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1968: revolução ainda que inacabada

EDITORIAL

1968: revolução ainda que inacabada

Mundo afora, na televisão, no cinema, na academia, celebra-se o quadragésimo aniversário da revolta internacional dos estudantes em 1968: imagens, debates, seções de jornais, livros trazem a memória do ano em que "a juventude agitada", nas palavras que abrem o relatório da CIA sobre os impressionantes acontecimentos em curso, ocupava, sem pedir licença, escolas, praças, ruas, enfrentando a violência policial com "paus e pedras". Ao mesmo tempo, emergiam comportamentos transgressores, escolhas culturais marginais, falas e sons inéditos e irreverentes, que traziam à superfície profundos anseios de transformação radical do status quo. Da Califórnia ao Japão, dos grandes centros políticos e culturais do Ocidente e do leste da Europa até as grandes universidades da América Latina, os poderes constituídos se deparavam com uma avalanche crescente e incontrolável de movimentos contestatórios que exigiam mutações radicais, prometendo, ou ameaçando, virar o mundo de ponta-cabeça.

As reinterpretações que se produzem, hoje, em ocasião da celebração, buscam, mais uma vez, desvendar o que foi denominado o enigma de 68, polarizando-se em seus balanços e perspectivas: de um lado, aqueles que reconhecem, no espírito daquele "breve ano", o aflorar da revolta dos indivíduos contra as hierarquias, obrigações e regras que constrangem "as pulsações do desejo", sintetizadas na famosa fórmula "sexo, droga e rock and roll"; do outro, aqueles que, em contraste, acentuam a dimensão social, política e fortemente organizativa do movimento, patente, por exemplo, nas grandes mobilizações contra a guerra do Vietnã e em defesa dos direitos civis dos negros nos Estados Unidos, na busca de aliança com o movimento operário que resultou, na França, na greve dos 10 milhões, no apoio massivo dos estudantes alemães à luta dos vietcongs e nas reivindicações democráticas contra o autoritarismo político no Brasil, México e Checoslováquia e, sobretudo, no questionamento cabal e universal da escola enquanto forma de reprodução de um sistema opressivo e discriminatório.

Para os que gravitam em torno da primeira vertente interpretativa, o legado mais positivo de 68 consiste na expansão das liberdades e direitos das minorias étnicas e sexuais, na liberalização dos costumes e no relaxamento das relações autoritárias, sobretudo no âmbito da família e da escola, tendo, porém, como correlato execrável, a subordinação da ética hedonista aos interesses da indústria de bens de consumo, da qual a enorme expansão do mercado das drogas constituiria o exemplo mais trágico. Para os que reconhecem na revolta de 68 uma revolução social inacabada, o esclarecimento de seu enigma só pode vir de um exame do papel que todos os atores jogaram, inclusive nos campos, carregados de ambivalências, em que se estabeleciam os acordos e divergências entre os grupos conservadores e os progressistas já historicamente institucionalizados e integrados à sociedade vigente.

No estrito espaço deste editorial, a revista Educação & Sociedade pretende participar desta "festa de aniversário", realçando que a comemoração atual de um movimento nascido no solo das escolas e das universidades, longe de configurar uma homenagem ritualizada a mais um monumento histórico, se faz sob a forma de uma polêmica viva, fonte de criação intelectual e estética, buscando pensar o acontecimento passado na perspectiva de uma melhor compreensão dos desafios postos pela nossa conjuntura. Todos os vieses interpretativos, sejam os que reconhecem, de diferentes olhares, o alcance crítico e inovador de 68, sejam aqueles que desvinculam seus aspectos violentos e "desregrados" da perspectiva utópica, identificando nele apenas mais uma explosão da barbárie tão característica do século XX, testemunham, sob a forma do medo ou da esperança, a força de impacto de um movimento de massas que se colocava na perspectiva de ruptura radical com o modelo de vida, de trabalho, de produção cultural dominados pelo espírito mercantil. A busca do prazer, do sexo livre e da "viagem" ao imaginário propiciada pelas drogas não só não esgota o significado da revolta estudantil, como também não se explica, em si mesma, por uma lógica puramente hedonista. Associada permanentemente ao projeto de emancipação da liberdade e igualdade moderna de seu fundamento calculista, inscrevia-se numa luta em prol da expansão da autonomia e da liberdade do indivíduo que já tinha uma longa tradição na história do pensamento e da ação progressistas. As investidas dos grandes escritores políticos e dos literatos do século XVIII contra os constrangimentos que as instituições familiares e religiosas causam às liberdades naturais do homem, inclusive as sexuais, constituem um exemplo desta trilha que a modernidade traçou, encontrando na liberdade dos indivíduos um dos pressupostos para a realização da felicidade pública e privada. Nas primeiras décadas do século xix, o jovem Marx, ao narrar a destruição física e espiritual provocada pela transformação do homem em operário, criava a imagem de uma sociedade futura, onde, sem classes, nem instituições familiares e estatais, indivíduos igualmente livres para realizar suas diferentes inclinações, capacidades e gostos, compartilhariam os espaços e tempos fluídos e mutantes da atividade e fruição criativas e inteligentes, na arte, no afeto, na educação, governados apenas por uma postura ética que tem por fim a felicidade e liberdade de todos e a realização plena e complementar das potencialidades que se desvelam ao longo do percurso individual e histórico do homem. Não parece descabido encontrar uma linha de continuidade entre as utopias libertárias e igualitárias geradas na "era das revoluções" e a busca de uma forma de vida individual e social essencialmente diferente, levada adiante pelos estudantes de 68. Esta busca aliava-se à de uma arte transgressora, inspirada na literatura dos beatnik, na grande música negra americana e no cinema de vanguarda: uma criação artística que fosse capaz de traduzir a liberdade projetada no futuro e ensaiada na vivência marginal em imagens, palavras e ritmos. Ao mesmo tempo, os jovens elaboravam, nas assembléias, passeatas, salas de aulas, um discurso, e diálogo, político que questionava todas as formas de exploração, de opressão, de obediência cega e mecânica: o machismo, o racismo, o conformismo social, o autoritarismo da família e da escola estavam em sua mira, assim como a guerra imperialista, as formas ditatoriais do poder estatal, a racionalização capitalista, o poder burocrático de raiz estalinista. Na busca de um projeto global de transformação das relações vigentes, os ensinamentos teóricos advindos do marxismo originário e heterodoxo e dos visionários anárquicos do século XIX eram permanentemente evocados e discutidos em seus debates, junto ao pensamento e ação dos líderes e pensadores das revoluções e lutas anti-coloniais do segundo pós-guerra. Os textos de Trotsky, Rosa Luxemburgo, Bakunin mesclavam-se, nas estantes das livrarias, sebos, quartos dos estudantes, aos discursos de Malcom X, Martin Luther King, Robert Kennedy, às poesias de Ho Chi Minh, ao diário do Tche, ao Livro Vermelho de Mao Tse Tung. Na interlocução permanente com as utopias e teorias anticapitalistas emersas nos dois séculos anteriores e com os heróis e mártires seus contemporâneos, os jovens não se limitavam a reproduzir e divulgar seu legado e exemplo: criavam sua própria maneira de decodificar, negar e renovar as relações ossificadas na escola, na família, na cultura, na ação política e econômica, abrindo, na vida real, os caminhos da utopia. Realizaram, ainda que fugazmente, a profecia de Weber, segundo a qual a fuga da "prisão de ferro" em que o espírito capitalista enjaulou o homem contemporâneo só seria possível pelo vigoroso renascimento de velhos pensamentos e pela criação de outros, inteiramente novos.

A posterior massificação do consumo de drogas, dissociado do veio crítico e poético próprio a 68, e sua transformação em um sinistro negócio bilionário, vampiro de vidas humanas, assim como a apropriação da bandeira da libertação dos corpos pelas indústrias cosmética e cultural, combinam-se, em um aparente paradoxo, ao recrudescimento dos valores conservadores e fundamentalistas, estes últimos também fonte de enormes lucros para os novos mercadores da redenção das almas. Estes fenômenos são apresentados freqüentemente como um resíduo, um subproduto da rebeldia dos anos 60. No entanto, os negócios do prazer pelo prazer se expandem enormemente a partir da derrota e refluxo das forças políticas e culturas anticapitalistas, preparando a afirmação e crescimento das novas diretrizes denominadas "neoliberais", pelas quais o capital conduz uma guerra sem trégua aos que pensam e agem de forma essencialmente diferente, inclusive neutralizando seu alcance crítico pela metamorfose dos valores que se opõem ao mercado em conteúdos mercadológicos. Neste quadro, nos últimos 30 anos, o legado mais autêntico de 68 continua vivo nos movimentos sociais das minorias e maiorias pela conquista de direitos individuais e sociais inerentes a uma cidadania digna e, sobretudo, a partir da virada do século, no renascimento de mobilizações de massa que denunciam, em nível internacional, os crimes dos poderosos, movidos pela lógica brutal do lucro: nas lutas contra as novas guerras imperialistas, e as guerras sociais que dizimam milhões de "excluídos", contra a destruição sistemática dos recursos naturais do planeta, contra uma educação subordinada aos interesses do mercado, florescem novas formas de ação e de pensamento em diálogo com a experiência passada.

Para concluir, vale reiterar que a comemoração do aniversário, ao trazer à tona e debater documentos da época e depoimentos dos protagonistas, parece procurar, nos extraordinários acontecimentos de um passado ainda recente, um "indício" histórico de que "tudo o que é sólido pode desmanchar-se no ar". Em poucos meses, grandes contingentes da juventude mundial esboçaram e projetaram no futuro uma mutação do modo individual e coletivo de organizar a vida humana mais profunda do que é usual acontecer em 100 anos, deixando, como maior legado, a esperança de que pensar e agir, na perspectiva da efetivação da utopia, ainda pode ser a forma mais lúcida de realismo político.

Com este número de Educação & Sociedade prestamos homenagemà professora Maria Célia Marcondes de Moraes, que faleceu no dia 10 de abril último, por sua contribuição não apenas à reflexão crítica sobre o ceticismo contemporâneo - que relativiza a ciência, desqualifica a razão e nulifica a verdade -, mas notadamente à obra de interesse coletivo da área de pós-graduação e pesquisa em educação, que foi representála, com especial competência e esmero, junto a órgãos públicos federais como a CAPES e o CNPq, na última quadra de sua vida.

Comitê Editorial

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Mar 2009
  • Data do Fascículo
    Ago 2008
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