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EDUCAÇÃO & SOCIEDADE: UMA HISTÓRIA DE LUTA PELA EDUCAÇÃO PÚBLICA DE QUALIDADE PARA TODOS

Educação & Sociedade, revista que teve seu primeiro número lançado em setembro de 1978, está próxima de completar 40 anos. Sua proposta inicial identifica o periódico, de forma assumida, com a pretensão “de ser uma revista preocupada com a análise da realidade educacional brasileira, abrindo seu espaço para propostas intelectuais, tanto no que se refere a técnicas, doutrinas e práticas educacionais como no que se refere à reflexão sobre o seu impacto na sociedade como um todo: uma revista que tenha como foco a perspectiva da teoria e da prática no âmbito do conhecimento socioeducativo, procurando recuperar certa informação histórica dessa prática e teoria, sem deixar de responder aos problemas colocados pela educação brasileira contemporânea”.

Seu objetivo visava tornar coletiva a adesão individual ao seu compromisso de “reanimar a audiência, o debate e a crítica em torno dos problemas educacionais brasileiros a fim de repensar a educação passo a passo com a reconstrução da sociedade, reconhecendo que é esta a grande tarefa atual das ciências da educação”.

A operacionalização dessa intenção inicial foi, consequentemente, orientada para o interesse de articular “a prática da educação [...] reconhecendo a exigência de constante renovação dos conhecimentos e técnicas adquiridas [...] sobre o desenvolvimento das ciências que, trabalhando em estreita colaboração interdisciplinar, fazem avançar o conhecimento e a prática da educação” - trecho de “Apresentando nosso compromisso”, da edição do ano 1, número 1, da revista Educação & Sociedade, de setembro de 1978.

Esse compromisso inicial de Educação & Sociedade tem seu foco na realidade educacional brasileira, sua articulação com os diversos prismas da sociedade, sua integração na perspectiva teórico-prática, bem como seu vínculo com a dimensão sócio-histórica de seu desenvolvimento. Um projeto, portanto, caracterizado desde o início como coletivo e ancorado nas ciências da educação com enfoque interdisciplinar.

As perguntas centrais, sempre postas aos editores, conselhos editoriais, autores e leitores, dizem respeito à realização dessa proposta inicial ao longo da trajetória histórica da revista: ela tem cumprido, em toda a sua complexidade, o compromisso declaradamente assumido desde sua criação? Como vem marcando sua presença no campo editorial e acadêmico da educação?

Nossa percepção é de que as respostas a essas questões são positivas, ou seja, a presença da revista tem sido constante, forte e dinâmica em todos os momentos difíceis e complexos da história da educação nos últimos 40 anos. As inúmeras pesquisas, estudos e ensaios publicados atenderam e atendem ao compromisso de compreender criticamente a sempre complexa e dinâmica história da educação brasileira. Buscando apreender, explicitar e debater as mudanças em curso, como e por que ocorrem, desenhando cenários e caminhos possíveis para políticas educacionais respaldadas em amplo projeto pela defesa da educação pública, gratuita, laica e de qualidade socialmente referenciada.

No entanto uma compreensão mais profunda da construção de uma revista como Educação & Sociedade não pode se restringir à observação da política editorial formalmente assumida. É preciso atentar também para a política editorial não explícita, ou seja, aquela cujo conjunto de decisões e orientações emerge das circunstâncias históricas concretas. O movimento inicial orienta-se no sentido de conjugar o periódico ao momento histórico e político em que foi lançado e que exigia sua integração nos movimentos sociais e políticos, isto é, a correlação entre o educativo e o social, própria do processo de redemocratização da sociedade brasileira.

Realizou-se, então, a primeira edição dos Seminários da Educação Brasileira (SEBs), que, em um segundo momento, assumiram o formato mais amplo das Conferências Brasileiras da Educação (CBEs), com a participação de outras entidades do campo educativo social, tais como a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd), a Associação Nacional de Educação (ANDE) e o Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (CEDEC), entidades recém-organizadas e que se identificavam com os objetivos e compromissos de Educação & Sociedade. Nesse momento, a revista já se encontrava alocada no Centro de Estudos Educação & Sociedade, fundado em março de 1979. Esse foi um passo decisivo para a sua consolidação institucional e, consequentemente, para a realização de seus objetivos no campo de sua política editorial, tais como seções sobre a reorganização do campo dos profissionais da educação e divulgação do movimento editorial inovador no âmbito educacional.

A revista assumiu, como estratégia de sua política editorial, o acompanhamento das edições das conferências, procurando difundir a complexidade teórica e prática veiculada pelas suas temáticas, ancoradas na educação envolvida nessa intricada confluência. Visava à construção de um projeto nacional para a educação, incorporando movimentos históricos anteriores, como o dos Pioneiros da Educação dos anos 1930 e, mais tarde, o processo da formação social do país, de industrialização e urbanização, no sentido de fortalecer a universalização da educação pública, da sua democratização enraizada no processo maior da sociedade e dos movimentos políticos de resistência ao autoritarismo.

O enfrentamento de interesses divergentes marcou esse caminho de luta dando sustentação e, mais que isso, contribuiu para a construção do capítulo sobre educação na Assembleia Constituinte da nova Constituição brasileira, conhecida como a Carta Cidadã. Nesse contexto, a revista divulgou o Manifesto da IV CBE: Carta de Goiânia, que ensejou a construção do Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública (FNDEP), na Constituinte, iniciativa da ANDES articulada com as entidades organizadoras das CBEs, congregando 15 entidades em torno do seu Manifesto. Uma vez proclamada a Constituição, o fórum passou a assumir o foco decorrente da nova carta - a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) da Educação Nacional -, articulando, no parlamento brasileiro, o FNDEP na LDB.

A revista continua fomentando essa estratégia da produção e difusão do conhecimento, em conformidade com o seu compromisso inicial, por meio de projetos editoriais que, nos anos 1990, passaram a incorporar, além dos artigos de demanda espontânea, enfoques temáticos em dossiês e, anualmente, um número exclusivamente temático. Foram introduzidos também fascículos relativos a seminários, com a presença de autores nacionais e internacionais, ampliando, assim, sua participação nos debates contemporâneos. Ademais, a revista passou a ter periodicidade trimestral, dando um passo decisivo no sentido da acessibilidade, ao ficar disponível em formato digital com acesso aberto, desde 1999, na Scientific Electronic Library Online (SciELO).

Esse é o novo modo de proceder não explicitado para operacionalizar seu compromisso com a difusão qualificada da produção intelectual, declaradamente comprometida com a nova concepção de democratização da difusão do conhecimento com acesso aberto. Esse novo espaço, concebido como comunicação em rede e facultado pelo desenvolvimento das novas tecnologias, que trouxeram novas possibilidades de interação comunicativa, favoreceu a emergência de formas de percepção e apreensão do conhecimento no espaço fluido do novo tempo. Essa inovadora forma de disponibilização, constante e em rede, da produção do conhecimento permite o acesso ao conhecimento em vários níveis de complexidade, até mesmo reforçando a interdisciplinaridade, a agilidade e a fluidez, em contraponto às formas anteriores de acesso e à multifacetada objetividade da verdade.

A crescente visibilidade alcançada pela revista passou a exigir novas estratégias editoriais e novas linguagens. Se, no início, havia a possibilidade de consolidar explicitamente um projeto editorial a ser concretizado, agora a política editorial deveria se tornar real e concreta, ajustando-se às expectativas de um mundo envolto em constante e acelerado processo de transformação. Tudo isso marcou o início de uma trajetória que apontou para o grande desafio a ser enfrentado hoje no campo da produção e difusão da ciência. Não é mais possível se orientar com base numa visão fixa de longo prazo; ao contrário, há que se encontrar respostas aos questionamentos sempre emergentes da dinâmica social, cultural e educacional em constante movimento.

Por essa razão, a revista incorporou-se às novas dinâmicas das Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC), que operacionalizam as formas emergentes globais de produção e difusão científica, sejam elas institucionais, como os repositórios, sejam redes e coletivos de grupos de pesquisa temática ou individuais. A globalização, aliando-se às novas tecnologias de comunicação, inovou e fomentou novos espaços reais que revolucionaram e abalaram as formas tradicionais de abordagem e tratamento das produções científicas, literárias ou de divulgação.

Embora essas perspectivas globalizantes sejam de enorme relevância, elas não podem silenciar as dimensões, não menos importantes, da cultura nem dos interesses locais e regionais. Essa tensão entre, de um lado, a globalização e, de outro, a regionalização representa o novo desafio à educação, sobretudo no que diz respeito à formulação de políticas educacionais. Assim sendo, a produção de revistas não pode descurar dessa realidade regional, global e em movimento que exige sua permanente reinvenção sob a pena de colocar em risco a sua sobrevivência.

Em meio aos grandes desafios que se colocam ao ser humano e à educação perante a “nova razão de mundo” (DARDOT; LAVAL, 2016) no contexto político em que se impõe a pragmática neoliberal, abre-se o cenário de novas lutas e resistências. Efetivamente, a nova ascese do desempenho transforma o ser humano em empresa de si mesmo, submisso ao novo ethos do desempenho, à lógica da concorrência, à estratégia empresarial. Esse espírito empreendedor/empresarial está subliminarmente eliminando de todos os espaços da vida a noção do “público”, da “cidadania” e do “direito”, atingindo de maneira trágica a noção de justiça e igualdade social.

Nesses tempos conturbados, é preciso reinventar a política, as instituições e os espaços públicos para enfrentar a orquestração sistêmica que busca consagrar a exclusão social como se fosse algo natural e inevitavelmente condizente com a natureza humana. Vivemos um momento em que as instituições públicas, as instituições educacionais e os próprios indivíduos são induzidos a se submeterem às mesmas regras que orientam o mundo empresarial. Acentua-se a dominação da nova razão neoliberal, aplicando-se os princípios gerenciais aos setores públicos da saúde, da educação, da justiça, do direito e da cultura.

A reforma do Estado, seguindo os princípios de gestão do setor privado, universaliza a concepção utilitarista, supostamente neutra e mais eficiente. Nesse sentido, escolas, universidades, hospitais, tribunais e outras instituições públicas passam a ser consideradas empresas às quais se aplicam idênticas ferramentas de indução e controle de desempenho. Particularmente a educação tende a assumir como tarefa sua interiorizar nas novas gerações à lógica contábil dos princípios do desempenho, da competição, da eficiência, da produção de performances numericamente quantificáveis. São imprevisíveis os efeitos de dissolução que essa mercantilização pode exercer sobre os vínculos éticos e sociais humanos. Todas essas questões representam, no presente e no futuro, um enorme desafio para os espaços editoriais que, como Educação & Sociedade, se preocupam com temas como justiça, direito e dignidade humana. A revista cabe servir a esses valores fundacionais que são nossa identidade, isso em um contexto de evidente hegemonia da razão neoliberal em praticamente todas as dimensões da vida social, econômica e cultural, que esvazia a substância da democracia e desvaloriza o conhecimento, sobretudo no campo das ciências humanas e sociais.

Nessa perspectiva, embora não surpreenda, é extremamente preocupante o momento que a política educacional brasileira vem atravessando. São muito sérias as ameaças às conquistas alcançadas pelo empenho e luta não só dos setores mais diretamente ligados à educação, mas também de parte amplamente representativa da população pela educação como direito de todos e dever do Estado e da família, visando ao pleno e integral desenvolvimento da pessoa e sua preparação para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho. O rápido avanço do processo neoliberal de mercantilização e privatização da educação, promovido pelo governo e alguns setores da sociedade, até mesmo de algumas entidades representativas da área de educação, representa um retrocesso histórico, revertendo conquistas alcançadas no campo da educação pública garantida pelo Estado. A revista inaugura um novo espaço de luta.

Na celebração dos 40 anos de existência da Educação & Sociedade, seus editores, editores associados, conselhos nacional e internacional, colaboradores permanentes e pareceristas ad hoc e, sobretudo, seus autores, podemos olhar com orgulho para essa história de lutas, desafios, resistências e muito trabalho. Educação & Sociedade, desde sua criação, em 1978, esteve sempre aberta ao debate crítico e se engajou na luta em defesa da educação pública, como direito de todos e responsabilidade do Estado.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2017
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