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Apresentação

APRESENTAÇÃO

Letramento é um conceito novo e fluido; ou melhor: um conceito novo e, por isso, fluido. No português do Brasil, a palavra só foi dicionarizada em 2001, no Dicionário HouaiSS da língua portuguesa; não aparece no Novo Aurélio Século XXI, publicado em 1999, nem no Michaelis: moderno dicionário da língua portuguesa, publicado em 1998. Também o recente Dicionário de usos do Português do Brasil (2002), de Francisco Borba, não inclui a palavra letramento; como é um dicionário que registra, com base em banco de dados, palavras ocorrentes em textos da língua escrita no Brasil na segunda metade do século XX, conclui-se que a palavra letramento não encontrou lugar, entre os 70 milhões de ocorrências que deram origem à obra. No entanto, letramento tem sido palavra bastante usada, desde os anos 90, no discurso educacional.

Terão sido a palavra e o conceito que ela designa uma criação acadêmica? Na linguagem corrente, na linguagem da mídia, tem-se falado muito de analfabetismo funcional, de alfabetização funcional, expressões cujo sentido se aproxima do sentido de letramento, mas não se identifica com ele. Mesmo na área acadêmica, o conceito é ainda fluido: letramento tem sido palavra que designa ora as práticas sociais de leitura e escrita, ora os eventos relacionados com o uso da escrita, ora os efeitos da escrita sobre uma sociedade ou sobre grupos sociais, ora o estado ou condição em que vivem indivíduos ou grupos sociais capazes de exercer as práticas de leitura e de escrita...

Sendo assim, uma opção para orientar um dossiê sobre letramento seria reunir artigos em que esse conceito fosse discutido, examinado, analisado. Pareceu, porém, mais adequado buscar esclarecer esse conceito por duas outras vias.

A primeira delas fundamenta-se em estudos de lexicologia e de semântica que têm mostrado que é o uso que vai definindo o sentido dos vocábulos; com esse pressuposto, quatro artigos deste dossiê buscam captar o sentido que tem sido atribuído a letramento em propostas de estabelecimento de níveis de competência no uso da leitura e da escrita: o artigo de Ferraro, o de Ribeiro, Vóvio & Moura, o de Bonamino, Coscarelli & Franco e o de Infante.

Ferraro, a partir de uma discussão sobre as "grandezas e misérias" das estatísticas educacionais no Brasil, e da indicação de noções de demografia fundamentais para a adequada compreensão delas, avalia, numa perspectiva histórica, não só os números sobre alfabetização e analfabetismo revelados pelos censos, ao longo do século XX, como também os conceitos de alfabetização, analfabetismo, letramento, subjacentes às medidas censitárias. O autor conclui por uma definição de níveis de letramento pelo critério de anos de escolaridade concluídos, o que permite classificar a população nesses níveis, a partir de dados do Censo.

Já Ribeiro, Vóvio & Moura definem letramento e propõem níveis de letramento em função de graus de domínio de habilidades e de usos de leitura e escrita, com base em pesquisa em que uma amostra representativa de jovens e adultos foi submetida a um teste e respondeu a um questionário. Assim, os dados analisados por Ferraro, com base no que as pessoas declaram sobre seu domínio da língua escrita, podem ser comparados com dados que se fundamentam no que as pessoas fazem, quando confrontadas com demandas de uso da língua escrita. Como Ribeiro, Vóvio & Moura indicam a relação dos níveis de letramento assim definidos com anos de escolaridade, torna-se rico e elucidativo o confronto de suas conclusões com as de Ferraro. O artigo relaciona, ainda, os níveis de letramento propostos com outras variáveis: renda, gênero, raça e idade, completando o quadro de análise do estado da cultura letrada neste país.

A questão do letramento e dos níveis de letramento da população não é uma questão apenas "nacional"; a preocupação com as habilidades de exercício das práticas de leitura e escrita está, hoje, presente não só no Brasil, mas também em todos os países da América do Sul, da América do Norte, da Europa: nos países da América Latina, caracterizam-se e buscam-se os níveis de alfabetismo da população; americanos e ingleses vêm avaliando níveis de illiteracy e buscando medidas para combatê-la; franceses vêm analisando e combatendo o fenômeno do illéttrisme, palavra e conceito que também na França, como aqui, tornaram-se correntes nas duas últimas décadas; em Portugal, discute-se hoje o fenômeno da literacia, palavra recentemente introduzida no português de Portugal, lá preferida à brasileira letramento. Assim, a fim de levar a questão para além das fronteiras brasileiras, o artigo de Infante, incluído neste dossiê, apresenta e discute pesquisa realizada pela UNESCO em sete países da América Latina para identificação de níveis de letramento da população adulta, por meio de teste de habilidades de leitura e avaliação de competências de prática social de leitura e escrita. O artigo permite não só conhecer a situação da América Latina em relação ao letramento, mas também a situação brasileira no contexto latino-americano, pela comparação dos dados e análise nele apresentados com os dados e análise apresentados nos artigos de Ferraro e de Ribeiro, Vóvio & Moura.

Como revelam os artigos anteriormente mencionados, a preocupação atual, em nível não só nacional mas também internacional, com o domínio das habilidades de leitura e escrita tem resultado em muitas e variadas iniciativas de avaliação dos níveis de letramento da população. O artigo de Ribeiro, Vóvio & Franco e o de Infante apresentam e analisam iniciativas não escolares, isto é, avaliação de níveis de letramento de jovens e adultos, já egressos da escola (embora estabeleçam sempre relações entre níveis de letramento e anos de escolaridade); já o artigo de Bonamino, Coscarelli & Franco apresenta e analisa duas iniciativas escolares, isto é, avaliação de níveis de letramento de estudantes ainda em processo de escolarização: uma avaliação de caráter nacional, o Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB), e uma internacional, o Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA). Em ambos os casos, os autores buscam identificar o conceito de letramento que subjaz aos instrumentos de avaliação das habilidades de leitura de estudantes e os resultados obtidos por estudantes brasileiros nessas avaliações – o nível de letramento dos estudantes brasileiros. Lançando mão de conceitos que Ferraro esclarece em seu artigo, pode-se dizer que, de certa forma, Ferraro, Ribeiro, Vóvio & Franco e Infante analisam o estado das pessoas no que se refere ao letramento (estado da população, no momento em que é submetida ao censo, estado de uma amostra da população, no momento em que é submetida a teste e questionário); já Bonamino, Coscarelli & Franco analisam, no caso do SAEB, o movimento da população escolar no progressivo avanço em direção ao letramento ao longo da escolaridade e ainda identificam, com base no PISA, diferenças culturais nos resultados quanto ao letramento, pelo confronto entre os resultados dos estudantes brasileiros e os resultados dos estudantes de outros países.

A segunda via por onde se procura, neste dossiê, esclarecer o conceito de letramento fundamenta-se em estudos de história das palavras que mostram que uma nova palavra e o novo conceito que ela carrega podem esclarecer-se se considerados sob dois prismas diferentes, mas complementares: em contraponto com sua ausência no passado e, ao contrário, em contraponto com sua possível caminhada em direção ao futuro. O artigo de Galvão volta-se para o primeiro desses prismas; o de Soares, para o segundo.

Galvão evidencia, sobretudo lançando mão de dados de pesquisa sobre leitura/audição de folhetos de cordel nas décadas de 30 e 40 do século XX, em Pernambuco, como, no passado, quando eram altas as taxas de analfabetismo e baixos os índices de escolarização, letramento e oralidade conviviam em uma população predominantemente oral (o que ainda ocorre, hoje, em numerosos grupos sociais brasileiros em que a cultura oral prevalece sobre a cultura escrita). A autora mostra como grupos tradicionalmente associados à oralidade estão, eles também, imersos no letramento, por meio de práticas orais de socialização do escrito e de aprendizagem não-escolar da cultura letrada. Pela aproximação entre os dois fenômenos – oralidade e letramento – o artigo relativiza e esclarece o conceito de letramento, além de alertar contra uma incorreta autonomização da cultura letrada, uma excessiva mitificação do mundo letrado e da escola como espaço exclusivo de aprendizagem da língua escrita; sobretudo mostra que letramento e oralidade não são fenômenos dicotômicos, mas circulares e complementares.

Finalmente, o artigo de Soares, considerando a emergência de uma nova tecnologia da escrita, a escrita eletrônica, discute novas práticas de leitura e de escrita que vêm configurando um letramento digital, que ameaça dominar o futuro, em concorrência com o letramento tipográfico. Assim, enquanto o artigo de Galvão busca a compreensão do letramento numa perspectiva presente-passado, considerando o binômio oralidade-escrita, o artigo de Soares busca essa mesma compreensão do letramento numa perspectiva presente-futuro, considerando o binômio escrita tipográfica-escrita eletrônica.

A expectativa é que este dossiê, procurando captar o conceito de letramento e analisando-o por vários prismas – buscando sua presença subjacente em processos de avaliação de níveis de habilidades de leitura e de escrita, associando-o a práticas de oralidade, confrontando tecnologias de escrita tipográfica e eletrônica – possa contribuir não só com o debate acadêmico na área da pesquisa e reflexão sobre práticas sociais de leitura e de escrita, mas também, e talvez sobretudo, com políticas públicas que busquem solucionar os graves problemas que o país vem enfrentando para propiciar à população este direito fundamental: o domínio de níveis de alfabetização e letramento que permitam o pleno exercício da cidadania.

Magda Soares

Faculdade de Educação da Universidade Federal de

Minas Gerais (UFMG)

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Fev 2003
  • Data do Fascículo
    Dez 2002
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