podemos nos indagar como este se "transmite" de geração em geração, se herda,1 Notas ao cabo de que processos ele é monopolizado por uma elite, como ele pode desvalorizar-se (por exemplo, num contexto de inflação dos diplomas), reconverter-se (em outras formas de capitais, econômicas, em particular), transformar-se (passar, por exemplo, de uma forma literária a uma forma científica) em conseqüência das mudanças na estrutura dos mercados etc.

Ora, os pesquisadores estavam tão preocupados com sua luta científica contra as ideologias da escola democrática (a escola é democrática pois trata igualmente todos os alunos, independentemente de suas origens social, cultural, geográfica, de seu sexo etc.), da meritocracia escolar (o êxito escolar depende do esforço e do estudo envidado por cada aluno) e até da ideologia do dom (os talentos são, por natureza, desigualmente distribuídos numa população) que não se perguntaram o que transformou o diploma num capital. Eles não se indagaram sobre as condições históricas que fizeram da escola uma instituição que pode entregar uma moeda de um gênero particular: os diplomas escolares.

Deste ponto de vista, os teóricos da reprodução tenderam a universalizar um momento particular, na história das sociedades ocidentais, em que a escola passou a desempenhar um papel central na reprodução das relações entre classes sociais. Foi Jean-Claude Passeron, 16 anos depois da publicação de La reproduction, quem salientou esse impensado (ou não-dito) da época sociológica dos primeiros trabalhos sobre a desigualdade social perante a escola. Num artigo publicado na revista Esprit e intitulado "Hegel ou le passager clandestin. La reproduction sociale et l'histoire",2 2 . Artigo republicado em Passeron, 1991, p. 89-109. ele começa por lembrar que a instituição escolar nem sempre 8cumpriu essa função e que, por muito tempo, foi alvo das resistências sociais de parte das elites:

No decorrer da institucionalização e do crescimento dos sistemas de ensino, a resistência da "educação nobre" (embasada no adestramento físico e moral e que costumava recorrer ao emprego entre "pares") contra o desenvolvimento do modo escolar de educação produziu uma tensão específica, cheia de conseqüências tanto para a história social como para a história dos costumes. Ainda no século XVIII, a fronteira social e a fronteira da educação escolar não coincidiam. Com pouca ou nenhuma escolarização, as pessoas de alta condição social mal se distinguiam das do povo pela linguagem: isto tanto atesta o caráter secundário da legitimação letrada da classe social como explica a função de indicador social reservada a outros sinais: vestuário, modos mundanos ou militares, por exemplo. (Passeron, 1991, p. 101)

Ele enfatiza também o risco ligado ao sucesso relativo da escola (escolarização generalizada, aumento geral do nível individual de formação escolar, massificação universitária), que pode levar essa instituição a entregar uma moeda cada vez mas desvalorizada. Com o tempo, o diploma poderia não mais funcionar como uma moeda (ou um capital) e deixar seu lugar a outros meios sociais de distinção mais raros e, portanto, mais eficientes:

( ) também é preciso levar em consideração o fato de que, ao banalizar a formação escolar, ele [o sistema escolar] tende a dispersar também o poder de demarcação social do diploma ou do tempo de estudo e, conseqüentemente, a enfraquecer seu efeito próprio de legitimação das posições sociais, uma vez que ele não poderá mais lançar mão de um recurso simbólico tão forte quanto o do "tudo ou nada" com o qual os sistemas fechados da universidade tradicional riscavam luminosamente uma fronteira sem equívocos nem possibilidades de transgressão ( ) entre a incultura naturalmente escolhida pelas massas e a glória cultural, ao mesmo tempo inata e merecida, da elite diplomada. (Idem, ibid., p. 102)

O que a sociologia crítica compartilha com os discursos que critica

Para criticar uma escola desigual e reprodutora das desigualdades sociais em sua ordem e lógica próprias, é preciso compartilhar com os discursos da igualdade das chances na escola ou pela escola a idéia de que esta última poderia (e deveria) ser menos desigualitária. Levando os discursos oficiais ao pé da letra, as teorias da reprodução têm assim colocado à prova dos fatos, estatisticamente construídos, as ideologias escolares da democratização. O princípio da crítica é relativamente simples: "Sustenta-se publicamente que a escola é democrática e que permite uma miscigenação social das elites. Ora, ao objetivar os percursos escolares em função do meio social de pertencimento dos alunos, constata-se que as chances de êxito na escola dependem essencialmente da origem social dos alunos, e mais exatamente de seu volume de capital cultural familial".

Partindo dos discursos oficias que afirmam a igualdade das chances, os sociólogos críticos da época provaram empiricamente a desigualdade das chances e aceitaram tacitamente construir seu objeto a partir dessa mesma temática. O procedimento adotado não era, portanto, a crítica radical que alguns quiseram ver nele, mas uma crítica parcial, que ajustava seu ponto de vista de conhecimento em função da temática das teses criticadas. Pode-se entender as teorias da reprodução somente no âmbito de um espaço social que colocou a escola no cerne dos processos de reprodução das desigualdades sociais, por um lado, e de um espaço político democrático que tem fé no papel democrático da escola, por outro. Ao analisarem as funções sociais da escola a partir da questão da igualdade e da desigualdade das chances, os sociólogos da época contribuíam para a construção social e a manutenção de um espaço político fundamentado sobre a crença em valores de igualdade. Em vez de tomarem por objeto a fé coletiva na necessidade de uma escola democrática e o modo como, historicamente, os atores sociais chegaram a viver esse sentimento imperioso,3 3 . A história mostra que, desde o começo do século XVII, em torno do rei da França, desconfia-se da instrução. Temia-se um povo camponês culto que desertaria o campo em favor das "Belas-Letras". Alguns queriam até excluir da instrução "aqueles que a Providência fez nascer numa condição de lavradores de terra, aos quais apenas se deveria ensinar a ler" (texto datado de 1667, citado por F. Furet e J. Ozouf, 1997, p. 76). Esse tipo de debate continuaria ao longo do século XVIII. eles retomaram valores comuns para deles fazer instrumentos de avaliação crítica da realidade social.

Por sinal, Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron assumiam essa dívida da crítica para com a ideologia que questionava:

( ) concordaremos que cabe à sociologia estabelecer laços, num primeiro tempo, entre a lógica, sociologicamente construída, do funcionamento da escola e as pretensões sociologicamente verificadas da ideologia, para lançar uma luz nas contradições da instituição escolar, isto é, as contradições entre os mecanismos segundo os quais ela funciona e as ideologias que contribuem para o funcionamento desses mecanismos e dissimulam sua função. Entretanto, a constatação de uma contradição entre a ideologia proclamada e a realidade escolar pode justificar tanto o abandono resignado ou complacente de uma ideologia insustentável como a crítica da realidade em nome dessa ideologia. De fato, é a evolução do próprio sistema que, em cada uma de suas etapas, produz as condições históricas e sociais de sua própria crítica. Assim, se é legítimo usar o princípio da igualdade das chances como um instrumento de decifração e, além disto, de crítica, não é apenas porque é uma das pedras angulares do discurso que justifica as funções da escola mas também porque ele constitui um dos fatores que permitem fazer jus, ao menos parcialmente, ao surgimento e à permanência de um tipo específico de mecanismos de seleção social, isto é, mais exatamente da passagem de uma seleção baseada nos privilégios de nascimento para uma seleção embasada no exame anônimo e formalmente eqüitativo. Se temos o direito de relacionar o sistema escolar ao princípio da igualdade das chances, é porque o primeiro se liga ao segundo objetivamente tanto na sua gênese histórica como na lógica de seu funcionamento, uma vez que até mesmo os mecanismos que se opõem a sua implementação se exprimem na sua lógica e graças a ela. (Bourdieu & Passeron, 1968, p. 252-253)

E, 26 anos mais tarde, Pierre Bourdieu teve a oportunidade de reafirmar esse mesmo princípio em sua análise sociológica do Estado.4 4 . "Apenas se pode, por exemplo, reprovar o modelo hegeliano da burocracia de Estado por ignorar que os servidores do Governo servem a seus interesses particulares sob coberto de servirem o universal se se admitir tacitamente que a burocracia pode, como ela pretende, servir ao universal e que os critérios e as críticas da razão e da moral podem portanto lhe ser legitimamente aplicados" (Bourdieu, 1994, p. 242).

A sociologia crítica, que muitas vezes mostrou sua capacidade em produzir conhecimentos sobre o mundo social, geralmente consiste em observar os descompassos ou as contradições entre o dizer e o fazer, entre as leis e a realidade, entre o formal e o real, entre os discursos oficias proferidos ou valores básicos proclamados e as práticas efetivas, o que a torna inevitavelmente prisioneira dos modos oficiais de construção dos fatos sociais. Encostando-se nos discursos oficias para melhor derrubá-los, esses trabalhos sociológicos mantêm, portanto, uma profunda conivência com o fundamento desses discursos. Em sua luta para impor a visão legítima do mundo social, os diferentes profissionais dos discursos públicos (homens políticos, jornalistas, juristas, filósofos e sociólogos) têm muito mais pontos comuns do que sequer imaginam: sua insistência em diferenciar seus propósitos dos de seus múltiplos concorrentes impede-os de ver o que compartilham.

Política de democratização cultural e sociologia das desigualdades de acesso à cultura

Pode-se observar o mesmo tipo de conivência entre os discursos do Estado e os discursos sociológicos no campo da cultura legítima não-escolar (museus, teatros, óperas, música clássica, literatura ).

Como políticas culturais se inscreveram, desde os anos de 1960, numa vontade de "democratização cultural", elas desencadearam toda uma série de pesquisas sociológicas críticas sobre as desigualdades culturais persistentes e sobre as determinantes sociais dessas desigualdades. Ao se limitarem a essa tarefa crítica, os sociólogos, mais uma vez, portanto, aceitavam tacitamente o campo problemático que se lhes propunha e os limites metodológicos e interpretativos que se lhes fixavam, e "se contentando" (o que já não é tão pouco) em inverter parte das afirmações políticas corriqueiras: assim como "dizem que a escola é democrática, quando, de fato, é reprodutora", "dizem que se democratizou o acesso à cultura, quando, afinal de contas, as diferenças culturais entre os grupos mantiveram-se, e até mesmo aumentaram" etc.

Na origem, a crítica social foi até interna ao Estado, uma vez que foi em nome da luta contra as desigualdades de acesso à "cultura" (por "cultura", aqui, entenda-se as obras de arte, o patrimônio cultural ou as "obras capitais da humanidade") que houve militância para implementar uma verdadeira política de democratização da cultura clássica legítima. Em dezembro de 1956, por exemplo, Robert Brichet (chefe do Departamento da Juventude e da Educação Popular no Secretariado de Estado à Juventude e aos Esportes) defendeu a idéia de um "Ministério das Artes", nos Cadernos da República, para pôr um termo à apropriação da arte por uma pequena elite:

Ora, hoje em dia, apenas uma minoria participa dos benefícios das artes. Uma aristocracia sempre pode comprar pinturas, móveis de estilo, escutar grandes concertistas, aplaudir um balé na Ópera ou alguma reprise no Théâtre-Français, pagar os ingressos para escarnecer diante de Picasso no museu de Antibes, ou admirar os espetáculos "Som e Luz" em Versailles. Os outros não podem senão escutar o rádio ou assistir ao desfile do 14 de julho. Não se pode frustrar o povo por mais tempo. ( ) A IVª República há de cair em si e tornar-se uma grande República democrática designando um ministro responsável da nobre missão de elevar o nível cultural da nação. (Apud Poirrier, 2000, p. 64)

Essa maneira crítica de considerar as práticas culturais sob o ponto de vista das desigualdades sociais se tornou tão endógena que os diferentes Ministérios dos Assuntos Culturais e, mais tarde, da Cultura, adotaram-na em suas reflexões e, em seguida, enquetes.5 5 . Desde 1963, Jacques Delors, então conselheiro dos Assuntos Sociais no Planejamento, encarregou Augustin Girard de criar um serviço de Estudos e Pesquisas no Ministério dos Assuntos Culturais. Este introduziria, no início dos anos de 1970, as grandes enquetes quantitativas que, desde então, perenizaram-se. De fato, é o Estado francês que vai implementar grandes enquetes estatísticas recorrentes sobre as "práticas culturais dos franceses" (1973, 1981, 1989, 1997), para medir as "desigualdades sociais de acesso à cultura". Mesmo se, hoje em dia, eles tendem a querer se livrar, quer por lassidão interpretativa ou por inclinações ideológicas, da "missão" de análise das desigualdades perante a cultura, os sociólogos não deixaram de ser guiados por mudanças nas vogas ideológicas.

A denúncia pública da desigualdade perante a escrita

Encontramos um caso de figura um pouco diferente, nos anos de 1990, quando as teorias sociológicas da reprodução e da desigualdade perante a cultura já se haviam difundido de modo bastante amplo nos meios políticos e sindicais. O tema da "denúncia das desigualdades" é claramente utilizado pelo Estado (e não mais pelos sociólogos) para conclamar publicamente a "lutar contra o analfabetismo". A retórica desenvolvida pelos discursos políticos passa então a ser que um Estado democrático e republicano não pode aceitar que se instaure uma desigualdade (ou uma fratura) no corpo social como a que o "analfabetismo" representa. Esta é a mola principal do discurso de mobilização política.

Ora, o recurso a um tal procedimento retórico não deixa de questionar o próprio discurso sociológico que se fundamenta, em grande parte, na enunciação e revelação das desigualdades. Nesse caso, quem mais corre riscos de se deixar encantar pelos discursos de denúncia das desigualdades em matéria de distribuição das competências de leitura e escrita é o próprio sociólogo que vê sua mola ou seu princípio de crítica captado ou confiscado pelo Estado. De fato, o sociólogo que, até então, costumava enunciar desigualdades depara-se, de repente, com discursos de Estado que puxam o seu tapete ao passarem, eles também, a denunciar desigualdades. Foi nesse momento que, para continuar desempenhando seu papel crítico dos discursos oficias, a sociologia começou a indagar-se a respeito dos fundamentos políticos dos discursos públicos sobre a desigualdade (Lahire, 1999).

Se, alguns anos antes, o sociólogo teria ficado espontaneamente do lado da análise das desigualdades para mostrar sua distância crítica para com os discursos sobre a igualdade de cada um perante a educação e a cultura, ele se vê então obrigado a tornar-se analista crítico dos discursos públicos de luta contra as desigualdades. Quando o Estado falava a linguagem da "igualdade formal", o sociólogo crítico saía em busca das provas da desigualdade real; quando o Estado passa a falar a linguagem da "desigualdade", perturbado, esse mesmo sociólogo crítico é forçado a indagar-se sobre qual pode ser o interesse de um Estado em legitimar publicamente sua ação política em nome da luta contra as desigualdades.

O que faz diferença e o que faz desigualdade

Poderíamos, para concluir, indagarmo-nos sobre as condições históricas em que uma diferença social (ou cultural) pode se tornar uma desigualdade social (ou cultural). Pois nem toda diferença social que pode ser constatada não é interpretável em termos de desigualdade social. Basta, para se convencer disso, variar os casos e considerar umas diferenças que dizem respeito a objetos, práticas ou competências sem muito valor (e até mesmo desvalorizados) do ponto de vista das crenças coletivas mais comumente compartilhadas.

Por exemplo, ao passo que a educação familial cotidiana dos filhos é coletivamente considerada uma tarefa difícil, ingrata, e permanece invisível e sem lucro material ou simbólico, é impossível interpretar a divisão sexual dos papéis educativos como uma apropriação pelas mulheres do monopólio do exercício da educação infantil e, correlativamente, como uma injustiça social vivida por homens "desapossados", isto é, como uma desigualdade sexuada de acesso à educação dos filhos. Muito pelo contrário, os homens costumam desdenhar essas tarefas desconsideradas (esse "trabalho sujo" para retomar a expressão de E. C. Hughes) para investir em universos profissionais, públicos, remuneradores em capital econômico bem como em capital simbólico. Contudo, quando pais se agrupam em associações, como já está ocorrendo há algumas décadas na França, para reivindicar um direito de guarda igual depois do divórcio e contestar a "desigualdade" gritante entre mães e pais nesse ponto (os juízes de causas matrimoniais até então apenas seguiam os costumes familiais, que vêem na mãe o ator principal da educação dos filhos, e geralmente confiavam, exceto em caso de falha materna comprovada, a guarda das crianças à mãe), eles contribuem simbolicamente a transformar uma diferença social de gênero numa desigualdade perante o direito de criar seus filhos. Para que uma diferença faça desigualdade, é preciso que todo o mundo (ou pelo menos uma maioria tanto dos "privilegiados" como dos "lesados") considere que a privação de tal atividade, isto é, o acesso a dado bem cultural ou serviço constitui uma carência, uma deficiência ou uma injustiça inaceitável.

Eis por que a distribuição socialmente diferenciada das competências técnicas em matéria de ourivesaria, mecânica ou tricô não faz injustiça nem desigualdade social: nossas crenças coletivas não erigiram essas competências específicas em trunfos maiores nem o fato de não as possuir competências em carência desumana ou em deficiência sociocultural insuportável. Ainda por esse mesmo motivo, a passagem histórica, no sistema escolar francês, do latim à matemática como meio de seleção escolar privilegiado contribuiu para fazer da cultura letrada clássica ("humanista") uma cultura coletivamente menos invejável e socialmente menos desejável que antes. Poderíamos assim assistir, num futuro mais ou menos próximo, à transformação de uma desigualdade de acesso à cultura letrada numa simples diferença social, os desafios e as metas escolares deslocando-se para os pólos mais científicos.

Portanto, a questão da desigualdade é claramente indissociável da crença na legitimidade de um bem, de um saber ou de uma prática, isto é, indissociável daquilo que poderíamos chamar de grau de desejabilidade coletiva que existe a seu respeito. De fato, o que separa uma diferença social e uma desigualdade social de acesso a toda uma série de bens, práticas, saberes, instituições etc. é justamente o fato de que, no segundo caso de figura, estamos lidando com objetos definidos, coletivamente e de maneira bastante ampla, como altamente desejáveis. Se, geralmente, não se fala em desigualdade social perante o jeu de boules,6 6 . N. do T.: Jeu de boules: jogo tipicamente francês que lembra um pouco o jogo de bocha, a não ser pelos fatos, entre outros, de as bolas serem de metal e de não precisar de quadra especial. a costura ou o trabalho doméstico, é porque essas práticas (competências, saberes ou know-how), cuja distribuição diferencial no mundo social pode ser constatada objetivamente, são percebidas, de modo bastante global, como práticas especializadas (e não gerais) e secundárias (e não primordiais ou nobres). Portanto, apenas há desigualdade quando existe uma forte desejabilidade coletivamente definida. As "desejabilidades" cultuadas nos limites de subgrupos ou de pequenas comunidades nunca constroem condições para que surjam desigualdades sociais. É preciso, para tanto, que a vontade de ter acesso a tal ou tal série de bens ou práticas anime e motive uma população muito mais ampla.

Ora, mais uma vez, umas condições sociais particulares são necessárias para que uma população muito ampla seja interessada ou "tocada" por tal ou tal categoria de bens, saberes ou práticas. Mais precisamente, no que diz respeito à escola, o paradoxo está no fato de que as diferenças sociais para com os saberes escolares eram muito mais fortes antes de serem constituídas em desigualdades do que depois. De fato, terá sido preciso que uma população inteira seja escolarizada e submetida à obrigação escolar para que, num contexto econômico em que o acesso às posições profissionais mais privilegiadas dependia cada vez mais da obtenção de um nível de diploma elevado, as diferenças nos percursos escolares sejam coletivamente interpretáveis em termos de desigualdades escolares.

Até os anos de 1930, o sistema escolar francês apresenta-se, grosso modo (se excetuarmos o ensino técnico, profissional), na forma de duas grandes "redes": a escola primária gratuita, por um lado, e o segundo ciclo do ensino fundamental e o ensino médio, pagos, por outro. A repartição dos alunos entre esses dois pólos, portanto, ocorre claramente na base da origem social. Essa compartimentagem, que ressaltava nitidamente as diferenças entre filhos de origens sociais diferentes, vai ser progressivamente abalada por uma série de transformações institucionais: em 1930, a 5ª série do ensino fundamental torna-se gratuita; em 1933, essa medida se estende a todo o segundo ciclo do ensino fundamental, mas, ao mesmo tempo, cria-se um exame de ingresso na 5ª série; em 1936, a escolaridade obrigatória passa para 14 anos; em 1956, o exame de ingresso na 5ª série é extinto; em 1959, a escolaridade obrigatória passa a 16 anos; em 1963, cria-se o colégio de segundo ciclo do ensino fundamental, instituição escolar que reúne todos os alunos da 5ª à 8ª série, mas repartidos em filières; finalmente, em 1975, cria-se o segundo ciclo do ensino fundamental único, sem mais filières.

Desse breve apanhado de algumas transformações do sistema escolar francês no decorrer do século XX (Lahire, 1993) ressai o fato de que, por um lado, os filhos do povo, que costumavam ser escolarizados até o primário, vão freqüentar a escola de maneira mais durável e que, por outro lado, as duas "redes" escolares, profundamente distintas, vão tender a unificar-se. Ora, aos poucos, a inserção profissional começa a se decidir por intermédio da escola, ponto de passagem obrigatório que, paulatinamente, acolhe todos os filhos de uma classe de idade, julga-os e nota-os segundo critérios idênticos e os distribui em "vias" diferentes. A partir de então, é fadado a se tornar operário quem "fracassa" nos exames, porque foi escolarmente "relegado" a vias "não-nobres", porque "carece de inteligência" etc. O êxito social e profissional depende cada vez mais fortemente do nível escolar alcançado, o que torna a formação escolar altamente desejável por todos ou quase (durante muito tempo os trabalhadores independentes que seguiam a transmissão familial da herança profissional pequenos artesãos e comerciantes, agricultores distinguiram-se por sua indiferença relativa para com os valores escolares).

O discurso sobre as desigualdades sociais de acesso à escola somente pode instaurar-se quando a cultura escolar se torna um valor social coletivamente compartilhado. Isso lembra o caráter fundamentalmente histórico (e modificável) dos sentimentos coletivos de alta "desejabilidade" de tal ou tal categoria de bens, atividades ou saberes e obriga o pesquisador que costuma medir as diferentes espécies de desigualdades a tomar consciência das crenças coletivas que constituem as condições simbólicas de existência dessas desigualdades. Em vez de medir sem reflexividade as diferenças entre grupos, classes ou categorias sociais e de converter automaticamente toda diferença em desigualdade, o sociólogo deve se dar por objeto a gênese dessas crenças coletivas, os processos de legitimação, de deslegitimação ou de relegitimação dos diferentes tipos de bens, atividades ou saberes, e, finalmente, as lutas para a definição social do "que conta", do "que tem valor", em suma, do que faz "capital" aos olhos da maioria das pessoas.

Recebido em junho de 2003 e aprovado em agosto de 2003

1. Pierre Bourdieu fala em "lei social (...) que estabelece que o capital cultural vai ao capital cultural" e que dá conta da "eliminação escolar dos filhos mais desprovidos de capital cultural". (Bourdieu, 1982, p. 20).

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  • POIRRIER, P. L'État et la culture en France au XXe siècle Paris: Livre de Poche, 2000.
  • *
    Tradução de Alain François.
  • Notas
  • 2
    . Artigo republicado em Passeron, 1991, p. 89-109.
  • 3
    . A história mostra que, desde o começo do século XVII, em torno do rei da França, desconfia-se da instrução. Temia-se um povo camponês culto que desertaria o campo em favor das "Belas-Letras". Alguns queriam até excluir da instrução "aqueles que a Providência fez nascer numa condição de lavradores de terra, aos quais apenas se deveria ensinar a ler" (texto datado de 1667, citado por F. Furet e J. Ozouf, 1997, p. 76). Esse tipo de debate continuaria ao longo do século XVIII.
  • 4
    . "Apenas se pode, por exemplo, reprovar o modelo hegeliano da burocracia de Estado por ignorar que os servidores do Governo servem a seus interesses particulares sob coberto de servirem o universal se se admitir tacitamente que a burocracia pode, como ela pretende, servir ao universal e que os critérios e as críticas da razão e da moral podem portanto lhe ser legitimamente aplicados" (Bourdieu, 1994, p. 242).
  • 5
    . Desde 1963, Jacques Delors, então conselheiro dos Assuntos Sociais no Planejamento, encarregou Augustin Girard de criar um serviço de Estudos e Pesquisas no Ministério dos Assuntos Culturais. Este introduziria, no início dos anos de 1970, as grandes enquetes quantitativas que, desde então, perenizaram-se.
  • 6
    . N. do T.:
    Jeu de boules: jogo tipicamente francês que lembra um pouco o jogo de bocha, a não ser pelos fatos, entre outros, de as bolas serem de metal e de não precisar de quadra especial.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      23 Out 2003
    • Data do Fascículo
      Set 2003

    Histórico

    • Aceito
      Ago 2003
    • Recebido
      Jun 2003
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