No último mês de maio, o cenário da educação brasileira foi surpreendido por noticiários que repercutiram a compra do Grupo Somos Educação pela Kroton Educacional.
A aquisição de grupos empresariais de pequeno porte por congêneres de maior grandeza, por princípio, não causaria espanto, uma vez que se constitui em prática já consolidada no mercado educacional brasileiro. O processo apresenta-se com maior amplitude no ensino superior, pela deliberada ausência do Estado na oferta de vagas e em função das políticas de incentivos fiscais catapultadas pela liberalização de sua oferta a corporações privadas e pela vigência da educação superior como serviços nos acordos da Organização Mundial do Comércio (OMC). Objetivamente, na última década, o ensino superior no Brasil foi estimulado por políticas governamentais a expandir-se sob a proteção do setor privado e, com maior robustez, associado ao capital financeiro. Educação & Sociedade tratou do tema nos artigos de Sguissardi (2013), Oliveira (2009), Chaves (2010), entre outras publicações.
Entretanto, a presença dessa dinâmica no âmbito da educação básica tem sido pouco analisada na literatura especializada e agora, à luz do desconforto que causa a criação de um grupo econômico da proporção da junção da Kroton com o Somos Educação, o tema ganha ainda mais a necessária relevância.
A dinâmica a que nos referimos relaciona-se aos impactos da financeirização da economia na educação básica, tema também tratado por Educação & Sociedade em Adrião et al. (2009) e Adrião et al. (2016).
Concordando com Bastos (2013), entendemos a financeirização da economia como um processo sistêmico e mundial que, mesmo impactando desigual e diferentemente as economias dos distintos países, “tende a atrair para atividades especulativas, corporações, bancos, famílias e todo tipo de investidor, situação que influencia a própria estrutura de setores econômicos e dos mercados de câmbio, commodities e de trabalho” (BASTOS, 2013, p. 39). Com a educação, não seria diferente.
Adequando essa chave de análise para o Brasil, desde meados dos anos 2000, diversos grupos empresariais que atuam na educação optaram por se capitalizar por meio da abertura de seu capital na bolsa de valores, associando-se, inclusive, a fundos de investimentos. Tais grupos incidem de forma combinada na produção e venda de insumos curriculares, no desenvolvimento de “inovações” tecnológicas - com destaque para o ensino híbrido -, na disseminação de franquias de sistemas privados de ensino, inclusive para redes públicas, e no atendimento direto à educação por meio da aquisição de escolas autônomas ou da criação de escolas próprias. O segmento educacional no Brasil é, de fato, um dos mais lucrativos e diversificados, a ponto de estimular a vinda do Grupo Avenues, rede global de educação básica, cuja anuidade para a escola sediada em São Paulo, no ano letivo 2018-2019, será de R$ 124.300 (AVENUES WORLD HOLDING, 2018).
Entretanto, a fusão da Kroton Educacional, maior empresa educacional do mundo, com a Somos Educação, ex-Abril Educação, que foi propriedade do fundo de investimentos Tarpon Gestora de Recursos, escancara o processo de oligopolização do setor educacional e a urgência de medidas que regulem e limitem processos dessa natureza.
Não é demais lembrar, apoiados em Dowbor (2008), que o capital transnacional responde a interesses e projetos de poucos e influentes grupos, em sua maioria, associados ao mundo das finanças. Segundo o autor, já no início deste século, 66 grupos geriam 75% das movimentações especulativas planetárias, representando 2,1 trilhões de dólares por dia. Nessa direção, não se trata do interesse de uma ou outra corporação, mas da subordinação dos processos de reprodução do capital ao capital especulativo.
Essa concentração do capital em âmbito global está articulada às orientações recentes de organismos multilaterais e agências transnacionais para a educação, segundo as quais o direito à educação deve ser “travestido” de direito à aprendizagem (KLEES; SAMOFF; STROMQUIST, 2012). Nesse caso, a pretensão é que sejam consideradas todas e quaisquer “oportunidades” de aprendizagem, inclusive as não formais e as ofertadas pelo setor privado, potencializando-se o “mercado” educacional e a correlata desigualdade de “produtos” e “serviços” oferecidos. De sorte que se amplifica a relevância de reações, também em âmbito global, como a recente recomendação da Campanha Global pelo Direito à Educação (GLOBAL CAMPAIGN FOR EDUCATION, 2018), encaminhada aos financiadores internacionais da educação (International Financing for Education - IFFEd).
Em âmbito nacional, apresentam-se como necessários tanto a publicização dos fundos públicos repassados ao setor privado quanto o estabelecimento de limites e condições para a entrada e o investimento do capital internacional em educação, especialmente quando associado a fundos de investimento, uma vez que sua dinâmica é, por princípio, volátil.
Outro tema que merece preocupação e atenção das entidades científicas e dos movimentos sociais em defesa da escola pública é a recente apresentação do Relatório Substitutivo ao Projeto de Lei (PL) nº 7.180/2014, analisado na Comissão Especial denominada de Escola sem Partido. O relatório do Deputado Flavinho (Partido Social Cristão/SP) aglutina oito proposições legislativas, encabeçadas por um PL que quer promover uma alteração pontual, mas de grande significado, na Lei de Diretrizes e Bases (LDB): “Pretende incluir entre os princípios do ensino o respeito às convicções do aluno, de seus pais ou responsáveis, dando precedência aos valores de ordem familiar sobre a educação escolar nos aspectos relacionados à educação moral, sexual e religiosa” (BRASIL, 2018, p. 1).
A análise feita por Ximenes (2018) aponta que a maior parte do relatório tem o objetivo de justificar o conteúdo e a necessidade de afixação de cartazes em todas as escolas, salas de aulas e salas de professores, com os “Seis Deveres do Professor” propostos originalmente no PL nº 867/2015, que é o projeto modelo do “Escola sem Partido”, semelhante à legislação aprovada em Alagoas e que foi suspensa por inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal.
Na justificativa, argumenta-se
que não são normas inéditas a serem inseridas no ordenamento jurídico brasileiro, mas meras consubstanciações contextuais de princípios presentes na Constituição da República Federativa do Brasil. [...] Nenhum dever ou encargo a mais é posto sobre o professor que já não lhe compete; e nenhum novo direito é concedido ao aluno que já não o tenha” (BRASIL, 2018, p. 15).
Ximenes (2018) destaca, contudo, que essa argumentação não se sustenta nem jurídica nem simbolicamente. Em termos jurídicos, o cartaz anuncia deveres que querem
alterar o estatuto negativo de obrigações do magistério, com o agravante de incorporar obrigações de abstenção vagas e indeterminadas, como o dever de respeitar “o direito dos pais a que seus filhos recebam a educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções” (XIMENES, 2018).
Do ponto de vista simbólico, o PL encampa a falsa tese da “doutrinação”, que segundo os militantes do “Escola sem Partido” seria uma prática generalizada no Brasil. O ataque ao magistério é assim sintetizado pelo autor: “Nessa concepção, a inovação legal é retratar o professor como agente típico de violação moral, um antiprofissional militante que precisa ser controlado, urgentemente e a priori por um manual de abstenção de condutas” (XIMENES, 2018).
Essa alarmante pretensão, contudo, não pode ser tomada como o único ou o mais importante retrocesso pretendido no PL. Do ponto de vista dos embates históricos em torno da concepção de educação escolar e do papel do Estado e da família, embate sempre presente nos processos constituintes e legislativos desde a década de 1930, o PL quer a inclusão de um novo princípio do ensino, o princípio da precedência dos valores de ordem familiar “nos aspectos relacionados à educação moral, sexual e religiosa”.
É com base nessa proposta que o projeto retoma a censura expressa a campos inteiros do saber científico e da experiência social: “A educação não desenvolverá políticas de ensino, nem adotará currículo escolar, disciplinas obrigatórias, nem mesmo de forma complementar ou facultativa, que tendam a aplicar a ideologia de gênero, o termo ‘gênero’ ou ‘orientação sexual’” (BRASIL, 2018, p. 24-25).
Essa proposta
objetiva retroceder mais de dois séculos de construção de uma educação pública laica e republicana, ao se propor a recolonização da escola por valores familiares privados e a interdição do ensino sobre campos de conhecimento consolidados na literatura científica. Retira da própria LDB, uma lei sobre o ensino (art. 1º), o poder de regular uma parte significativa desse mesmo ensino, em favor da precedência da educação familiar (XIMENES, 2018).
Tal avaliação deve ser discutida e compreendida amplamente, sobretudo o fato de convergirem para esse PL não somente os mais destacados reacionários do Congresso Nacional, mas também setores conservadores tradicionais que historicamente disputam o sentido da escola pública e que agora, aparentemente, querem reverter a previsão legal em seu favor, aproveitando-se da onda de retrocessos em direitos políticos, civis, econômicos e socais que tomou o país.
A oligopolização e financeirização crescente da educação e a proposta de censura veiculada no referido PL têm um sentido comum, a promoção da privatização da educação básica, uma vez que têm como objetivo a redução da esfera pública, do que há de público e republicano na escola pública, em favor do mercado, no primeiro caso, e em favor da família e das religiões, no segundo caso. Contra ambos, reiteramos a urgência de reafirmarmos e defendermos os princípios básicos da educação pública democrática.
Referências
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Apr-Jun 2018