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EDITORIAL

Neste segundo trimestre de 2010 a educação brasileira vê surgir uma série de medidas de grande impacto. Em primeiro lugar cabe comentar a divulgação do documento final da Conferência Nacional de Educação (conae), evento que ocorreu de 28 de março a 1º de abril deste ano e que tinha como tema a construção de um sistema nacional articulado de educação por meio da definição de diretrizes e estratégias de ação para o novo Plano Nacional de Educação (2011-2020).

Promessa que remonta ao início do primeiro mandato do Governo Lula, a conae acaba se realizando no último ano do segundo mandato, e este talvez seja o seu maior problema, uma vez que o novo governo que assumirá, em 2011, não estará, necessariamente, compromissado com as suas deliberações. Não obstante essa questão, a sua realização e as medidas por ela aprovadas terão um papel fundamental no debate e delineamento das políticas educacionais da próxima década. Precedida por conferências municipais, intermunicipais e estaduais que envolveram, nestas etapas, 2.416 delegados, os quais discutiram e sugeriram modificações ao documento de base que, após sistematizadas, resultaram em 694 emendas, as quais foram analisadas e votadas pelos 2.416 delegados presentes ao evento, além de 1.473 observadores.

De uma maneira geral, pode-se dizer que esses delegados representaram a riqueza e diversidade de todos aqueles envolvidos com as questões educacionais brasileiras: pais, alunos (alguns bem jovens), profissionais da educação, associações científicas (entre elas o cedes), movimentos sociais, sindicatos, entidades estudantis, administradores educacionais, entidades patronais e empresariais, entre outros segmentos. E aqui cabe ressaltar um aspecto relevante: embora tenha sido uma iniciativa estatal, ao contrário das cbes e coneds, a conae em seus debates e deliberações refletiu claramente uma hegemonia dos segmentos da sociedade civil e, neste sentido, é tributária e honra a tradição destes eventos.

Com relação às suas deliberações, que resultaram em um documento de 168 páginas (o qual pode ser acessado em: http://conae.mec. gov.br/images/stories/pdf/pdf/documento_final.pdf), cabe salientar o compromisso com a criação de um Sistema Nacional de Educação, uma das questões não resolvidas desde a Constituição Federal de 1988 (ver editorial do v. 31, n. 110, 2010, desta revista). Neste mesmo sentido, um passo importante foi dado pela Emenda Constitucional n. 59/2009 (a mesma que ampliou a escolaridade obrigatória para a faixa etária de 4 a 17 anos e extinguiu os efeitos da dru para a educação), ao introduzir na Carta Constitucional, pela primeira vez, essa expressão na nova redação dada ao art. 214:

A lei estabelecerá o Plano Nacional de Educação, de duração decenal, com o objetivo de articular o Sistema Nacional de Educação em regime de colaboração e definir diretrizes, objetivos, metas e estratégias de implementação para assegurar a manutenção e o desenvolvimento do ensino em seus diversos níveis, etapas e modalidades, por meio de ações integradas dos poderes públicos das diferentes esferas federativas (...). (grifo nosso)

A CONAE, em suas deliberações, avançou também em algumas metas e diretrizes que deverão constar no novo pne (2011-2020), na perspectiva de viabilizar uma educação pública com qualidade social para todos os brasileiros. Como já salientado no editorial da edição anterior da e&s, a conae somente alcançará legitimidade em sua articulação com o PNE.

O próximo número da e&s (112), que será temático, tratará especificamente da articulação entre as decisões da conae e as demandas sociais por um novo Plano Nacional de Educação.

Ao mesmo tempo em que vivemos com as expectativas positivas trazidas pela conae, outras medidas tomadas no âmbito do Executivo e do Legislativo, ainda neste primeiro semestre de 2010, trazem preocupação. A primeira delas é o projeto do senador Flávio Arns (psdb-pr), já aprovado no Senado Federal e em discussão terminativa na Comissão de Educação da Câmara dos Deputados, que reduz de 6 para 5 anos a idade de ingresso das crianças no ensino fundamental, roubando, na prática, um ano de educação básica em suas vidas. Tal projeto vem ao encontro de medidas equivocadas do mesmo Legislativo que, em 2005 (Lei n. 11.114), com omissão do mec, antecipou o ingresso para 6 anos de idade no ensino fundamental, quando este ainda tinha oito anos de duração, assim como as atuais dificuldades de se implantar o ensino fundamental de nove anos nos termos da Lei n. 11.274/2006. Vários estudos têm demonstrado como os equívocos na implementação desta lei têm restringido o direito das crianças de 6 anos a uma educação de qualidade, uma vez que são matriculadas em escolas de ensino fundamental, muitas delas sem qualquer adequação ao perfil dos novos alunos, o mesmo valendo para os docentes que as atendem. O que seria um avanço inegável, garantir o acesso à escola a todas as crianças de 6 anos, em muitos casos se tornou um pesadelo em função da diretriz de se atender essas crianças exclusivamente em escolas de ensino fundamental. Para enfrentar essa questão, o Conselho Nacional de Educação aprovou o Parecer cne/ceb n. 22/2009, de 9/12/2009, que determina a matrícula no primeiro ano do ensino fundamental somente de crianças que completarem 6 anos até 31 de março do ano em que ocorrer a matrícula. Crianças que completarem 6 anos de idade após essa data deverão ser matriculadas na pré-escola. Contudo, mesmo esse parecer tem sido solenemente ignorado por instâncias como, por exemplo, o Conselho Estadual de Educação de São Paulo, que legisla como se estivesse em um país à parte do Brasil. Para resolver essa questão somente uma nova lei deixando explícita a idade-limite para o ingresso no ensino fundamental nos termos do parecer mencionado, ou mesmo uma Medida Provisória (MP), medida necessária dada a urgência da questão e o dano irreversível para o direito das crianças ante a omissão dos poderes públicos. Curiosamente, o governo federal, tão pródigo em mps, optou por enviar um projeto de lei sobre a matéria.

Outra medida, agora do mec, e não prevista, ou defendida na conae, institui por intermédio de portaria (n. 14/2010), no âmbito do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (inep), o Exame Nacional de Ingresso na Carreira Docente, definido como "uma avaliação de conhecimentos, competências e habilidades para subsidiar a contratação de docentes para a educação básica no âmbito dos estados, do Distrito Federal e dos municípios.

Trata-se de mais um exame nacional na longa lista iniciada no governo anterior e ampliada neste (enem, saeb, Prova Brasil, enade, Provinha Brasil etc.). Entre tantas questões que se colocam perguntamos se esse exame irá resolver a questão da falta de bons professores nas escolas da educação básica. Não faltam bons cursos de formação de professores no Brasil. Segundo dados do Censo da Educação Superior do mec, em 2008 havia cerca de 350 mil vagas públicas em cursos de formação de professores para a educação básica. Só o sistema federal de educação superior, de reconhecida qualidade, tem potencial de formar 1,2 milhão de professores na próxima década. Logo, o problema para repor e melhorar o nosso quadro de professores da educação básica não passa pela falta de cursos, com exceção de algumas áreas, como Física e Química. Pelo mesmo motivo não se justificam os cursos a distância na área. A questão é outra: o que dificulta a seleção de bons professores é a baixa atratividade da profissão em função dos baixos salários e das condições cada vez mais difíceis de atuação profissional, particularmente aquelas que envolvem as relações entre professores e alunos. Segundo dados da pnad de 2008, metade dos professores que atuavam no ensino médio no país recebia menos de R$ 1.208 e a remuneração mensal média era de R$ 1.471. No caso dos professores formados em nível médio (maioria) e que atuavam na Educação Infantil, metade recebia até R$ 500 e a remuneração média era de R$ 572. De que forma o exame implantado pelo mec vai enfrentar essa questão? Por que a rede estadual de São Paulo possui mais de 40% de seus professores não efetivos, mesmo tendo realizado concursos nos últimos anos? A resposta é simples: muitos que prestam o concurso não passam e os que poderiam passar preferem optar por concursos em outras áreas, como a Receita Federal ou o Banco do Brasil.

As entidades nacionais de estudos e pesquisas em educação (entre elas o cedes), em documento entregue ao ministro (www.cedes. unicamp.br/documento_audiencia.htm) na audiência realizada no dia 7 de junho pp, externaram suas preocupações ante a Portaria e o Documento de Referência para a realização dos exames nacionais. Ao examinar a Portaria e o Documento de Referência, este disponibilizado na página do inep para receber contribuições, identificou-se no documento uma concepção de "base nacional curricular de competências e habilidades" em substituição à concepção de "Base Nacional curricular de formação de professores", reivindicação de longa data da anfope, presente nas Diretrizes Nacionais do Curso de Pedagogia:

  • "Revogue a Portaria n. 14/2010 e suspenda a montagem da matriz de referência do Exame pelo inep, em razão das profundas implicações desse Exame para a educação brasileira;

  • Retome, com urgência, a questão da definição e implantação do currículo de formação do professor, em favor de um amplo debate nacional, envolvendo as diferentes secretarias do mec, o cne e os órgãos gestores de estados e municípios, assim como as universidades e as entidades da sociedade civil que atuam na área".

Como resultado deste encontro foi publicada uma nota do ministro no site do mec (http://portal.mec.gov.br/index.php?option= com_content&view=article&id=15561:entidades-aprovam-proposta -de-haddad-para-criacao-de-comite&catid=222&Itemid=86) , bem como a Ata da Reunião constando procedimentos e encaminhamentos resultantes da audiência.

Ainda referente à Portaria n. 14/2010, o cedes organizou, em parceria com as Coordenações dos Cursos de Pedagogia e Licenciatura da fe/unicamp, um Debate sobre o "Exame Nacional de Ingresso na Carreira Docente", com a presença do presidente do inep, e de representantes de entidades (cedes e anped), no dia 14 de junho de 2010 (www.cedes.unicamp.br/cartaz_debate.jpg), cuja matéria, em processo de editoração, estará disponível no referido site.

Uma terceira medida, esta tomada pela Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação, em íntima sintonia com as deliberações da conae, merece destaque. Trata-se da aprovação por unanimidade do Custo Aluno-Qualidade Inicial (CAQI), por meio do Parecer cne/ceb n. 8/2010, de 5 de maio de 2010, e que teve como relator Mozart Ramos Neves. Fruto de uma luta iniciada em 2002 e coordenada pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação (www.campanhaeducacao.org.br), o CAQI busca definir os insumos básicos que devem ser assegurados a todos os estudantes do país, nas diferentes etapas e modalidades de ensino, atribuindo-se um valor monetário indexado ao pib per capita. Neste sentido, ele representa um passo além ao princípio da vinculação de recursos para a educação e ao fundeb, pois não se contenta com um padrão de financiamento centrado nos recursos disponíveis para a educação, como ocorre atualmente. Se o caqi já estivesse em vigor em 2009, os recursos disponíveis no âmbito do fundeb elevariam o valor mínimo por aluno no país para um patamar próximo ao de São Paulo (R$ 180/mês para as séries iniciais do ensino fundamental). Esse valor ainda está longe das mensalidades cobradas pelas escolas privadas frequentadas pelas classes médias e altas e mesmo das redes públicas de boa qualidade, como é o caso da rede federal, mas já seria um primeiro passo para reduzir as gigantescas distâncias existentes entre as condições de oferta das escolas frequentadas pelas crianças de diferentes classes sociais e de distintas regiões do país. Resta agora esperar que o ministro Fernando Haddad, em consonância com as diretrizes da conae, homologue o projeto de deliberação sobre o CAQI aprovado pelo CNE.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Ago 2010
  • Data do Fascículo
    Jun 2010
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